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Paris Saint-Germain vs. Manchester City. O “dérbi do Golfo” que vai muito além do futebol

Paris Saint-Germain e Manchester City disputam, esta quarta-feira, a primeira mão das meias-finais da Liga dos Campeões. Os dois clubes são pontas de lança ao serviço de dois países do Médio Oriente empenhados em projetar poder e influência em todo o mundo: Qatar e Emirados Árabes Unidos. A vitória no relvado terá também uma dimensão geopolítica

Ambos sonham conquistar a Liga dos Campeões e os muitos milhões que têm ao seu dispor aproximam-nos dessa possibilidade. Paris Saint-Germain (PSG) e Manchester City medem forças, esta quarta-feira, na primeira mão das meias-finais da prova milionária.

Mais do que uma disputa desportiva entre dois emblemas que querem chegar ao topo do futebol europeu, os jogos desta quarta-feira, em Paris, e de 4 de maio, em Manchester, têm implícito um braço de ferro entre dois países do Médio Oriente — o Qatar (dono do PSG) e os Emirados Árabes Unidos (proprietário do City) — que rivalizam entre si e que, tendo comprado estes dois emblemas, usam-nos como arma de soft power para projetar poder e influência em todo o mundo.

Será uma partida picante a nível político e a nível popular, já que cada clube é sinónimo de uma monarquia. Como tal, muitos tenderão a olhar para este jogo como uma disputa por procuração, mesmo que não estejam assim tão interessados em futebol”, diz ao Expresso David B. Roberts, investigador no King’s College, de Londres e autor do livro “Qatar: Securing the Global Ambitions of a City-state” (2017).

1880 É fundado o Manchester City Football Club. Foi comprado pelo Abu Dhabi United Group em 2008. Joga no Etihad Stadium e o patrocinador das camisolas é a Etihad Airways, uma das transportadoras aéreas dos Emirados Árabes Unidos

1970 O Paris Saint-Germain foi criado após fusão entre o Paris Football Club e o Stade Saint-Germain. Foi comprado pela Qatar Sports Investments em 2011. Joga no Parque dos Príncipes e tem entre os seus parceiros premium o Turismo do Qatar e a Qatar Airways

Qatar e Emirados são antigos protetorados britânicos que conservaram o gosto pelo futebol mesmo após declararem independência, em 1971. Passados 50 anos, servem-se desse património afetivo e da sua enorme riqueza — a do Qatar vem do gás natural e a dos Emirados, do petróleo — para se afirmarem, patrocinando clubes e comprando outros.

Desde 2008 que o Man City é detido pelo xeque Mansour bin Zayed Al Nahyan, membro da família real de Abu Dabi, principal dos sete emirados que compõem o país chamado Emirados Árabes Unidos. O Abu Dhabi United Group, empresa privada que comprou o City, é também dono do Bombaim FC, do Melbourne FC e do Cidade de Nova Iorque FC, entre outros clubes por todo o mundo.

Já o PSG foi comprado em 2011, numa altura em que andava arredado dos títulos, mesmo em França. Foi adquirido pelo próprio emir do Qatar, através do Qatar Sports Investments, fundo soberano que é uma espécie de ponta de lança do país no esforço de afirmação internacional. Ao leme do PSG, o Qatar mostrou cedo ao que vinha: em 2012 contratou Zlatan Ibrahimovic, em 2013 Edinson Cavani e David Beckham e em 2017 Kylian Mbappé e Neymar.

“O PSG é enorme no Qatar, por razões óbvias”, diz David B. Roberts. “Embora o futebol inglês seja dominador, regra geral, com as notáveis exceções dos dois clubes espanhóis [Real Madrid e Barcelona] cada vez menos pessoas admitirão apoiar o Man City no Qatar!”

A estratégia do pequeno emirado — que tem uma população de três milhões e área oito vezes menor do que Portugal — terá o seu ponto alto no próximo ano, quando o Qatar acolher o Mundial de futebol, que terminará uma semana antes do Natal.

Seja ou não um bom jogo, o duelo entre PSG e City terá inevitavelmente uma dimensão geopolítica, dada a rivalidade entre Qatar e Emirados e o facto de apoiarem fações contrárias em várias contendas do Médio Oriente. Cinco exemplos:

  1. BLOQUEIO AO QATAR. Os Emirados foram um dos quatro países que a 5 de junho de 2017 impuseram um bloqueio por terra, mar e ar ao Qatar. Durou 43 meses e terminou a 5 de janeiro passado, em vésperas de Joe Biden tomar posse como Presidente dos Estados Unidos e defender a necessidade de “recalibrar” a relação com a Arábia Saudita (primeiro país que Donald Trump visitou), outro promotor do bloqueio ao Qatar.
  2. RELAÇÃO COM O IRÃO. Apesar de Qatar e Emirados serem países muçulmanos sunitas, o Qatar tem uma relação de proximidade ao Irão (xiita) como nenhum outro país do Golfo. Para tal, não será alheio o facto de ambos partilharem o maior campo de gás do mundo. Já a relação entre Irão e Emirados tem-se pautado pela tensão, sobretudo em torno da disputa de três ilhas: Abu Musa, Grande Tunb e Pequena Tunb.
  3. INTERVENÇÃO NA LÍBIA. Neste longínquo país do Norte de África, em guerra desde o fim do regime de Muammar Kadhafi (2011), os Emirados apoiam as forças leais ao general rebelde Khalifa Haftar enquanto o Qatar alinha ao lado da Turquia em defesa do Governo de Tripoli, internacionalmente reconhecido. A relação com a Turquia — que tem uma base militar no Qatar — intensificou-se na sequência do bloqueio regional ao país.
  4. NORMALIZAÇÃO COM ISRAEL. Os Emirados foram um dos países árabes que, no ano passado, normalizaram a sua relação diplomática com Israel. Por seu lado, o Qatar é dos principais fornecedores de ajuda financeira ao território palestiniano da Faixa de Gaza (controlado pelo grupo islamita Hamas).
  5. APOIO A ISLAMITAS. Como revela a sua posição em relação à questão palestiniana, o Qatar não tem pejo em apoiar grupos islamitas — como o Hamas e, sobretudo, a Irmandade Muçulmana —, enquanto os Emirados se opõem terminantemente e os reprimem internamente.

PSG e City encontram-se na Champions num momento em que ecoa ainda o fracasso da Superliga Europeia, projeto que mereceu dos dois clubes posições contrárias: o City foi um dos fundadores e o PSG recusou participar.

“Para o PSG teve muito mais que ver com o papel mais amplo do sotf power, não tanto o dinheiro. O mesmo pode ser dito sobre o Man City e os seus proprietários”, diz Roberts. “Julgo que a diferença crucial se prende com a pressão de outras equipas inglesas sobre o Man City no sentido de aderir (por comparação à ausência de pressão em França), e com a relação muito próxima entre o PSG e a UEFA, a nível pessoal e institucional.”

Falhanços no desporto e na política

Para a história, o PSG (e o Qatar) ficou bem na fotografia, enquanto o Manchester City (e os Emirados) saiu rotulado como um dos “12 sujos”. “Para os Emirados, [o insucesso da Superliga Europeia] foi outro malogro depois de o seu bloqueio ao Qatar ter falhado por completo. Nenhuma das 13 exigências apresentadas ao Qatar em junho de 2017 foi cumprida, incluindo a exigência ridícula de fechar a Al Jazeera, cadeia noticiosa que estabeleceu novos padrões críticos para reportagens no Médio Oriente”, comenta ao Expresso Danyel Reiche, investigador na área da Política e Desporto, que lidera um projeto de investigação sobre o Campeonato do Mundo de 2022, na Universidade de Georgetown do Qatar.

“O presidente do PSG, Nasser Al-Khelaifi, foi muito esperto em não aderir à Superliga, proposta que ignorou o sentimento de uma vasta maioria de adeptos europeus, que rejeitam a americanização dos desportos europeus e a eliminação da meritocracia, com ligas fechadas sem promoções e despromoções. Creio que o PSG, e também os grandes clubes alemães, serão recompensados pela sua resistência à Superliga, ganhando o apoio de adeptos em todo o mundo. Isso é especialmente bom para o PSG, que era, até agora, sobretudo associado ao sucesso a partir de combustíveis fósseis.”

Para o PSG, a vitória neste embate significará a repetição da época passada, quando atingiu a final de Lisboa, que perdeu para o Bayern de Munique. Já para o City a chegada às meias-finais é feito inédito no palmarés do clube, numa altura em que a sua popularidade já teve melhores dias.

“Muito foi dito sobre os donos do Liverpool, que ignoraram o desejo dos adeptos. Mas para mim o desenvolvimento mais interessante foi o do Manchester City”, comenta ao Expresso Alan Bairner, professor de Desporto e Teoria Social na Universidade de Loughborough (Inglaterra). “No passado, muitos adeptos de outros clubes consideravam o City a sua segunda equipa, porque não era o Manchester United, era o verdadeiro clube de Manchester (o United tem sede em Salford). O City não teve muito êxito em grande parte da sua história e, no entanto, tinha adeptos locais leais. Questiono-me que pensarão os adeptos mais antigos sobre aquilo que o clube se tornou.”

A perspetiva de ganharem por fim a Liga dos Campeões talvez os leve a serem contidos em relação à liderança do clube. Para tal, o City terá de ultrapassar o PSG. Talvez nenhum outro duelo personifique atualmente o poder do dinheiro no futebol europeu.

(IMAGEM PMNEWS NIGERIA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de abril de 2021. Pode ser consultado aqui

Um novo Golfo, mais jovem e agitado

Outrora estável, conservadora e adepta da continuidade, a região vive hoje uma mudança acelerada

O Kuwait tornou-se, esta semana, o mais recente reino nas margens do Golfo Pérsico a instalar no poder uma nova liderança. Quinta-feira, um novo príncipe herdeiro prestou juramento diante do Parlamento, sensivelmente uma semana depois de Nawaf Al-Ahmad Al-Jaber Al-Sabah ter sido designado emir. Meios-irmãos entre si, são ambos octogenários, o que destoa de uma tendência crescente na região: a ascensão a cargos de poder de personalidades mais jovens.

“No caso do Kuwait, houve claramente uma aposta na estabilidade, no que toca à sucessão do xeque Al-Sabah [falecido a 29 de setembro], com o poder a permanecer nas mãos da velha guarda”, diz ao Expresso Manuel Castro e Almeida, doutorado em Relações Internacio­nais pela London School of Economics and Political Science, do Reino Unido.

O académico explica que, da mesma forma, “o novo sultão de Omã é da velha geração, embora nos primeiros meses de reinado tenha dado indicações positivas em matéria de reformas urgentes nas áreas da diversificação económica e da governação”. À semelhança do Kuwait, Omã tem novo chefe de Estado desde 10 de janeiro. Haitham bin Tariq Al Said, de 64 anos, sucedeu ao primo, o sultão Qabus, que morreu aos 80 anos a escassos meses de completar 50 anos no trono.

Estes monarcas chegam ao poder numa altura em que a dinâmica regional é muito marcada pela atuação individual de dois príncipes herdeiros, líderes de facto da Arábia Saudita — Mohammed bin Salman (M.B.S.), de 35 anos — e dos Emirados Árabes Unidos — Mohammed bin Zayed al Nahyan (M.B.Z.), de 59.

M.B.S. versus M.B.Z.

“É difícil dizer qual é o mais poderoso, mas a influência low profile dos Emirados, o seu soft power, é enorme e vai muito além da região. Os Emirados têm sido líderes da modernização no mundo árabe, como reconhecem em sondagens os jovens árabes por toda a região. M.B.S. quer posicionar a Arábia Saudita da mesma forma”, diz Manuel Castro e Almeida, diretor de pesquisa do Group ARK, empresa especializada na aplicação de projetos no Médio Oriente na área da prevenção do extremismo violento. Criou, por exemplo, os ‘Capacetes Brancos’ na Síria.

Num artigo publicado a 2 de junho de 2019, o influente “The New York Times” titulava: “O governante árabe mais poderoso não é M.B.S.. É M.B.Z.”. O analista português diz que “há uma relação de grande proximidade entre ambos” e que “M.B.Z. teve um papel como mentor de M.B.S.”.

Reformas substanciais

Pela sua dimensão territorial, pela liderança do mundo islâmico que reclama na qualidade de guardiã dos principais lugares santos do Islão (Meca e Medina), bem como pela rivalidade histórica com o vizinho persa (Irão), tudo o que acontece na Arábia Saudita tem impacto na região e na forma como, do estrangeiro, se olha para ela.

Neste capítulo, a governação de M.B.S. tem capitalizado. Entre as reformas mais sonantes promovidas pelo príncipe saudita estão a diminuição de poderes da polícia religiosa, a autorização para as mulheres conduzirem, o enfraquecimento do sistema de tutela masculino (que submete as sauditas à autoridade de um homem da família) e a abertura do país aos turistas.

“Tanto M.B.S. como M.B.Z. são reformadores”, diz Castro e Almeida. “Ambos apostam forte no conceito de boa governação e modernização dos seus países. Mas é preciso colocar esse carácter reformador no contexto local, nomeadamente em termos dos sistemas políticos, do contrato social vigente desde que estes países existem, da volatilidade da região na última década e do conservadorismo de segmentos substanciais das populações.”

No coração da região, há uma crise que dura há mais de três anos e que não dá mostras de sanar: o bloqueio ao Qatar — que é governado por um emir de 40 anos, Tamim bin Hamad Al Thani —, imposto por Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Bahrain (e também Egito). “É uma crise que acrescenta fragilidade e instabilidade não só ao Golfo como ao Médio Oriente como um todo.”

Emirados têm sido os líderes da modernização no mundo árabe. Arábia Saudita quer colocar-se de igual forma

“Mas o bloqueio é mais sintoma do que causa”, continua o analista. “Existem profundas diferenças estratégicas e ideo­lógicas dentro do Conselho de Cooperação do Golfo”, a organização regional composta pelas seis monarquias árabes, todas com a fonte de receita dominante no petróleo e no gás e todas tementes em relação ao vizinho da frente, o Irão.

“O apoio do Qatar aos grupos islamitas da região e a sua aliança com a Turquia fazem dele, para os líderes sauditas e dos Emirados, na melhor das hipóteses um vizinho incómodo e na pior uma ameaça”, prossegue Castro e Almeida.

O amigo israelita

Há menos de um mês, Emirados e Bahrain frustraram grande parte do mundo árabe ao assinarem um tratado de normalização diplomática com Israel (Acordos de Abraão). “Acredito que mais países sigam esse caminho, embora no caso da Arábia Saudita esse passo seja mais complexo. Riade liderou, no passado, a Iniciativa de Paz Árabe, que visava solucionar o conflito israelo-palestiniano. Dada a linha dura do atual Governo israelita em relação aos palestinianos, é complicado para a liderança saudita oficializar esse passo.”

A tudo isto acresce a intervenção militar da Arábia Saudita e dos Emirados no Iémen, que dura desde 2015, e a queda acentuada dos preços do petróleo e do gás, consequência do impacto económico global da pandemia. Conclui Manuel Castro e Almeida: “Para uma região que, nas últimas décadas, se definia mais pela estabilidade, continuidade e conservadorismo, é muita mudança em pouco tempo.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 10 de outubro de 2020. Pode ser consultado aqui e aqui

“500 Boeing 777 totalmente carregados”. Em tempo de aviões parados, Qatar aposta na “geopolítica covid”

O Qatar está a aproveitar a pandemia global para se afirmar como um país poderoso e solidário e, ao mesmo tempo, desvalorizar o bloqueio de que é alvo por parte de alguns “irmãos” árabes. O pivô ao serviço desta estratégia é a Qatar Airways

O surto do novo coronavírus paralisou a indústria da aviação em todo o mundo, mas a Qatar Airways anda num corrupio. A companhia aérea do Qatar mantém serviços comerciais regulares para dezenas de países e opera “charters” para repatriar cidadãos estrangeiros encurralados pelo fecho de fronteiras. Paralelamente, tem assegurado o transporte de toneladas de material e ajuda médica para países em desespero.

Só no mês de março trabalhou “com governos e organizações não governamentais de todo o mundo para transportar mais de 50 milhões de quilos de ajuda e suprimentos médicos”, congratulou-se a empresa no Twitter. “Isto equivale a cerca de 500 Boeing 777 totalmente carregados.”

A transportadora do pequeno reino ribeirinho ao Golfo Pérsico opera sobretudo para a Europa, Ásia e Austrália. Muitas vezes, a taxa de ocupação dos aparelhos fica pela metade, ou menos ainda. Akbar al-Baker, o presidente-executivo da Qatar Airways, já disse que a empresa só tem dinheiro para sustentar as operações por “um período muito curto”. “Certamente iremos pedir apoio ao nosso governo”, alertou, em declarações à agência Reuters.

O que motiva então a Qatar Airways a “torrar” dinheiro numa altura em que a esmagadora maioria das congéneres tem os hangares e pistas cheios de aviões parados?

“A Qatar Airways é muitas vezes considerada um instrumento de ‘soft power’ [a capacidade de influência de um país através da ideologia ou da cultura, e não das armas]. Eu concordo em certa medida. É uma boa maneira de o país se mostrar e, como se costuma dizer, ‘colocar o Qatar no mapa’”, explica ao Expresso David B. Roberts, investigador no King’s College, de Londres. “Mas essa ideia não deve ser levada longe demais. Eu não concordo com o ditado que diz que ‘não existe má publicidade’. Só porque o Qatar é conhecido, isso não significa automaticamente um impulso para o Estado.”

Mas é um facto que, nestes tempos de crise, o Qatar tem marcado pontos na forma como está a contrariar a inércia global forçada. Esta semana, James Cleverly, secretário de Estado do Reino Unido para o Médio Oriente e Norte de África, agradeceu à Qatar Airways por ter ajudado 45 mil britânicos espalhados pelo mundo a regressar a casa. Anteriormente, tinha sido o embaixador da Alemanha no país, Hans-Udo Muzel, a expressar gratidão.

Além de britânicos e alemães, o Qatar já ajudou a repatriar australianos, franceses, suíços, canadianos, norte-americanos, indianos, paquistaneses, filipinos e omanitas, em “charters” organizados pelos respetivos governos.

“Recebemos muitos pedidos de governos de todo o mundo para que a Qatar Airways não páre de voar”, disse Akbar al-Baker, presidente executivo da empresa. “Voaremos enquanto for necessário.”

O protagonismo da Qatar Airways ganha relevância quando dele fazemos uma interpretação geopolítica. Desde junho de 2017 que o Qatar é alvo de um bloqueio regional — económico, político e físico —, liderado pela Arábia Saudita e coadjuvado por Emirados Árabes Unidos, Bahrain e Egito. Entre as acusações feitas ao Qatar está a sua proximidade ao Irão.

O bloqueio agravou substancialmente o custo de vida no Qatar, mas o reino não dá mostras de cedências, mantendo, por exemplo, a ambição de realizar um Mundial de Futebol inesquecível, em 2022.

“As reservas financeiras do Qatar têm sido a sua principal arma. É o país mais rico à face da Terra em termos ‘per capita’, o que significa que pode comprar a forma de sair dos problemas e pedir emprestado o que necessita”, diz David B. Roberts, autor do livro “Qatar — Securing the Global Ambitions of a City-State” (2017). “O dinheiro não é tudo — a Venezuela deveria ser um Estado rico e a funcionar bem —, mas combinado com liderança sensata quase sempre resulta.”

A emergência resultante deste contexto de pandemia poderia contribuir para diluir a conflitualidade geopolítica no Golfo Pérsico, mas não é o que acontece. A 27 de março, 31 cidadãos do Bahrain, transportados num voo comercial da Qatar Airways desde o Irão (o país da região mais fustigado pela covid-19) ficaram retidos no aeroporto de Doha (capital do Qatar), impedidos de seguir viagem. O Bahrain é um dos pilares do bloqueio e não permite voos diretos com o Qatar.

Perante a nega, o Qatar — que tinha proposto fazer o transporte gratuitamente, em avião privado — ofereceu alojamento num hotel aos cidadãos do Bahrain.

“A interferência do Qatar na questão dos cidadãos retidos visa ofender o Bahrain”, acusou Khalid bin Ahmed al-Khalifa, ministro dos Negócios Estrangeiros do reino desde 2005 e até janeiro passado. “Doha deve parar de usar uma questão humanitária como a pandemia de covid-19 nos seus planos e conspirações contra países e povos.”

A contenda resolveu-se a 29 de março. Segundo a publicação “Bahrain Mirror”, os 31 cidadãos do Bahrain saíram do Qatar a bordo de um “charter” pago pelo seu país, fretado à companhia Iranian Kish, ou seja, do inimigo Irão.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 9 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui

“O mundo não pode suportar um grande conflito na região do Golfo”

O alerta foi dado esta quinta-feita pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, horas após duas embarcações comerciais terem sido atacadas no Golfo de Omã. Os EUA vão levar o caso a discussão no Conselho de Segurança da ONU

Os Estados Unidos tencionam levar a debate, esta quinta-feira, numa reunião do Conselho de Segurança da ONU à porta fechada, os ataques a dois cargueiros realizados esta manhã no Golfo de Omã.

“É inaceitável o ataque a transportes comerciais. Os ataques de hoje a navios no Golfo de Omã originam preocupações muito sérias”, afirmou o embaixador em exercício dos EUA nas Nações Unidas, Jonathan Cohen. “O Governo dos EUA está a providenciar assistência e continuará a avaliar a situação.”

Os ataques coincidiram com a visita do primeiro-ministro do Japão ao Irão, a primeira ao país de um chefe de governo nipónico desde a Revolução Islâmica de 1979.

A coincidência levou as autoridades de Teerão a expressarem desconfiança: “Alegados ataques a petroleiros relacionados com o Japão ocorreram durante o encontro entre o primeiro-ministro japonês Shinzo Abe e o ayatollah Ali Khamenei visando conversas extensas e amigáveis. [A palavra] suspeita não descreve o que possivelmente aconteceu esta manhã”.

Um dos navios atacados foi um petroleiro com bandeira das Ilhas Marshall, propriedade da empresa Norwegian company Frontline e sede nas Bermudas, que se incendiou. A outra embarcação atingida foi um cargueiro japonês que transportava químicos.

“Condeno fortemente qualquer ataque contra embarcações civis”, afirmou o secretário-geral da ONU, António Guterres, esta quinta-feira, numa reunião do Conselho de Segurança sobre cooperação com a Liga Árabe. “Os factos têm de ser apurados e as responsabilidades esclarecidas. Se há algo que o mundo não pode suportar é um grande conflito na região do Golfo.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de junho de 2019. Pode ser consultado aqui

Arábia Saudita e Qatar ‘unidos’ em nome de um perigo maior

Na próxima quinta-feira, na cidade santa de Meca, duas cimeiras árabes irão abordar a tensão no Golfo Pérsico. Por momentos, a Arábia Saudita “esqueceu” o bloqueio que impôs ao Qatar e convidou o Emir a estar presente

A escalada da tensão no Golfo Pérsico, protagonizada por Estados Unidos e Irão, está a aproximar “irmãos árabes” desavindos. No domingo, o Rei da Arábia Saudita convidou o Emir do Qatar a participar em duas cimeiras convocadas com caráter de urgência que terão lugar na próxima quinta-feira, na cidade saudita de Meca.

À mesa do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) — organização regional que integra as seis monarquias ribeirinhas àquele curso marítimo — e da Liga Árabe (composta por 22 países), estarão as recentes “agressões e respetivas consequências” na região, noticiou a agência de notícias saudita.

Arábia Saudita e Qatar estão de costas voltadas desde junho de 2017 quando os sauditas (apoiados por Emirados Árabes Unidos, Bahrain e Egito) impuseram ao Qatar um bloqueio económico e diplomático. A resolução do conflito está dependente da aceitação do Qatar de uma lista de 13 exigências — entre as quais o corte de relações diplomáticas com o Irão — que Doha não parece inclinada a acatar.

Riade “não quer a guerra”

O convite de Riade para o Qatar se fazer representar ao mais alto nível nos encontros de Meca foi entregue em Doha pelo secretário-geral do CCG, Abdullatif bin Rashid Al Zayani, lê-se num comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Qatar.

Para a Arábia Saudita, o estender de mão ao pequeno Emirado justifica-se em nome de um perigo maior: a rivalidade com o Irão, com quem o Qatar tem boa relação.

Riade acusa o Irão de estar na origem de recentes ataques com drones a instalações petrolíferas sauditas (reivindicados pelos rebeldes iemenitas huthis, aliados do Irão) bem como de atos de sabotagem a quatro navios comerciais ao largo dos Emirados Árabes Unidos (que ainda não divulgaram as conclusões da investigação aos casos).

Os incidentes levaram a um reforço do dispositivo militar norte-americano na região e a um agravamento da habitual retórica de confrontação entre a República Islâmica e os Estados Unidos. E levaram a Arábia Saudita a tentar deitar água na fervura assumindo que Riade “não quer uma guerra, não a procura e fará tudo para a impedir”, assegurou o ministro saudita dos Negócios Estrangeiros, Adel al-Jubeir.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de maio de 2019. Pode ser consultado aqui