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A luta de Leah Goldin para resgatar o filho morto em Gaza há dez anos: “Não quero que ninguém morra à fome, só quero trazer Hadar para casa”

A 1 de agosto de 2014, numa outra guerra na Faixa de Gaza, entre Israel e o Hamas, um soldado israelita foi levado através de um túnel após sofrer uma emboscada. Desde então, a sua família tem-se feito ouvir em instituições de poder — das Nações Unidas ao Vaticano, do Parlamento Europeu ao Congresso dos Estados Unidos — pedindo que obriguem o Hamas a devolver os seus restos mortais. A mãe de Hadar Goldin relata ao Expresso os esforços feitos para que o resgatem e possam fazer um enterro digno

Leah (ao centro), acompanhada pelo filho Tzur e pelo marido Simha, numa ação de sensibilização, em Kfar Saba. Nas ‘t-shirts’, fotos de Hadar e Oron JACK GUEZ / AFP / GETTY IMAGES

A dor da perda de um filho, em circunstâncias especialmente angustiantes, tornou Leah Goldin uma paladina dos direitos humanos. Vai para dez anos que Israel travava outra guerra na Faixa de Gaza quando uma emboscada levada a cabo por militantes do Hamas, surgidos de um túnel subterrâneo, na zona de Rafah, surpreendeu três soldados israelitas. Mataram dois e arrastaram consigo um terceiro. Era Hadar Goldin, filho de Leah que, dez anos depois, não tem certeza se foi levado vivo ou morto.

Em entrevista ao Expresso, esta israelita de 68 anos descreve o momento em que a vida da família ficou virada do avesso. “A nossa viagem começou a 1 de agosto de 2014. Decorria a operação ‘Barreira de Proteção’ e dois filhos meus, os gémeos Hadar e Tzur, participaram juntos.” Tinham 23 anos.

“Tzur comandava uma força de salvamento, entrava e saía de Gaza para resgatar companheiros [das Forças de Defesa de Israel (FDI)], uns feridos, outros mortos, muitos deles amigos. Também resgatou umas dezenas de palestinianos, apanhados no meio do fogo, usados pelo Hamas como escudos humanos. Quando lhe perguntava porque o fazia, ele respondia: ‘Mãe, não pode ser de outra forma…’”, recorda.

“Ao mesmo tempo, o seu irmão gémeo, Hadar, fazia parte de uma unidade de elite — a Brigada Givati — que guardava o corpo de engenharia que participava na destruição dos túneis subterrâneos. Depois da guerra, descobrimos que, [no momento da emboscada a Hadar], estavam a 400 metros de distância um do outro.”

Hadar Goldin nasceu a 18 de fevereiro de 1991. Quando morreu, tinha casamento marcado para dali a um mês AFP / GETTY IMAGES

Naquele 1 de agosto, iniciava-se uma trégua de 72 horas, anunciada por Estados Unidos e Nações Unidas. “Duas horas após ser declarada, o Hamas violou o cessar-fogo e atacou a equipa de Hadar. Ele era muito magro, foi levado pelo túnel. Um amigo colocou a sua vida em perigo e, contra os procedimentos, entrou no túnel e encontrou a camisa de Hadar com sangue, o seu tzitzit e o seu livro de orações”, recorda Leah.

“Procuravam um soldado ferido, mas 36 horas depois, as FDI declararam que as provas forenses recolhidas da sua roupa indicavam que não havia possibilidade de que pudesse estar vivo. Convenceram-nos a fazer o funeral. Digo ‘convenceram-nos’ porque hoje não tenho a certeza do que aconteceu… O que posso dizer é que aquilo que enterrámos foi a prova de que ele foi sequestrado, porque Hadar está nas mãos de Yahya Sinwar, o terrorista que mais sofrimento nos causa.”

Yahya Sinwar é o atual líder do Hamas na Faixa de Gaza, considerado o cérebro do ataque do Hamas de 7 de outubro. A 13 de fevereiro, as FDI divulgaram um vídeo identificando-o dentro de um túnel, nos primeiros dias da guerra. As autoridades israelitas acreditam que, atualmente, possa estar escondido na zona de Rafah (sul), onde Israel tem iminente uma ofensiva militar.

Adeus a um corpo distante

A 3 de agosto de 2014, dezenas de milhares de pessoas despediram-se de Hadar Goldin, numa cerimónia realizada no cemitério de Kfar Saba, a cidade onde ainda hoje vive a família, na região de Telavive. “Enquanto Tzur fazia a coisa mais humanitária que era resgatar palestinianos, as mesmas pessoas violaram o cessar-fogo humanitário, sequestraram o irmão e recusaram-se a devolvê-lo para que fosse feito um enterro digno na sua terra natal”, lamenta Leah.

“Agora atente nisto: Tzur foi chamado para resgatar Hadar, enquanto responsável pela força de salvamento. Claro que quando chegou ao local foi mandado para casa.” Tzur não sabia que o soldado levado pelo Hamas era o irmão.

O funeral de Hadar Goldin realizou-se a 3 de agosto de 2014, em Kfar Saba, com honras militares e uma multidão em choque ILIA YEFIMOVICH / GETTY IMAGES

Vergados à dor da perda de um dos seus, em circunstâncias tão angustiantes como imaginar o tratamento que lhe terá sido infligido por terroristas, os Goldin demoraram algum tempo a reagir. Até ao dia em que se cruzaram com Irwin Cotler, um antigo ministro da Justiça e procurador-geral do Canadá que defendeu prisioneiros políticos como o russo Andrei Sakharov e o sul-africano Nelson Mandela. Nascido em 1940, no seio de uma família judia, Cotler dispôs-se a defender Hadar pro bono.

“Hadar foi morto numa violação de um cessar-fogo. Uma vez que a trégua tinha sido mediada pelos Estados Unidos, pelas Nações Unidas e recebera o apoio da União Europeia, todos eles tinham de assumir responsabilidade em relação ao regresso do meu filho”, explica Leah. “Era esse o nosso sentimento enquanto família. Tínhamos esperança que a comunidade internacional nos ajudasse a trazer o nosso rapaz para casa.”

A cruzada dos Goldin levou-os ao Conselho de Segurança (CS) das Nações Unidas, a 22 de dezembro de 2017, quando este órgão acolheu uma reunião em formato “fórmula Arria”, convocada por um dos seus membros e realizada em registo informal.

Enquanto Leah prestou depoimento sobre o caso do filho, Cotler fez o enquadramento jurídico e também do de outro soldado israelita — Oron Shaul — levado para Gaza nas mesmas circunstâncias de Hadar, noutro incidente duas semanas antes.

Leah Goldin entre o secretário-geral da ONU, António Guterres, e o Presidente de Israel, Isaac Herzog, numa visita posterior à sede da ONU, a 20 de julho de 2023 LEV RADIN / GETTY IMAGES

“Nas Nações Unidas, Irwin Cotler fez uma coisa espantosa. Mostrou que o rapto de Hadar Goldin e Oron Shaul e a recusa em devolvê-los para que fosse feito um enterro digno é uma flagrante violação do direito internacional humanitário. Há todo um capítulo que fala de mortos, de raptos de pessoas indefesas, de pessoas desaparecidas, de recusa em entregar o corpo às famílias para seja feito um enterro digno, de maus tratos e dignidade humana”, enumera a israelita.

A sessão no CS realizou-se a três dias do Natal. Leah não acreditava que houvesse grande afluência àquela audiência, mas enganou-se. “Havia representantes de 40 países, a maioria politicamente contra Israel. No fim, houve um consenso de que Hadar e Oron deviam regressar imediata e incondicionalmente.” O trabalho frutificou. A 11 de junho de 2019, o CS aprovou, por unanimidade, a sua primeira resolução sobre pessoas dadas como desaparecidas durante conflitos armados (resolução 2474).

Na mesma linha, a 18 de janeiro de 2024, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução apelando “a um cessar-fogo permanente [na Faixa de Gaza] e ao reinício dos esforços no sentido de uma solução política, desde que todos os reféns sejam imediata e incondicionalmente libertados”. “Isto mostra que estamos certos na nossa luta, a lei está do nosso lado”, diz Leah.

À esquerda, Leah e o marido, Simha, numa reunião no Parlamento Europeu, a 20 de junho de 2018, sobre o caso humanitário de Hadar Goldin © EUROPEAN UNION 2018 – SOURCE : EP

Oficialmente, Israel reconhece a existência de 133 israelitas cativos do Hamas. Teme-se que a maioria não esteja viva. Hadar Goldin e Oron Shaul são dois dos nomes. Da lista fazem parte também dois civis: Avraham “Avera” Mengistu, um israelita nascido na Etiópia, com problemas mentais, que entrou em Gaza por vontade própria em setembro de 2014, e Hisham al-Sayed, um israelita árabe beduíno, raptado em 2015.

Leah, que se descreve como uma mulher religiosa, tem fé que todos sejam devolvidos às famílias sem pôr em risco mais vidas de soldados. Essa crença, e a busca desesperada por atalhos que tragam o corpo do filho até si, levou esta judia a pedir ajuda ao Papa Francisco.

“Os líderes religiosos têm muitas ligações. Mesmo o Hamas, que grita ‘Allahu Akbar’ quando nos vem matar, é permeável a alguma influência religiosa. Temos de encontrar um caminho…”, diz. “Trazer o meu filho para lhe fazer um enterro digno é uma questão puramente religiosa e moral, de acordo com todas as religiões.”

A 21 de dezembro de 2022, o Papa Francisco recebeu, no Vaticano, uma delegação de representantes dos quatro israelitas levados pelo Hamas em 2014-15. “Preparei-me para aquele momento”, recorda Leah. “O que é que eu ia dizer ao Papa? Acabei por falar-lhe de duas coisas. Primeiro, da Pietà [a famosa escultura de Miguel Ângelo que representa Jesus morto nos braços de sua mãe]. Depois, disse-lhe que, sendo ele oriundo da Argentina, percebia melhor a dor de uma mãe após o desaparecimento de um filho. No final do encontro, ele veio falar comigo e disse que é uma obrigação devolver um filho a uma mãe para ser enterrado.”

Meses depois, o Papa fez chegar aos Goldin, através do arcebispo Paul Richard Gallagher, secretário para as Relações com os Estados, um relatório de página e meia sobre as diligências feitas junto de vários países. “Ele disse que apesar de ter obtido reações de indiferença, não ia desistir.”

Leah (de camisola amarela) está à direita do Papa Francisco EMBAIXADA DE ISRAEL NA SANTA SÉ

A 16 de julho de 2008, numa polémica troca de prisioneiros entre Israel e o grupo armado libanês Hezbollah, Israel libertou cinco prisioneiros (entre os quais Samir Kuntar, condenado por terrorismo e assassínio) e devolveu os corpos de 199 militantes do Hezbollah. Em troca, recebeu dois caixões com os restos de dois soldados (Ehud Goldwasser e Eldad Regev), que tinham sido raptados pelo Hezbollah, a 12 de julho de 2006. Este caso precipitou o início da guerra de 34 dias entre Israel e o Hezbollah no verão de 2006.

Hadar e Oron nunca foram objeto de um processo semelhante. “O meu marido é historiador e sempre diz que não se pode usar métodos de uma guerra passada numa guerra futura, porque o contexto é diferente. Temos feito essa pergunta ao longo dos anos. Mas as pessoas são diferentes…”

O negócio dos mortos

A 8 de julho de 2015, o jornal israelita “The Jerusalem Post” noticiava uma tentativa de contacto com o Hamas por parte de “um mediador europeu”, em nome do Governo de Israel, com vista à “abertura de um canal de comunicação” para resgatar os dois corpos.

O Hamas recusou discutir o assunto até que Israel libertasse um conjunto de detidos. Estes tinham sido libertados em troca do militar israelita Gilad Shalit, que esteve cativo em Gaza entre 2006 e 2011, mas, entretanto, Israel tinha-os prendido novamente. “É inacreditável o quão cínico o Hamas pode ser para negociar os mortos…”, diz Leah Goldin.

A 19 de julho de 2023, Leah Goldin foi ovacionada numa sessão conjunta do Congresso dos Estados Unidos, em Washington DC, em que discursou o Presidente israelita, Isaac Herzog BRENDAN SMIALOWSKI / AFP / GETTY IMAGES

Leah pede que não falemos de política, mas vai dizendo que Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro que assumiu o cargo pela primeira vez em 2009, não é mais o mesmo. “Todo o Governo é composto por pessoas que perderam os seus valores religiosos, humanitários, morais… Só pensam no seu benefício político. Esta é a nossa maior dor. E agora não somos só nós, são as famílias dos reféns e das pessoas assassinadas.”

A israelita acredita que se os casos de Hadar e Oron tivessem sido resolvidos, o ataque do Hamas de 7 de outubro nunca teria acontecido. “Enquanto o Hamas não os devolver, nós vamos ceder ao terrorismo, e eles ganham. Se tiverem sucesso nalgumas ações, vão continuar. O Hamas devia saber que manter reféns não é um trunfo, mas antes que tem um custo. Pensariam duas vezes antes de fazer outro sequestro”, diz.

“E depois de terem conseguido trocar reféns, fazem uma seleção, como na idade das trevas. É o método terrorista, deixam os mortos para o fim para os tornar um ativo melhor. Por isso, encontram legitimidade para matar mais. Temos de pensar ao contrário. O grande erro é usarmos a nossa lógica e os nossos valores na discussão com eles. Eles são terroristas.”

Para Leah, o compromisso com o imperativo humanitário passa também por garantir que quem recebe apoio cumpre a lei. Caso contrário, os doadores tornam-se cúmplices e também devem ser responsabilizados. Quando a União Europeia ajuda Gaza, por exemplo, tem de exigir um retorno.

“Não, nós não queremos deixar o povo de Gaza morrer à fome. Eu só quero trazer o meu filho para casa. E isso não custa dinheiro. É só uma questão de seriedade, de comportamento e de diálogo”, diz. “Nós estamos certos. Temos formas de trazer o nosso filho sem guerra, porque as bombas não resolvem problemas humanitários e os reféns são assuntos humanitários.”

Apontar o dedo às famílias dos reféns

O 7 de outubro uniu a dor dos Goldin à de centenas de outras famílias que viram parentes seus serem levados pelo Hamas. Mas atualmente, em Israel, nem todos são empáticos com as famílias dos reféns. Muitos culpam-nos de contribuir para um custo pesado que é a libertação de terroristas.

“Sentimos a palavra ‘custo’ como uma dor”, diz Leah. Os Goldin têm-se privado de participar em manifestações. “Jamais tomaremos parte por qualquer lado político. Somos apenas parte das famílias de reféns que agora são atacadas, o que é inacreditável. Mas não estou preocupada, porque o Governo sugeriu que as famílias dos reféns são de esquerda e os soldados mortos são de direita, portanto estou em ambos. É só estúpido.”

Familiares de Hadar, Oron, Mengistu e Al-Sayed, em frente à sede do Comité Internacional da Cruz Vermelha, em Genebra, a 5 de julho de 2023 GABRIEL MONNET / AFP / GETTY IMAGES

Leah Goldin é doutorada em Ciência da Computação pelo prestigiado Technion (Instituto de Tecnologia de Israel), de Haifa. Dá aulas na Faculdade de Engenharia Afeka, de Telavive, e trabalha como consultora independente para vários tipo de indústrias, como a de Defesa.

Além dos gémeos Hadar e Tzur, tem uma filha (Ayelet) e mais outro filho (Hemi). Tem 10 netos. O marido, Simha, é professor no Departamento de História Judaica da Universidade de Telavive.

Nos últimos dez anos, “muita gente abraçou-nos, enxugou as nossas lágrimas e disse que rezava por nós. Disseram que se identificavam com a nossa situação, mas isso é impossível”, conclui Leah Goldin.

“O problema é que ao longo do caminho — um longo caminho de nove anos e oito meses — aprendemos que muita gente, principalmente decisores, em Israel e em todo o mundo, deixaram para trás os seus valores. Direitos humanos são apenas palavras, não são uma ação. E o mais frustrante é que os interesses políticos governam tudo. Não é o ser humano que esses líderes procuram ajudar. É muito frustrante. Somos humanos, estamos perdidos, ficamos para trás.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 23 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

Campanha #BringThemHomeNow pelo regresso dos reféns israelitas chega a cinco cidades portuguesas

Cartazes de rua apelam ao regresso a casa dos reféns israelitas ainda em posse do Hamas. O objetivo desta ação é também aumentar a consciência da população portuguesa “em relação à dor e ao horror por que o povo judeu e israelita está a passar”, diz ao Expresso um organizador

Mensagem de apelo à libertação dos reféns israelitas em posse do Hamas, em Matosinhos
MARGARIDA MOTA

Na popularmente designada Rotunda da Anémona, em Matosinhos, um painel publicitário com 148 fotografias do rosto de outros tantos homens, mulheres e crianças disputa as atenções, ao lado de cartazes de partidos políticos, de espaços comerciais ou de programação cultural.

Uma mensagem confere-lhe caráter menos mundano e mais dramático: “Bebés. Idosos. Mulheres. Homens. Ainda em Gaza reféns do Hamas”. Por baixo, a hashtag usada nas redes sociais para alertar para o problema e pressionar as autoridades israelitas a tudo fazer para resgatar os reféns: #BringThemHomeNow (Tragam-nos para casa agora).

Mais de três meses após o ataque do grupo islamita a Israel, de que resultou, além de cerca de 1300 mortos, o rapto de 240 pessoas, 148 israelitas permanecem ainda na Faixa de Gaza (alguns possivelmente mortos). Numa iniciativa da Associação Luso-Israelita Aliados, cartazes apelando à libertação dos reféns foram colocados na via pública em Matosinhos, Porto, Vila Nova de Gaia, Loures e Lisboa.

Cartaz da campanha #BringThemHomeNow, em Loures CORTESIA ALIADOS

“O objetivo da iniciativa é contribuir para aumentar a consciencialização em relação à dor e ao horror por que o povo judeu e israelita está a passar hoje em dia”, disse ao Expresso um membro da associação.

Com sede no Porto, a Associação Luso-Israelita Aliados é um movimento civil, apolítico, formado por cidadãos portugueses e israelitas residentes em Portugal, “destinado a harmonizar os sentimentos públicos e a promover a unidade entre israelitas e portugueses”.

Na rede social X, esta página, administrada por familiares e amigos, disponibiliza pequenas descrições pessoais das pessoas levadas pelo Hamas.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 12 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui

Morte do n.º 2 do Hamas “não ficará sem uma resposta ou punição”, garantiu o líder do Hezbollah

Hassan Nasrallah fez o seu segundo discurso em três dias. O líder do Hezbollah prometeu vingar a morte do alto responsável do Hamas, ocorrida em território libanês, e dirigiu-se às populações do norte de Israel, aconselhando-as a pressionar o Governo de Israel para “acabar com a agressão em Gaza”

Logotipos do Hamas e do Hezbollah ACEH ONLINE

Hassan Nasrallah discursou, esta sexta-feira, pela segunda vez em três dias. O secretário-geral do Hezbollah, a organização armada xiita implantada no sul do Líbano, defendeu que o grupo ficaria exposto se não reagisse ao assassínio de Saleh al-Arouri, o número dois do Hamas, em Beirute, num ataque com drone atribuído a Israel, na terça-feira à noite.

Nasrallah referiu-se a Al-Arouri como “um amigo próximo” com quem estava coordenado a vários níveis. “Digo-vos com certeza que isto não ficará sem uma resposta ou punição”, disse Nasrallah, explicando que serão as forças no terreno a decidir a natureza da resposta “no momento e no local apropriados”.

“Não podemos permanecer calados sobre uma violação desta gravidade porque isso significa que todo o Líbano, as cidades e os números ficarão expostos”, continuou Nasrallah.

Israel não assumiu a responsabilidade do ataque que vitimou Al-Arouri, mas, nas redes sociais, responsáveis políticos, como o ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, saudaram a morte do responsável do Hamas.

Na rede social X, Danny Danon, deputado e antigo embaixador de Israel nas Nações Unidas, felicitou “as Forças de Defesa de Israel, o Shin Bet, a Mossad e as forças de segurança pelo assassinato de Saleh al-Arouri”, em Beirute.

“Oportunidade histórica” para reaver território

No seu discurso, gravado previamente e transmitido esta sexta-feira na televisão, Nasrallah disse que, desde 8 de outubro, o Hezbollah já realizou 670 ações militares ao longo da fronteira com Israel, com as quais destruiu um “grande número de veículos e tanques israelitas”.

Nasrallah acrescentou que essas manobras abriram uma “oportunidade histórica” para o Líbano libertar a sua terra ocupada por Israel, aludindo, entre outras contendas territoriais fronteiriças, às Quintas de Shebaa, disputadas pelas duas partes.

“Enfrentamos uma oportunidade real para libertar cada centímetro das nossas terras libanesas e evitar que o inimigo viole as nossas fronteiras e espaço aéreo”, disse.

Objetivo: aliviar a pressão em Gaza

Nasrallah dirigiu-se também às populações que vivem no norte de Israel e que, em virtude da troca de fogo diária entre Israel e o Hezbollah, tiveram de ser transferidas para locais mais seguros.

“Os libaneses historicamente fugiram de Israel, e hoje quem foge são os israelitas”, disse o líder do Hezbollah. “Israel já estabeleceu uma zona de segurança no sul do Líbano – hoje, a zona de segurança está no norte de Israel. Os habitantes do norte de Israel estão errados ao exigir uma guerra contra o Hezbollah, não os ajudará. Pelo contrário, o que os ajudará a regressar a suas casas é pressionarem o governo para acabar com a agressão em Gaza.”

Nasrallah admitiu que o Hezbollah começou a atacar o norte de Israel para dividir as atenções das Forças de Defesa de Israel e aliviar a pressão sobre a Faixa de Gaza. “A batalha que está a ocorrer no sul do Líbano estabilizou o equilíbrio da dissuasão”, disse.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui

Ódio inédito no conflito de sempre

A mais recente escalada entre Israel e o Hamas fez estalar a violência entre judeus e árabes em cidades israelitas

Nos últimos 12 anos, Israel e o Hamas, o grupo islamita que controla a Faixa de Gaza, enfrentaram-se abertamente três vezes. A última dessas guerras, em 2014, foi ao mesmo tempo a mais longa (sete semanas) e a mais mortífera (mais de dois mil palestinianos mortos). Disse-se então que Israel quis dar aos islamitas uma lição inesquecível por atentarem contra território judeu. Passados sete anos, a chuva de mísseis que o Hamas despejou esta semana sobre Israel — à qual o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, prometeu responder “com força” — mostra, desde logo, que o Hamas não leva a sério as reprimendas do poderoso vizinho.

A mais recente contenda entre israelitas e palestinianos levou poucos dias a evoluir de um conflito localizado num bairro árabe de Jerusalém para uma operação militar na Faixa de Gaza. Quatro leituras parciais desta crise ajudam a perceber a facilidade com que o rastilho se acende entre os dois povos e porque é complexa a solução para o conflito mais antigo do mundo.

A solução de “dois Estados para dois povos” continua a ser o grande chavão diplomático para o problema israelo-palestiniano, mas é desmentido todos os dias por casos como o que está na origem da crise atual. No bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental — a parte árabe da Cidade Santa conquistada por Israel na guerra de 1967 —, há famílias árabes a serem despejadas das casas onde sempre viveram.

Segundo a organização israelita Peace Now, desde o início do ano a justiça de Israel deu ordem de expulsão a 22 famílias palestinianas, nos bairros de Sheikh Jarrah e Batan al-Hawa, num total de 139 pessoas. Mal são evacuadas, as casas são de imediato ocupadas por colonos judeus. Aos poucos, a presença árabe em Jerusalém — cidade que também os palestinianos querem para sua capital — vai-se erodindo e Israel pode reclamar a posse de mais terras.

Nas ruas, a tensão à volta de Sheikh Jarrah foi sendo inflamada por atos provocatórios. Há três semanas, numa marcha supremacista pelo “restabelecimento da dignidade judaica”, ouviu-se repetidamente: “Morte aos árabes.” Já esta semana, foi a vez de sair à rua a tradicional manifestação nacionalista do Dia de Jerusalém, em que milhares de israelitas empunham a bandeira do país para celebrarem a conquista da cidade aos árabes.

Nesse exato dia, os deputados extremistas Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich, eleitos pelo partido de extrema-direira Sionismo Religioso, deslocaram-se a Sheikh Jarrah, rodeados de segurança e de colonos. Há cerca de 20 anos, a visita à Esplanada das Mesquitas do ex-primeiro-ministro Ariel Sharon (então líder da oposição) desencadeou protestos violentos num prenúncio da segunda intifada palestiniana, que não tardaria a começar.

Com a tensão em Jerusalém em máximos e a sua população muçulmana a cumprir o mês sagrado do Ramadão — assinalou-se entre quarta e quinta-feira a festa de Eid al-Fitr, que marca o fim desse período —, as forças israelitas impuseram restrições no acesso à Esplanada das Mesquitas, procurada diariamente por milhares de palestinianos para as orações. Daí à deflagração de confrontos foi questão de (pouco) tempo. Quando latas de gás lacrimogéneo e granadas de choque disparadas pelas forças israelitas rebentaram no interior da Mesquita de Al-Aqsa — o terceiro lugar santo do Islão —, todo o mundo muçulmano foi automaticamente arrastado para o problema.

RESISTÊNCIA
Só o Hamas defende os palestinianos

Em resposta à violência em Jerusalém e, em especial, aos raides da polícia israelita nas imediações da Mesquita de Al-Aqsa, voaram rockets da Faixa de Gaza na direção de Israel. Este tipo de ataques por parte do Hamas não é novo, foi-o, sim, a quantidade de foguetes disparados em simultâneo sobre cidades como Telavive.

A chuva de mísseis sem precedentes — batizada em Gaza de Espada de Jerusalém — enfiou milhões de israe­litas em bunkers, receosos de nova guerra num momento em que ainda gozavam o regresso à normalidade pós-pandemia. A esmagadora maioria dos projéteis foi intercetada pelo sofisticado sistema de defesa antimíssil Cúpula de Ferro. Alguns dos que não foram destruídos no ar provocaram sete mortos em Israel.

Em Gaza, os bombardeamentos israelitas de retaliação pelos rockets — operação Guardião das Muralhas — provocaram, até ontem de manhã, 69 mortos, incluindo 17 crianças. Israel disse ter eliminado vários comandantes do Hamas, o que perspetiva a vontade de vingança e um agravamento da situação.

A chuva de mísseis sem precedentes enfiou milhões de israelitas em bunkers, quando gozavam o regresso à normalidade pós-pandemia

Na Cisjordânia — o outro território palestiniano ocupado por Israel —, o Presidente palestiniano reagiu com palavras de condenação e apelos infrutíferos à comunidade internacional. Mahmud Abbas tem a sua quota de responsabilidade na falta de ânimo dos palestinianos de Gaza e da Cisjordânia. No final de abril, o líder da Autoridade Palestiniana — cujo mandato expirou em 2009 — adiou as tão aguardadas eleições com que os palestinianos ameaçavam “despedir” a elite que os governa, a quem rotulam de corrupta, e enterrar de vez a divisão Fatah-Hamas que fragiliza a causa.

Abbas é acusado de ter adiado as legislativas para precaver a possibilidade de vitória do Hamas. A seu favor, o grupo islamita (que a UE e os Estados Unidos consideram terrorista) tem o facto de ser das poucas alternativas políticas organizadas e de ser a real oposição palestiniana à ocupação.

INTOLERÂNCIA
“Guerra civil” onde antes havia coexistência

Paralelamente aos problemas em Jerusalém e na Faixa de Gaza, a crise abriu uma inédita terceira frente. Várias cidades israelitas com população mista, que se orgulhavam de um quotidiano de coexistência entre judeus e árabes, tornaram-se cenários de violência intercomunitária.

Em São João de Acre, Ramle e Lod multidões de árabes em fúria incendia­ram e vandalizaram sinagogas, lojas, carros e casas de judeus, o que levou o autarca de Lod a alertar para um clima de “guerra civil”. “É a Noite dos Cristais em Lod”, disse Yair Revivo, invocando o pogrom contra os judeus, na Alemanha nazi, na noite de 9 para 10 de novembro de 1938. “É um incidente gigante, uma intifada de árabes israelitas. Todo o trabalho [de coexistência] que temos feito aqui desde há anos foi pelo ralo abaixo.” Em Israel, 20% da população é árabe, detentora de passaporte e com direito a voto. Nunca antes tinham tomado parte em confrontos desta envergadura.

POLÍTICA
Benjamin Netanyahu tal qual uma fénix

A mais recente contenda com o Hamas apanhou o primeiro-ministro de Israel num momento de grande fragilidade. Netanyahu está a ser julgado por corrupção e, no plano político, falhou recentemente a formação de um Governo de coligação. Esta crise fê-lo recuperar estatuto e assumir-se como o líder que vai de novo resgatar Israel do sufoco.

A ironia é que, teoricamente, pode estar prestes a terminar a sua longa carreira. A tarefa de formar um Executivo está agora entregue a Yair Lapid, líder do Yesh Atid (centro), que se propôs formar um “Governo da mudança” e vê esta crise dificultar-lhe os planos, dada a oposição dos partidos árabes, de cujo apoio necessita, aos bombardeamentos em Gaza.

“Os acontecimentos da última semana não podem ser desculpa para deixar Netanyahu e o seu Governo no poder”, disse Lapid. “É exatamente o oposto: são o motivo pelo qual precisa de ser substituído o mais depressa possível.” Netanyahu já anunciou aos israelitas que o “conflito atual pode durar algum tempo”. A Lapid foram dados 28 dias para formar Governo, que começaram a contar a 5 de maio. Se o prazo se esgotar sem que o consiga, Israel estará mais perto de voltar a ir a votos. Serão as quintas eleições em pouco mais de dois anos, que, é óbvio, Netanyahu espera voltar a vencer.

(ILUSTRAÇÃO DE VERONAA / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso”, a 14 de maio de 2021. Pode ser consultado aqui

Diálogo Fatah-Hamas começa a dar frutos

O processo de reconciliação nacional entre as principais fações políticas palestinianas, em curso no Egito, começa a produzir resultados. Esta quinta-feira, foi anunciada a obtenção de um primeiro acordo

Fatah e Hamas, as principais fações políticas palestinianas, desavindas há dez anos, alcançaram um primeiro acordo, no âmbito do diálogo de reconciliação a decorrer no Cairo, anunciou, esta quinta-feira, o líder dos islamitas, em comunicado. “Fatah e Hamas alcançaram um acordo ao amanhecer, sob o generoso patrocínio do Egito”, disse Ismail Haniyeh.

Uma fonte que pediu anonimato adiantou à agência noticiosa Associated Press que, ao abrigo desse acordo, forças da Autoridade Palestiniana (AP) — dominada pela Fatah e liderada pelo Presidente Mahmud Abbas — irão assumir o controlo do posto fronteiriço de Rafah, entre Gaza e o Egito. Do lado egípcio, a Península do Sinai tornou-se um porto de abrigo de grupos terroristas, pelo que, para as autoridades do Cairo, é urgente mais segurança e colaboração do lado de Gaza.

Detalhes sobre o acordo — que abordou questões civis, administrativas e de segurança interna — foram remetidos para uma conferência de imprensa, a ser realizada por representantes das duas fações, ainda esta quinta-feira.

Dossiês importantes como a formação de um governo de unidade nacional e o futuro das forças armadas afetas ao Hamas foram remetidos para uma nova ronda de conversações. “A próxima fase da reconciliação será um encontro entre representantes de todas as fações palestinianas no Cairo para discutir os grandes assuntos nacionais, tais como o braço armado do Hamas, a questão das armas e dos cargos políticos”, confirmou Hazem Qassem, porta-voz do Hamas.

Este entendimento entre a Fatah e o Hamas é o culminar de um processo de aproximação iniciado no mês passado, quando o Hamas (que governa a Faixa de Gaza) aceitou ceder poderes à AP (que controla a Cisjordânia). Na semana passada, foi dado um passo de gigante no sentido da criação de confiança entre as partes quando a AP realizou a sua reunião semanal não em Ramallah, como habitualmente, mas na cidade de Gaza.

Independentemente do seu desfecho, estas conversações poderão, a curto prazo, contribuir para aliviar a situação de penúria que afeta a população de Gaza. Nos últimos meses, muita da pressão exercida pela AP sobre o Hamas — para que ceda o poder no território — tem passado por medidas punitivas do quotidiano dos locais. Uma delas passou por pedir a Israel a redução do fornecimento de energia elétrica ao território — que, neste momento, não excede as quatro horas diárias. Outra foi o corte salarial dos funcionários da AP a residir em Gaza.

A disputa entre Fatah e Hamas remonta a 2007 quando os islamitas tomaram o poder pela força em Gaza. No ano anterior, tinham vencido as legislativas palestinianas, resultado que não foi reconhecido internacionalmente. Desde então, sucessivas tentativas de reconciliação nacional não produziram resultados, contribuindo para manter a Palestina dividida em dois territórios (Cisjordânia e Faixa de Gaza) e dois poderes (AP/Fatah e Hamas).

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 12 de outubro de 2017. Pode ser consultado aqui