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Estado da União. Discursos já houve 232 mas a maior parte chegou por carta

Donald Trump cumpre, na madrugada desta quarta-feira, uma tradição com mais de 200 anos e faz o seu terceiro discurso sobre o Estado da União. Dos 45 Presidentes norte-americanos, só dois nunca o fizeram. O recorde do discurso mais longo pertence a um dos cinco estadistas ainda vivos

Na Câmara dos Representantes, Richard Nixon faz o discurso sobre o “Estado da União”, em 1972 US CAPITOL / WIKIMEDIA COMMONS

O discurso sobre o Estado da União que Donald Trump irá proferir esta terça-feira à noite (2h de quarta em Portugal Continental), perante o Congresso dos Estados Unidos, é uma prática quase tão antiga quanto a própria federação norte-americana. Foi George Washington (Presidente entre 1789 e 1797) quem, a 8 de janeiro de 1790 — tinha o país apenas 14 anos —, primeiro se dirigiu a uma sessão conjunta do Congresso. “Caros cidadãos do Senado e Câmara dos Representantes”, assim iniciou ele a sua alocução, dando o mote para uma tradição política que só em 1947 — quando começou a ser transmitido pela televisão — passaria a ser oficialmente designada “Estado da União”.

Três anos antes, em 1787, “o povo dos Estados Unidos” dotara-se de uma Constituição, a qual, no seu artigo II, enumerava as obrigações do Presidente. “Ele deve de tempos a tempos dar ao Congresso informação sobre o Estado da União, e pôr à sua consideração medidas que considere necessárias e convenientes”, era uma delas.

Assim apressou-se a fazer George Washington, no Federal Hall, na cidade de Nova Iorque. À época, Washington D.C. ainda não existia, a Casa Branca só começaria a ser construída em 1792 e a primeira sessão conjunta no atual Capitólio só ocorreria a 11 de novembro de 1800. Neste dia, John Adams (1797-1801) entraria para a História como o primeiro Presidente norte-americano a discursar na atual capital.

A George Washington deve-se também o caráter anual desta intervenção, ainda que nem todos os seus sucessores se tenham dignado comparecer pessoalmente no Congresso. Se os dois primeiros Presidentes fizeram-no — George Washington, de forma generosa, com uma média de 2080 palavras por discurso e John Adams, mais comedido, com apenas 1790 (a mais baixa de sempre) —, os chefes de Estado seguintes optaram por enviar mensagens escritas.

Entre 1801 e 1913 — período em que a Casa Branca teve 25 inquilinos —, a mensagem chegou ao Congresso de forma escrita. A Thomas Jefferson (1801-1809), em particular, incomodava-o a semelhança entre a aparição do Presidente diante dos representantes do povo, no início de cada sessão, e a prática monárquica dos britânicos, que discursavam a cada novo Parlamento. Por isso, optou por não discursar “in loco”.

A tradição do discurso presencial foi recuperada em 1913 por Woodrow Wilson — que faltaria em 1919 e 1920 por razões de saúde. Ao longo dos anos, essa passaria a ser a fórmula preferencial dos Presidentes, ainda que, de forma intermitente, mensagens escritas continuassem a chegar ao Congresso — a última das quais em 1981, com Jimmy Carter a submeter um discurso quatro dias antes de Ronald Reagan lhe suceder no cargo.

O formato atual estabilizou a partir de 1934, com Franklin Delano Roosevelt (1933-1945). Mas no total, desde 1790, já foram feitos mais discursos por escrito do que oralmente: 130 contra 102.

Se John Adams foi o Presidente mais sucinto, já William Howard Taft (1909-1913) foi o mais palavroso, com uma média de 22.614 palavras por texto. A esta discrepância não será alheio o facto de o primeiro ter sempre discursado de viva voz e o segundo ter sempre enviado mensagens escritas.

Individualmente, o discurso mais curto foi o primeiro, de George Washington, em 1790, com um total de 1089 palavras. O mais longo foi feito em 1995, por Bill Clinton (1993-2001), com 9190. Já a comunicação escrita mais comprida foi a de 1981, assinada por Jimmy Carter, totalizando 33.667 palavras.

Entre aqueles que sempre optaram pelo discurso presencial, Bill Clinton foi quem mais falou, com uma média de 7426 palavras em oito discursos — superior à do tribuno Barack Obama (2009-2017) com uma média de 6824 palavras em igual quantidade de alocuções.

Ainda no capítulo das curiosidades, desde 1964, o discurso que mais tempo demorou a ser lido — exatamente 1h 28m 49s — foi o último proferido por Bill Clinton, a 27 de janeiro de 2000. Em muito menos tempo — 47m 49s —, George W. Bush (2001-2009) ‘despachou’ uma das intervenções mais importantes dos últimos anos. A 29 de janeiro de 2002 — três meses após o 11 de Setembro —, traçou o “eixo do mal” (Irão, Iraque e Coreia do Norte) que haveria de orientar a guerra ao terrorismo internacional que se seguiria.

Vencedor das eleições presidenciais em 1932, 1936, 1940 e 1944, Franklin D. Roosevelt foi quem mais vezes se dirigiu presencialmente ao Congresso. Fe-lo por 10 vezes em 12 possíveis: em 1944, adoentado, falou aos microfones desde a Casa Branca e em 1945 dirigiu-se por escrito, três meses antes de morrer. Em contraponto, dois Presidentes nunca fizeram qualquer discurso no Congresso: William Henry Harrison (1841) morreu de pneumonia exatamente um mês após tomar posse como 9º Presidente e James Garfield (1881) foi assassinado seis meses após iniciar funções.

Pouco dado à História e a tradições, Donald Trump já discursou por duas vezes, repetindo, em ambas, uma nuance inédita: “Sr. Presidente [do Congresso], Sr. Vice-presidente, Membros do Congresso, Primeira Dama dos Estados Unidos, meus caros americanos”. Nunca antes, naquele contexto, um Presidente tinha distinguido a mulher.

Esta madrugada, Trump cumprirá a tradição pela terceira vez. Inicialmente previsto para 29 de janeiro último, o discurso foi cancelado por Nancy Pelosi, a democrata que preside ao Congresso, dada a persistência do “shutdown” — o mais longo encerramento parcial do Governo federal de sempre —, provocado por um braço de ferro entre Presidente e Congresso a propósito do financiamento do muro junto à fronteira com o México. O convite foi reendereçado após Trump aceitar reabrir o Governo — só até 15 de fevereiro.

Artigo publicado no Expresso Diário, a 5 de fevereiro de 2019. Pode ser consultado aqui

Recordar a I Guerra para evitar a III

O centenário do armistício da I Guerra Mundial, amanhã, traz à reflexão a hipótese de um novo conflito mundial

O ano de 2012 viu partir a última pessoa que participou na I Guerra Mundial. Chamava-se Florence Green, era inglesa e trabalhou numa messe de oficiais da Royal Air Force em Marham, no leste do Reino Unido. Morreu aos 110 anos, os mesmos que tinha o inglês Claude Choules, o último combatente vivo das hostes aliadas, que falecera meses antes de Florence. Do lado das potências centrais, Franz Künstler, nascido no Império Austro-Húngaro, foi o derradeiro veterano a partir — em 2008, com 107 anos de idade. O inglês Harry Patch foi o último sobrevivente entre aqueles que lutaram nas trincheiras. Morreu em 2009, aos 111 anos.

Com estes desaparecimentos centenários, calaram-se de vez os testemunhos na primeira pessoa de quem travou “a guerra que irá acabar com a guerra”, como a ela se referiu o escritor inglês H. G. Wells. Não seria assim, já que, passados apenas 21 anos, outro conflito em grande escala mobilizaria o mundo e dizimaria a Europa. Hoje, 100 anos após o fim da I Guerra Mundial — o armistício foi assinado a 11 de novembro de 2018, na floresta de Compiègne, em França —, uma terceira guerra mundial será um cenário plausível?

Soldados britânicos ocupam uma trincheira alemã, em Ovillers-la-Boisselle, França, durante a Batalha do Somme, em julho de 1916. Um está de vigia enquanto os outros descansam JOHN WARWICK BROOKE / WIKIMEDIA COMMONS

“Uma guerra como a de 1914-18 não é provável, mas só pensando que é possível podemos preveni-la”, diz ao Expresso Álvaro Vasconcelos, ex-diretor do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia e fundador do blogue Fórum Demos. “O nacionalismo é a guerra, disse François Mitterrand no seu discurso-testamento no Parlamento Europeu. É bom lembrarmo-nos disso para que a tragédia europeia não se repita. Nos anos 90, o nacionalismo na Europa levou ao ódio do outro, à guerra e ao massacre”, diz, em referência à Jugoslávia. Hoje, está em alta um pouco por todo o mundo.

Protagonistas da III Guerra

No seu manifesto, o Fórum Demos elenca uma “penosa série de acontecimentos” que alertam para ameaças à democracia: “A eleição de Donald Trump nos EUA, o crescimento da extrema-direita xenófoba na Europa, a recusa da hospitalidade europeia relativamente aos que fogem da guerra nas nossas fronteiras, os milhares de mortos sepultados no Mediterrâneo, a repressão brutal da oposição em países árabes, as vitórias eleitorais de conservadores religiosos no Brasil”.

Professor responsável pelas unidades curriculares de Geopolítica e de Cibersegurança no Instituto Universitário Militar, Armando Marques Guedes realça “o nacionalismo ‘antiglobalista’ e, muitas vezes, agressivamente antioutros — entendidos hoje como os de outras religiões, etnias ou culturas — que pulula na Europa”. Da França ao Reino Unido, da Finlândia à Polónia, Áustria, Alemanha, República Checa, Eslováquia, Hungria e Itália. Mas também na China e Índia, Rússia e Turquia, Brasil e Venezuela, além dos EUA.

“Creio que o nacionalismo que ‘voltou’ é muito mais parecido com o dos anos 30 do que com o dos anos 10 do século passado. Não acredito muito numa guerra europeia, ou num terceiro capítulo da Grande Guerra Civil Europeia”, diz. “O que creio ser possível são mais Ucrânias e Geórgias por essa Europa fora.”

“Uma III Guerra Mundial, comparável à primeira, seria uma guerra total entre Estados Unidos, China e Rússia”, diz ao Expresso o investigador Carlos Gaspar, do Instituto Português de Relações Internacionais. “A Europa, depois do seu suicídio nas duas grandes guerras do século XX, ficou reduzida a um estatuto menor e as suas principais potências — Reino Unido, França, Alemanha — são regionais, poderiam ficar à margem de uma nova guerra hegemónica.”

China em todo o lado

Com sofisticada tecnologia no ar em vez de homens enfiados em trincheiras, “uma III Guerra Mundial seria provavelmente dominada e decidida pelas armas nucleares”, acrescenta Gaspar.

Trump rasgou recentemente o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário — assinado entre EUA e URSS em 1987 —, numa medida interpretada como visando forçar a China a comprometer-se num potencial novo tratado. A China é um dos cinco membros do exclusivo clube de países com armas nucleares e tem planos de expansão nesse domínio. A 23 de junho passado, Pequim lançou um concurso para a construção de um quebra-gelos movido a energia nuclear.

Marques Guedes recorda que a China “tem uma presença cada vez maior em África — vide a sua enorme base naval em Djibouti, criada em agosto de 2017 — e penetração em redor, com navios de guerra nos dois lados do Atlântico Sul, no Golfo da Guiné e na África Ocidental, e no Mediterrâneo. E, imagine-se, no Mar Negro e no Ártico!”. O académico afasta o cenário de um conflito à escala da guerra de 1914-18. “Mas prevejo guerras assimétricas [envolvendo atores não-estatais e recorrendo a táticas terroristas, por exemplo] e novas guerras por procuração, com ‘estrangeiros próximos’ e ‘estrangeiros distantes’, para utilizar a terminologia russa, por trás delas”.

A lição de Mark Twain

Em conflitos na complexa região do Médio Oriente, por exemplo, os “próximos” são a Arábia Saudita, o Irão, a Turquia, o Qatar, os Emirados Árabes Unidos e, em parte, o Egito e Israel; os “distantes” são a Rússia, os Estados Unidos, o Reino Unido, a França, a União Europeia, a NATO e, com protagonismo crescente, a Alemanha e a Polónia.

Uma dessas guerras trava-se na Síria. Outras grassam no Iémen, Líbia, Mali, República Centro-Africana e no martirizado Afeganistão. Marques Guedes cita Mark Twain: “A História não se repete, mas rima muitas vezes”.

CONTEXTO

Pretexto
A 28 de junho de 1914, é assassinado em Sarajevo o herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, arquiduque Francisco Fernando

Alianças
De um lado, os Aliados (Tríplice Entente: França, Rússia, Reino Unido). Do outro, as potências centrais (Tríplice Aliança: Alemanha, Império Austro-Húngaro, Itália). Esta última só entra na guerra em 1915, mas na fação aliada. Ao lado das potências centrais ficou o Império Otomano

Baixas
Metade dos 20 milhões de mortos eram civis. Os Aliados perderam 5,7 milhões de soldados, as potências centrais quatro milhões

Portugueses
Combateram 100 mil do lado aliado; 7500 perderam a vida

(Imagem principal: Ilustração alusiva ao momento da assinatura do armistício, a 11 de novembro de 1918, numa carruagem-restaurante de um comboio estacionado na floresta de Compiègne, norte de França MAURICE PILLARD VERNEUIL / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no Expresso, a 10 de novembro de 2018