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Um ano após a Lei da Segurança Nacional, Hong Kong está menos livre, mas com igual vontade de contestar a China

A Lei da Segurança Nacional, imposta há um ano por Pequim a Hong Kong, “silenciou toda uma cidade, exceto as vozes que promovem a narrativa do Partido Comunista Chinês”, diz ao Expresso um cidadão daquele território autónomo, a viver no Reino Unido. Aos poucos, o regime comunista vai esculpindo a cidade à sua imagem e ditando o fim do princípio “Um País, Dois Sistemas”

Quando, em finais de 2015, os cinemas de todo o mundo se enchiam para visionar o sétimo episódio da saga Guerra das Estrelas — “O Despertar da Força” —, a corrida às bilheteiras em Hong Kong revelava um concorrente à altura de tanto entusiasmo. “Dez Anos”, um filme independente de baixo orçamento, projetava a vida naquele território, em 2025, no âmbito de uma sociedade distópica controlada pela China.

Numa das cinco histórias contadas, funcionários do governo local orquestravam um assassínio político com o intuito de gerar medo na sociedade de Hong Kong e fomentar o apoio público à adoção de uma lei de segurança nacional.

Noutra trama, um taxista falante de cantonês (língua de Hong Kong) via-se cada vez mais marginalizado e condicionado no exercício do seu trabalho por não falar mandarim (putonghua), a língua falada na China Continental que os locais estavam obrigados a aprender para poderem trabalhar sem limitações em Hong Kong.

Num terceiro episódio, o dono de uma pequena mercearia sentia os limites à liberdade de expressão entrarem-lhe negócio adentro quando as palavras que usava para promover os ovos que ali vendia — “ovos locais” — foram parar a uma lista oficial de termos censurados.

https://www.youtube.com/watch?v=ePJuYVSNZTM&ab_channel=NeoFilmReviews

Cinco anos e meio depois de este filme conquistar as bilheteiras de Hong Kong, o exercício de ficção revela-se assustadoramente real. Pelo menos estas três histórias não andam muito longe da realidade que se vive naquela região administrativa especial da China.

O fim de um sistema

Faz um ano esta quarta-feira que entrou em vigor a Lei da Segurança Nacional, imposta pelo regime de Pequim, que condicionou a autonomia do território e acentuou a submissão de Hong Kong à vontade do Partido Comunista Chinês (PCC). Aos poucos, Pequim vai esculpindo o território à sua imagem e ditando o fim do princípio “Um País, Dois Sistemas”.

“Hong Kong ainda não é ‘só mais uma cidade chinesa’. Restam linhas, mesmo que não sejam claras. Ao contrário do que acontece na China Continental, não há pessoas a desaparecer, nem são feitas ameaças às famílias de forma rotineira como meio para silenciar dissidentes. Hong Kong é muito menos livre, mas não é a China Continental”, comenta ao Expresso Evan Fowler, cidadão de Hong Kong residente do Reino Unido, diretor do jornal digital “Hong Kong Free Press”.

“O efeito da Lei de Segurança Nacional vai muito além da aplicação da lei. Cria incerteza e medo. Silenciou toda uma cidade, exceto as vozes que promovem a narrativa do PCC. Das pessoas com quem me encontrei em Hong Kong em 2019, quando visitei a minha pátria pela última vez, metade foi presa. Os restantes não ousam falar, ou passaram a limitar fortemente as suas conversas. Hong Kong, vale a pena recordá-lo, já foi a sociedade mais vibrante e livre da Ásia, e um modelo de liberdades cívicas para grande parte da região.”

A Lei da Segurança Nacional entrou em vigor no território a 30 de junho de 2020, a poucos minutos das zero horas de 1 de julho — dia de aniversário da transferência da soberania de Hong Kong do Reino Unido para a China, em 1997. Passado um ano, confirmam-se os receios de quem se opôs desde a primeira hora a esta ferramenta, com a qual as autoridades chinesas querem combater atividades “subversivas e secessionistas” no território.

Promessas quebradas

“Quando a Lei de Segurança Nacional foi imposta por Pequim a Hong Kong, de uma forma que era, em si, uma violação da Lei Básica do território, as autoridades locais, claramente às escuras a esse respeito, prometeram que a Lei se aplicaria a muito poucos casos. Disseram que Hong Kong não seria afetada e que os seus cidadãos não teriam nada a temer. Um ano depois, esta declaração não só soa a falso como reflete a falta de autoridade do Governo de Hong Kong, para não falar da promessa de autonomia de alto nível”, diz Evan Fowler.

No último ano, um conjunto de alterações legislativas e restrições às práticas democráticas introduzidas por Pequim reescreveu as regras e contribuiu para a sensação de que 2047 — ano em que termina o período de transição de 50 anos e a China assumirá total controlo sobre Hong Kong — chegou adiantado mais de duas décadas e meia. Foram especialmente visíveis em quatro domínios.

1. “Reformar” a democracia

Hong Kong tinha eleições para o seu Parlamento — Conselho Legislativo (LegCo) — previstas para 6 de setembro de 2020. Alegando preocupações com a pandemia, a contestada presidente do governo, Carrie Lam, vista como marioneta de Pequim, adiou-as. O escrutínio está agora agendado para 19 de dezembro deste ano, mas terá contornos muito diferentes do que até agora.

A 30 de março de 2021, o Governo de Xi Jinping promulgou uma reforma do sistema eleitoral de Hong Kong que visa marginalizar a oposição no território. A composição do LegCo foi alargada de 70 para 90 membros, mas apenas 20 serão eleitos por sufrágio universal. Até então 35 de 70 lugares (50%) eram escolhidos pelo povo; com esta alteração, apenas 22% do hemiciclo passa a ser efetivamente eleito. Dos restantes lugares, 40 são escolhidos por um comité eleitoral de 1500 personalidades pró-Pequim e 30 são selecionados por grupos socioprofissionais, num complexo sistema que a China opera a seu favor.

Para Pequim, estas foram “reformas” necessárias para garantir que Hong Kong seja governada por “patriotas”. Para os locais que prezam a autonomia, mais não são do que machadadas na democracia.

2. Controlar a imprensa

Após 26 anos nas bancas, o “Apple Daily”, um dos jornais mais populares de Hong Kong, crítico do regime chinês e considerado o único órgão de comunicação pró-democracia, foi obrigado a fechar portas, acusado de espalhar a sinofobia no território. A última edição impressa, publicada quinta-feira da semana passada (24 de junho), teve uma tiragem de um milhão de exemplares. À chuva, milhares de pessoas aguardaram em fila a sua vez para comprarem aquela edição histórica, revelando inconformismo com a ordem das autoridades chinesas.

O cerco ao jornal decorria há meses. A 10 de agosto de 2020, a polícia de Hong Kong invadiu os escritórios da Next Digital, empresa proprietária do jornal, e deteve o seu fundador e ativista pró-democracia Jimmy Lai (detentor também de cidadania britânica), acusando-o de “conluio com forças estrangeiras”.

Em dezembro seguinte, o empresário de 73 anos foi agraciado com o Prémio Liberdade de Imprensa, atribuído pelos Repórteres Sem Fronteiras. Quatro meses depois, foi condenado a 14 meses de prisão por “organizar protestos ilegais”, em 2019.

3. Silenciar os críticos

O primeiro cidadão de Hong Kong acusado na justiça ao abrigo da nova Lei de Segurança Nacional foi um homem de 23 anos, acusado de embater com uma moto contra um grupo de polícias, durante os protestos de 1 de julho, imediatamente após a entrada em vigor da Lei. Tong Ying-kit, que empunhava uma bandeira com um dos slogans fortes dos protestos em Hong Kong — “Libertem Hong Kong, Revolução dos nossos tempos” —, foi acusado de terrorismo e secessão. Um ano depois, continua a ser julgado e enfrenta pena de prisão perpétua.

Com o intuito de decapitar o movimento pró-democracia de Hong Kong, a China tem promovido detenções de vozes críticas, ora de forma cirúrgica, ora em massa. Uma das operações com maior impacto aconteceu em janeiro passado e envolveu a prisão de 55 personalidades da oposição, entre ativistas, antigos deputados e académicos, acusados de envolvimento em conspirações e ações subversivas contra o Estado.

A 100ª detenção aconteceu em março seguinte: 83 homens e 17 mulheres, com idades entre os 16 e os 79 anos.

4. Desmobilizar as manifestações

Se, nos últimos anos, Hong Kong tem sido palco de jornadas de protesto épicas, participadas por centenas de milhares de pessoas em atitude pacífica — como a “revolução dos guarda-chuvas”, em 2014 —, quem o tentar hoje arrisca-se a ser preso e condenado a prisão perpétua por “subversão”, “secessão” ou mesmo “terrorismo”. Lemas como “Libertem Hong Kong, a revolução dos nossos tempos” podem ser considerados atos de subversão.

“Além das manchetes relativas às detenções e ao encerramento do ‘Apple Daily’, está uma cidade que enfrenta uma repressão sistémica aos seus direitos e liberdades mais fundamentais — liberdades que Hong Kong tem garantidas não só pela Declaração Conjunta Sino-Britânica e pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, como pela própria Constituição da China”, recorda Evan Fowler.

“Muitas vezes esquecemos que instituições como o Estado de Direito e a liberdade de imprensa são garantidas, pelo menos em teoria, pela Constituição da China. Na nova relação da cidade com a lei, e no uso da Lei da Segurança Nacional que vimos desde que foi aprovada, é difícil não concluir que Hong Kong não só é menos livre, mas também menos autónoma. O Estado de Direito aplica-se seletivamente — o que não é Estado de Direito.”

Habituado a recorrer à criatividade para travar a sua luta — como as paredes Lennon —, o movimento pró-democracia está, mais uma vez, confrontado com a necessidade de se reinventar para contornar dificuldades impostas.

Esperança na pressão vinda de fora

“O movimento terá de adaptar-se, como fez no último ano. Já não é mais uma voz de desafio pela democracia. Pequenos gestos terão mais peso. Não se trata de fazer com que Pequim cumpra a sua palavra, mas de demonstrar a Pequim que o povo não está quebrado e que, embora tenha de aceitar a nova realidade, não a apoiará”, diz Evan Fowler.

“Julgo que veremos mais pessoas pressionadas a sair [de Hong Kong] e vozes públicas do movimento falarão a partir do exílio. Uma comunidade maior no exílio terá uma voz mais forte no exterior para pressionar no sentido de uma ação internacional.”

Algumas das novas formas de protesto e de dissidência já foram visíveis este mês, por alturas da tradicional vigília em Victoria Park, comemorativa do aniversário do massacre na Praça Tiananmen (que a China não reconhece).

“Quando a vigília de 4 de junho foi proibida e as pessoas foram ameaçadas com ordens de prisão por se vestirem de preto, gritarem slogans ou acenderem uma vela, recorreram a formas artísticas de protesto — seja andando em silêncio ou usando as luzes dos telefones para [imitar velas e] iluminar partes da cidade. Estes sinais de resistência desaparecerão, a menos que o mundo continue a olhar [para Hong Kong] e condene a repressão”, defende Fowler.

Tudo acontece com uma pandemia em curso, que também tem sido instrumentalizada por razões políticas. “A covid-19 foi invocada como razão oficial das autoridades para proibirem os protestos, incluindo a vigília de 4 de junho. No entanto, mais revelador foi o facto de os partidários de Pequim enfatizarem repetidamente a Lei da Segurança Nacional como motivo, e as autoridades nada fizeram para se opor a essa narrativa”, conclui Evan Fowler.

“É também revelador que alguns dos detidos no ano passado por participarem nos protestos não tenham sido acusados de reunião ilegal, mas de crimes ao abrigo da Lei de Segurança Nacional. Perante isso, não surpreende que a visão comummente aceite seja a de que a covid-19 tem sido usada politicamente para silenciar dissidentes.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de junho de 2021. Pode ser consultado aqui

China aprova nova lei da segurança para Hong Kong. A fórmula é cada vez mais “um país, um sistema”

O Congresso Nacional do Povo, principal órgão legislativo chinês, aprovou a polémica nova lei da segurança para Hong Kong. A autonomia daquela região administrativa especial chinesa e as liberdades de que a população usufrui são cada vez mais uma miragem

Mapa da Região Especial Administrativa de Hong Kong, pintado com a bandeira do território WIKIMEDIA COMMONS

Hong Kong está cada vez mais perto de deixar de ser uma região autónoma chinesa. Esta quinta-feira, o Congresso Nacional do Povo (CNP) — o órgão legislativo de topo da República Popular da China — aprovou uma resolução que prevê uma nova lei de segurança nacional para aquele território.

Oficialmente designado “Projeto de decisão sobre o estabelecimento e a melhoria do sistema jurídico e dos mecanismos de aplicação da Região Administrativa Especial de Hong Kong para salvaguardar a segurança nacional”, o diploma foi aprovado por 2878 deputados, com um voto contra e seis abstenções.

Em termos formais, o processo segue agora para o Comité Permanente do CNP que irá redigir a lei, cujos principais contornos foram conhecidos na semana passada e já motivaram protestos de rua em Hong Kong.

A concretizar-se significará um aumento do poder de Pequim sobre um território que vivia na expectativa de conservar a autonomia de que usufrui pelo menos até 2047. É esse o prazo previsto no acordo entre a China e o Reino Unido, pelo qual este país devolveu a sua então colónia em 1997.

EUA abandonam Hong Kong

Ao abrigo da nova lei — que é uma resposta direta da China aos protestos pró-democracia que tomaram Hong Kong grande parte do ano passado —, as manifestações serão consideradas atos secessionistas, subversão do poder do Estado, terrorismo e interferência estrangeira.

Ao governo de Hong Kong — liderado pela odiada Carrie Lam, que a população do território considera um ‘pau mandado’ de Pequim — será pedido que estabeleça novas instituições para salvaguarda da soberania. E, sempre que necessário, as forças de segurança da China Continental serão autorizadas a intervir dentro do território.

Quarta-feira, os Estados Unidos deram um duro golpe nas aspirações democráticas do povo de Hong Kong. “Hoje, informei o Congresso que Hong Kong deixou de ser autónomo da China, tendo em conta o que está a acontecer”, anunciou no Twitter o secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo.

https://twitter.com/SecPompeo/status/1265668742220046339

“Os Estados Unidos esperavam que um Hong Kong livre e próspero funcionasse como modelo para a China autoritária, mas agora está claro que a China está a modelar Hong Kong à sua imagem”, acrescentou Pompeo.

Traição a Hong Kong

Hong Kong foi uma colónia britânica devolvida à China a 1 de julho de 1997, mediante o princípio “um país, dois sistemas” — durante 50 anos, o território conservaria um conjunto de liberdades não acessíveis aos restantes habitantes da China Continental. Com a nova lei, parte da autonomia de Hong Kong dilui-se no ordenamento jurídico chinês.

No sábado passado, Chris Patten, último governador britânico de Hong Kong, concedeu uma entrevista ao jornal inglês “The Times”. “Acho que o povo de Hong Kong foi traído pela China, o que provou mais uma vez que não se pode confiar”, disse. A entrevista tem como título: “Temos o dever moral de defender Hong Kong contra o bullying na China”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de maio de 2020. Pode ser consultado aqui

As 20 perguntas para 2020 (de Trump ao Brexit, de Lula a Hong Kong)

Alguns dos principais temas que dominaram a agenda noticiosa internacional de 2019 transitam para o novo ano sem uma evolução clara. Da incerteza do Brexit à imprevisibilidade da Coreia do Norte, das indefinições políticas em Espanha e Israel à contestação popular nas ruas nos quatro cantos do mundo

Donald Trump irá ser reeleito ou destituído?

É certo que o 45.º Presidente dos Estados Unidos vai enfrentar o Senado num julgamento onde se decidirá se é ou não destituído do cargo. Isto porque a Câmara dos Representantes já aprovou dois artigos de impeachment: obstrução ao Congresso e abuso de poder. Tudo indica, porém, que a maioria republicana no Senado vai segurá-lo (teria de haver 20 senadores a virar a casaca para alcançar os dois terços que a destituição exige). Economia robusta, promessas cumpridas e uma base de apoio quase intacta, além de não haver opositor óbvio, dão-lhe francas possibilidades de ser reeleito em 2020.

A tensão vai regressar à península da Coreia?

Muito possivelmente. A boa relação entre Donald Trump e Kim Jong-un tem vindo a degradar-se indisfarçavelmente. A Coreia do Norte deu um ultimato aos EUA para que, até ao final deste ano, recompensem as suas demonstrações de boa fé e levantem sanções económicas. Se isso não acontecer, Pyon­gyang ameaça retomar os testes com armas nucleares, uma dinâmica militar que em 2017 colocou o mundo em alerta máximo, receoso de nova guerra na península coreana.

O ‘Brexit’ vai mesmo acontecer?

Vai. A maioria conquistada pelo Partido Conservador a 12 de dezembro é um mandato democrático que mata o sonho de impedir a saída do Reino Unido da UE. Esta acontece no próximo dia 31 de janeiro, às 23 horas (meia-noite em Bruxelas), data consagrada em lei e confirmada com a aprovação do acordo de saída de Boris Johnson, que também proíbe prolongamentos do período de transição para lá do final de 2020. Depois da saída restarão, pois, 11 meses para negociar uma nova relação com os 27, que, dirão alguns, é o verdadeiro critério para se dizer que o ‘Brexit’ está concluído. O primeiro-ministro assegura que irá conseguir.

A China vai ceder às exigências dos manifestantes em Hong Kong?

A algumas, pelo menos. De outra forma os manifestantes continuarão nas ruas. Há atual­mente quatro exigências por cumprir por parte do Executivo local. Se uma delas — a eleição do Chefe de Governo por sufrágio direto e universal — é complicada, por implicar alterações de fundo à dinâmica política do território, já a amnistia aos manifestantes presos ou a alteração da retórica do Governo, para o qual os protestos são “motins”, pode ser mais fácil de concretizar. Resta saber se são cedências suficientes para acalmar as ruas.

Macau vai deixar de ser um território pacífico?

Dependerá muito da permeabilidade do Governo de Macau — que vive sob a fórmula “um país, dois sistemas” — a eventual legislação pró-Pequim, como aconteceu em Hong Kong com a lei da extradição, que espoletou as manifestações em curso. Dependerá também, em menor grau, da evolução da situação em Hong Kong. Em agosto, a PSP de Macau não autorizou uma concentração convocada para condenar a violência policial em Hong Kong porque poderia “passar a mensagem errada à sociedade”.

Os protestos dos Coletes Amarelos irão acabar?

“Info alerta: Macron não vai abandonar o projeto de reforma das reformas”, lia-se a 18 de dezembro no “GJ Magazine”, órgão central dos manifestantes que desde outubro de 2018 desafiam o Governo francês nas ruas de todo o país. Declaram “inaceitável a violência da polícia a mando de Macron e Castaner” [Christophe Castaner, ministro do Interior] e prometem que “as pessoas vão invadir o Eliseu e ejetar Macron”. A violência dos confrontos com a polícia escalou ao longo do tempo e nas manifestações mais recentes, convocadas contra a proposta presidencial para as reformas, os Coletes Amarelos contaram com o apoio de todos os sindicatos, mesmo os que até agora tinham permanecido do lado do Executivo.

Israel vai conseguir formar Governo?

Vai tentar, pelo menos. A 2 de março, o país realizará as suas terceiras eleições legislativas em menos de um ano, sem que as duas anterio­res (em abril e setembro) tenham resultado na formação de um Executivo. Nem Benjamin Netanyahu (de direita) — o israelita que mais tempo leva como primeiro-ministro — nem Benny Gantz (centrista) tiveram argumentos para constituir uma coligação maioritária. O eleitorado israelita está muito dividido, pelo que a manutenção do atual xadrez partidário poderá indiciar a continuação do bloqueio.

O Irão vai retomar o programa nuclear?

Já retomou, ainda que não tenha rasgado o acordo internacional de 2015 que limita as suas atividades nucleares. A retirada dos EUA desse pacto e a reintrodução de sanções económicas decretadas por Donald Trump colocaram Teerão na posição de contra-ataque. Atividades recentes em reatores nucleares iranianos fazem temer o pior, ainda que no contexto atual soem mais como forma de pressão sobre a União Europeia, a quem o Irão exige rotas alternativas àquelas penalizadas pelos EUA para poder vender o seu petróleo. Apesar do sufoco económico, é de prever que Teerão encare 2020 com paciência, na esperança de que em novembro o inquilino da Casa Branca seja substituído.

Os sauditas pararão os bombardeamentos no Iémen?

Não é expectável. A Arábia Saudita desencadeou essa ofensiva militar com o objetivo de derrotar os huthis e entregar o poder ao Presidente reconhecido internacionalmente, mas os rebeldes (aliados do Irão), que controlam a capital, não dão mostras de desgaste. Esta situação pode eternizar-se, refém de um conflito maior entre os dois gigantes do Médio Oriente (Arábia Saudita e Irão), que têm no Iémen uma frente (indireta) de batalha.

Merkel vai governar até ao final do mandato, em 2021?

A tendência para ler os acontecimentos políticos na Alemanha como ameaça à longevidade do quarto mandato da chanceler tem sido prática corrente desde que a GroKo (grande coligação) tomou posse, em janeiro de 2018, após as negociações entre os partidos mais votados nas eleições de 24 de setembro de 2017. A perda de eleitorado dos dois partidos do Governo nas eleições regionais (os democratas-cristãos da CDU e os sociais-democratas do SPD) tem sido crescente e a convulsão interna e crise de liderança do SPD têm contribuído para a fragmentação dos votos. A dificuldade de projetar um futuro político sem Merkel ajuda a desenvolver cenários catastróficos, não consentâneos com o ADN da república desde 1947.

Os protestos pelo clima irão radicalizar-se?

Há quem defenda que a Extinction Rebellion já contém no nome a potência para a radicalização. O movimento foi criado há pouco mais de um ano, em Londres, e espalhou-se depressa por todo o mundo, com a adesão de milhões de pessoas. Rebelião implica oposição. Se os objetivos reivindicados em defesa do planeta vierem a ser sistematicamente ignorados, é bem possível que os métodos dos ativistas conheçam uma escalada. Cada movimento com o seu método, todos contribuem para uma consciência coletiva que não tem retorno. O #FridaysForFuture, por exemplo, originou um diálogo intergeracional até agora inexistente. Há milhões de pessoas empenhadas, que poderão vir a ficar frustradas.

A rainha Isabel II vai ceder o trono ao herdeiro?

Só se morrer. A jubilação de monarcas de idade avançada, verificada em anos recentes em Espanha, Bélgica ou Holanda, não é tradição no Reino Unido. Ali, abdicação é termo que evoca a crise de 1936, quando Eduardo VIII, tio da atual rainha, prescindiu do trono para casar com a mulher que amava, e que o sistema rejeitava por se tratar de uma americana divorciada. Aos 93 anos, Isabel II vai calmamente passando deveres públicos aos filhos e até aos netos (não faz, por exemplo, viagens intercontinentais), sobretudo ao herdeiro Carlos, mas mantém-se em plenas funções e é a maior referência do país. Em situação de incapacidade por doença, tal como para o caso de monarcas menores de idade, estão previstos mecanismos de regência.

A UE vai conseguir marcar pontos na regulação da proteção de dados?

A pessoa escolhida pela Comissão Europeia para trabalhar a transição digital é nada menos que Margrethe Vestager, ex-comissária para a concorrência, que vê reforçados os seus poderes como vice-presidente executiva e que vai coordenar toda a política da UE para preparar a era digital. Mantém funções na área da concorrência, na qual, na última legislatura, se transformou numa espécie de pop star planetária ao desafiar o direito dos gigantes tecnológicos à isenção de contribuições. Vestager é a protagonista de um dos maiores desafios que enfrenta a atual Comissão Europeia: recuperar o tempo perdido na adaptação do mercado à era digital, tirar o máximo partido da inteligência artificial e dos grandes volumes de dados, melhorar a cibersegurança “e garantir a todo o custo a nossa soberania tecnológica”, protegendo os direitos dos cidadãos. No panorama mundial, a UE tem meios para o fazer e tem oportunidade de fazer a diferença.

A China e a Rússia vão continuar a aumentar o seu poder em África?

A Rússia é alvo de sanções da UE e dos EUA, o que a leva a investir cada vez mais nas trocas comerciais com os países africanos. A energia nuclear para produção de eletricidade está no topo dos investimentos de Moscovo nalguns deles, como foi abordado na Cimeira Rússia-África, em Sochi, em outubro. Em 2016 a Rússia fez um acordo com a Zâmbia para apoiar o desenvolvimento deste sector, está a financiar mais de 80% dos fundos para construir a segunda central nuclear do continente — no Egito —, que vai custar mais de €22,5 mil milhões. A China é o maior credor de África e continua a apostar neste mercado em crescimento. Recorde-se que nos primeiros 17 anos deste século as autoridades de Pequim emprestaram cerca de €130 mil milhões a países e empresas africanas.

O novo Governo de Espanha vai passar e durar?

Primeiro, é preciso que exista. Sem maioria absoluta, o socialista Pedro Sánchez, vencedor das legislativas de 10 de novembro, procura apoios. Ao pacto firmado com a aliança esquerdista Unidos Podemos (de Pablo Igle­sias) deverá somar o apoio de vários partidos regionais, entre os quais é indispensável a Esquerda Republicana da Catalunha. Isso abre um dossiê complexo, sobretudo se esta força independentista fizer exigências incompatíveis com a Constituição, que não permite a realização de um referendo sobre a questão catalã (nem Pedro Sánchez o deseja). Do outro lado, a direita (Partido Popular, Ciudadanos e Vox) extrema o discurso sobre a unidade de Espanha. Se lograr formar um Executivo, a estabilidade do mesmo será bem mais difícil de assegurar do que, por exemplo, o da lusitana ‘geringonça’.

A nova Comissão Europeia vai apoiar refugiados e migrantes?

Apoiar, por exemplo, através de ajudas financeiras aos países que mais lidam com a situação (€2 milhões adicionais vão ser entregues à Bósnia-Herzegovina), sim; mas a UE não irá pressionar Estados-membros como a Hungria ou a República Checa a aceitarem mais pessoas nem abandonar as muito criticadas colaborações com a Turquia ou a Líbia no sentido de conter o fluxo de migrantes. Entre as prioridades da nova Comissão está a “instituição de um novo sistema de candidatura a asilo”, “continuar a salvar vidas e a deter os fluxos” e “mais ajuda à integração”.

João Lourenço conseguirá lidar com a crise angolana?

É muito difícil. João Lourenço lidera um país de desigualdades gritantes, onde a desvalorização do kwanza faz disparar a dívida, onde o abanão económico dizimou 300 mil postos de trabalho em três meses e onde muitas famílias não têm dinheiro para comprar o básico. O plano do Presidente passa pela industrialização do país, porque “a população está cansada da simples exploração e exportação dos seus recursos minerais em estado bruto”, disse no Fórum Económico Rússia-África, e pela alienação de quase 200 empresas públicas.

Lula da Silva permanecerá em liberdade?

O futuro do ex-Presidente do Brasil só ficará decidido depois de os seis processos que ainda correm na justiça transitarem em julgado. A decisão do Supremo Tribunal de Justiça — que decretou a libertação de Lula em novembro, por considerar que a prisão só deve ocorrer depois de terem sido esgotados todos os recursos — deve prevalecer até à resolução destes seis processos. No entanto, é preciso estar atento ao futuro do ministro da Justiça, Sergio Moro, o juiz que ganhou fama no combate à corrupção e que teve um papel determinante na fase inicial do processo Lava Jato. Os seus pares, incluindo Deltan Dallagnol, continuam sem conseguir perceber porque é que Moro aceitou ser ministro de Jair Bolsonaro. Tanto ou mais do que o caso Lula, o desfecho da investigação sobre o assassínio de Marielle Franco pode ensombrar a governação de Moro.

A onda de protestos na América do Sul vai continuar?

É um subcontinente cheio de recursos naturais, mas política e socialmente volátil. A onda de protestos que se iniciou no Chile e já chegou à Colômbia, passando pelo Haiti, Equador e Bolívia, é um rastilho que ainda não ardeu todo. James Bosworth, analista de risco político, escreveu na “Business Insider” que os motivos que levaram aos protestos não se esgotaram nestes primeiros meses de sobressaltos e as ruas podem até ficar mais violentas em 2020: “Os cidadãos de muitos países da América Latina estão zangados com os seus sistemas políticos, com a corrupção, com a falta de segurança, com o crescimento económico baixo, a desigualdade e o custo de vida crescente.”

O Papa Francisco vai avançar mais na ordenação de casados?

A resposta mais provável é não. Mas tudo depende do documento a ser divulgado até ao final deste ano, ou já em 2020, com a interpretação de Francisco sobre a ordenação de homens casados, dando sequência ao relatório aprovado no Sínodo da Amazónia. Esta proposta estipula que sejam pessoas respeitadas e reconhecidas pela comunidade da região, de preferência indígenas. A ordenação de casados no contexto da especificidade da geografia amazónica pode até avançar, mas resta saber se a interpretação do Papa abre espaço para que a prática seja alargada a outras latitudes do catolicismo. Com o objetivo de incentivar e promover a participação feminina na igreja, foi defendida no sínodo a valorização do papel da mulher, tendo levado o Papa a reabrir a comissão de peritos que estuda o diaconado feminino na história da Igreja.

Texto escrito com Ana França, Cristina Peres, Manuela Goucha Soares e Pedro Cordeiro.

Artigo publicado no “Expresso”, a 28 de dezembro de 2019. Pode ser consultado aqui

Protestos em Hong Kong, em defesa da democracia

Milhões manifestam-se nas ruas desde há meses contra o Governo, visto como um fantoche da China

Podia até ser uma campanha de charme, mas no contexto sociopolítico que Hong Kong atravessa mais soa a desespero. Esta semana, jornais influentes de todo o mundo publicaram um anúncio de página inteira, pago pelo Governo desta Região Administrativa Especial chinesa, destinado a sossegar potenciais investidores e visitantes. “Tem sido difícil, mas vamos continuar. A economia caiu, mas vamos recuperar em força. Hong Kong continua a ser uma sociedade livre e acolhedora e os nossos fundamentos são fortes”, leu-se nos norte-americanos “The New York Times” e “The Wall Street Journal”, no inglês “Financial Times”, no alemão “Frankfurter Allgemeine Zeitung” e no francês “Le Monde”, entre outras publicações de referência.

A campanha — que custou 7,4 milhões de dólares de Hong Kong (€850 mil) — descreveu um centro financeiro “altamente internacionalizado” e “competitivo”. Em setembro, uma ação de relações públicas do género já tinha realçado “uma sociedade segura, aberta, acolhedora e cosmopolita” e “uma economia dinâmica, vibrante e ligada ao mundo”.

Em circunstâncias normais, este seria um retrato impossível de contrariar. Hong Kong surgiu, este ano, em quarto lugar no Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, que compara riqueza, alfabetização, educação, expectativa de vida, natalidade, entre outros fatores. Mas os tempos são de grande agitação nesta antiga colónia britânica, mergulhada na sua pior crise política desde a transferência da soberania para a República Popular da China, em 1997.

Desde 9 de junho que o território está tomado por gigantescos protestos antigovernamentais. Na mobilização do dia 16 desse mês, estima-se que tenham desfilado dois milhões de pessoas — a população total ronda os 7,5 milhões.

Batalhas no metro e na universidade

Os protestos nasceram pacíficos, mas, face à inação do Governo em corresponder às reivindicações das ruas, evoluíram para jornadas de violência, que provocaram, até ao momento, dois mortos. Sem liderança visível e identificada, os manifestantes já irromperam pelo Conselho Legislativo (LegCo, o Parlamento local), usaram estações de metro para batalhas campais com a polícia, paralisaram o aeroporto internacional e levaram à suspensão das aulas no campus universitário.

Hong Kong quer mais democracia e refuta medidas que instalem no território as garras de Pequim

O rastilho da turbulência foi aceso vai para um ano. Em fevereiro, o Executivo liderado por Carrie Lam propôs uma nova lei da extradição, que semeou a revolta. Ao prever que cidadãos de Hong Kong fossem levados e julgados na China continental, permitia a interferência de Pequim no sistema judicial.

O primeiro grande protesto, a 9 de junho, teve como principal slogan “Não à extradição para a China”. Mas a “surdez” do Governo — o diploma só seria retirado do circuito legislativo a 23 de outubro — provocou os manifestantes, que aumentaram a lista de condições para abandonarem as ruas. Agora exigem também uma investigação independente à atuação da polícia, uma amnistia para os manifestantes presos, a reformulação do discurso das autoridades para quem os protestos são “motins” e a eleição do chefe de Governo por sufrágio direto e universal.

A última exigência, em particular, não é nova nas ruas de Hong Kong. Em 2014, o desejo de mais democracia fez sair à luz do dia o Movimento dos Guarda-Chuvas. Dinamizado, sobretudo, por estudantes, bloqueou o centro da cidade durante 77 dias. A presença de guarda-chuvas nos protestos de 2019 — que invocam a resistência possível aos gases tóxicos disparados pela polícia — recorda que essa reivindicação continua por cumprir.

Hong Kong tem Parlamento e Governo próprios, mas o povo só elege metade dos 70 deputados do LegCo e os conselheiros distritais. O chefe do Governo é escolhido por um colégio eleitoral.

A arma do voto

Enquanto o status quo se mantém, os cidadãos descontentes lutam com todas as armas possíveis, incluindo… o voto. Nas últimas eleições locais, a 24 de novembro, visando a escolha dos conselheiros distritais, os candidatos pró-democracia averbaram uma vitória arrasadora, conquistando 388 dos 452 lugares em disputa. Ainda que simbólica — dado que estes cargos são de mero aconselhamento —, esta foi uma vitória legitimada por uma taxa de afluência às urnas superior a 71%.

Hoje, como em 2014, há uma preocupação maior na mente de quem se manifesta. Hong Kong está em contagem decrescente rumo a um futuro desconhecido. Desde a entrega da soberania à China que o território beneficia de uma transição de 50 anos que garante aos seus 7,5 milhões de habitantes direitos e liberdades não extensíveis aos 1500 milhões da China continental — a fórmula “um país, dois sistemas”.

Em Hong Kong há liberdade de expressão e de imprensa, liberdade de religião e de manifestação, livre comércio e fluxo de capitais. Em contraste, na China vinga a doutrina do Partido Comunista e, desde o ano passado, o “Pensamento de Xi Jinping”, o chefe de Estado chinês, foi incluído na Constituição. Com 2047 no horizonte — e o receio de Pequim passar a pôr e dispor no território —, os cidadãos desta região administrativa pressionam por mais democracia e refutam medidas que transportem as garras de Pequim sobre o território e sobre as vidas de cada um.

“Imagine que Espanha decidia que há uma nação ibérica, reivindicava Portugal, impunha a língua espanhola ao povo português e dizia que para se ser ibérico você teria de adotar a identidade, cultura e tradições espanholas. E também que teria de esquecer a sua própria história e concentrar-se na história de Espanha.” Era nestes termos que, a dada altura, um cidadão de Hong Kong explicava ao Expresso o que estava em causa. A sua esperança é que, chegados a 2047, a dinâmica de Hong Kong tenha contagiado a restante China — ainda que esta pareça empenhada em provocar o movimento inverso.

(FOTO Protestos em Hong Kong, em meados de 2019 STUDIO INCENDO / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 21 de dezembro de 2019. Pode ser consultado aqui

Cerco na universidade. “Os mantimentos estão a acabar. E eles estão completamente cercados”

Os protestos em Hong Kong duram há quase meio ano. O mais recente palco de contestação é a Universidade Politécnica onde esta terça-feira continuavam barricados “cerca de 100 estudantes”, testemunhou ao Expresso o fotojornalista Eduardo Leal, que acredita que o desfecho está para breve

Numa estratégia de permanente desafio às autoridades de Hong Kong, a população desta região administrativa especial chinesa vai conquistando sucessivos palcos de confronto, que começou de forma pacífica — com um milhão de pessoas nas ruas a 9 de junho — e já ganhou contornos de verdadeira guerra.

Passada a fase inicial das mega manifestações de rua, catalisadas pela proposta de uma nova e polémica lei da extradição, os protestos irromperam de forma violenta pelo edifício do Conselho Legislativo (1 de julho), transformaram estações de metro em arenas de luta corpo a corpo entre revoltosos e agentes da polícia e obrigaram ao cancelamento de centenas de voos, após a ocupação do principal terminal do Aeroporto Internacional de Hong Kong.

Na semana passada, o motor da contestação transferiu-se para o campus universitário. Os mais ferozes e irredutíveis estão dentro do Politécnico, que está cercado pela polícia desde domingo. “Neste momento, estão uns 100 estudantes barricados no interior, talvez até menos”, disse ao Expresso esta terça-feira ao início da tarde o fotojornalista português Eduardo Leal, que esteve dentro do Politécnico. “Na sua maioria são estudantes, muitos deles menores. Mas há também ex-alunos e voluntários que ajudam na organização dos protestos, como enfermeiros.”

Na segunda-feira, a polícia efetuou cerca de 1100 detenções. Muitos manifestantes procuravam formas de fugir dali, uns cansados, outros amedrontados, todos tentando antecipar-se a um previsível banho de sangue. “Os menores de idade saíam com liberdade para irem para casa, mas podem ainda vir a ser acusados. Os maiores de 18 anos eram imediatamente detidos.”

O repórter refere que esta terça-feira havia negociações envolvendo pais, políticos e pastores, com o objetivo de retirar do local os últimos jovens entrincheirados. “Julgo que não haverá mais violência”, diz Eduardo Leal. “No interior, estão a acabar os mantimentos e eles estão completamente cercados, por isso estão a sair. Além disso, esta terça-feira tomou posse um novo Comissário da Polícia de Hong Kong. Imagino que queira iniciar funções com uma vitória que será resolver esta situação.”

Esta terça-feira, em entrevista à publicação “South China Morning Post”, Chris Tang Ping-keung defendeu que o corpo de 31 mil agentes não consegue, por si só, acabar com a agitação social inédita no território, e que necessita do apoio da população. “Já chega”, disse o novo comissário. “Quaisquer que sejam as vossas crenças, não glorifiquem nem tolerem a violência. Não deixem que a multidão se motive mais e se radicalize mais.”

Há muito que os protestos em Hong Kong perderam o seu cunho pacífico. No interior do Politécnico, havia cenas dignas de quem parece preparar-se para uma batalha apocalíptica. Vestidos de negro e com o rosto tapado por passa-montanhas, alguns manifestantes montavam vigia armados com arco e flecha, outros enchiam garrafas com misturas explosivas (que testavam arremessando algumas para a piscina vazia), outros ainda improvisavam catapultas ou erguiam muros de tijolo.

Esta terça-feira, a imprensa local noticiou a descoberta de 8000 “cocktails molotov” em várias universidades, destinados a serem usados nas ruas, nos próximos protestos. Três universidades denunciaram à polícia o roubo de químicos dos seus laboratórios durante a agitação. Carrie Lam, a contestada e odiada chefe do Governo de Hong Kong, referiu-se às universidade como “fábricas de armas”.

Ainda que o cerco ao Politécnico termine sem vítimas a lamentar, Eduardo Leal acredita que “os protestos não vão acabar”. Por um lado, “a China está a desautorizar o Supremo Tribunal de Hong Kong em relação à lei das máscaras” que esta terça-feira considerou anticonstitucional a proibição do uso de máscaras em protestos decretada pelo Governo de Carrie Lam a 5 de outubro. Por outro, acrescenta o repórter, Hong Kong tem eleições locais marcadas para domingo. “Já se fala que serão canceladas. Se isso acontecer deve haver mais contestação nas ruas.”

(FOTO Estrada de acesso ao Politécnico bloqueada pelos estudantes, a 17 de novembro de 2019 WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de novembro de 2019. Pode ser consultado aqui