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Dia Internacional da Educação: Em Gaza, os livros são usados para acender fogueiras onde as pessoas cozinham e se aquecem

Na Faixa de Gaza, não há razões para celebrar o Dia Internacional da Educação, que se assinala esta sexta-feira. Escolas e universidades são alvos de guerra e, pelo segundo ano letivo consecutivo, não há aulas no território palestiniano. Asma Mustafa, uma professora de inglês que já se deslocou oito vezes, tenta contrariar as adversidades

Asma Mustafa é professora de inglês na Faixa de Gaza desde 2008 CORTESIA ASMA MUSTAFA

A guerra está a tornar a escola uma memória cada vez mais longínqua para centenas de milhares de jovens da Faixa de Gaza. Pelo segundo ano letivo consecutivo, não há aulas no território palestiniano.

A esmagadora maioria das escolas e universidades foram arrasadas e as que se aguentaram de pé deixaram de ser centros de estudo e transformaram-se em abrigos para deslocados.

Na ausência de educação formal, o conhecimento continua a transmitir-se graças a pessoas determinadas como Asma Mustafa. Esta professora de inglês de 38 anos, que até ao início da guerra trabalhava numa escola pública para raparigas, no norte de Gaza, desenvolveu uma iniciativa ao estilo de “primeiros socorros educativos”.

“A educação parou desde o 7 de Outubro e ninguém se preocupou mais com as crianças de Gaza. Fiquei muito inquieta pelo facto de os alunos ficarem sem aulas pelo segundo ano consecutivo. É algo muito difícil de aceitar para uma mãe e professora”, diz ao Expresso Asma Mustafa, mãe de duas meninas pequenas.

“Ao mesmo tempo, comecei a olhar à minha volta, nos abrigos e nos acampamentos de deslocados… As crianças estavam perdidas. Segui o meu coração e o meu dever, enquanto professora e mãe para com as crianças deslocadas que me rodeiam, e decidi tornar-me a escola delas”, partilha. “Assumi a responsabilidade de começar a ensiná-las de forma espontânea.”

A professora improvisa salas de aula em todos os locais para onde é deslocada
CORTESIA ASMA MUSTAFA

Cerca de um mês após o início da guerra, a professora empreendeu uma iniciativa educativa a que chamou “Uma História Por Dia”.

“Conto histórias às crianças, histórias com uma lição de vida ou uma mensagem. Histórias que lhes deem força e transmitam ensinamentos sobre a vida. Quero que essas histórias as levem a ter melhores comportamentos e a saber como solucionar problemas. Foco-me muito na resolução de problemas e nas competências para a vida.”

Além das histórias, Asma transmite-lhes conhecimentos básicos de inglês, árabe e matemática. Cria jogos, põe-nas a pintar e a desenhar, organiza atividades de grupo, dá-lhes dicas de higiene pessoal (quando doenças se espalham pelos acampamentos) e promove brincadeiras, para que as crianças façam alguma descarga emocional e lidem menos mal com a sua condição de deslocados.

“Às vezes, reúno-as à volta do meu leitor de MP3. Fico feliz quando elas saltam e começam a bater palmas. Sinto os seus batimentos cardíacos”, diz. Asma ensina-as a dançar a Dabkha, a dança tradicional palestiniana, inscrita, em 2023, na lista da UNESCO de Património Cultural Imaterial da Humanidade.

Tudo contribui para as ajudar a lidar com o trauma da guerra. “Elas ficam felizes por encontrar alguém que as possa ajudar, alguém que é líder, como um professor. Elas acreditam nos professores.”

As sessões são importantes para alhear as crianças do som das bombas, do zumbido dos drones, da omnipresença da guerra, dia e noite. Permitem também que convivam entre si, criem uma rotina e alimentem a esperança de que um dia possam voltar à escola.

CORTESIA ASMA MUSTAFA

“Nas sessões, também as escuto”, acrescenta a professora. “Os meus alunos estão cheios de histórias e, nas tendas, os pais não têm tempo para os ouvir”, ocupados que estão a arranjar meios de sobrevivência.

As próprias crianças não são poupadas às tarefas de emergência. As horas que deviam passar na escola, são usadas a procurar lenha para as fogueiras, a carregar jerricãs de água ou à espera de comida em pontos de distribuição.

Muitas ficaram órfãs e passam a ser ‘mãe ou pai’ de irmãos mais novos. São obrigadas a tornarem-se adultos à força.

As “turmas” de Asma são compostas por crianças que vivem nas tendas em redor da sua. À semelhança da esmagadora maioria dos habitantes de Gaza, também ela teve de fugir da casa onde vivia, no norte do território. Fala ao Expresso a partir do campo de refugiados de Nuseirat, no centro de Gaza.

“Já me desloquei por oito vezes: duas para abrigos e seis para tendas. Já me desloquei quatro vezes dentro da mesma zona humanitária, como lhe chama Israel”, diz. “Já testemunhei sete guerras antes desta, mas nunca antes tive de sair de casa, a não ser no dia 7 de outubro de 2023.”

CORTESIA ASMA MUSTAFA

A cada nova etapa rumo ao desconhecido, Asma leva, junto com os pertences, o material educativo que consegue arranjar, por vezes comprado a preços elevados. Chegada a um novo destino, monta “a sua escola”.

“A vida é miserável. Perdemos as casas, perdemos tudo. Agora, para cozinhar, usamos lenha, papéis, tudo o que se consegue arranjar. Povos do mundo, acordem, em Gaza cozinhamos com fogo! Os livros que havia em Gaza foram queimados para as pessoas fazerem fogueiras e poderem cozinhar alimentos”, alerta a professora.

“Mas o mais importante para mim é continuar com as crianças à minha volta. Enquanto for viva, irei ensinar, haja ou não quadro, giz, papel ou lápis. O professor é a escola. O professor é o livro. O professor é a caneta.”

Os números da destruição

Segundo o último relatório do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), com data de 14 de janeiro, este é, até ao momento, o impacto da guerra no sector da educação:

  • 658 mil alunos não têm educação formal;
  • 12.241 estudantes e 503 funcionários educativos, incluindo professores, foram mortos;
  • 88% dos edifícios escolares (496 de um total de 564) foram destruídos ou parcialmente danificados;
  • 51 edifícios universitários foram destruídos e 57 danificados.

A 18 de abril de 2024, 25 relatores especiais das Nações Unidas expressaram grande preocupação com o padrão dos ataques a escolas, universidades, professores e estudantes, o que parecia configurar, nas suas palavras, “a destruição sistémica do sistema educativo palestiniano”.

Israel sempre rejeitou as acusações, acusando o Hamas de usar os estabelecimentos de ensino para atividades terroristas e a população estudantil como refém.

CORTESIA ASMA MUSTAFA

Quaisquer que sejam as adversidades, e em Gaza são muitas, Asma Mustafa mantém um compromisso diário com a educação, por meio de métodos de ensino originais e inovadores.

No seu website, por exemplo, ela disponibiliza “45 estratégias inovadoras de ensino de inglês como língua estrangeira”. Nos tempos da pandemia de covid-19, promoveu a iniciativa “Teachers Behind Screens” (Professores atrás de ecrãs), para treinar professores para o ensino de forma virtual.

Com o projeto “I Believe I Can Fly” (Acredito que posso voar), pôs os alunos em contacto com dezenas de países. “As crianças não estão autorizadas a viajar devido ao cerco imposto a Gaza. Estão a perder a comunicação com todo o mundo.”

Em 2020, esta professora foi distinguida com o Global Teacher Award, atribuído pela organização privada indiana AKS (Alert Knowledge Services), que se dedica ao reconhecimento de “educadores excecionais pela eminência e eficácia do seu ensino, pela sua liderança especializada e pelo seu envolvimento com a comunidade”. Em 2022 foi considerada a melhor docente na Palestina.

Formada pela Universidade Islâmica de Gaza, Asma entrou para os quadros do Ministério da Educação em 2008, quando o Hamas já controlava o território.

“Dediquei-me a ensinar as crianças por meio de uma aprendizagem ativa. Quero ajudá-las a pensar de forma crítica e profunda e não apenas a receber informação dos professores, como acontecia comigo quando estudava. Achei que precisava de mudar o método tradicional com que recebi educação. Adoro ensinar com recurso a jogos e acredito nesse tipo de ensino. Quero que os cérebros dos meus alunos estejam frescos e capazes de pensar e repensar.”

CORTESIA ASMA MUSTAFA

O contexto em que se vive em Gaza nos últimos anos — sob bloqueio desde 2007 e, desde então, sob intensos bombardeamentos de Israel, por várias ocasiões —, condena as crianças e jovens a uma carência particular. “Há uma necessidade massiva dos alunos terem mais um amigo do que um professor”, diz Asma. “Decidi ser amiga deles. Em Gaza, as crianças acreditam nos professores.”

No ano em que Asma começou a trabalhar como professora, em 2008, Gaza passou por uma guerra com Israel. “Eu era jovem, tinha 21 anos e era muito próxima dos meus alunos. Após 21 dias de guerra, voltámos às escolas e foi pedido aos professores que se dedicassem à descarga emocional dos alunos. Jogamos, brincamos, deixamos as crianças fazer desenhos e contar as suas histórias para expressarem os sentimentos.”

A mesma tarefa parece agora ser mais difícil de concretizar. “Eu não esperava que a guerra durasse 15 meses. Ninguém esperava”, admite. Por todo o mundo, crises mostram que quanto mais tempo as crianças ficam fora da escola, maior é o risco de não regressarem.

Estima-se que, na Faixa de Gaza, mais de 40% da população tenha até 14 anos. Se continuarem privados de educação, um grande segmento da sociedade fica com o futuro em risco. “Deixar de estudar durante algum tempo torna-se um grande problema. Se a guerra continuar, também o futuro da Palestina ficará perdido.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 24 de janeiro de 2025. Pode ser consultado aqui

As dificuldades de Volodymyr Zelensky para alimentar o guião heroico da guerra

Falta de resultados rápidos na contraofensiva fragiliza narrativa “cinematográfica” do Presidente ucraniano

Dezoito meses passados desde o início da invasão russa, a Ucrânia enfrenta um drama particular dentro da tragédia maior que é a guerra. Com o passar do tempo, o cansaço relativamente ao tema tende a acentuar-se e os espaços informativos dedicam-lhe menos atenção. Mas para Kiev manter o assunto relevante é crucial para não ficar só.

O desafio está entregue em especial ao Presidente, um antigo comediante que com­preendeu, aos primeiros disparos russos, que a importância da comunicação estava ao nível das movimentações militares. “Volodymyr Zelensky percebeu que a Ucrânia só podia ter um combate minimamente equilibrado com a Rússia se conseguisse manter o conflito no topo da agenda político-mediática”, comenta ao Expresso Alexandre Guerra, profissional na área da comunicação e especialista em assuntos internacionais. “Ele sabia que a realidade da guerra, por si só, não chegava para mobilizar a opinião pública interna e a comunidade internacional.”

No espaço da antiga União Soviética duas contendas serviam de aviso a Zelensky. Primeiro, a guerra entre Rússia e Geórgia, em 2008, que culminou com o reconhecimento por parte de Moscovo da independência das repúblicas separatistas georgianas de Ossétia do Sul e Abecásia. E depois, em 2014, a invasão e anexação da península ucraniana da Crimeia, no que é considerado um preâmbulo da guerra atual.

Nos dois casos a agressão russa não suscitou reações práticas. “A realidade não foi sufi­ciente para os aliados europeus e americano se mobilizarem numa resposta perentória à Rússia”, diz o autor do livro “A Política e o Homem Pós-Humano”. “Zelensky tinha essa lição bem estudada. E, estando habituado a amplificar a realidade e até a recriá-la, sabia que teria de criar uma espécie de realidade aumentada da guerra.”

Série com três temporadas

“Por necessidade, e não por capricho”, Zelensky tornou-se realizador e a sua equipa de comunicação argumentista de um ‘guião cinematográfico’, criando heróis e exacerbando conquistas, tudo para tocar as pessoas. O que acontecia no terreno, e que Zelensky comentava em intervenções diárias, “ajudou a enaltecer os feitos como se fossem temporadas de uma série”, ilustra Guerra.

A frase “preciso de munições, não de uma boleia”, atribuída a Zelensky dois dias após a invasão, contribuiu para criar a lenda, sem que haja certeza de que ele a tenha efetivamente dito quando confrontado por uma oferta dos norte-americanos para o resgatar de Kiev. Seguiu-se “a resistência heroica de Kiev, um momento de uma enorme espetacularidade, em que ele não se poupou a puxar pelos feitos dos seus soldados”.

Ao estilo de uma segunda temporada, a reconquista de Kharkiv motivou o Presidente a fazer uma promessa épica: “A bandeira ucraniana retornará a todas as partes do nosso país. Como na região de Kharkiv [Nordeste], os guerreiros ucranianos encontrar-se-ão no Donbas [Leste], no Sul e na Crimeia. Vai acontecer”, disse após visitar a zona de Kharkiv.

“Zelensky sabia que as opiniões públicas internacionais gostam de uma boa história. A dada altura, o próprio começou a alimentar a expectativa de uma grande contraofensiva em múltiplas frentes” — uma terceira temporada da guerra —, “à imagem da II Guerra Mundial. Zelensky nunca escondeu ser muito inspirado por Churchill”.

Contraofensiva silenciosa

A ideia de uma reviravolta na guerra, a expensas da derrocada da Rússia, encaixava nas expectativas dos ucranianos e comprometia o Ocidente com Kiev. Entrou no argumentário de análise ao conflito, mas os resultados tardaram. No terreno, os militares ucranianos, cientes de que as conquistas não surgem por artes mágicas, começaram a fazer-se ouvir. A 30 de junho, ao jornal “The Washington Post”, o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas da Ucrânia, Valery Zaluzhny, realçava a capacidade militar da Rússia. “Não sentimos que a defesa deles tenha ficado mais fraca”, disse quando questionado sobre o possível impacto do motim do Grupo Wagner no esforço inimigo.

“A contraofensiva era um processo militar que estava em curso de forma lenta e gradual. O problema é que a história que Zelensky quis dar ao mundo era mais espetacular. E a dada altura a sua retórica hollywoodesca ficou muito desfasada da realidade no terreno”, diz Alexandre Guerra. “Os resultados militares não eram compatíveis com aquilo que Zelensky anunciava. E quando se começou a exigir ganhos rápidos, as chefias militares sentiram frustração.” (Ver texto ao lado.)

Este mês, Zelensky despediu os responsáveis de todos os centros de recrutamento militar do país, fragilizados por casos de suborno por parte de ucranianos que não queriam ir combater. Meses antes já tinha demitido de forma abrupta o chefe do Serviço de Segurança da Ucrânia (SBU) e a procuradora-geral do Estado, alegando haver funcionários nesses órgãos a colaborar com a Rússia.

“A realidade que Zelensky criou, também a nível interno, passava pela ideia de cidadãos super-heróis, todos eles dispostos a ir para a linha da frente”, conclui Guerra. “Ora, a realidade nunca foi bem assim.”

Sem ser um líder consen­sual, o Presidente tem provado estar à altura do desafio. Deu ímpeto à resistência e injetou esperança no povo. Há dois meses disse à BBC: “Algumas pessoas acham que isto é um filme de Holly­wood e esperam resultados imediatos. Não é. O que está em jogo é a vida das pessoas.” Por breves momentos, Zelensky jogou à defesa.

SEIS MARCOS DA ESTRATÉGIA DE COMUNICAÇÃO DO PRESIDENTE DA UCRÂNIA

25/2/2022
No dia seguinte à invasão, num vídeo filmado numa rua de Kiev, era já noite, Zelensky mostra-se na companhia de responsáveis políticos. “Boa-noite a todos. O líder do partido está aqui, o chefe de gabinete do Presidente está aqui, o primeiro-ministro [Denys] Shmyhal está aqui, o [principal conselheiro da presidência, Mikhail] Podoliak está aqui, o Presidente está aqui. Estamos todos aqui.” O comandante assegurava que não abandonaria o barco.

1/3/2022
Zelensky intervém, de forma virtual, no Parlamento Europeu. Seria o primeiro de 42 discursos em Parlamentos estrangeiros: 35 por videoconferência (incluindo na Assembleia da República) e sete presencialmente.

3/4/2022
Numa mensagem gravada e transmitida durante a gala dos Prémios Grammy, Zelensky apela ao coração: “Os nossos músicos usam armaduras em vez de smokings.”

21/12/2022
Vai aos Estados Unidos, a primeira deslocação ao estrangeiro. No total, visitou 21 países desde o início da guerra. Foi três vezes à Polónia.

26/12/2022
É Pessoa do Ano da “Time”.

10/1/2023
Fala, por vídeo, nos Globos de Ouro. Em março, Hollywood rejeita ouvi-lo nos Óscares.

QUATRO ‘RALHETES’ AO PRESIDENTE

Contra ofensiva lenta
“Isto não é um show”
Com a contraofensiva nas notícias, a 30 de junho “The Washington Post” entrevista o chefe do Estado-Maior da Ucrânia, que admite que a operação segue ao ritmo possível, atendendo à forte defesa da Rússia. “Isto não é um show a que o mundo inteiro assiste e faz apostas”, disse Valery Zaluzhny. “Cada metro é conseguido com sangue.” O general mostra-se “irritado” com quem se diz frustrado com a falta de resultados. Nove dias antes, à BBC, Zelensky disse que os progressos eram “mais lentos do que o desejado”.

Adesão à NATO
“Não somos a Amazon”
Paralelamente aos pedidos de armas, Zelensky pugnou por adesões rápidas à União Europeia e à NATO. Mas na cimeira da Aliança Atlântica em Vílnius, a 11 e 12 de julho, ele surgiu como um homem só, após ‘levantar a voz’ no Twitter: “É inédito e absurdo que não seja definido um prazo nem para o convite nem para a adesão da Ucrânia.” O post não caiu bem junto dos aliados. O ministro britânico da Defesa verbalizou o que muitos mais terão pensado. “Já lhes tinha dito, no ano passado, quando viajei 11 horas [até Kiev] para receber uma lista [de armamento]… não somos a Amazon”, disse Ben Wallace. “As pessoas querem ver um pouco de gratidão.”

Defesa russa
“Queríamos resultados muito rápidos, mas…”
A 18 de julho, numa entrevista à BBC, Oleksandr Syrskyi, o comandante das forças armadas terrestres ucranianas que liderou a defesa de Kiev e foi o cérebro do contra-ataque em Kharkiv, disse: “Gostávamos de obter resultados muito rápidos, mas é praticamente impossível.” O general explicou que o Leste e o Sul do país estavam saturados com campos minados e barreiras defensivas colocadas pelos russos. São exemplos valas para tanques e fortificações “dentes de dragão”, que desaceleram o avanço dos blindados.

Solução política
“Outra saída é negociar”
Há uma semana, Mark Milley, líder do Estado-Maior conjunto dos EUA, juntou-se ao coro de altas patentes que alertam para uma contraofensiva “longa, lenta e muito sangrenta”. À televisão jordana Al-Mamlaka, o general realçou o complexo sistema defensivo russo e apontou outro caminho: “Derrotar militarmente 200 ou 300 mil soldados russos é muito difícil e desafiador. Outra saída para esta situação é através de negociações.”

(FOTO Volodymyr Zelensky, Presidente da Ucrânia PRESIDÊNCIA DA UCRÂNIA)

Artigo publicado no “Expresso”, a 1 de setembro de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Norte pressiona, mas Sul não isola a Rússia

INFOGRAFIA DE JAIME FIGUEIREDO

Sem sinais de trégua, a guerra da Ucrânia e a nova ordem mundial que está a originar têm levado a realinhamentos geopolíticos, qual movimento de placas tectónicas em contexto sísmico. A 10 de março, o anúncio de um acordo de normalização diplomática entre o Irão e a Arábia Saudita, mediado pela China, revelou quão dispensáveis são hoje os Estados Unidos no Médio Oriente. Na semana passada, a cimeira de Moscovo entre Xi Jinping e Vladimir Putin confirmou que, à parte os rótulos aplicados a essa relação, a China é cada vez menos neutra no conflito e a Rússia está longe do isolamento.

Um fórum onde é visível a resistência de grande parte do mundo à pressão ocidental é o grupo das 20 economias mais desenvolvidas do mundo. Há um mês, uma reunião do G20 em Bangalore (Índia) terminou sem acordo quanto a condenar a Rússia: os países ocidentais defendiam uma posição clara e grande parte dos restantes defendeu que o G20 não é um fórum político, mas de discussão de problemas económicos.

Sem serem antiocidentais, muitos países de África, Ásia e América Latina — o chamado Sul Global — têm posição híbrida relativamente ao conflito: criticam a invasão, mas mantêm o diálogo com Moscovo, nem que seja por razões práticas, como descontos na energia que importam.

A 23 de fevereiro, 52 Estados-membros da ONU não alinharam com a maioria de 141 que aprovou uma resolução na Assembleia-Geral a exigir a “retirada” russa da Ucrânia e o “fim das hostilidades”. A Namíbia absteve-se. “O nosso foco está na resolução do problema, não em atribuir culpas”, justificaria a primeira-ministra Saara Kuugongelwa-Amadhila, para quem os gastos com armamento “poderiam ser mais bem usados a promover o desenvolvimento na Ucrânia, em África, na Ásia, na própria Europa, onde muitas pessoas passam por dificuldades”.

Está marcada para 26 a 29 de julho, em São Petersburgo, a segunda cimeira Rússia-África. A primeira realizou-se em 2019, em Sochi, com a participação dos 54 Estados africanos, 43 ao nível de chefes de Estado. Então, em declarações ao jornal “The Moscow Times”, Albert Kofi Owusu, diretor da agência noticiosa do Gana, partilhou a sua experiência de colaboração com a Rússia e o Ocidente. “Com a ajuda ocidental, há todo um conjunto de condições. Dizem: se querem este dinheiro, têm de fazer determinada coisa em relação aos LGBTQ, por exemplo, mesmo que vá contra os valores do país. China e Rússia dizem: ‘Aqui está o dinheiro’.”

AS RAZÕES DE ÁFRICA

1 Memória e sentimento de gratidão relativamente ao apoio dado pela União Soviética, ao longo de décadas, aos movimentos de libertação nacional. São exemplos o ANC (África do Sul) e o MPLA (Angola).

2 Dependência africana relativamente à Rússia no que respeita à importação de cereais e, cada vez mais, a recursos energéticos.​

3 A Rússia é o maior fornecedor de armas a África. Há também presença crescente de organizações privadas de segurança, como o Grupo Wagner (de origem russa), em apoio de “guardas pretorianas” presidenciais.

4 Ausência de África nos lugares permanentes do Conselho de Segurança da ONU. A Rússia defende a reforma do órgão para acomodar países de África, Ásia e América Latina.

AMÉRICA LATINA NÃO QUER SER ‘O QUINTAL’ DOS ESTADOS UNIDOS

IDEOLOGIA
Bolivarianos Cuba, Nicarágua e Venezuela estão ao lado do Kremlin desde a primeira hora. Identificam-se com o modelo autoritário de Putin e reproduzem a narrativa de que a Rússia foi provocada pelo Ocidente/NATO.

ECONOMIA
Negociantes Brasil, México e Argentina, as maiores economias regionais, não percecionam a Rússia como ameaça. No Brasil, o comércio bilateral é significativo — a Rússia é o maior fornecedor de fertilizantes. No Palácio do Planalto, a política relativa à Rússia não mudou após Lula suceder a Bolsonaro.

GEOPOLÍTICA
Aliados Muitos países têm relações diplomáticas históricas com a Rússia, ao ponto de a verem como parceiro geopolítico crucial. Exemplo: na pandemia, a vacina russa Sputnik V foi a primeira a ser usada na Argentina, Bolívia, Venezuela, Paraguai e Nicarágua.

VIZINHANÇA
Anti-imperialismo 
Coloquialmente conhecida como “pátio traseiro dos Estados Unidos”, a América Latina olha para norte com histórico receio em relação ao que dali possa vir. Neste contexto, Moscovo é vista como velha antagonista de Washington.

ORIENTE CONTA COM A RÚSSIA

Organização do Tratado de Segurança Coletiva
Aliança militar criada em 2002, é composta por seis ex-repúblicas soviéticas: Arménia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão, além da Rússia. Procura replicar o modelo da NATO.

Organização de Cooperação de Xangai
Fundada em 2001, tem carácter político, económico e militar. Engloba oito países da Eurásia: China, Índia, Rússia, Paquistão, Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão e Usbequistão. Irão já iniciou o processo de adesão.

União Económica Eurasiática
Organização de integração económica regional, prevê livre circulação de “bens, serviços, capitais e trabalho”. Os membros são: Arménia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e Rússia. Entrou em vigor em 2015.

Comunidade de Estados Independentes
Organização de cooperação, resultou do desmembramento da União Soviética. Das 15 antigas repúblicas soviéticas, só quatro não são membros: os bálticos (Estónia, Letónia, Lituânia) e a Geórgia.

ALERTAS

“Temos de reequilibrar a nossa ordem global, torná-la mais inclusiva. Estou muito impressionado com o quanto estamos a perder a confiança do Sul Global”
Emmanuel Macron, Presidente de França

“Acho que a Rússia cometeu um erro crasso ao invadir o território de outro país. Mas quando um não quer, dois não brigam. Precisamos encontrar a paz”
Lula da Silva, Presidente do Brasil

“A situação no mundo muda de forma dinâmica. Estão a formar-se os contornos de um mundo multipolar”
Vladimir Putin, Presidente da Federação Russa

EDUCAÇÃO

27 mil
estudantes africanos frequentam universidades e instituições científicas na Rússia, segundo estatísticas de Moscovo de 2021. Em 2008 eram 9 mil. A formação de elites africanas foi um dos pilares da cooperação entre África e a União Soviética: estima-se que cerca de 60 mil africanos tenham estudado na URSS entre 1949 e 1991

HÁ MAIS DE UMA DÚZIA DE PAÍSES QUE QUEREM ADERIR AO GRUPO DOS BRICS

Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (conhecidos pelo acrónimo BRICS) representam um quarto da superfície terrestre e 40% da população mundial. Estas economias emergentes começaram a realizar cimeiras anuais em 2009 (a África do Sul só a partir de 2010), vivia o mundo uma crise financeira. Os BRICS são considerados o principal bloco rival do G7, que agrupa as economias mais avançadas. “O interesse nesta associação global é bastante alto e continua a crescer. Não só Argélia, Argentina e Irão, na verdade, são mais de uma dúzia de países”, disse recentemente o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov. A cimeira deste ano, de 22 a 24 de agosto, em Durban, terá interesse acrescido: a África do Sul é membro do Tribunal Penal Internacional, que emitiu um mandado de detenção para Vladimir Putin.

TRÊS PERGUNTAS A

Pedro Ponte e Sousa
Professor na Universidade Portucalense

Qual a estratégia da Rússia?
A Rússia tem procurado expandir as suas relações económicas, políticas e militares com o conjunto do mundo não Ocidental ou do Sul Global. Já vinha a fazê-lo antes da invasão, mas intensificou essa estratégia para contrariar os custos da guerra, bem como as sanções económicas do Ocidente.

Como reagiu o Sul Global?
Não adotou nem deverá adotar sanções económicas à Rússia. Nem é certo que aqueles do Sul Global que são membros do Tribunal Penal Internacional se comprometam a deter Vladimir Putin. O fundamento assenta numa separação entre a condenação política, que é evidente, e o uso de ferramentas económicas para transformar o comportamento político do outro ou, como parece pretender o Ocidente, para ‘punir’ a Rússia. O Sul Global salienta que as sanções económicas — mesmo as das últimas décadas (smart sanctions), dirigidas aos atores responsáveis pela guerra — continuam a ter impacto desproporcional sobre os mais pobres e dão um free pass aos líderes políticos.

As sanções funcionam?
Sim e não. Os impactos macroeconómicos são inegáveis. Contudo, o objetivo das sanções económicas não deveria ser ‘punir’ o outro, mas ajudar a transformar o seu comportamento político. E não só as sanções não estão a funcionar com a Rússia como a investigação científica demonstra que raramente funcionam. São uma ótima forma de quem as impõe mostrar que faz alguma coisa, e dar uma imagem de força, mas não há especiais indícios de eficácia. A solução tem sido aumentar a escala e âmbito das sanções e apontar para o longo prazo. Mas tem servido para cortar mais as relações com a Rússia, atirá-la para os braços da China e diversificar as suas relações, bem como aprofundar a mentalidade de Guerra Fria II (Ocidente versus Rússia e China) entre os decisores políticos.

Artigo publicado no “Expresso”, a 31 de março de 2023. Pode ser consultado aqui

Da Amazon para as frentes de batalha, os drones estão a moldar a forma como se faz a guerra

De forma crescente, os drones têm assumido protagonismo em contextos de guerra. O conflito na Ucrânia é o mais recente exemplo. Ágeis, sofisticados e polivalentes, os veículos aéreos não tripulados — mesmo que comprados em sites tão populares como a Amazon — proliferam em ações de vigilância, de combate ou suicidas. Ao Expresso, um investigador da área alerta: “Enquanto a tecnologia drone é barata e extremamente avançada, desenvolvendo-se a uma velocidade estonteante, a tecnologia antidrone, que permite impedir ou neutralizar um drone, está muito menos desenvolvida e tem imensos problemas ao nível da eficácia”

Na era das ciberguerras, os drones são os guerreiros perfeitos. Matam sem remorsos, obedecem sem questionar e nunca denunciam os chefes.” Esta frase foi escrita há dez anos pelo uruguaio Eduardo Galeano, no livro “Os Filhos dos Dias” (Antígona, 2020). Nas últimas semanas, três contendas internacionais parecem confirmar o perfil guerreiro dos veículos aéreos não tripulados. E é tão simples como isto: “Qualquer pessoa pode comprar um drone na Amazon e depois armá-lo”.

Na guerra da Ucrânia, a Rússia — apanhada de surpresa pela contraofensiva de Kiev sobre territórios que Moscovo já tinha formalmente anexado — retaliou com enxames de drones sobre cidades ucranianas distantes da linha da frente, incluindo a capital.

Não muito longe, no Irão, o regime — acossado há mais de um mês por manifestações populares desencadeadas pela morte de uma mulher curda às mãos da polícia — recorreu a drones para bombardear grupos armados curdos, baseados no Curdistão iraquiano, a quem acusou de instigar os protestos.

Ainda na região do Médio Oriente, sexta-feira passada, o Governo do Iémen intercetou drones armados disparados pelos rebeldes huthis na direção de um petroleiro que se preparava para atracar num terminal no sul do país.

Novas dinâmicas no campo de batalha

De forma crescente, os drones têm vindo a assumir protagonismo em contextos bélicos. Ainda que não vão ao ponto de mudar totalmente a forma como se faz a guerra,“claramente, os drones introduzem novas dinâmicas”, diz ao Expresso o investigador Bruno Oliveira Martins, do Peace Research Institute Oslo (PRIO), estudioso da temática dos drones. “Estas dinâmicas são multifacetadas”, acrescenta. E exemplifica:

  • Ao alcance dos civis. “Na Ucrânia, por exemplo, grupos de civis, como engenheiros, organizaram-se para desenvolver drones com tecnologia comercial. Com os seus conhecimentos técnicos, colocam os drones ao serviço do exército.”
  • Resistência aos poderosos. “Porque os drones são, em geral, uma tecnologia muito mais barata do que muitas outras armas, exércitos e forças menos poderosas podem oferecer resistência significativa face a adversários mais poderosos.”
  • Novos produtores, novas alianças. “Existe uma nova geopolítica em torno do surgimento de atores internacionais ao nível da produção de armas. Isso faz com que algumas alianças e posicionamentos diplomáticos que reconhecemos no passado não existam totalmente, ou estejam a ser adaptados ou modificados.”

Foi nos anos 90, nos Balcãs, que os drones começaram a ser usados em contexto de guerra, para recolher imagens em tempo real das movimentações no terreno — as chamadas ações de Informação, Vigilância e Reconhecimento (ISR, na sigla em inglês).

Desde então, estes “zangãos” (tradução da palavra inglesa “drones”) tornaram-se mais sofisticados, polivalentes e… ameaçadores.

“Na viragem do milénio, surgiu a ideia de armar os drones, para que não só providenciassem imagens como fosse possível atuar em função desse tipo de informação recolhida”, diz Oliveira Martins, que no PRIO coordena um projeto no valor de 1,2 milhões de euros para investigar a integração de drones no espaço civil na União Europeia.

“Os primeiros drones armados apareceram em Israel e nos Estados Unidos, entre 2000 e 2010. E começaram a ser utilizados em conflitos mais convencionais.” Hoje, são usados como arma letal, essencialmente de três formas:

  1. Drone com míssil
    No grupo de drones armados, o exemplo clássico é aquele que transporta um míssil. Disparado o projétil, o veículo tem capacidade para regressar à origem.
  2. Drone improvisado
    É construído com base em tecnologia comercial, à venda em lojas. “Qualquer pessoa pode comprar um drone na Amazon e depois armá-lo”, diz o perito do PRIO. “Grupos terroristas não estatais armam este tipo de drone com granadas, por exemplo.”
  3. Drone kamikaze
    O próprio drone é a arma. Descartável, é disparado contra um alvo, destruindo-o e destruindo-se, replicando o modus operandi dos pilotos de caça japoneses suicidas na II Guerra Mundial. Este tipo de drone foi muito usado pelo grupo terrorista Daesh (o autodenominado Estado Islâmico) na Síria e no Iraque, e por grupos rebeldes em África. Hoje, “é utilizado abundantemente na Ucrânia”, por ambos os lados.

Se se distinguir entre drones comerciais (para utilização civil) e drones para uso militar, Portugal surge em lugar de destaque num dos rankings. “Há dezenas de países, decerto mais de uma centena, que produzem drones para utilização civil. Portugal tem uma empresa, a Tekever, que é líder europeia ao nível de drones utilizados, por exemplo, para vigilância marítima”, refere Oliveira Martins.

Já quanto aos drones armados, se numa primeira fase os principais produtores eram os Estados Unidos e Israel, “depois, foram surgindo novos produtores que, atualmente, representam uma fatia cada vez maior do mercado: de início a China, depois os Emirados Árabes Unidos, o Irão e a Turquia”.

“Neste momento, Irão e Turquia são quem mais atenção internacional têm atraído, nomeadamente a Turquia. Nos últimos anos tornou-se, praticamente a partir do nada, um país extremamente importante na produção de drones armados.”

Na guerra da Ucrânia, drones turcos e iranianos têm servido em trincheiras opostas. Fabricados na Turquia — que assumiu o papel de mediador entre Moscovo e Kiev —, os drones Bayraktar (porta-estandarte, em turco) foram preciosos, nas primeiras semanas do conflito, para a Ucrânia repelir as ofensivas russas.

Num momento dissonante em relação aos horrores da guerra, um grupo de militares ucranianos protagonizou um bem-humorado vídeo musical de exaltação a esse aliado turco.

Mais recentemente, foram drones kamikaze cuja origem se atribui ao Irão a sobressair no arsenal da Rússia. “No verão de 2022, Teerão transferiu centenas de drones militares para a Rússia, numa tentativa de melhorar a sua baça capacidade ao nível dos drones” de combate, diz ao Expresso o iraniano Mohammad Eslami, investigador na área dos drones na Universidade do Minho. Batizados por Moscovo de Geran-2, no Irão são designados por Shahed-136.

“O Irão fabrica drones armados e possui vários modelos de drones de combate que complementam o seu programa de mísseis balísticos. É algo que permite a Teerão compensar as suas forças aéreas relativamente fracas e antiquadas”, diz Eslami.

Em 2019, a República Islâmica promoveu um exercício com drones no Golfo Pérsico intitulado “Rumo a Jerusalém”. O professor iraniano considera esta operação “uma das ações mais provocadoras nos anos recentes. A designação que os responsáveis iranianos deram a este exercício militar transmite a ideia que ‘confrontar Israel’ é uma das funções mais importantes que o Irão confere ao seu programa de drones”.

No conflito ucraniano, nem a Rússia confirma ter comprado drones ao Irão, nem este admite tê-los vendido. Mas um negócio entre estes dois países não seria surpreendente, dado serem os Estados mais castigados com sanções pela comunidade internacional — com a invasão da Ucrânia, a Rússia ultrapassou o Irão.

Acresce que, a 18 de outubro de 2020, expirou o embargo de armas ao Irão decretado pelas Nações Unidas, conforme previsto no acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano, assinado cinco anos antes. Isto “eliminou qualquer obstáculo oficial à venda e aquisição de armas entre a Rússia e o Irão”, recorda Eslami.

A forma como Turquia e Irão se tornaram referências no fabrico de drones confirma uma consequência importante desta indústria. “Com o surgimento destes novos produtores, a tecnologia de drones armados democratizou-se. Hoje, é muito mais comum um determinado país conserguir adquirir esta tecnologia pelo simples facto de haver cada vez mais Estados e empresas que podem e estão interessados em vendê-la”, diz Oliveira Martins.

“Quando a produção da tecnologia era praticamente um monopólio entre Israel e os Estados Unidos, basicamente só os países da esfera de alianças e parcerias desses dois tinham acesso à tecnologia. A partir do momento em que mais e mais países, de esferas geopolíticas diferentes, começaram a desenvolver capacidade para produzir drones armados, o número de países com acesso a esses equipamentos cresceu exponencialmente.”

Drones turcos tiveram uma importância significativa na última guerra em torno de Nagorno-Karabakh (em defesa do Azerbaijão), na Líbia (em apoio do Executivo de Trípoli, reconhecido pela ONU) e também na Etiópia (adquiridos pelo Governo, contra as forças da Frente Popular de Libertação do Tigray).

Drones em mãos erradas

Além dos conflitos convencionais, os drones tornaram-se protagonistas também nas mãos de grupos terroristas. “Vimos o Estado Islâmico utilizar largas centenas, senão milhares de drones vendidos pela China”, recorda o investigador do PRIO. “Aponta-se para a existência de cerca de 65 grupos não estatais que utilizam drones armados. Mas esse número pode ser bastante mais elevado.”

Ao arrepio de quaisquer motivações políticas ou ideológicas, drones são usados por grupos de criminalidade organizada, nomeadamente narcotraficantes mexicanos. “À medida que a tecnologia prolifera, fica ao alcance de todo o tipo de grupos e para todo o tipo de utilizações.”

“Enquanto a tecnologia drone é barata e extremamente avançada, desenvolvendo-se a uma velocidade estonteante, a tecnologia antidrone — que permite impedir ou neutralizar um drone — está muito menos desenvolvida e tem imensos problemas ao nível da eficácia”, explica Oliveira Martins. “Ainda não se configura uma resposta adequada ao problema securitário que decorre da entrada em massa de drones no espaço aéreo civil.”

Durante a Administração Obama, nos Estados Unidos, o uso de drones em especial no Paquistão, Iémen e Somália — no âmbito de assassínios seletivos de suspeitos de terrorismo — contribuiu para uma perceção negativa da utilidade destes veículos aéreos, em virtude do número de civis mortos.

Para Oliveira Martins, é indiscutível que “os drones são uma tecnologia mais precisa do que outro tipo de bombas mais poderosas”. Porém, “o nível de precisão dos drones varia bastante, consoante o tipo de drone, da tecnologia utilizada, da capacidade do utilizador ou das condições no terreno”.

“Muitas vezes a precisão não é tão elevada quanto é anunciado. E em virtude da existência de uma narrativa em torno da precisão, a fasquia para se decidir utilizar um drone armado num ataque é hoje mais baixa do que antes. Porque há a ideia de que os drones são mais precisos, então vamos utilizá-los, disparar um míssil, porque temos mais confiança na eficácia desse ataque. E o que verifica quem estuda as consequências dos ataques com drones é que muitas vezes a informação que suporta a decisão para atacar com um drone não é suficientemente forte.”

Tragédias americanas

  • A 12 de dezembro de 2013, durante uma operação de contraterrorismo nos arredores da cidade de Rad’a (centro do Iémen), um drone dos Estados Unidos disparou quatro mísseis Hellfire na direção de um comboio de onze carros e pick-ups. O ataque provocou 12 mortos e 15 feridos, todos civis. Os veículos integravam um cortejo de casamento.
  • A 29 de agosto de 2021, dias após a retirada militar dos Estados Unidos do Afeganistão, um ataque desencadeado por um drone americano, em Cabul, matou dez pessoas, incluindo sete crianças. “A pessoa identificada não era terrorista, nem sequer suspeito”, recorda Oliveira Martins. “Suspeitaram do tipo de comportamento e dos sítios que essa pessoa frequentou e decidiram disparar.”

Nestes dois casos, o drone foi preciso, ainda que a informação que validou os ataques fosse incorreta. Mas, como alertou Eduardo Galeano, o drone “obedeceu sem questionar” e “matou sem remorsos”.

(FOTO Veículo aéreo não tripulado MQ-9 Reaper WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 26 de outubro de 2022. Pode ser consultado aqui

UE mostra as garras à Rússia: “Quando um membro permanente inicia uma guerra não provocada devia ser suspenso do Conselho de Segurança”

O quarto dia de discursos na Assembleia Geral das Nações Unidas ficou marcado por um violento discurso do presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, contra a Rússia. A braços com outra “guerra”, o primeiro-ministro do Paquistão descreveu, de forma emocionada, as consequências de “inundações bíblicas” no seu país. E um “oásis” chamado Timor-Leste agradeceu expressamente a dois países a assistência prestada ao sector da saúde

Os grandes desafios do mundo não olham a antiguidade. Esta sexta-feira, na Assembleia Geral das Nações Unidas, o jovem Timor-Leste, que é independente e membro da ONU há apenas 20 anos, expressou receios ao nível das maiores preocupações dos veteranos da mais universal das organizações, fundada há quase 80 anos.

“Como quase todos os países do planeta, Timor-Leste sofre várias catástrofes decorrentes das alterações climáticas — períodos de seca prolongada, seguida de inundações —, a pandemia de covid-19 e agora o impacto económico global resultante do confronto Rússia-Ucrânia-NATO”, afirmou o Presidente do país.

Reeleito há cinco meses, José Ramos-Horta particularizou um agradecimento especial a dois países que considerou fundamentais para minimizar o impacto de algumas destas crises, designadamente ao nível da saúde pública.

À Austrália, que “provou ser uma verdadeira vizinha irmã”, Ramos-Horta agradeceu “a pronta assistência ao nosso frágil sistema de saúde”, com o envio de pessoal médico, ventiladores e equipamentos de intubação e formação a timorenses. “Quando a vacina ficou disponível, a Austrália forneceu-nos para além das nossas necessidades.”

“Rússia, Ucrânia e NATO têm de engolir o orgulho”

O outro país elogiado foi Cuba. “À época da independência, há 20 anos, nós tínhamos 20 médicos, hoje temos mais de 1200 para uma população de 1,5 milhões. Isto não teria sido alcançado sem a solidariedade cubana.” Então, “a esperança [média] de vida era inferior a 60 anos, agora uma mulher timorense pode esperar viver para além dos 71 anos de idade.”

Ramos-Horta descreveu Timor-Leste — que, no próximo ano, espera dar um passo importante na sua robustez enquanto país aderindo à Organização Mundial do Comércio — como “um oásis de tranquilidade”, “num mundo atormentado por conflitos e catástrofes provocadas pelo homem, de Mianmar ao Afeganistão, do Iémen à Ucrânia”. 

“Rússia, Ucrânia e países da NATO têm de engolir o orgulho, rever as políticas passadas que levaram a este suicídio mútuo, afastar-se das fronteiras uns dos outros.”

José Ramos-Horta
Presidente de Timor-Leste

Timor-Leste aderiu às Nações Unidas em 2002, no mesmo ano que se tornou independente. Depois, a ONU só abriu portas mais duas vezes: em 2006 para acolher o Montenegro e em 2011 para entrar o Sudão do Sul, colocando em 193 o número de Estados membros.

A organização tem ainda dois “Estados não membros”, com direito a assistir aos trabalhos e a intervir na Assembleia Geral e a manter uma missão permanente na sede da organização, em Nova Iorque. Um deles é a Santa Sé e o outro a Palestina, que sonha há décadas com um Estado independente e com o estatuto de ‘igual entre iguais’ na ONU.

Discurso de um sentido só: Israel

No debate desta sexta-feira, Mahmud Abbas excedeu largamente os 15 minutos atribuídos a cada orador e, durante quase 50 minutos, discursou sobre um tema só: a ocupação israelita da Palestina e o sonho adiado de 14 milhões de palestinianos dispersos pelo mundo — descendentes dos 700 mil que fugiram das terras onde viviam (Nakba), durante a guerra da independência de Israel.

“A nossa confiança na possibilidade de alcançarmos uma paz com base na justiça e no direito internacional está, infelizmente, a diminuir devido às políticas de ocupação de Israel”, disse o Presidente da Autoridade Palestiniana (AP), perante uma sala onde primava pela ausência o representante de Israel.

“Israel não acredita na paz, acredita na imposição de um status quo pela força e pela agressão. Por isso, não temos mais um parceiro israelita com quem possamos conversar”, disse. “Israel terminou a relação contratual connosco e transformou-a numa relação entre um Estado ocupante e um povo ocupado.”

“Porquê razão Israel não é responsabilizado pelo direito internacional? Quem está a protege-lo? As Nações Unidas protegem-no, e à cabeça estão os países mais poderosos.”

Mahmud Abbas
Presidente da Autoridade Palestiniana

Abbas, que preside à AP desde 2005 (e cujo mandato expirou em 2009 sem que, desde então, os palestinianos tenham conseguido realizar eleições para legitimar o titular do cargo), discursou um dia após o primeiro-ministro israelita fazer-se ouvir e reafirmar o seu compromisso com a solução de dois Estados.

“Um acordo com os palestinianos, com base em dois Estados para dois povos, é a coisa certa para a segurança de Israel, para a economia de Israel e para o futuro das nossas crianças”, defendeu Yair Lapid.

Na tribuna da Assembleia Geral, a seguir ao líder palestiniano, discursou o francês Charles Michel, em representação da União Europeia (UE), que não esqueceu os palestinianos: “O povo palestiniano espera há muito tempo e em vão por qualquer progresso em relação ao seu próprio futuro. O povo palestiniano não pode tornar-se a entidade esquecida na paisagem global”.

O presidente do Conselho Europeu da UE centrou a sua intervenção na guerra que “o Kremlin lançou ao povo ucraniano”, uma guerra híbrida que “combina violência armada e mentiras venenosas”.

Reforma da ONU é “necessária e urgente”

O dirigente europeu não poupou nas palavras e disse estar convicto que as Nações Unidas podem fazer mais quando Estados poderosos, como a Rússia, pisam a linha do aceitável.

“Quando um membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas inicia uma guerra não provocada e injustificável, uma guerra condenada pela Assembleia Geral da ONU, a sua suspensão do Conselho de Segurança devia ser automática”, defendeu.

Charles Michel criticou o uso abusivo do direito de veto, “que devia ser a exceção, mas tornou-se a regra”, e defendeu que “uma reforma é necessária e urgente”.

https://twitter.com/CharlesMichel/status/1573351354176868354?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1573363999131009026%7Ctwgr%5E40125869a94f79b79c519247c145e9f9a51636c7%7Ctwcon%5Es2_&ref_url=https%3A%2F%2Fexpresso.pt%2Finternacional%2F2022-09-23-UE-mostra-as-garras-a-Russia-Quando-um-membro-permanente-inicia-uma-guerra-nao-provocada-devia-ser-suspenso-do-Conselho-de-Seguranca-c7bc841c

Numa jornada em que discursaram vários Estados insulares — Vanuatu, Fiji, Ilhas Salomão, Santa Lúcia e Maurícias —, vulneráveis à subida do nível dos oceanos, as palavras mais desesperadas soaram da boca de um país onde vivem mais de 220 milhões de pessoas.

“Enquanto estou aqui hoje para contar a história do meu país, o Paquistão, o meu coração e a minha mente não conseguiram sair de casa. Nenhuma palavra consegue descrever o choque que estamos a viver ou como a face do país está transformada”, disse Muhammad Shehbaz Sharif, o primeiro-ministro paquistanês.

“Durante 40 dias e 40 noites, uma inundação bíblica caiu sobre nós, destruindo séculos de registos climáticos, desafiando tudo o que sabíamos sobre desastres e como responder-lhes.”

O Paquistão é, desde meados de junho, o país mais atingido pela fúria da natureza e pelos efeitos devastadores das alterações climáticas. A dimensão da catástrofe levou Sharif ao desespero, dizendo que o país trava “uma batalha pela sua sobrevivência” e que “a vida no Paquistão mudou para sempre”.

Por que razão o meu povo está a pagar um preço tão alto pelo aquecimento global sem culpa própria? A natureza lançou a sua fúria sobre o Paquistão sem olhar à nossa pegada, que é quase nula. As nossas ações não contribuíram para isto.”

Muhammad Shehbaz Sharif
primeiro-ministro do Paquistão

(IMAGEM SITE DO PARLAMENTO EUROPEU)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 23 de setembro de 2022. Pode ser consultado aqui