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Cessar-fogo em Gaza e retaliação do Irão a Israel: as duas frentes de um jogo perigoso

As negociações com vista a um cessar-fogo na Faixa de Gaza, previstas para quinta-feira, são uma prova de fogo para o Irão: uma trégua pode fazer abortar o prometido ataque contra Israel, em retaliação pelo assassínio do líder do Hamas em Teerão. Em cima da mesa das conversações está um plano em três fases, apresentado por Joe Biden, que, pela primeira vez em dez meses de guerra, propõe uma “cessação permanente das hostilidades”

A região do Médio Oriente vive dias profundamente contraditórios em que tanto se fala de um iminente ataque do Irão contra Israel como de negociações com vista a um cessar-fogo na Faixa de Gaza. A verdade é que a conclusão do segundo processo — a trégua em Gaza — pode determinar a ocorrência do primeiro — a retaliação iraniana contra Israel.

Israel e o Hamas estão convocados para nova jornada de negociações indiretas, agendadas para esta quinta-feira. Sobre a mesa está um plano que, pela primeira vez, aborda uma “cessação permanente das hostilidades”, incluindo a retirada israelita de Gaza e a libertação dos reféns.

“Concordamos que não pode haver mais atrasos”, defenderam o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, o Presidente francês, Emmanuel Macron, e o chanceler alemão, Olaf Scholz, numa declaração conjunta divulgada na segunda-feira.

A concretizarem-se, serão as primeiras negociações com Yahya Sinwar na liderança do Hamas, a partir dos túneis de Gaza. Até recentemente, o interlocutor era Ismail Haniyeh, exilado no Catar, que foi assassinado em Teerão, a 31 de julho, num atentado atribuído a Israel, embora não reivindicado pelo Estado hebraico.

Porquê negociar agora?

A guerra em Gaza dura há mais de dez meses, o território está cada vez mais inabitável, o número de mortos entre a população civil não cessa de aumentar e os reféns israelitas tardam em regressar a casa. Paralelamente, a região está cada vez mais perto de uma guerra generalizada.

Na semana passada, os mediadores Catar, Egito e Estados Unidos instaram Israel e o Hamas a retomarem as discussões, a 15 de agosto, no Cairo ou em Doha, para discussão de um “acordo-quadro” cuja finalização está presa “apenas pelos detalhes”.

“Não há mais tempo a perder nem desculpas de qualquer das partes para mais atrasos. É tempo de libertar os reféns, iniciar o cessar-fogo e aplicar este acordo”, defenderam os presidentes Joe Biden (Estados Unidos), Abdel Fattah el-Sisi (Egito) e o emir Tamim bin Hamad Al Thani (Catar), num comunicado conjunto de 8 de agosto.

Em cima da mesa está uma proposta apresentada pelo Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, a 31 de maio, numa intervenção a partir da Casa Branca. “Depois de intensa diplomacia levada a cabo pela minha equipa e das minhas muitas conversas com os líderes de Israel, Catar, Egito e outros países do Médio Oriente, Israel apresentou uma nova proposta abrangente. É um roteiro para um cessar-fogo duradouro e para a libertação de todos os reféns. Esta proposta foi transmitida pelo Catar ao Hamas.”

A data das negociações poderá não ser inocente. Na próxima segunda-feira, nos Estados Unidos, arranca, em Chicago, a convenção do Partido Democrata que deverá confirmar o ticket Kamala Harris-Tim Walz na corrida à Casa Branca. Como ficou visível na recente visita a Washington do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, a questão palestiniana divide fortemente o Partido Democrata.

Um eventual acordo de cessar-fogo seria uma grande vitória para Biden e para a sua “diplomacia paciente”, como lhe chamou o jornal americano “The Washington Post”. O Presidente dos Estados Unidos tem tentado equilibrar o papel do seu país como pacificador do Médio Oriente, enquanto mantém apoio incondicional a Israel.

Que plano está na mesa do diálogo?

A proposta que israelitas e Hamas têm em mãos vai além das anteriores. Pela primeira vez, aborda um cenário de fim da guerra, uma “cessação permanente das hostilidades”, que inclui a retirada militar israelita completa da Faixa de Gaza e o regresso de todos os reféns vivos. Em concreto, prevê três fases.

FASE 1 — Decorreria durante seis semanas e passaria por um cessar-fogo “total e completo”, retirada das forças israelitas de “todas as zonas povoadas” da Faixa de Gaza, libertação de reféns – incluindo mulheres, idosos e feridos – em troca da libertação de centenas de prisioneiros palestinianos. Civis palestinianos seriam autorizados a regressar a casa “em todas as áreas de Gaza”, incluindo ao norte do território. Haveria um aumento da ajuda humanitária, com a previsão de 600 camiões a entrar diariamente em Gaza. Centenas de milhares de abrigos temporários seriam fornecidos pela comunidade internacional.

FASE 2 — Haveria uma troca de prisioneiros que permitiria a libertação dos restantes reféns vivos, incluindo os soldados do sexo masculino. As forças israelitas retirar-se-iam de Gaza e “desde que o Hamas cumpra os seus compromissos”, o cessar-fogo temporário evoluiria — “nas palavras da proposta israelita”, enfatizou Biden — para uma “cessação permanente das hostilidades”.

FASE 3 — Teria início um grande projeto de reconstrução de Gaza. Os restos de reféns mortos seriam devolvidos às famílias.

    Este plano foi confirmado pela resolução 2735 do Conselho de Segurança, a 10 de junho passado, com 14 votos a favor e abstenção da Rússia.

    Como reagiu o Hamas à proposta?

    A 2 de julho, o Hamas respondeu positivamente ao plano de cessar-fogo anunciado por Biden, abdicando da exigência que vinha fazendo no sentido de um cessar-fogo total e permanente antes de se comprometer com qualquer acordo. Passado mais de um mês, o grupo jiadista defende que as negociações previstas para esta semana devem ser retomadas com base na proposta apresentada por Biden e no ponto do seu ‘sim’ dado em julho.

    O Hamas receia que, assim que as negociações forem retomadas, Israel possa apresentar novas condições. O grupo palestiniano diz ter demonstrado flexibilidade, mas que Israel não revela seriedade na vontade de alcançar uma trégua. Estas dúvidas tornam a presença de uma delegação do Hamas incerta nas negociações desta semana.

    “O que obstrui o sucesso da última proposta é a ocupação israelita”, disse Jihad Taha, porta-voz do Hamas. “Preencher as restantes lacunas no acordo de cessar-fogo passa por exercer pressão real sobre o lado israelita, que estava, e ainda está, a praticar uma política de colocação de obstáculos no caminho do êxito de quaisquer esforços que levem ao fim da agressão.”

    Que defende Israel?

    Israel anuiu ao envio de uma equipa de negociadores às conversações desta semana. Mas no país, a resistência a um entendimento com o Hamas é forte, a começar pelo próprio primeiro-ministro, que sempre defendeu que não aceitaria um acordo que estipulasse o fim da guerra sem a derrota total do Hamas. “O objetivo é o regresso dos reféns e desenraizar o regime do Hamas em Gaza”, defende Netanyahu.

    Segundo um artigo publicado, esta terça-feira, pelo jornal americano “The New York Times”, documentos que detalham as mais recentes posições negociais revelam que “Israel foi menos flexível nas recentes negociações de cessar-fogo em Gaza” e que “fez cinco novas exigências”.

    Dois exemplos: Israel exigiu que as suas forças continuem a controlar a fronteira sul da Faixa de Gaza (o Corredor Philadelphi, junto ao Egito) e impôs restrições ao regresso de deslocados palestinianos à parte norte do território, o que não constava na proposta apresentada por Biden. Segundo a imprensa israelita, a introdução de novas exigências foi feita por Netanyahu. Na prática, contribuem para sabotar a proposta de cessar-fogo, o que originou um braço de ferro entre o primeiro-ministro e a sua equipa de negociadores.

    Na semana passada, o jornal digital israelita “The Times of Israel” descreveu discussões acaloradas entre responsáveis políticos e da área da segurança israelitas a propósito da proposta de cessar-fogo. “Altos funcionários, incluindo o ministro da Defesa, Yoav Gallant, e o chefe das FDI [Forças de Defesa de Israel], Herzi Halevi, terão dito […] ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu que a sua insistência em novos termos sabotaria o acordo de cessar-fogo e a libertação de reféns em negociação, levando o primeiro-ministro a afirmar que foi o Hamas, e não ele, a introduzir novas exigências”, relata a publicação.

    Outra altercação descrita por “The Times of Israel” envolveu o chefe da Mossad, que tem liderado as negociações por parte de Israel. David Barnea terá dito, numa reunião com o primeiro-ministro, que há um acordo pronto e que Israel deve aceitá-lo. “Você é fraco!”, terá gritado Netanyahu. “Não sabe como conduzir uma negociação difícil. Está a pôr palavras na minha boca. Em vez de pressionar o primeiro-ministro, pressione Sinwar.” Segundo o jornal, posteriormente, o gabinete do primeiro-ministro negou a afirmação.

    A imprensa israelita escreve que, além do líder da Mossad, são favoráveis a um acordo de cessar-fogo o chefe das FDI, Herzi Halevi, e Ronen Bar, chefe do Shin Bet, a agência interna de segurança de Israel. Para os três, dez meses de uma guerra intensa em Gaza infligiram danos suficientes à capacidade militar do Hamas.

    Outro crítico da atuação de Netanyahu no atual contexto é Benny Gantz, que abandonou o gabinete de guerra em junho em rota de colisão com o primeiro-ministro e que o acusa de dar prioridade à sobrevivência do seu governo em detrimento do resgate dos reféns. “A segurança de Israel durante a campanha mais difícil da sua história tornou-se vítima de caprichos políticos”, disse Gantz, veterano militar tornado político centrista.

    Há relação entre estas negociações e o esperado ataque do Irão a Israel?

    São, basicamente, duas faces de uma mesma moeda. Esta terça-feira, a agência Reuters avançou que “só um acordo de cessar-fogo em Gaza decorrente das negociações esperadas para esta semana impediria o Irão de retaliar diretamente contra Israel”. A convicção decorre de afirmações de “três altos funcionários iranianos”.

    Para o Irão, não retaliar o atentado que vitimou o líder do Hamas, em território iraniano, será admitir fraqueza. Haniyeh estava no Irão a convite do regime, assistira nesse dia à tomada de posse do Presidente Masoud Pezeshkian e ficara alojado numa casa controlada pelos Guardas da Revolução, onde foi morto. Teerão atribui o ataque a Israel.

    Por outro lado, o regime dos ayatollahs está consciente que esse atentado adicionou complexidade a quaisquer negociações com vista a um cessar-fogo em Gaza. Se o Irão retaliar sobre Israel, não só se arrisca a destruir as hipóteses de um cessar-fogo como potencia uma guerra alargada na região.

    Em Teerão, ações como o atentado que vitimou Haniyeh ou, noutra escala, bombardeamentos como o de sábado, que visou uma escola transformada em abrigo para deslocados, na cidade de Gaza, são “armadilhas” de Netanyahu para arrastar o Irão para uma guerra mais ampla, em especial à medida que aumenta a pressão para um cessar-fogo.

    As opções do Irão são limitadas. A aliança dos Estados Unidos com Israel dissuade a República Islâmica de avançar para ações maiores, diretamente ou por procuração. E a continuação dos combates em Gaza corre o risco de contaminar o Líbano e resultar numa derrota do Hezbollah, o aliado mais importante do Irão.

    Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de agosto de 2024. Pode ser consultado aqui

    Nações Unidas querem investigar valas comuns descobertas em Gaza

    Descoberta de centenas de corpos enterrados em dois dos maiores hospitais levanta novas suspeitas de crimes de guerra

    O horror na Faixa de Gaza parece não ter fim. Terça-feira, as Nações Unidas pediram “uma investigação clara, transparente e credível” às valas comuns descobertas em dois dos maiores hospitais no território palestiniano — o Al-Shifa, na cidade de Gaza (centro), e o Nasser, em Khan Yunis (sul). A descoberta foi possível após a retirada das tropas israelitas e a entrada no terreno de equipas da proteção civil palestiniana. “Dado o clima de impunidade prevalecente, isto deveria incluir investigadores internacionais”, defendeu o austríaco Volker Türk, alto-comissário da ONU para os Direitos Humanos. “Os hospitais estão abrangidos por uma proteção muito especial ao abrigo do direito internacional humanitário. O assassínio intencional de civis, detidos e outras pessoas que estão ‘fora de combate’ é crime de guerra.”

    As duas unidades de saúde foram palco de operações de forças especiais de Israel, que acusa o Hamas de ocultar infraestruturas terroristas nos hospitais. A ONU fala de centenas de corpos “enterrados profundamente no solo e cobertos de resíduos” e outros “despidos e com as mãos amarradas”. No hospital Nasser, em Khan Yunis, foram recuperados 283 cadáveres.

    Jornalistas fazem falta

    As Forças de Defesa de Israel rejeitaram as alegações de enterros em massa e possíveis execuções dentro de hospitais. Admitiram ter matado e detido centenas de militantes do Hamas nos dois complexos hospitalares e ter procedido à exumação “seletiva” de cadáveres enterrados previamente pelos palestinianos, para tentar encontrar reféns levados pelos jiadistas a 7 de outubro. “Os exames foram feitos de forma cuidadosa e exclusivamente em locais onde os serviços de informação indicaram a possível presença de reféns, com base em dicas fornecidas por reféns previamente libertados. Foram realizados com respeito, mantendo a dignidade do falecido”, afirmou o exército israelita.

    Stéphane Dujarric, porta-voz do secretário-geral da ONU, António Guterres, realçou que a descoberta de valas comuns “é outra razão por que precisamos de um cessar-fogo” e de “maior acesso por parte dos [funcionários] humanitários”. Dujarric alertou ainda para o bloqueio à informação em relação ao que se passa em Gaza e que resulta numa deficiente cobertura noticiosa da guerra. “Precisamos de mais jornalistas com a possibilidade de fazer o seu trabalho em Gaza com segurança e contar os factos”, disse. A guerra já dura há mais de meio ano e parece estar longe do fim. Israel tem iminente uma ofensiva na zona de Rafah (sul), onde está concentrada a maioria da população do território.

    (FOTO Deslocação de populações em Gaza JABER JEHAD BADWAN / WIKIMEDIA COMMONS)

    Artigo publicado no “Expresso”, a 25 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

    EUA perderam a paciência e começaram a endurecer a relação com Israel: abstenção no Conselho de Segurança viabiliza exigência de cessar-fogo

    A posição dos Estados Unidos de apoio incondicional a Israel é cada vez mais insustentável entre os próprios norte-americanos. Depois de, na semana passada, o secretário de Estado Antony Blinken dizer que a ofensiva em Rafah seria “um erro”, este domingo a vice-Presidente Kamala Harris não descartou “consequências” se a investida for avante. Esta segunda-feira, a abstenção de Washington a uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que exige o cessar-fogo imediato em Gaza confirma uma mudança de posição em relação a Israel

    Com o mês do Ramadão a entrar na terceira semana, o Conselho de Segurança (CS) das Nações Unidas aprovou, esta segunda-feira, uma proposta de resolução com vista a uma trégua humanitária imediata na Faixa de Gaza, que contribua para aliviar o sofrimento da população durante o mês mais sagrado para os muçulmanos, que termina a 9 de abril.

    A resolução foi proposta pelos dez membros não permanentes do CS e tinha garantido, à partida, o apoio de dois dos cinco membros permanentes — a Federação Russa e a China. A votação foi inequívoca e também surpreendente: 14 votos a favor a uma abstenção, dos Estados Unidos, que assim optaram por não aplicar o poder de veto em defesa de Israel.

    O texto aprovado esta segunda-feira:

    “exige um cessar-fogo imediato durante o mês do Ramadão, respeitado por todas as partes, que leve a um cessar-fogo sustentável e duradouro, e também exige a libertação imediata e incondicional de todos os reféns.”

    Esta resolução segue-se a uma outra votada há três dias, proposta pelos Estados Unidos que foi vetada por Moscovo e Pequim. Essa iniciativa lançou uma nuvem sobre a relação — até agora à prova de bala — que os EUA mantêm, há décadas, com Israel. A votação desta segunda-feira confirma que Washington perdeu a paciência.

    O documento redigido pelos Estados Unidos, que foi a votos na sexta-feira, determinava “o imperativo de um cessar-fogo imediato e sustentado para proteger os civis de todos os lados”. O diploma recebeu 11 votos a favor, uma abstenção e a rejeição de três membros, entre os quais a Federação Russa e a China. Por terem poder de veto, Moscovo e Pequim fizeram prevalecer a sua posição e neutralizaram a vontade da maioria que aprovou a resolução.

    Nos corredores das Nações Unidas, circulava a ideia de que os Estados Unidos iam assumir uma rota de colisão com o aliado Israel e defender uma trégua nos combates. Na véspera da votação, um artigo no influente “The New York Times” realçava que a resolução continha “a linguagem mais forte que Washington usou até agora” e que era “uma aparente mudança do aliado mais próximo de Israel”.

    O diabo está nos detalhes

    Porém, “se lermos cuidadosamente a resolução proposta pelos Estados Unidos, ela não pede um cessar-fogo”, alerta ao Expresso Joel Beinin, professor emérito de História do Médio Oriente, na Universidade de Stanford (Califórnia, EUA).

    O texto era significativamente mais forte do que diplomas anteriores apoiados pelos norte-americanos, dizia que a trégua era importante, mas ficava aquém ao não exigi-la. E, contrariamente a resoluções anteriores vetadas pelos EUA que defendiam um cessar-fogo incondicional, esta ligava diretamente um cessar-fogo à libertação dos reféns israelitas.

    Da expectativa de uma posição dura em relação a Israel às críticas sobre a linguagem ambígua e complicada do texto da resolução, que mais parecia uma tentativa de agradar a todos, não ficou clara uma mudança substancial no apoio dos EUA a Israel — que a votação desta segunda-feira confirmou.

    Para Joel Beinin, os Estados Unidos tiveram duas grandes motivações para apresentar esta resolução. Por um lado, “as ações israelitas em Gaza são ultrajantes”. Por outro, “a opinião pública nos EUA é favorável a um cessar-fogo, ao fornecimento de ajuda humanitária a Gaza e à libertação dos reféns. O Presidente Biden corre o risco de perder as eleições de novembro se não tiver em conta que partes importantes da base do Partido Democrata se opõem à sua política relativa à guerra em Gaza”.

    Desde o ataque do Hamas de 7 de outubro, os EUA já vetaram três resoluções condenatórias de Israel. Desde a década de 1970, no Conselho de Segurança da ONU, os EUA têm sido um escudo protetor dos israelitas, tendo já usado a prerrogativa do veto 48 vezes em defesa de Israel, mais de metade das 85 vezes em que bloqueou resoluções. Isso tem valido a Washington o rótulo de cúmplice da impunidade de Israel face ao direito internacional.

    A resolução apresentada na sexta-feira indiciou uma vontade de mudança em linha com o crescente incómodo vocalizado por políticos norte-americanos em face da desproporcionalidade da guerra, do “pesadelo sem fim”, como o descreveu, este fim de semana, o secretário-geral da ONU, António Guterres, que esteve na fronteira entre Gaza e o Egito, e dos planos de guerra de Telavive, que passam por uma operação em Rafah, onde estão acantonados cerca de 1,5 milhões de palestinianos.

    A 14 de março, o líder da maioria democrata no Senado, Chuck Schumer, um judeu, proferiu um discurso apaixonado em que afirmou que Israel tem direito a defender-se, mas que “a forma como exerce esse direito é importante”. Schumer fez a apologia dos dois Estados como solução para o conflito, identificou a liderança do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu como parte do problema e defendeu que “novas eleições são a única forma de permitir um processo de tomada de decisão saudável e aberto sobre o futuro de Israel”.

    “Israel não poderá sobreviver se se tornar um pária”, acrescentou. “O apoio a Israel diminuiu em todo o mundo nos últimos meses, e esta tendência só irá piorar se o Governo israelita continuar a seguir o seu caminho atual.”

    Este domingo, a televisão norte-americana ABC divulgou uma entrevista à vice-Presidente dos EUA, Kamala Harris, que se mostrou incisiva em relação a Israel. “Temos sido claros em várias conversas e de todas as formas que qualquer grande operação militar em Rafah seria um grande erro”, defendeu. “Deixe-me dizer uma coisa: estudei os mapas. Não há lugar para aquelas pessoas irem.” A vice de Biden sugeriu mesmo que se a investida sobre Rafah for avante poderá haver “consequências” para Israel.

    “Claro que, a longo prazo, tudo isto pode ter impacto nas relações entre os Estados Unidos e Israel. Mas por enquanto, os EUA continuam a enviar armas para Israel”, comenta Joel Beinin.

    Os EUA são o principal fornecedor de armamento de Israel. E todos os anos, Washington desembolsa uma grande quantia em ajuda militar ao Estado judeu. Em 2023, a verba rondou os 3800 milhões de dólares (mais de 3500 milhões de euros). Atualmente, a Casa Branca está a trabalhar com o Congresso para garantir uma ajuda adicional de 14 mil milhões de dólares (quase 13 mil milhões de euros).

    Na passada sexta-feira, a congressista democrata Alexandria Ocasio-Cortez defendeu, num discurso na Câmara dos Representantes, que os EUA não podem continuar a “facilitar” matanças em Gaza como forma de honrar a sua aliança com Israel.

    “É chegado o momento de forçar o cumprimento da lei dos EUA e dos padrões de humanidade, e cumprir as nossas obrigações para com o povo americano de suspender a transferência de armas dos EUA para o Governo israelita, a fim de parar e prevenir novas atrocidades.”

    A 23 de dezembro de 2016, estava Barack Obama a viver os seus últimos dias na Casa Branca (com Donald Trump já eleito), os Estados Unidos fizeram história e abstiveram-se numa resolução do CS sobre os colonatos israelitas nos territórios palestinianos, que assim foi aprovada.

    resolução 2334 considera que os colonatos “não têm validade legal e constituem uma violação flagrante do direito internacional” e “exige que Israel cesse imediata e completamente todas as atividades dos colonatos no território palestiniano ocupado”.

    O primeiro-ministro de Israel disse que o país não iria obedecer. “Netanyahu já tinha destruído a sua relação com o Presidente Obama ao agir pelas suas costas e combinar com a liderança republicana do Congresso um discurso numa sessão conjunta do Congresso e por fazer lóbi contra o acordo nuclear com o Irão”, explica Joel Beinin.

    “Essa resolução foi, em parte, uma forma de ‘retribuição’. Não teve qualquer impacto porque o Conselho de Segurança não adotou qualquer mecanismo de aplicação, Obama estava em final de mandato e os EUA nada fizeram uma vez que a Administração Trump [que se seguiu] apoiou totalmente a expansão dos colonatos. Apesar dessa resolução, os laços EUA-Israel tornaram-se mais estreitos com Trump.”

    Oito anos depois, o mesmo Netanyahu continua a bater o pé ao amigo americano. Na quinta-feira, véspera da votação no Conselho de Segurança da resolução proposta pelos EUA, o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, defendeu que uma incursão terrestre em Rafah seria “um erro”, algo “desnecessário” para derrotar o Hamas e que os EUA “não apoiam”.

    No dia seguinte, Blinken chegou a Israel pela oitava vez desde 7 de outubro. Reuniu-se com o gabinete de guerra do Governo israelita e ouviu de Netanyahu aquilo que não queria: “Eu disse-lhe que não seremos capazes de derrotar o Hamas sem entrar em Rafah e eliminar os batalhões restantes que lá estão”, afirmou o chefe do Governo israelita. “Eu disse-lhe que esperava fazê-lo com o apoio dos Estados Unidos, mas que, se for necessário, fá-lo-emos sozinhos.”

    (FOTO Sala do Conselho de Segurança das Nações Unidas WIKIMEDIA COMMONS)

    Artigo publicado no “Expresso Online”, a 25 de março de 2024. Pode ser consultado aqui

    Morte, fome e destruição: Gaza é uma tragédia a céu aberto

    Responsáveis de organizações humanitárias internacionais com equipas na Faixa de Gaza relatam um horror sem fim naquele território palestiniano. E acusam Israel de obstrução deliberada dos esforços de assistência à população. “As consequências de um assalto total a Rafah são inimagináveis”, alerta Avril Benoit, diretora-executiva dos Médicos Sem Fronteiras

    “Moramos numa tenda de 15 metros quadrados. Obtemos água todos os dias, vamos encher garrafões a 500 metros de distância. Fazemos pão, porque nas padarias não há. Há carne, outros tipos de alimentos e enlatados que vêm da ajuda internacional”, conta o palestiniano Ahmed numa mensagem enviada ao Expresso. “Os legumes são escassos e ridiculamente caros. Cozinhamos no fogo por falta de gás. A eletricidade está cortada, claro. Há grande aglomeração de pessoas na cidade, muito lixo acumulado. Toda a gente está desempregada.”

    Antes da guerra, Ahmed vivia num apartamento na cidade de Gaza. Os bombardeamentos israelitas deixaram-no ao deus-dará, com a mulher e duas crianças. Agora vive num acampamento em Rafah, no sul da Faixa de Gaza, onde estão refugiadas 1,5 milhões de pessoas.

    Rafah está em contagem decrescente para o início de uma grande ofensiva terrestre com que Israel espera deitar mão a Yahya Sinwar, o líder do Hamas. “As consequências de um assalto total a Rafah são inimagináveis”, alerta Avril Benoit, diretora-executiva dos Médicos Sem Fronteiras (MSF). “Uma das nossas médicas em Rafah disse que está a escrever os nomes dos filhos nos braços e pernas deles, para serem identificados se forem mortos.”

    Benoit, que participou numa conferência de imprensa virtual com representantes de organizações humanitárias presentes em Gaza, a que o Expresso assistiu, denuncia “os ataques repetidos e persistentes contra unidades de saúde” e descreve um filme de terror: profissionais de saúde mortos em bombardeamentos, pacientes que se recusam a sair dos hospitais com medo de serem mortos por snipers, outros em suporte vital que morrem devido a cortes na eletricidade, bancos de sangue vazios, cirurgias sem anestesia, reutilização de compressas, feridos com infeções graves. “Colegas em Gaza disseram que viram bebés cujas pernas tiveram de ser amputadas antes de aprenderem a andar.”

    As regras da guerra

    Jeremy Konyndyk, presidente da Refugees International, culpa Israel pela “ausência de qualquer processo humanitário de deconfliction”, prática normalizada, mas inexistente nesta guerra. “Muitas vezes, estabelece-se um canal de comunicação, facilitado pela ONU, entre os operadores humanitários e os militares que conduzem hostilidades em determinada área, para que as partes se vejam e os militares saibam onde estão as instalações humanitárias, quais são os movimentos das equipas, e evitem atingi-los.” Israel respeitou esta prática em 2006, na guerra com o Hezbollah.“Toda a negação de acesso à ajuda humanitária é um caminho muito rápido para a fome”, diz Konyndyk. “Se não houver uma operação humanitária significativa e autorizada a operar sem restrições em todo o território, a fome ocorrerá não devido a fenómenos naturais, mas pela forma como esta guerra está a ser conduzida e pelas recusas persistentes e intencionais do Governo israelita de dar acesso à assistência.”

    Sally Abi Khalil, da Oxfam, cita relatos de pessoas que se viram forçadas a comer ração para animais, e de mulheres que não conseguem produzir leite materno. “O uso que Israel faz da fome como arma de guerra tem sido incrivelmente eficaz. Os palestinianos estão à beira da fome.”

    Terça-feira, o Programa Alimentar Mundial suspendeu a distribuição de ajuda no norte da Faixa, depois de os seus camiões terem sido pilhados por gente desesperada.

    A contas com a justiça

    A 26 de janeiro, o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) ordenou a Israel que tome “medidas imediatas e eficazes para permitir a prestação de serviços básicos e assistência humanitária” a quem está urgentemente necessitado”. Dia 26, Israel será chamado a reportar de que forma tem correspondido.

    Florence Rigal, presidente dos Médicos do Mundo (MdM), defende que não só o Governo de Israel não parou com os bombardeamentos indiscriminados como a ajuda humanitária não aumentou. “A nossa capacidade de atuação em Gaza enquanto organização médica humanitária é muito baixa.”

    Um obstáculo é a dificuldade em fazer entrar ajuda no território, apesar de dezenas de camiões com comida, água e medicamentos estarem parados na fronteira com o Egito. Outro é a impossibilidade de fazer circular a ajuda dentro da Faixa de Gaza. “Bombardeamentos e atiradores furtivos põem todas as atividades em risco”, diz. Há duas semanas, a sede dos MdM foi destruída.

    (FOTO Destruição na área de El-Remal, na Faixa de Gaza, A 9 de outubro de 2023, após bombardeamentos de Israel WIKIMEDIA COMMONS)

    Artigo publicado no “Expresso Online”, a 22 de fevereiro de 2024, e no “Expresso”, a 23 de fevereiro de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

    Líder do Hezbollah diz que morte de civis é “linha vermelha” e que Israel “pagará com sangue” cada mulher e criança mortos

    Hassan Nasrallah acusou Israel, esta sexta-feira, de matar civis “de forma deliberada” no sul do Líbano. Num discurso de homenagem a três figuras do Hezbollah “martirizadas” por agentes “sionistas”, o chefe do grupo xiita libanês defendeu que a posição dos Estados Unidos relativamente à guerra na Faixa de Gaza é “a maior hipocrisia que o mundo hoje testemunha”

    Hassan Nasrallah, secretário-geral do Hezbollah WIKIMEDIA COMMONS

    O Hezbollah assinalou, esta sexta-feira, o aniversário do “martírio” de três altos responsáveis, todos assassinados por Israel. A ocasião foi aproveitada pelo líder do grupo radical islâmico, Hassan Nasrallah, para recordar que o “inimigo sionista” continua a ser um alvo.

    “O nosso objetivo é impor ao inimigo as maiores perdas materiais e humanas possíveis, obrigando-o a admitir a derrota e a retirar-se”, disse o secretário-geral da organização xiita libanesa, num discurso transmitido pela televisão do grupo, Al-Manar. A sua intervenção coincidiu com uma escalada na fronteira entre Israel e o Líbano, que viveu o seu dia mais sangrento na quarta-feira, com onze civis mortos, incluindo cinco crianças, provocados por bombardeamentos israelitas.

    Mortes civis são “linha vermelha”

    Nasrallah defendeu que Telavive poderia ter evitado matar civis, qualificou o massacre como ato “deliberado” e fez um aviso: “Não toleramos absolutamente nenhum dano aos civis e é imperativo que o inimigo perceba que ultrapassou a linha vermelha a este respeito”, disse. “Quando se trata de vítimas civis, esta questão é particularmente sensível e está presente desde o início da resistência.”

    “O inimigo pagará com sangue” por cada mulher e criança morta nas hostilidades ao longo da fronteira, promete Nasrallah. “A resistência libanesa possui mísseis poderosos e precisos que permitem um alcance desde Kiryat Shmona [no norte de Israel] até Eilat”, na costa israelita do Mar Vermelho, no sul.

    Desde o início da guerra entre Israel e o Hamas, na Faixa de Gaza, que dura há mais de quatro meses, a fronteira israelo-libanea tem sido uma frente paralela, com vítimas ocasionais dos dois lados. No dia seguinte à chacina, o Hezbollah disparou dezenas de foguetes contra Kiryat Shmona, no que considerou ser “uma resposta preliminar”.

    Hipocrisia americana

    O secretário-geral do Hezbollah não isentou de responsabilidades os Estados Unidos, o grande aliado de Israel, no banho de sangue que se vive em Gaza. “A Administração americana é responsável por cada gota de sangue derramada na região”, disse. “Os fundos, armas, mísseis e projéteis de artilharia israelitas vêm atualmente de Washington. Se os Estados Unidos interromperem a ponte aérea para Israel, a agressão contra Gaza cessará.”

    “A maior hipocrisia que o mundo hoje testemunha é a posição da Administração americana sobre os acontecimentos em Gaza.”

    Nasrallah defendeu que perante os “esquemas americanos e sionistas” na região, só restam duas opções: “a resistência ou a rendição”. E fez a sua escolha: “Em memória dos nossos líderes martirizados, reafirmamos a eficácia da resistência popular como uma opção viável.”

    Quem são os três mártires?

    Os “mártires” homenageados por Nasrallah, nesta intervenção, foram todos mortos por Israel, na mesma semana, em anos diferentes. O clérigo xiita Ragheb Harb, um dos fundadores do Hezbollah, foi assassinado por libaneses colaboradores de Israel, a 16 de fevereiro de 1984.

    O antigo secretário-geral do Hezbollah Abbas al-Mousawi foi morto, com a mulher e um filho, num ataque aéreo israelita contra a escolta em que seguia, a caminho de uma cerimónia de aniversário da morte de Ragheb Harb, a 16 de fevereiro de 1992. E o comandante militar Imad Moghniyeh foi abatido a 12 de fevereiro de 2008, após um ataque com um carro armadilhado atribuído aos serviços secretos israelitas (Mossad).

    Todas estas mortes justificam o propósito maior de Nasrallah no combate a que se propõe. “Hoje, em Gaza, na Cisjordânia, no sul do Líbano, no Iémen, na Síria, no Irão e em toda a região, nunca devemos perder de vista a verdade sobre os custos da resistência e os custos da rendição”, concluiu. “O custo da rendição é elevado, perigoso, excessivamente alto e extremamente importante. A rendição no Líbano implicaria o domínio político e económico israelita sobre a nossa nação.”

    Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de fevereiro de 2024. Pode ser consultado aqui