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Tensão vai levar à guerra?

O acordo sobre o programa iraniano está por um fio, desgastado pelas sanções americanas e por jogos de guerra psicológica

INFOGRAFIA Jaime Figueiredo

A pergunta foi feita há treze anos, mas é possível que recebesse a mesma resposta se fosse colocada hoje. O inquilino da Casa Branca era então George W. Bush, os Estados Unidos tinham mais de 100 mil militares a ocupar o Iraque e uma desconfiança indisfarçável em relação ao Irão, inscrito por Washington no “eixo do mal” dos patrocinadores do terrorismo.

Em Lisboa, o ex-secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger dava uma conferência sobre “Perspetivas e desafios das crises mundiais”. No fim, o Expresso perguntou-lhe se considerava realista aplicar ao Irão a estratégia que os EUA tinham em curso no Iraque. “A ocupação militar do Irão seria um pesadelo”, respondeu.

Treze anos depois, a República Islâmica continua a temer uma intervenção militar norte-americana e Washington a alimentar esse cenário. O coronel Peter Mansoor, ex-número dois do general David Petraeus durante a Guerra do Iraque, garante ao Expresso que os EUA continuarão a pressionar o Irão, até porque “as sanções têm resultado”, depauperando a economia iraniana, algo que Washington considera “uma potencial alavanca para uma mudança de regime”.

Esta semana os EUA fizeram acompanhar a sua retórica punitiva por um reforço do dispositivo militar na zona do Golfo, após um conjunto de atos de sabotagem contra aliados seus terem feito soar os alarmes (ver infografia). “Não nos testem”, advertiu o embaixador iraniano no Reino Unido, Hamid Baeidinejad, considerando esse ‘mostrar de dentes’ “um jogo muito perigoso, ao tentar arrastar o Irão para uma guerra desnecessária”. “Julgo que parte disto é teatro por parte dos EUA”, referiu o diplomata. “Eles, ou pelo menos o Presidente Trump, não quererão envolver-se num confronto militar com o Irão que sairia muito caro aos EUA e à região.”

A asfixia das sanções

As águas do Golfo Pérsico têm estado especialmente revoltas desde que, a 8 de maio de 2018, de forma unilateral, Trump retirou os EUA do acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano, assinado pela Administração Obama, em 2015.

A 8 de abril passado, como que confirmando a existência de um roteiro visando o confronto com o regime dos ayatollahs, o Presidente dos EUA subiu a fasquia do confronto com o Irão como nunca antes um antecessor fizera. Trump rotulou os Guardas da Revolução, uma força de elite iraniana, de “organização terrorista estrangeira”. O Irão respondeu no mesmo dia, identificando qualquer militar norte-americano em missão na região como um alvo potencial.

Um mês depois, os iranianos mostraram que também eles têm um roteiro de resposta. Hassan Rouhani — o Presidente que tem sido o rosto
moderado do regime religioso e que, neste contexto, começa a soar como um conservador — anunciou a suspensão de duas obrigações decorrentes do acordo nuclear, relativas ao enriquecimento de urânio e às reservas de água pesada. E endossou a responsabilidade pela sobrevivência do acordo aos restantes signatários — Rússia, China, Reino Unido, França e Alemanha —, apresentando um ultimato de 60 dias para que tomem medidas práticas para aliviar o efeito das sanções, que visam punir também países terceiros que se atrevam, nomeadamente, a importar petróleo do Irão. Teerão continua a operar dentro dos parâmetros do acordo, mas começa a dar sinais em sentido contrário.

Resistir ao bullying

“Este ‘ultimato’ deve de ser interpretado como a vontade do Irão em manter o acordo vivo”, defende ao Expresso a cientista política Ghoncheh Tazmini. “Os EUA sabem que o Irão, com os seus sólidos parceiros regionais, com os seus próximos e forças substitutas, é à prova de bala. E enquanto o Irão tiver consciência de que estas são meras provocações psicológicas e bluffs, vai querer manter o acordo vivo. Mas também precisa de dar um sinal aos signatários que restam de que têm de demonstrar assertividade na pressão sobre os EUA, para mitigar o seu comportamento.”

A 31 de janeiro, Reino Unido, França e Alemanha anunciaram a criação do Instrumento de Apoio às Trocas Comerciais (Instex), um canal alternativo de pagamentos para proteger as transações com o Irão das sanções americanas. O projeto tem tido dificuldades operacionais, em particular face à necessidade de uma “estrutura espelho” do lado iraniano. “O Irão já demonstrou boa vontade ao permanecer no acordo um ano [após os EUA saírem] e ao cumprir”, continua a iraniana. “Mais tempo sem reciprocidade é sinal de que o Irão está a sucumbir à arbitrariedade e ao bullying.”

Para já, o Irão opta por responder à “pressão máxima” dos EUA com “medidas de retaliação mínimas”. “Para a narrativa da Administração Trump dará imenso jeito se o Irão radicalizar a sua posição e voltar a falar no ‘Grande Satã’”, diz ao Expresso Germano Almeida, especialista em política americana. “Mas, depois do modo como a Administração Trump tratou o Irão nos últimos dois anos, a intenção iraniana de sair do acordo será uma consequência e não a causa da hostilidade americana”, acrescenta. “A política de Trump em relação ao Irão aumenta a ameaça nuclear iraniana, em vez de a diminuir.”

À espera de outra Casa Branca

Hassan Rouhani, forte defensor do acordo, tentará também jogar com o tempo. A 3 de novembro de 2020, já falta menos de ano e meio, haverá eleições presidenciais nos EUA que poderão resultar num Presidente que não se chame Trump. Na corrida para tentar a reeleição, o magnata ainda não conseguiu averbar um êxito duradouro na frente internacional. A “amizade” com o norte-coreano Kim Jong-un tarda em trazer a paz definitiva à Península Coreana e, na Venezuela, a operação de substituição de Nicolás Maduro por Juan Guaidó está transformada num embaraço.

“A comparação com o caso da Coreia do Norte ajuda-nos a perceber o absurdo da posição de Trump em relação à questão nuclear”, acrescenta Germano Almeida. “Com Kim deu todas as hipóteses e benefícios da dúvida, apesar da repetição de sinais de que o regime de Pyongyang continua a não ser de confiar; com o Irão, exagerou na ameaça e não reconheceu as provas de cumprimento que Teerão deu enquanto Obama esteve na Casa Branca.” E, com isso, pôs os tambores da guerra a rufar no Médio Oriente.

DESCODIFICADOR

Quem apoia quem neste barril de pólvora

Sempre que EUA e Irão entram em choque, toda a região é arrastada para o problema. Em 40 anos de vida da República Islâmica, o Golfo já foi palco de três guerras

1. Porque se volta a falar de guerra na região do Golfo?
Desde que os EUA e a República Islâmica do Irão cortaram relações diplomáticas, em 1980, as margens do Golfo Pérsico viram rebentar três conflitos: a guerra Irão-Iraque (1980-88), a do Golfo (1990-91) e a invasão do Iraque (2003). A tensão atual decorre de um conjunto de atos de sabotagem detetados esta semana (ver infografia). Ao Expresso, fonte do Pentágono disse que “muito provavelmente” os drones usados contra petroleiros e outros alvos nos arredores de Riade “transportavam mísseis com tecnologia iraniana”.

2. Que planos de ataque tem a Administração Trump?
Segunda-feira, “The New York Times” divulgou uma reunião entre o secretário da Defesa em exercício e o conselheiro de Segurança Nacional John Bolton sobre um plano de envio de 120 mil militares para o Golfo. Trump rotulou o artigo de “falso” e disse que em caso de intervenção o número de tropas seria muito maior. A Casa Branca partilhou com a Suíça (que representa os seus interesses no Irão) um número de telefone direto para a eventualidade de os iranianos quererem dialogar. “Gostava que me ligassem”, disse Trump.

3. Há alguma manobra militar em curso?
A chegada à região do Golfo, esta semana, de uma frota de guerra comandada pelo porta-aviões “USS Abraham Lincoln” soou a preparativo para a guerra. O coronel Peter Mansoor, veterano da Guerra do Iraque, explicou ao Expresso que o reforço do contingente não prova um aumento de tensão. Em causa estão meios frequentemente deslocados para uma região onde os EUA têm bases militares e têm estado envolvidos em guerras sucessivas (como Iraque e Afeganistão). “Não é um reforço em massa. É uma mensagem”, disse Mansoor.

4. Que aliados tem o Irão no Médio Oriente?
Quarta-feira, os EUA ordenaram o encerramento parcial da sua embaixada em Bagdade, temendo ataques de milícias xiitas pró-Irão. A alteração de poder no Iraque após a guerra de 2003 colocou este país de maioria xiita na órbita do Irão, o gigante xiita do Médio Oriente. Teerão também tem ascendente sobre o regime alauita na Síria e sobre dois grupos armados com grande potencial desestabilizador: o Hezbollah libanês (ameaça quotidiana para Israel) e os houthis, no Iémen, que resistem há quatro anos a uma ofensiva saudita.

5. Quem está ao lado dos Estados Unidos?
De frente para o Irão, a Arábia Saudita é um aliado inevitável, desde logo pela rivalidade histórica que personifica (é uma monarquia árabe sunita) com o gigante iraniano (república persa xiita). O outro grande apoio dos EUA é Israel, que, não estando no centro da contenda, é uma omnipresença na conflitualidade do Médio Oriente. “Estamos unidos no desejo de parar a agressão iraniana”, disse esta semana o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. “Derrotaremos a frente americano-sionista”, respondeu Amir Hatami, ministro da Defesa do Irão.

Textos escritos com Ricardo Lourenço, correspondente nos Estados Unidos.

Artigo publicado no “Expresso”, a 18 de maio de 2019

Golfo cada vez mais revolto

Refém do bloqueio ao Qatar, decretado, há meio ano, por três dos seus membros, o Conselho de Cooperação do Golfo realizou a sua cimeira anual esta terça-feira. Sem brilho e com um anúncio preocupante: Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos estabeleceram uma parceria em separado

Não há como esconder — ou remendar — a crise no Golfo Pérsico. Reunido esta terça-feira, no Kuwait, para a sua cimeira anual, o Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) exibiu brechas que fazem temer pelo seu futuro.

Previsto para durar dois dias, o encontro entre seis países ribeirinhos ao Golfo esgotou a agenda — não tornada pública — em apenas um, “com todos os delegados a deixarem o Kuwait após uma sessão à porta fechada”, reporta a Al-Jazeera.

Fundado em 1981, o CCG vive a sua pior crise de sempre. Há precisamente meio ano, a 5 de junho, três dos seus membros cortaram relações diplomáticas e decretaram um bloqueio por terra, mar e ar contra um quarto membro. De um lado, Arábia Saudita, Bahrain e Emirados Árabes Unidos (EAU), a que se junto o Egito (todos Estados árabes sunitas), do outro o Qatar, acusado de apoiar o terrorismo e de ter uma relação próxima com o arqui-inimigo Irão (país persa xiita).

Esta divergência agravou-se nesta cimeira, no Kuwait, país que tem tentado servir de mediador nesta crise. Segundo um comunicado emitido pelo ministério dos Negócios Estrangeiros dos Emirados Árabes Unidos, este país juntamente com a Arábia Saudita celebraram uma nova parceria militar e comercial, à margem da organização regional.

A nova aliança entre Riade e Abu Dabi visa “a cooperação e coordenação” entre os dois países “em todos os campos a nível militar, político, económico, comercial e cultural”. Teme-se, porém, que contribua para esvaziar a organização e intensificar, ainda mais, os antagonismos nesta região estratégica.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de dezembro de 2017. Pode ser consultado aqui

Tsunami político no Golfo

Um embargo decretado por quatro “irmãos árabes” empurra o Qatar para os braços do inimigo Irão

Arábia Saudita acusa o Qatar de apoiar grupos extremistas. A Arábia Saudita acusa o Irão de proteger o Qatar. O Irão é atacado pelo Daesh, o mais cruel dos extremistas. Bem vindos ao Médio Oriente!

Esta semana, em apenas três dias, uma crise diplomática no seio do mundo sunita — que isolou o Qatar — e um duplo atentado na capital do Irão — o gigante xiita — expuseram toda a complexidade geopolítica do Médio Oriente que transcende a rivalidade sectária sunitas-xiitas no seio do Islão. “Não vejo uma relação direta entre os ataques terroristas no Irão e a crise sobre o Qatar. Mas as políticas externas geopoliticamente analfabetas da Administração Trump são um factor importante na desestabilização da política mundial, do Golfo Pérsico à Coreia do Norte”, disse ao “Expresso” Arshin Adib-Moghaddam, professor de Pensamento Global e Filosofias Comparadas na Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres.

“Este Presidente colocou-se no lado errado da história, e a escolha errada de aliados e parceiros vai continuar a inibir e a limitar a posição dos EUA em todo o mundo. Sob esta liderança, o país assemelha-se a uma superpotência decadente.”

Quarta-feira, um duplo atentado em Teerão contra o Parlamento e o mausoléu do “ayatollah” Ruhollah Khomeini, o fundador da República Islâmica, provocou 13 mortos. O Daesh reivindicou e Teerão confirmou que cinco detidos, todos iranianos, estiveram em Mossul e Raqqa, bastiões do Daesh no Iraque e Síria. Fica, porém, por perceber a lógica do violento ataque desferido pelo rei da Arábia Saudita quando da recente visita de Donald Trump ao país: “O regime iraniano tem sido o ponta de lança do terrorismo mundial”, disse. O ataque desta semana mostra que o Irão é alvo da maior das ameaças.

Fora da órbita saudita

Dois dias antes, quatro países árabes sunitas cortaram relações com o igualmente sunita Qatar e decretaram um bloqueio por terra, mar e ar. Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrain e Egito acusam Doha de apoiar “grupos extremistas” e exigem mudanças na sua política externa. Em causa está o apoio do Qatar a grupos como a Irmandade Muçulmana e o Hamas, que, acusam, mina o regime egípcio e a Autoridade Palestiniana.

Em causa está também a proximidade do Qatar ao vizinho da frente, o Irão, justificada pela necessidade do pequeno país não ficar na dependência do gigante saudita. “Irão e Qatar têm tido um relacionamento funcional. Com o campo de exploração de gás South Pars, os dois países partilham um dos maiores campos do mundo. A liderança qatariana tem provado ser suficientemente prudente para abster-se de antagonizar a liderança iraniana”, explica Arshin Adib-Moghaddam. “Por sua vez, o Irão do Presidente Hassan Rouhani é inflexível no desenvolvimento de uma relação próxima com o Qatar que o atraia para fora da órbita da Arábia Saudita.”

Mas se o Qatar é punido pelos “irmãos árabes” pela sua abertura ao Irão (persa), o isolamento a que foi votado coloca-o numa dependência total do… Irão. Para a aviação qatariana, o espaço aéreo iraniano é a única rota de saída possível. Igualmente, em caso de rutura alimentar — Arábia Saudita e Emirados eram os principais fornecedores —, Teerão já fez saber que está disponível para facilitar o trânsito de água e alimentos através dos seus portos.

Quinta-feira, o ministro dos Negócios Estrangeiros do Qatar admitiu nunca ter sentido tanta hostilidade, e foi categórico: “Não estamos preparados para entregar, nem nunca entregaremos, a independência da nossa política externa”.

Al-Jazeera e futebol

Independente desde 1971, o Qatar apostou numa agenda internacional ambiciosa como fórmula de sobrevivência. Projetos como a Al-Jazeera — “um órgão de informação hostil”, diz Riade —, a realização do Mundial de Futebol de 2022 ou o patrocínio ao mediático Barcelona (pela Qatar Foundation e depois pela Qatar Airways) são armas dessa afirmação.

O reino procura estar de bem “com deus e o diabo”. Alberga a maior base aérea dos EUA na região (Al-Udeid) e desenvolve “amizades perigosas” com inimigos dos norte-americanos. Permite a construção de igrejas no território e partilha com a Arábia Saudita a interpretação wahabita do Islão.

Quarta-feira, a Turquia (que como o Irão não é árabe) aprovou o envio de um contingente para uma base turca em construção no Qatar. O Presidente Recep Erdogan disse que “a movimentação visa contribuir para a paz regional e mundial”.

25 ANOS DE DISPUTAS

2017 — A 5 de junho, Arábia Saudita, Bahrain, Emirados Árabes Unidos (EAU) e Egito cortam relações diplomáticas com o Qatar. Riade aceita abrir a fronteira a qatarianos a caminho de Meca e Medina

2014 — Arábia Saudita, EAU e Bahrain suspendem contactos com o Qatar devido ao apoio de Doha à Irmandade Muçulmana. A relação normaliza oito meses depois: os três embaixadores regressam à capital qatariana

2002 — Riade retira o embaixador de Doha após comentários de dissidentes sauditas na Al-Jazeera. A relação descongela em 2008 com a visita a Doha do príncipe herdeiro saudita

2000 — O então príncipe herdeiro saudita, Abdullah bin Abdul Aziz (rei entre 2005 e 2015), boicota uma cimeira da Organização da Conferência Islâmica, em Doha, em protesto contra as relações comerciais entre Qatar e Israel

1992 — Disputa fronteiriça entre Qatar e Arábia Saudita faz três mortos. Em 1996, os dois países iniciam um processo de delimitação de fronteiras, finalizado três anos depois

Artigo publicado no Expresso, a 10 de junho de 2017 e republicado no “Expresso Online” a 11 de junho de 2017. Pode ser consultado aqui

“Refugiados não querem ir para o Golfo”

Chegado a Lisboa há cerca de meio ano, o embaixador kuwaitiano recorda que o seu país foi pioneiro na ajuda aos refugiados

O êxodo de milhões de pessoas para fugir aos conflitos no Médio Oriente colocou sob fogo os países árabes ribeirinhos do Golfo Pérsico. Por que razão as ricas petromonarquias não se mostravam disponíveis para acolher refugiados? “É para a Europa que os refugiados querem ir, e não para a região do Golfo”, justifica o embaixador do Kuwait em Portugal, Fahad Salim al-Sabah, em entrevista ao “Expresso”. “Ninguém pediu para ir para o Kuwait. Os refugiados querem ir para a Europa e para a América.”

O diplomata, membro da família real que governa o território desde o século XVIII, garante que o Kuwait está de portas abertas para receber refugiados sírios. “Há uma grande comunidade de sírios [cerca de 120 mil] que vive no país há dezenas de anos. Se tiverem familiares em situações difíceis na Síria, estes podem vir diretamente para o Kuwait. A Síria é um país em agonia e nós estamos atentos a isso.”

A guerra na Síria dura há mais de cinco anos e há quatro que o Kuwait se empenha na realização de conferências internacionais de doadores. A 30 de janeiro de 2013, quando ainda ninguém tinha ouvido falar do autodenominado Estado Islâmico (Daesh) nem a crise dos refugiados assumira as proporções atuais, o Kuwait acolheu a primeira cimeira do género. “O emir Sabah Al-Ahmad Al-Jaber Al-Sabah [no trono desde 2006] previu o que acabou por acontecer. Ele é o decano mundial dos ministros dos Negócios Estrangeiros, exerceu o cargo durante 40 anos [1963-2003]. Tem uma visão estratégica de longo prazo.”

No conjunto das quatro conferências de doadores já organizadas desde 2013 — as três primeiras na Cidade do Kuwait —, já foram angariados quase 18 mil milhões de dólares (16 mil milhões de euros). Para esse bolo, o Kuwait contribuiu com 1600 milhões de dólares (1400 milhões de euros). “O emir é um humanista. Percebeu desde o início desta crise que o problema era sério, quando outros pensavam que era temporário e que terminaria em meses. Ele conhecia as consequências e previu o efeito bola de neve.”

Portugal sem embaixada

Chegado a Lisboa há meio ano, Fahad Salim al-Sabah é apenas o segundo diplomata kuwaitiano desde 2010, ano em que foi aberta a embaixada. Inversamente, Portugal não tem embaixada no Kuwait — é o diplomata nos Emirados Árabes Unidos quem representa Portugal. “Estou ansioso por ver um embaixador português no Kuwait de forma a que possa transmitir informações aos empreendedores e às empresas portuguesas sobre o meu país.”

As trocas comerciais entre os dois países são modestas. Dados da AICEP referentes a 2015 revelam que o Kuwait está em 76.º lugar na lista de clientes de Portugal (compra sobretudo produtos agroalimentares, eletrodomésticos, calçado, madeira e papel) e em 95.º na de fornecedores. O embaixador já começou a visitar o país e confessou-se impressionado com o Centro de Incubação de Empresas de V. N. de Gaia (INOVAGAIA). Quer ir também para sul, apreciar o sector do turismo.

“Estou ansioso por ver um embaixador português no Kuwait. Seria uma ajuda às empresas portuguesas”

Com quatro milhões de habitantes (dois terços são imigrantes), o Kuwait é o 10.º produtor mundial de petróleo e o 4.º maior exportador. A baixa do preço do crude no mercado internacional não apanhou o país desprevenido. “Conseguimos estabilizar a situação porque diversificámos os nossos investimentos internacionais nos anos 70. Investimos em todo o mundo, em todos os mercados.” Portugal está na agenda.

(Foto: Placa no muro da Embaixada do Estado do Kuwait, em Lisboa MARGARIDA MOTA)

Artigo publicado no Expresso, a 9 de abril de 2016

Faíscas num barril de pólvora

A Arábia Saudita cortou relações com o Irão. A rivalidade transcende a religião e tem potencial para incendiar toda a região

Arábia Saudita e Irão, os dois gigantes do Médio Oriente WIKIMEDIA COMMONS

Sempre que a relação entre Irão e Arábia Saudita azeda, agita-se a bandeira de um conflito global entre sunitas e xiitas. No entanto, a rivalidade entre os dois gigantes do Médio Oriente vai muito além da religião. “A rivalidade é essencialmente geoestratégica e a desastrosa invasão do Iraque, que destruiu um dos três pilares de equilíbrio do poder regional, veio agravar de sobremaneira esta rivalidade”, explica ao Expresso Manuel Castro e Almeida, colunista do sítio da televisão Al-Arabiya. “Em tempos de crise como os de hoje, o elemento religioso/sectário ganha mais importância.”

A questão voltou a colocar-se esta semana, na sequência do corte de relações diplomáticas, no domingo, decretado pela Arábia Saudita, após a sua embaixada em Teerão ter sido atacada por iranianos em fúria contra a decapitação de um clérigo saudita xiita — braço do Islão minoritário no reino que é o guardião das mesquitas sagradas de Meca e Medina.

“A decisão de cortar relações é inevitável após o ataque à embaixada saudita em Teerão. Qualquer outro país faria o mesmo”, continua o ex-editor do jornal “Asharq Al-Awsat”. “Há muita especulação sobre as intenções da Arábia Saudita ao executar Al-Nimr. Alguns analistas veem-no como uma manobra destabilizadora numa altura em que há uma relativa melhoria nas relações entre o Irão e o Ocidente depois do acordo sobre o programa nuclear iraniano”, assinado em Genebra, a 14 de julho.

Revolução iraniana mudou tudo

O xeque Nimr al-Nimr foi condenado à morte juntamente com mais 46 pessoas (na esmagadora maioria sunitas), acusadas de participação em “organizações terroristas” e “conspirações criminosas”. “Al-Nimr não era um ativista pacífico como foi descrito por parte da imprensa internacional”, continua o analista. “Durante anos, muito antes da primavera árabe, advogou nos sermões que a dinastia Al-Saud era ilegítima, que os xiitas na Arábia Saudita deviam optar pela resistência armada contra o Governo e até o secessionismo. Os sauditas defendem que não o executaram por ser xiita, mas pelo seu papel de incentivador da violência armada.”

No Médio Oriente, os xiitas — que, basicamente, se distinguem dos sunitas por defenderem Ali na linha de sucessão do Profeta Maomé — são maioritários em apenas três países: Irão, Iraque e Bahrain. No resto do mundo islâmico o sunismo é a corrente dominante mas desde a Revolução Islâmica no Irão, em 1979, o peso demográfico das duas sensibilidades deixou de ter uma importância meramente estatística…

“Historicamente, a relação entre Arábia Saudita e Irão foi, de uma maneira geral, racional e cordial, especialmente quando ambos se centraram não em questões ideológicas mas nos seus interesses nacionais”, defende Manuel Castro e Almeida. “As relações pioraram drasticamente com a revolução iraniana. A política externa iraniana passou a assentar no objetivo de exportar a revolução para o mundo árabe” — o Irão não é um país árabe, mas antes de cultura persa —, “incentivar as populações xiitas a revoltarem-se contra os seus governos e mesmo a procurar derrubar outros governos árabes, incluindo os da Arábia Saudita, Kuwait, Iraque, Bahrain, etc.” Na perspetiva de Riade, que é tudo menos um exemplo de respeito pelos direitos humanos (veja-se a sentença de flagelação do blogger Raif Badawi), o clérigo Al-Nimr seria um peão da estratégia iraniana.

Rédea curta no Golfo

Outro exemplo da rédea curta da Arábia Saudita perante agitações xiitas aconteceu em 2011, no Bahrain, em plena primavera árabe. A maioria da população daquele reino do Golfo Pérsico (com o Irão em frente) é xiita, mas o poder reinante é sunita. Quando as manifestações começaram a reivindicar direitos políticos para os xiitas e a contestar a família real, a Arábia Saudita enviou tanques e tropas em socorro dos Al-Khalifa.

Sem surpresa, na segunda-feira, o Bahrain seguiu a posição saudita e cortou relações com o Irão. Emirados Árabes Unidos, Qatar, Sudão, Djibouti e Jordânia anunciaram corte ou revisão da relação com Teerão.

Em lados opostos

O braço de ferro entre sunitas e xiitas ocorre em países com guerras civis, ou seja, na Síria e no Iémen, onde sauditas e iranianos estão em lados opostos. Na Síria, o Irão apoia o regime liderado pelo alauita Bashar al-Assad (os alauitas são uma das seitas do xiismo) e as incursões do libanês Hezbollah, enquanto a Arábia Saudita financia grupos rebeldes (e tem uma relação dúbia com o Daesh). No Iémen, os iranianos apoiam os rebeldes houthis (que são zaiditas, outra seita xiita) e os sauditas apoiam o Presidente deposto pelos houthis.

“Não está nas intenções dos governos de Riade e de Teerão iniciar um confronto direto”, diz o articulista da Al-Arabiya. “Seria desastroso para ambos e para a região. Mas com tanta tensão e conflitos regionais com envolvimento iraniano e saudita, pode haver agravamento das guerras por procuração.”

No Irão, as eleições de fevereiro darão pistas sobre o futuro interno do país e sobre a relação com a Arábia Saudita

Na quinta-feira, órgãos de informação iranianos, citando um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, noticiaram que a embaixada do Irão na capital do Iémen tinha sido atingida deliberadamente pelos bombardeamentos da coligação liderada pelos sauditas. Horas depois, a partir de Sanaa, multiplicavam-se testemunhos de que fora apenas atingida a vizinhança da embaixada.

“A tensão pode baixar se houver acordo em relação à Síria e ao futuro de Assad. Mas isso parece distante. Vai depender da política interna iraniana e quem irá vencer a rivalidade entre as fações radicais e as mais moderadas, que se acentuou com o acordo nuclear. Os moderados querem ver o Irão comportar-se mais como um Estado e menos como uma ideologia imperialista.”

A 26 de fevereiro, as eleições para o Parlamento iraniano e para a Assembleia de Peritos — o órgão que escolhe o Líder Supremo (o ayatollah Ali Khamenei tem 76 anos) — poderão dar pistas sobre o futuro do Irão e, consequentemente, sobre a relação com a Arábia Saudita.

Artigo publicado no Expresso, a 9 de janeiro de 2016