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Kosovo assinou os papéis para entrar na UE, mas cinco dos 27 não o reconhecem como país independente

Quase 15 anos após a declaração unilateral de independência do Kosovo, cinco Estados-membros da União Europeia negam-se a reconhecer o mais jovem país do Velho Continente. A braços com pretensões separatistas a nível interno, Espanha, Grécia, Chipre, Eslováquia e Roménia querem evitar que o reconhecimento da soberania kosovar faça ricochete nos seus territórios

Mapa do Kosovo pintado com a bandeira da União Europeia WIKIMEDIA COMMONS

Dos sete países que se formaram após o desmembramento da antiga Jugoslávia, apenas um não tinha ainda solicitado adesão à União Europeia (UE). Eslovénia e Croácia já fazem parte da União, três outros têm estatuto de candidato (Sérvia, Macedónia do Norte e Montenegro) e a Bósnia-Herzegovina também já formalizou o pedido de adesão. Faltava o Kosovo.

Na semana passada, as autoridades de Pristina deram esse passo, numa cerimónia em Praga, capital da Chéquia, que este semestre preside ao Conselho da UE. “A UE é um destino a que almejamos e é o destino que abraçamos”, afirmou então o primeiro-ministro kosovar Albin Kurti. “Este é um dia histórico para o povo do Kosovo, e um grande dia para a democracia na Europa”, acrescentaria, numa mensagem na rede social Twitter.

Para se tornar elegível para a adesão à UE, o Kosovo terá de cumprir os Critérios de Copenhaga — metas políticas, económicas — e demonstrar capacidade para assumir as obrigações decorrentes do acervo comunitário. Mas não só.

Quase 15 anos após ter declarado unilateralmente a independência em relação à Sérvia (de maioria cristã ortodoxa), o Kosovo (de maioria muçulmana) ainda não é reconhecido por cinco Estados-membros da UE: Espanha, Grécia, Chipre, Eslováquia e Roménia.

Essa resistência deve-se não tanto aos contornos da questão kosovar em si, mas a razões de política interna. “Os cinco têm problemas internos com minorias nacionais ou nacionalidades com potencial secessionista”, explica ao Expresso o professor Pascoal Pereira, da Universidade Portucalense.

“Reconhecendo a independência do Kosovo, estariam a relativizar a interpretação do princípio da integridade territorial, um princípio do direito internacional estruturador do sistema internacional e da relativa estabilidade das fronteiras internacionais. O Kosovo, ao declarar a sua independência, compromete a integridade territorial da Sérvia (o Estado ‘de origem’), que se recusa a reconhecer essa secessão, por considerar precisamente que seria uma violação da sua integridade territorial”, acrescenta.

Para a Sérvia, o Kosovo é, como sempre foi, província sua. Mas que argumentos usam os cinco membros da UE para não estabelecerem relações diplomáticas, de igual para igual, com o Kosovo?

ESPANHA
Um precedente chamado Catalunha

Se há tema que, nos últimos anos, colocou Espanha nas notícias em todo o mundo foi o esforço separatista de parte da região autonómica da Catalunha. O diferendo entre Madrid e Barcelona atingiu o pico a 1 de outubro de 2017 quando o governo regional catalão (Generalitat) realizou um referendo — ilegal face à Constituição espanhola — com vista à proclamação da República da Catalunha. Os implicados no 1-O, como ficou conhecido o referendo, foram condenados a pesadas penas de prisão e inabilitação política.

“Se Espanha reconhecesse a independência do Kosovo — relativizando o princípio da integridade territorial —, estaria a dar argumentos legais e políticos aos movimentos separatistas internos (Catalunha, País Basco) para reivindicarem a independência dos seus territórios, pelo precedente criado por esse reconhecimento”, explica Pascoal Pereira.

Num desenvolvimento recente, o Governo de Pedro Sánchez promoveu uma revisão do enquadramento legal do delito de sedição no Código Penal, ao abrigo do qual o Tribunal Supremo condenou os organizadores do 1-O. Esta alteração, que vai ao encontro das exigências independentistas catalãs, é vista como cedência de Madrid, visando um apoio estável da Esquerda Republicana da Catalunha — que ocupa 13 assentos no Congresso dos Deputados (câmara baixa do Parlamento espanhol) —, o que permitirá a Sánchez enfrentar com alguma confiança as legislativas previstas para finais de 2023. A oposição teme pelo Estado de Direito.

CHIPRE
A culpa é da Turquia

A objeção ao reconhecimento da independência do Kosovo por parte da República de Chipre — os dois terços de território no sul da ilha cipriota, etnicamente grega — decorre da ocupação do terço norte por parte da Turquia (que aí reconheceu a República Turca de Chipre do Norte).

“Reconhecer o Kosovo seria um reconhecimento implícito da relativização do princípio da integridade territorial, fragilizando a sua posição em relação à sua região separatista”, explica o professor da Universidade Portucalense. À semelhança de Espanha, Chipre admite alterar a sua posição se o Kosovo chegar a um acordo formal com a Sérvia, o que, atendendo aos últimos desenvolvimentos, parece longe de acontecer.

Presentemente, Pristina e Belgrado travam um braço de ferro relativo às matrículas dos carros da comunidade sérvia kosovar. Esta recusa-se a alterar as placas para a sigla RKS (República do Kosovo), como exigem as autoridades do Kosovo, e quer manter os códigos que já vêm desde 1999, o que lhes possibilita circular com placas licenciadas pela Sérvia, com acrónimos de cidades do Kosovo, como, por exemplo, PR para Pristina.

GRÉCIA
Solidária com o Chipre grego

A posição da Grécia sobre o estatuto político do Kosovo decorre da questão de Chipre — a divisão desta ilha mediterrânica entre um país (reconhecido internacionalmente) de maioria grega e outro (só reconhecido pela Turquia) de maioria turca. A Grécia é uma sólida aliada do Chipre grego e, como este, exige a retirada militar da Turquia do norte da ilha.

Paralelamente, Grécia e Chipre têm grande proximidade com a Sérvia, já que os três países têm populações maioritariamente cristãs ortodoxas.

A relação entre Grécia e Kosovo não é, porém, inexistente. Atenas tem um Gabinete de Ligação aberto em Pristina, uma espécie de embaixada não oficial que viabiliza contactos entre as partes. É, a este nível, um exemplo diferenciador para outros países que não reconhecem o Kosovo, designadamente Espanha.

ESLOVÁQUIA
O impacto na minoria húngara

A posição oficial da Eslováquia em relação ao reconhecimento do Kosovo é fortemente condicionada pela existência, no país, de uma minoria húngara e por receios secessionistas manifestados ao longo da história.

“Nos casos específicos da Eslováquia e da Roménia, também se coloca a questão do precedente político”, explica Pascoal Pereira. “Um reconhecimento da independência do Kosovo conferiria argumentos a movimentos separatistas das minorias húngaras que residem nos dois territórios.”

As raízes da posição eslovaca remontam à desintegração do Império Austro-Húngaro, após a Grande Guerra de 1914-18. Pela primeira vez, a Eslováquia surgiu no mapa político com território, englobando regiões étnicas, no sul, na fronteira com a Hungria.

Quatro décadas de domínio comunista estabilizaram essa fronteira, mas as sensibilidades não morreram e reanimaram-se após a queda do muro de Berlim quando, na Hungria, alguns partidos políticos começaram a exigir a reunificação das populações húngaras da Bacia dos Cárpatos.

“O reconhecimento do separatismo étnico-nacional (que está na base da independência do Kosovo) enfraqueceria a defesa do princípio da integridade territorial que, legalmente até agora, tem protegido a Roménia e a Eslováquia contra ambições territoriais (reais e/ou apenas retóricas) por parte da Hungria”, alerta o académico.

À semelhança dos gregos, os eslovacos mantêm presença política oficial em Pristina, reveladora da vontade de uma relação diferente. Simbolicamente, um ex-ministro dos Negócios Estrangeiros eslovaco, Miroslav Lajcak, é o atual representante especial da UE para o Diálogo Belgrado-Pristina e outros assuntos regionais dos Balcãs Ocidentais. O seu mandato inclui a normalização da relação entre a Sérvia e o Kosovo.

ROMÉNIA
As garras da Hungria

A Roménia partilha os receios eslovacos quanto à sua própria minoria húngara, que reivindica a autonomia de uma área no leste da Transilvânia. Ao rejeitar o reconhecimento de direitos coletivos de minorias nacionais, receando o precedente que isso poderia significar no seu território e em países vizinhos como a Moldávia — esta a braços com separatismo na região pró-russa da Transnístria —, Bucareste não pode ter outra posição que não rejeitar a independência unilateral do Kosovo.

Apesar desta linha geral, a Roménia tem sido pragmática ao contribuir para missões internacionais no Kosovo, nomeadamente a Força do Kosovo (KFOR, liderada pela NATO), a Missão da UE para o Estado de Direito no Kosovo (EULEX) e a Missão de Administração Interina das Nações Unidas no Kosovo (UNMIK).

“As relações de Roménia e Eslováquia são tradicionalmente tensas com as suas minorias húngaras, algo que é agravado ainda pela persistência de um discurso revisionista húngaro em relação ao Tratado de Trianon (1920), assinado após a I Guerra Mundial. Ao abrigo dele, a Hungria perdeu parte significativa do seu território, incluindo as atuais Eslováquia e Transilvânia (na Roménia, onde reside essa população húngara)”, explica o docente.

“Esse discurso nacionalista tem sido alimentado por sectores políticos húngaros ao longo dos anos, destacando-se o primeiro-ministro Viktor Orbán. Mais de uma vez proclamou-se defensor dos interesses dessas minorias, alimentando a retórica revisionista que, em última análise, contesta o statu quo fronteiriço de toda a região.”

Para aderir à UE o Kosovo necessita do “sim” de todos os 27 Estados-membros: 22 estão garantidos, faltam cinco, mais problemáticos.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 21 de dezembro de 2022. Pode ser consultado aqui

P&R Fogo em Moria: horror ditado pelo desespero

Dois incêndios destruíram o maior campo de refugiados da Europa. Situado na ilha grega de Lesbos, Moria era, para quem lá vivia, “um inferno”

1 Porque ardeu o campo de Moria?
Há uma investigação em curso para apurar o que esteve na origem de dois incêndios, terça e quarta-feira, que transformaram o acampamento num emaranhado de aço fumegante e lonas derretidas. Mas a pronta reação do Governo grego indicia uma ação deliberada. “Alguns não respeitam o país que os acolhe”, acusou Stelios Petsas, porta-voz do Executivo, terça-feira à noite. “Pensaram que se incendiassem Moria deixariam a ilha de forma indiscriminada. O que quer que tivesse em mente quem ateou os fogos, esqueça-o.” Testemunhos no local relatam situações de tensão entre moradores e as autoridades após a confirmação de 35 casos de covid-19. Com o campo em chamas, os cerca de 13 mil habitantes fugiram com a roupa do corpo e os pertences que os braços conseguiram transportar. Acomodaram-se em bermas de estradas, descampados e estacionamentos de supermercados, à espera de novo abrigo.

2 Qual foi a resposta do Governo grego?
Soado o alarme em Moria, o Governo de Atenas declarou o estado de emergência na ilha de Lesbos e reforçou o dispositivo policial nas ruas, para impedir que os milhares de migrantes que ficaram ao deus-dará se dirigissem para Mitilene, principal cidade da ilha. Em paralelo, quinta-feira, as autoridades concluíram a transferência de 406 menores não-acompanhados de Moria para outro campo, em Salónica (Grécia Continental). Os jovens seguiram em três voos, organizados pela Organização Internacional para as Migrações e pagos pela Comissão Europeia.

3 Porque se diz que Moria é um inferno?
O rótulo foi-lhe colocado por quem lá viveu. Naquele espaço sobrelotado e com deficientes condições de salubridade, foram-se multiplicando alertas de organizações não-governamentais que lá trabalhavam para tragédias iminentes. Não raras vezes, registavam-se confrontos na hora de distribuir comida e, entre as mulheres, havia queixas de assédio na hora de usar os lavabos. Em 2016, o Papa Francisco visitou Moria para alertar para o drama. Outrora um paraíso turístico — como Lampedusa, em Itália —, Lesbos paga hoje uma das maiores faturas da crise migratória.

4 Quando e com que objetivo foi criado?
O campo de Moria abriu portas a 16 de outubro de 2015, pouco mais de um mês após o cadáver de um menino sírio de três anos ter atraído os holofotes mundiais para o cemitério em que se tinha tornado o Mediterrâneo: Alan Kurdi foi encontrado numa praia da Turquia após o naufrágio do barco em que seguia com a família, que tencionava ir para o Canadá. Moria devia funcionar como centro de acolhimento e registo dos migrantes chegados à ilha de Lesbos, que fica muito próxima da costa da Turquia. Administrado pelas autoridades gregas em conjunto com agências da União Europeia, tinha carácter transitório, já que dali estava previsto que os migrantes seguissem para outros países. Projetado para acolher 3 mil pessoas, tinha atualmente quatro vezes mais. A população já tinha transbordado o arame farpado para o olival circundante.

5 Quão responsável é a União Europeia?
“Os acampamentos de migrantes em solo grego são principalmente uma responsabilidade do Governo grego”, afirmou na quinta-feira a comissária europeia para os Assuntos Internos, Ylva Johansson. “O fracasso da Comissão anterior em alcançar uma política europeia comum em matéria de migração e asilo também é parte do problema.” O mea culpa da dirigente europeia alude ao acordo celebrado entre a UE e a Turquia, a 18 de março de 2016, que limitava o afluxo de migrantes e refugiados à Europa, em troca de €6 mil milhões. Por muitos rotulado “acordo da vergonha”, condenou os requerentes de asilo que estavam nos acampamentos gregos a processos burocráticos intermináveis. Este ano, a escalada na guerra da Síria e a crescente hostilidade entre Grécia e Turquia contribuíram para o fim do acordo. Ancara abriu as suas fronteiras aos migrantes a caminho da Europa e Moria transbordou.

Artigo publicado no “Expresso”, a 12 de setembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Incêndio no campo de Moria. “Há 13 mil pessoas nas ruas. Estamos à espera que o Governo diga onde vão passar a noite”

Um responsável de uma ONG grega que trabalha na ilha de Lesbos relata ao Expresso o que esteve na origem do incêndio que destruiu parte do maior campo de refugiados da Grécia

Moria era uma tragédia anunciada. “Agora aconteceu este incêndio, mas as razões que levaram a isto duram há muitos meses”, diz ao Expresso Mixalis Aivaliotis, responsável da organização não governamental grega Stand by me Lesvos. “Já sabíamos que, mais cedo ou mais tarde, isto ia acontecer e fartámo-nos de dar o alerta. Mas ninguém se importou.”

Aquele que é o maior campo de refugiados da Grécia — um dos países mais expostos ao drama dos refugiados que tentam alcançar a Europa — ardeu parcialmente depois de um fogo ter deflagrado às primeiras horas da madrugada desta quarta-feira. “O campo não ficou totalmente destruído”, diz Mixalis Aivaliotis, “mas cerca de 35% ficou inabitável.”

No campo de refugiados de Moria, montado na ilha de Lesbos, viviam cerca de 13 mil pessoas, num espaço inicialmente delineado para acolher 2800 candidatos a de asilo, em situação transitória.

Umas diretamente afetadas pelo incêndio, outras tomadas pelo pânico, todas fugiram para fora do campo durante a noite, mal as chamas começaram a iluminar a escuridão da noite. Andam neste momento ao deus-dará.

“Há cerca de 13 mil pessoas que fugiram do campo, por causa do incêndio, e que agora estão nas ruas”, diz este grego, que vive em Mytilene, capital da ilha de Lesbos. “Estamos à espera que o Governo grego decida onde é que estas pessoas vão passar a noite.”

Mixalis explica que o incêndio começou porque “há pessoas com medo. Há 35 pessoas infetadas com o coronavírus, ficaram com medo [por terem de ir para um centro de isolamento] e atearam o fogo”, que consumiu partes do campo e do olival circundante.

“Isto aconteceu devido às más condições em que se vive dentro do campo e ao aparecimento do problema do coronavírus”, diz o membro da Stand by me Lesvos. Esta organização, fundada em 2017, é dinamizada por professores e comerciantes locais e visa apoiar os candidatos a asilo em termos educativos para facilitar a sua integração.

“A questão dos refugiados não é um problema grego, é um problema europeu”, diz Mixalis Aivaliotis. “Os países têm de conversar e resolver o problema. A União Europeia tem de fazer alguma coisa.”

(FOTO Antes viviam em tendas precárias, agora nem essas têm para os proteger, após um incêndio devastar parte do campo de Moria ANGELOS TZORTZINIS / AFP / Getty Images)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de setembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Incêndio em Moria. Como reagiram os migrantes a esta tragédia anunciada

Depois do incêndio que consumiu, durante a noite, parte do campo de refugiados de Moria, na ilha de grega de Lesbos, o dia amanheceu sob o espectro da destruição. Muitos refugiados e migrantes que ali viviam regressaram ao campo para tentar recuperar pertences que escaparam às chamas e procurar água

A esperança de encontrar algum pertence intacto ALKIS KONSTANTINIDIS / REUTERS
De regresso ao campo, agora destruído, para encher recipientes com água ALKIS KONSTANTINIDIS / REUTERS
Para trás fica um local onde era difícil viver. Pela frente, a incerteza ALKIS KONSTANTINIDIS / REUTERS
Desorientação entre os destroços daquilo que até agora era a sua casa ALKIS KONSTANTINIDIS / REUTERS
Uma mulher foge do fogo com a roupa do corpo e com aquilo que as mãos conseguem transportar ELIAS MARCOU / REUTERS
Refugiados no campo de Moria ANTHI PAZIANOU / AFP / GETTY IMAGES
De dia, ainda eram visíveis colunas de fumo do fogo que deflagrou às primeiras horas da madrugada ALKIS KONSTANTINIDIS / REUTERS
Salva do fogo, uma família cedeu ao cansaço, num parque de estacionamento ELIAS MARCOU / REUTERS
Habitantes do campo de Moria lavam-se junto aos abrigos destruídos pelas chamas ALKIS KONSTANTINIDIS / REUTERS
Após uma noite de verdadeiro terror, o drama não terminou com o raiar do dia ALKIS KONSTANTINIDIS / REUTERS
De muletas e com máscara de proteção, este homem observa as chamas antes de sair do campo MANOLIS LAGOUTARIS / AFP / GETTY IMAGES
Ao deus-dará entre destroços e ruínas ALKIS KONSTANTINIDIS / REUTERS
Vidas sem futuro à vista, comum a várias gerações ALKIS KONSTANTINIDIS / REUTERS
Devastação a perder de vista, no campo para refugiados e migrantes de Moria ALKIS KONSTANTINIDIS / REUTERS
Sem pouso, esta família dorme na berma de uma estrada ALKIS KONSTANTINIDIS / REUTERS
De máscara colocada, para se proteger de um drama paralelo ALKIS KONSTANTINIDIS / REUTERS
Crianças observam à distância a destruição do local a que chamavam “casa” ANGELOS TZORTZINIS / AFP / GETTY IMAGES
Apesar da dimensão, o incêndio não provocou qualquer vítima mortal ELIAS MARCOU / REUTERS
Sem ter para onde ir, esperam sentados num passeio junto a uma estrada STRATIS BALASKAS / EPA
Parte do olival junto ao campo também foi consumido pelas chamas ALKIS KONSTANTINIDIS / REUTERS
Uma criança leva nos braços pertences que sobreviveram ao fogo ALKIS KONSTANTINIDIS / REUTERS
Sem explicações para o que a rodeia, esta criança tem ao seu cuidado dois garrafões da imprescindível água ALKIS KONSTANTINIDIS / REUTERS

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de setembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Condicionar a fé para fazer face ao medo

As restrições à liberdade religiosa estão em crescendo por todo o mundo. Nuns casos para os Estados blindarem a sua identidade, noutros para se defenderem de medos exteriores

Símbolos religiosos do Judaismo, Islão, Taoismo e Cristianismo WIKIMEDIA COMMONS

César o que é de César, a Deus o que é de Deus. A máxima atribuída a Jesus Cristo — em resposta a um grupo de fariseus que o tentou apanhar em falso, perguntando se era lícito um judeu pagar impostos a César (Mateus 22:21) — tornou-se, com o tempo, um chavão utilizado para enfatizar a separação entre os poderes político e religioso. Passados 2000 anos, contudo, a realidade política global aponta para uma evolução no sentido inverso à sentença bíblica. Hoje, mais de 80 países têm uma religião oficial ou conferem um tratamento preferencial a uma determinada confissão sobre todas as outras. A maioria deles privilegia o Islão, mas a realidade não é estranha à velha Europa cristã.

A Grécia, por exemplo, é um Estado confessional. Os salários dos padres da Igreja Ortodoxa Grega — que a Constituição reconhece como a “religião prevalecente” — são pagos pelo erário público. Nas escolas, só em setembro de 2016 (sob o Governo do Syriza) deixaram de ser obrigatórias as orações de alunos e professores no início de cada dia de aulas. No palco da política, a religião não fica arredada do protocolo: há três semanas o novo primeiro-ministro, Kyriakos Mitsotakis, tomou posse diante do arcebispo Jerónimo, a máxima autoridade religiosa.

No Reino Unido, o monarca é membro da Igreja de Inglaterra (anglicana) e seu governador supremo. Na Finlândia, a Igreja Ortodoxa Finlandesa e a Igreja Evangélica Luterana da Finlândia são reconhecidas como “igrejas nacionais”. Já na Islândia, a Constituição reconhece a Igreja da Islândia como a “igreja do Estado”.

“Desde a mais distante pré-história, encontramos pontos de contacto muito fortes entre as estruturas religiosas e as políticas”, explica ao Expresso Paulo Mendes Pinto, coordenador da Área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona. “Esses contactos foram muitas vezes de ajuda, mas também de afronta. Sempre houve contacto porque ambas são estruturas de organização da sociedade.”

Na Rússia, jeovás têm rótulo “extremista”

Um relatório recente publicado pelo Pew Research Center, um think tank com sede em Washington D.C., conclui que “ao longo da década 2007-2017, as restrições governamentais à religião — leis, políticas e ações de funcionários do Estado restritivas de crenças e práticas religiosas — aumentaram acentuadamente em todo o mundo”.

Em 2007 estavam identificados 40 países com níveis “altos” ou “muito altos” de restrições à liberdade religiosa. Dez anos depois, eram já 52. Um deles é a Rússia, onde, recorda o académico, “toda uma narrativa de fausto e glória, marcada por uma visão etnocentrada, encontra na Igreja Ortodoxa a ligação a uma legitimação história e, assim, fortemente identitária”. O relatório refere o assédio das autoridades russas a minorias religiosas através de ‘visitas’ da polícia a propriedades, em especial das Testemunhas de Jeová, rotuladas como grupo “extremista” desde 2017.

“Por parte do que hoje designamos por Estados, a religião surge como forma de criar uniformidades, discursos e narrativas de identidade”, comenta o professor. “Hoje, a relação que vemos cada vez mais forte entre muitos Estados e algumas religiões vem no seguimento da criação de narrativas de instabilidade, onde o fator religioso é instrumental na solução.”

Fobias várias num quadro de medo

Na Hungria, em 2012, uma nova lei introduziu alterações ao processo de registo de grupos religiosos, as quais afetaram o estatuto de mais de 350, com consequências ao nível do seu financiamento e da prestação de serviços de caridade. Na chefia do Governo desde 2010, Viktor Orbán tem-se destacado, na Europa e no mundo, com um discurso populista, xenófobo e anti-imigração.

“Parte do movimento geral de limitação da liberdade religiosa advém de um quadro de medo, relacionado diretamente com o pós-11 de Setembro de 2001 e, mais recentemente, com o fenómeno do radicalismo islâmico do Daesh”, explica Mendes Pinto. “Esta onda de perceção e representação de insegurança, de medo, condicionou os cidadãos a aceitarem limitação às suas mais variadas liberdades como um sacrifício necessário para a sua segurança.”

Em dez anos, o número de países europeus que levantam obstáculos à liberdade religiosa aumentou de cinco para 20. Este processo vem sendo fortalecido “através de fobias várias”, conclui Paulo Mendes Pinto. “Fobias que levam, por exemplo, a que França seja hoje tida como um Estado que ergue grandes restrições à liberdade religiosa, fruto de um extremar das suas posições laicistas que advogam a proibição, muitas vezes, do uso de vestes religiosas.”

UMA TENDÊNCIA GLOBAL

ANGOLA — A 23 de janeiro deste ano, a Assembleia Nacional aprovou a nova Lei sobre a Liberdade de Religião, Crença e Culto para organizar a proliferação de grupos. Há mais de 2000 ilegais

TAILÂNDIA — A Constituição de 2017 elevou o estatuto do budismo Theravada, quase que dotando o reino de uma religião oficial

SAMOA — Este país da Polinésia passou a ser uma “nação cristã” após a revisão constitucional de 2017

ERITREIA — O Governo reconhece apenas a Igreja Ortodoxa Eritreia, o Islão sunita, a Igreja Católica e a Igreja Evangélica Luterana da Eritreia. Desde 2002 não são autorizadas cerimónias de nenhum outro culto

CHINA — Apenas são autorizados a realizar cultos grupos que pertençam às religiões reconhecidas por Pequim: Budismo, Taoismo, Islão, Catolicismo e Protestantismo. Mas há milhares de muçulmanos (uigures) em “campos de reeducação”

CABO VERDE — A concordata de 2013 garante ao Vaticano privilégios inacessíveis a outro credo

COMOROS — Aprovado em referendo, em 2009, o Islão passou a ser a religião do Estado

MALDIVAS — Promover uma religião que não o Islão é crime punido com até cinco anos de prisão

ALEMANHA — Em 2012, um tribunal de Colónia criminalizou a circuncisão por razões não-médicas. Pressionado por judeus e muçulmanos, Berlim legalizou essa prática religiosa

BIRMÂNIA — A minoria muçulmana (rohingya) não tem direito à cidadania. Tem sido perseguida e alvo de grande violência

HÁ UMA ILHA DE TOLERÂNCIA NO MÉDIO ORIENTE

Arábia Saudita, Irão e Israel são dos países com leis mais restritivas em matéria de liberdade religiosa. Na região, só um país não favorece uma fé

Em todo o mundo, a maioria dos Estados que submetem a vida dos seus cidadãos à vontade de Deus (de forma mais ou menos formal) é muçulmana. No Médio Oriente e Norte de África, há apenas um país que não tem uma única religião oficial ou favorece declaradamente um só credo — o Líbano. Independente desde 1943, o “País do Cedro” é um xadrez étnico-religioso complexo, organizado politicamente com base num Pacto Nacional celebrado entre as principais confissões religiosas. Este acordo não escrito determina que o Presidente da República é sempre um cristão maronita, o Parlamento é presidido por um muçulmano xiita e o primeiro-ministro é um muçulmano sunita.

Este entendimento sobreviveu a uma sangrenta guerra civil (1975-1990). Depois do conflito a proporção entre cristãos e muçulmanos no Parlamento passou de 6/5 para a paridade (5/5). E resistiu também à evolução demográfica do Líbano: se em 1943 havia uma curta maioria de cristãos no país, hoje estima-se que a larga maioria dos quase sete milhões de libaneses seja muçulmana.

Na classificação do Pew Research Center, o Líbano não consta do grupo mais preocupante de países com leis mais restritivas à liberdade religiosa, que é liderado pela Eritreia. Não é o caso, porém, da Arábia Saudita (8º lugar), do Irão (12º) e de Israel (13º).

Israel não tem uma Constituição escrita mas sempre se definiu — e assim foi concebido — como um Estado judaico onde a religião está omnipresente na vida quotidiana. Casamentos, divórcios e funerais, por exemplo, competem à jurisdição do Rabinato Chefe de Israel, uma instituição ortodoxa. E, na maioria das cidades, o respeito pelo Shabat (sábado) implica que não haja transportes públicos a circular.

Na Jordânia, o Governo vigiou as prédicas nas mesquitas e exigiu aos pregadores que não falassem de política

A relação entre o Estado e o judaísmo definiu-se mais claramente a 19 de julho de 2018, com a aprovação de uma nova Lei da Nacionalidade: Israel passou a ser “a nação do povo judeu” e o hebraico a única língua oficial. A aprovação do diploma fez disparar acusações de discriminação e lançou o ceticismo sobre o futuro das minorias, nomeadamente os israelitas árabes (muçulmanos e cristãos), que são 20% da população. Representados no Parlamento, são muitas vezes impedidos de aceder a lugares sagrados como o Monte do Templo, em Jerusalém.

Pátria de uma das comunidades de judeus mais antigas do Médio Oriente — os judeus da Pérsia, anteriores ao advento do Islão —, o Irão tem um histórico de perseguição da comunidade bahai (não-muçulmana). Outrora a maior minoria no Irão, as autoridades consideram-na hoje “herética” e “imunda”.

Teocracia muçulmana xiita desde 1979, o Irão tem no topo da sua hierarquia política um ayatollah. Oficialmente, a República Islâmica reconhece três minorias — zoroastras, judeus e cristãos — e reserva-lhes assentos parlamentares. Uma diferença substancial em relação à rival sunita Arábia Saudita, onde não existem igrejas nem sinagogas. Guardião das mesquitas sagradas de Meca e Medina, o reino considera ilegal a prática de outras religiões, bem como o uso de símbolos religiosos. Os sauditas estão proibidos de se converterem a outras fés e os que professam o ramo xiita são olhados com grande desconfiança.

Em novembro de 2017, Riade fez aprovar uma nova lei de combate ao terrorismo que criminaliza “qualquer pessoa que desafie, direta ou indiretamente, a religião ou a justiça do rei ou do príncipe herdeiro” e proíbe “qualquer tentativa de lançar dúvidas sobre os fundamentos do Islão”. No mesmo ano, alegando preocupações com o terrorismo, as autoridades ordenaram a demolição de um bairro antigo de maioria xiita.

No Médio Oriente, com maior ou menor formalidade, todos os países árabes são condescendentes em relação ao Islão. No Egito, em caso de disputa familiar, por exemplo, se um dos cônjuges for muçulmano e o outro cristão copta, a lei que se aplica é a islâmica (Sharia).

Mas casos há também em que o alvo das restrições governamentais é o próprio Islão. Na Jordânia, o Governo vigiou as prédicas nas mesquitas e exigiu aos pregadores que se abstivessem de falar de política, para não contribuírem para agitação social e visões extremistas. Sugeriu temas e recomendou textos para orientar os imãs. Quem não acatar é multado ou proibido de voltar ao púlpito.

Artigo publicado no “Expresso”, a 27 de julho de 2019. Pode ser consultado aqui