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O pior atentado cometido por um judeu foi há 25 anos. E hoje ainda há crianças que vão à escola com “escudos humanos”

Há 25 anos, o judeu Baruch Goldstein matou muito mais do que 29 palestinianos. O que então aconteceu “mudou drasticamente o cenário de uma perspetiva de paz — ainda que ilusória — entre palestinianos e israelitas”. Ou, como disse ao Expresso outro analista, o seu legado é “um míssil contra o processo de paz”

Hebron é uma cidade palestiniana onde ir à escola exige das crianças cada vez mais coragem. No centro daquela que é uma das cidades mais antigas do mundo — há várias referências a Hebron na Bíblia — vivem colonos judeus radicais que, não raras vezes, tentam intimidar os jovens insultando-os e levantando obstáculos à sua passagem a caminho da escola.

Até há cerca de um mês, nalgumas zonas mais sensíveis, nos percursos entre casa e escola os estudantes eram escoltados por observadores internacionais de duas organizações — a Presença Internacional Temporária em Hebron (TIPH) e o Programa de Acompanhamento Ecuménico na Palestina e Israel (EAPPI). Lado a lado com as crianças, os voluntários funcionavam como ‘escudos humanos’ perante o assédio dos colonos.

A 28 de janeiro último, o primeiro-ministro de Israel disse que não renovaria o mandato da TIPH, no terreno desde 1997. “Não vamos permitir a presença continuada de uma força internacional que age contra nós”, disse Benjamin Netanyahu. Invocando “questões de segurança”, também a EAPPI debandou da cidade, alegando sentir-se alvo de uma campanha de assédio por parte do grupo sionista de extrema-direita Im Tirtzu.

Para preencher esse vazio, ativistas da organização local Juventude Contra os Colonatos (YAS, na sigla inglesa) passaram a assegurar essas escoltas e a responder a situações de emergência. Recentemente, estes “Observadores dos Direitos Humanos”, como se intitulam, foram chamados a casa de uma família palestiniana que viu soldados israelitas entrarem pelo telhado para levar o filho de 13 anos, a quem acusavam de ter atirado pedras. Frequentemente confrontados na rua pelos colonos, estes “coletes azuis” têm nas câmaras de vídeo uma “arma”, com as quais registam tudo aquilo que — dizem — Israel não quer que se veja.

A necessidade de observadores internacionais em Hebron decorre de uma chacina que ocorreu faz esta segunda-feira precisamente 25 anos e que entrou para a História como o pior ataque terrorista levado a cabo por judeus.

A 25 de fevereiro de 1994 — era sexta-feira e os muçulmanos cumpriam o mês do Ramadão (jejum) —, a Mesquita de Ibrahim (Abraão), no centro histórico de Hebron, encheu-se para a oração da manhã. Envergando uniforme militar, Baruch Goldstein, um judeu ortodoxo de 37 anos, nascido em Nova Iorque (EUA) e residente no colonato de Kiryat Arba, nos arredores da cidade, entrou no templo e disparou sobre os fieis: matou 29 e feriu outros 125. Morreu no local, espancado por sobreviventes.

“O que aconteceu naquele dia mudou drasticamente o cenário de uma perspetiva de paz — ainda que ilusória — entre palestinianos e israelitas”, comenta ao Expresso Giulia Daniele, investigadora no Centro de Estudos Internacionais do ISCTE (Lisboa). “Embora o início da segunda Intifada seja, formalmente, o ano 2000, este massacre marcou o início do rápido aumento da violência que fez jorrar muito sangue na Palestina.”

A matança de Goldstein aconteceu escassos cinco meses após a assinatura do Acordo de Oslo, nos jardins da Casa Branca, em Washington D.C. (EUA), selado com um histórico aperto de mão entre Itzhak Rabin (primeiro-ministro de Israel) e Yasser Arafat (líder palestiniano). Era o primeiro sintoma de que o processo de paz não era consensual. A machadada final não tardaria: a 4 de novembro de 1995, Itzhak Rabin, um dos protagonistas de Oslo, era assassinado em Telavive por um judeu ortodoxo.

“Desde o início, o Acordo de Oslo suscitou uma oposição frontal por parte dos sectores radicais tanto no campo israelita como no palestiniano. Ambos tentaram fazê-lo fracassar a qualquer preço”, explica ao Expresso Ignacio Álvarez-Ossorio, professor na Universidade de Alicante (Espanha). “No caso israelita, o Likud [partido de direita, atualmente liderado pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu] e os grupos de colonos tiveram um papel central nesta tarefa. Tanto Goldstein, o autor do massacre de Hebron, como Yigal Amir, o assassino de Rabin, eram colonos que consideravam os territórios palestinianos parte da Terra Prometida ao ‘povo eleito’.”

Para os judeus, o Túmulo dos Patriarcas — que abriga os mausoléus dos patriarcas e das matriarcas do judaísmo, incluindo Abraão, que está na origem das três religiões monoteístas — é o segundo local mais sagrado, a seguir ao Muro das Lamentações, em Jerusalém. Para muitos muçulmanos, a importância da Mesquita de Ibrahim, situada no mesmo local do Túmulo dos Patriarcas, só é superada pelas cidades santas de Meca, Medina e Jerusalém. No interior, há espaços de oração separados para as duas sensibilidades religiosas. No exterior, quem controla o acesso é Israel.

“Dado o seu significado religioso e histórico”, alerta Giulia Daniele, “Hebron sempre foi uma fortaleza do extremismo ultraortodoxo e dos colonos, com a presença de grupos como Gush Emunim, Kach e Kahane Chai.” Para os judeus mais radicais, outro local de peregrinação na cidade é a sepultura de Baruch Goldstein, em Kiryat Arba, onde vivia. Neste colonato, um dos mais violentos e racistas, vivem à volta de 8000 pessoas. Já depois do massacre de 1994, num episódio particularmente ofensivo para com os próprios judeus, colonos desta comunidade grafitaram paredes de casas palestinianas com a frase: “Árabes para as câmaras de gás.”

Situada na Cisjordânia — território palestiniano ocupado por Israel em 1967 —, a cerca de 30 km para sul de Jerusalém, Hebron é a única grande cidade palestiniana cuja soberania, pelo Acordo de Oslo, não foi totalmente transferida para a Autoridade Palestiniana (AP). O seu estatuto foi regulado pelo Protocolo de Hebron de 1997, que instituiu a partilha da cidade: 80% da área, onde viviam 200 mil pessoas, foi entregue à AP (H-1) e os restantes 20% ficaram sob controlo israelita: hoje vivem ali cerca de 40 mil palestinianos e 800 colonos judeus, estes protegidos por uma força militar em número muito superior (H-2). É também na área H-2 que fica o Túmulo dos Patriarcas.

“O Protocolo de 1997 contemplou uma divisão da cidade completamente assimétrica”, explica o professor espanhol. “Obviamente, não é um acordo equilibrado, é mais um sinal de que o processo de paz não foi entre iguais, mas entre uma parte forte (Israel) e uma parte débil (a Autoridade Palestiniana).”

Na área controlada por Israel existe hoje uma situação de “apartheid” (separação) entre árabes e judeus. A discriminação começa, desde logo, pelo ordenamento jurídico que rege a vida de uns e outros: enquanto aos palestinianos são aplicadas leis militares, os colonos obedecem ao direito civil.

Esmagadoramente maioritária, a população árabe está, porém, em queda, vergada às dificuldades quotidianas colocadas pelo ocupante: “checkpoints” que dificultam a circulação, recolheres obrigatórios, menores detidos, propriedades vandalizadas, oliveiras queimadas pelos colonos, ruas vedadas. Naquelas em que os palestinianos podem andar, há linhas pintadas no chão ou divisórias em betão a mandar uns pela esquerda e outros pela direita.

“Esta política de ‘apartheid’, mais visível na peculiaridade de Hebron evidencia de forma muito significativa o objetivo final da limpeza étnica que Israel tem vindo a conduzir desde 1948 no sentido de aumentar, cada vez mais, a população israelita nos territórios palestinianos e, por outro lado, expulsar a população indígena”, conclui Giulia Daniele. “O que está a acontecer em Hebron não é um caso isolado, há muitos outros semelhantes, mas é o caso mais emblemático da lógica de ‘apartheid’ usada por Israel para dividir e fragmentar tanto o território como a população palestinianos.”

Em Hebron, uma das ações de protesto mais persistentes pugna pela reabertura da Rua Shuhada, outrora a principal artéria comercial da cidade e hoje um espaço fantasma, símbolo maior da ocupação e da discriminação. A sua interdição aos palestinianos — que tem contribuído para a asfixia económica da cidade — é uma consequência direta do massacre de 1994.

“Em vez de serem penalizados pelo seu comportamento, os colonos obtiveram um tratamento favorável de todos os governos israelitas”, diz Ignacio Álvarez-Ossorio. “Independentemente da sua cor política, deram-lhes todo o tipo de facilidades para que continuem a colonizar o território palestiniano, apesar de essa colonização representar um míssil contra o processo de paz.”

(Foto: Capa da edição de 26 de fevereiro de 1994 do jornal norte-americano “The New York Times”, em que noticia o massacre de Hebron ARQUIVO THE NEW YORK TIMES)

Artigo publicado no Expresso Diário, a 25 de fevereiro de 2019. Pode ser consultado aqui

“Sou sempre culpado, até prova em contrário”

É uma voz incómoda para Israel, que já o prendeu dezenas de vezes, mas também para a Autoridade Palestiniana, que recentemente o manteve detido seis dias. Issa Amro é um dos ativistas palestinianos mais carismáticos e corajosos. Esta terça-feira, foi ouvido num tribunal militar israelita. “Querem prender-me por resistir à ocupação pacificamente”

Issa Amro, ativista palestiniano residente em Hebron KEVIN SNYMAN / WIKIMEDIA COMMONS

Issa Amro é um ativista palestiniano que não passa despercebido às forças israelitas que ocupam o território da Cisjordânia. A casa onde vive, na área de Tel Rumeida, em Hebron, fica paredes meias com um colonato problemático, onde uma pequena comunidade de judeus radicais vive protegida por militares israelitas em maior número. E fazem o que querem.

À casa de Issa — onde funciona a organização Juventude Contra os Colonatos (YAS), que fundou — rumam, diariamente, ativistas, jornalistas, políticos e diplomatas de todo o mundo, incluindo de Israel, para ouvirem, na primeira pessoa, como se (sobre)vive numa cidade onde vigora uma situação de “apartheid” que, aos poucos, vai vencendo a população palestiniana pelo cansaço. Mas não Issa.

O Expresso visitou-o em março de 2013. Os colonos tinham acabado de tentar incendiar-lhe a casa, pela calada da noite. “Apresentei queixa. Foi a quarta vez, mas nunca acontece nada. Sou sempre culpado até prova em contrário”, disse este defensor da resistência pacífica e da desobediência civil.

Esta terça-feira, Issa (Jesus, em árabe), de 37 anos, compareceu diante de um tribunal militar israelita, na prisão de Ofer (na Cisjordânia), para responder por 18 crimes, alguns deles praticados em 2010. (A acusação foi formulada apenas em 2016.) Entre as ofensas estão uma cuspidela a um colono, obstrução e insultos aos soldados israelitas, protesto ilegal, entrada em zona militar exclusiva e incitamento à desobediência civil.

Para o ativista, tudo não passa de perseguição política. “Eu divulgo muitos vídeos que os embaraça. Eles não querem palestinianos moderados por aqui, daqueles que falam com diplomatas sobre a solução de dois Estados.”

Entre os períodos em que está preso, as palestras para quem o visita, o ativismo nas redes sociais e a participação em protestos exigindo a abertura da Rua Shuhada — a principal artéria comercial de Hebron, interdita aos palestinianos há mais de 20 anos —, Issa viaja pelo mundo tentando sensibilizar decisores políticos.

A 27 de setembro passado, foi recebido em Washington D.C. por Bernie Sanders (o senador que disputou com Hillary Clinton as primárias democratas de 2016) e outros congressistas. A 28 de junho, 32 deles tinham assinado uma carta endereçada a Rex Tillerson, o secretário de Estado de Donald Trump, apelando a que os EUA influenciem Israel no sentido de uma revisão do caso de Amro.

“Organizações dos direitos humanos declararam que as ações de Amro foram consistentes com desobediência civil não-violenta, apesar da lei militar o proibir na Cisjordânia”, lê-se no último relatório sobre os direitos humanos no mundo do Departamento de Estado dos EUA.

Desde a Guerra dos Seis Dias (1967) que aquele território palestiniano está submetido a legislação militar, ao abrigo da qual uma concentração “política” de 10 ou mais pessoas requer autorização do comandante regional das forças militares — que raramente é emitida. Sem ela, incorre-se numa pena de mais de 10 anos de prisão ou numa pesada multa.

Dias antes de viajar até aos Estados Unidos, Issa foi detido pelas forças de segurança da Autoridade Palestiniana (AP), em Hebron. Nas redes sociais, ele criticara a Lei palestiniana dos Crimes Eletrónicos, que esteve na origem da prisão do jornalista Ayman al-Qawasmi, que tinha apelado à demissão do Presidente palestiniano, Mahmud Abbas. Esteve preso seis dias e foi libertado sob fiança.

Hebron — que, à semelhança de Jerusalém, é sagrada para as três religiões monoteístas (ali se situa o túmulo de Abraão) — é uma espécie de conflito dentro do conflito. É a única cidade palestiniana que tem colonos judeus no seu interior.

De visita a Hebron, em março passado, onde conheceu Issa Amro, o ator norte-americano Richard Gere comparou a ordem ali vigente às Leis de Jim Crow, nos EUA, que instituíram a segregação racial entre 1876 e 1965. “Isto é exatamente como era o velho sul da América. Os negros sabiam onde podiam ir. Não podiam beber daquela fonte, não podiam ir àquele lugar, não podiam comer naquele sítio. Estava claro, e não se pisava o risco se não se quisesse levar um pontapé na cabeça ou ser linchado.” É ao que se arrisca Issa Amro, diariamente, na Palestina.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 26 de dezembro de 2017. Pode ser consultado aqui