O líder da Igreja Católica chegou, esta sexta-feira, à Hungria para realizar a sua 41ª viagem apostólica. Num país que, nos últimos anos, tem levantado obstáculos ao acolhimento de imigrantes e em que o apoio à Ucrânia é morno, o Papa Francisco não contornou nenhum dos temas. Sobre o acolhimento de migrantes, citou as palavras de fraternidade de um santo húngaro: “Aqueles que chegam com línguas e costumes diferentes ‘adornam o país’”
Papa Francisco, em Budapeste, na Hungria VATICAN NEWS
O Papa Francisco retomou as suas viagens apostólicas, após um internamento hospitalar, em março, que deixou os católicos apreensivos em relação ao seu estado de saúde e, esta sexta-feira, rumou à Hungria.
Ainda no voo que o levou de Roma a Budapeste, questionado por jornalistas sobre o seu estado de saúde, o Sumo Pontífice brincou: “Ainda estou vivo”, disse, acrescentando que “ervas daninhas teimosas nunca morrem”.
Chegado a Budapeste, o Papa, de 86 anos, evidenciou ‘boa forma física’ — abdicando, por vezes, da cadeira de rodas e percorrendo curtas distâncias apoiado apenas numa bengala — e a assertividade política de sempre. Na primeira intervenção pública, no palácio presidencial, para uma audiência de notáveis em que se encontravam membros do Governo liderado pelo nacionalista Viktor Orbán, Francisco foi incómodo.
“Cada vez mais, o entusiasmo pela construção de uma comunidade de nações pacífica e estável parece estar a esfriar, à medida que zonas de influência são delimitadas e diferenças acentuadas”, defendeu. “O nacionalismo está em ascensão e julgamentos e linguagem cada vez mais ásperos são usados no confronto com os outros.”
After meeting with Hungary's authorities, Pope Francis visits the terrace behind the former Carmelite Convent to enjoy the view of Budapest, accompanied by President Novák and Prime Minister Orbán.#PopeInHungarypic.twitter.com/k5UGAtXt5l
Com Orbán na plateia, Francisco alertou para os perigos do aumento do nacionalismo na Europa e defendeu que acolher imigrantes — em fuga à pobreza e às guerras do Médio Oriente e de África —, como o fazem vários membros da União Europeia, é um verdadeiro sinal de cristandade.
E para que não subsistissem dúvidas em relação à mensagem que queria transmitir, citou Santo Estêvão (975-1038), o primeiro rei da Hungria, canonizado pelo Papa São Gregório VII em 1083. “Santo Estêvão legou ao seu filho palavras extraordinárias de fraternidade quando lhe disse que aqueles que chegam com línguas e costumes diferentes ‘adornam o país’”, disse Francisco, citando o mandamento do santo que incita as pessoas a “acolher os estrangeiros com benevolência e a tê-los em estima’.
“Buscar a unidade, não agravar as divisões”
As palavras de Francisco têm implícita uma crítica à posição anti-imigração muitas vezes expressa pelo chefe de Governo húngaro em defesa de uma “Europa cristã”. No mesmo sentido, as autoridades de Budapeste ordenaram a construção de uma cerca em arame na fronteira com a Sérvia para impedir que a Hungria se transforme num “país de imigração”.
Defendeu o Papa: “É urgente, como Europa, trabalhar em vias seguras e legais, em mecanismos partilhados face a um desafio epocal que não se pode travar rejeitando-o, mas deve ser acolhido para preparar um futuro que, se não for de todos em conjunto, não existirá”.
Francisco apelou ainda ao regresso ao “espírito europeu” que esteve na origem da constituição da Europa moderna do pós-II Guerra Mundial, defendendo que os países têm de “olhar para além das suas fronteiras nacionais”. “É vital recuperar o espírito europeu: a emoção e a visão de seus fundadores (…) e gerar formas de diplomacia capazes de buscar a unidade, não agravar as divisões.”
O líder da Igreja Católica não esqueceu a guerra que opõe dois países de matriz cristã e que se trava não muito longe da Hungria — que partilha 137 quilómetros de fronteira com a Ucrânia. Nos corredores políticos, Budapeste tem destoado do conjunto dos 27, expressando um apoio morno à Ucrânia, apoiando a sua soberania, mas recusado o envio de armas.
“Num discurso cuidadosamente calibrado”, como o qualificou a agência Associated Press, o Papa rejeitou a “beligerância adolescente” e pediu “esforços criativos pela paz” que abafem os “solistas da guerra”.
A 41ª viagem apostólica de Francisco durará três dias. Esta sexta-feira, foi dia de encontros separados com a Presidente Novak Katalin e com o primeiro-ministro Viktor Orbán. Para o próximo domingo, está prevista uma missa ao ar livre, em frente ao Parlamento, com vista sobre o rio Danúbio.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de abril de 2023. Pode ser consultado aqui
As restrições à liberdade religiosa estão em crescendo por todo o mundo. Nuns casos para os Estados blindarem a sua identidade, noutros para se defenderem de medos exteriores
Símbolos religiosos do Judaismo, Islão, Taoismo e Cristianismo WIKIMEDIA COMMONS
César o que é de César, a Deus o que é de Deus. A máxima atribuída a Jesus Cristo — em resposta a um grupo de fariseus que o tentou apanhar em falso, perguntando se era lícito um judeu pagar impostos a César (Mateus 22:21) — tornou-se, com o tempo, um chavão utilizado para enfatizar a separação entre os poderes político e religioso. Passados 2000 anos, contudo, a realidade política global aponta para uma evolução no sentido inverso à sentença bíblica. Hoje, mais de 80 países têm uma religião oficial ou conferem um tratamento preferencial a uma determinada confissão sobre todas as outras. A maioria deles privilegia o Islão, mas a realidade não é estranha à velha Europa cristã.
A Grécia, por exemplo, é um Estado confessional. Os salários dos padres da Igreja Ortodoxa Grega — que a Constituição reconhece como a “religião prevalecente” — são pagos pelo erário público. Nas escolas, só em setembro de 2016 (sob o Governo do Syriza) deixaram de ser obrigatórias as orações de alunos e professores no início de cada dia de aulas. No palco da política, a religião não fica arredada do protocolo: há três semanas o novo primeiro-ministro, Kyriakos Mitsotakis, tomou posse diante do arcebispo Jerónimo, a máxima autoridade religiosa.
No Reino Unido, o monarca é membro da Igreja de Inglaterra (anglicana) e seu governador supremo. Na Finlândia, a Igreja Ortodoxa Finlandesa e a Igreja Evangélica Luterana da Finlândia são reconhecidas como “igrejas nacionais”. Já na Islândia, a Constituição reconhece a Igreja da Islândia como a “igreja do Estado”.
“Desde a mais distante pré-história, encontramos pontos de contacto muito fortes entre as estruturas religiosas e as políticas”, explica ao Expresso Paulo Mendes Pinto, coordenador da Área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona. “Esses contactos foram muitas vezes de ajuda, mas também de afronta. Sempre houve contacto porque ambas são estruturas de organização da sociedade.”
Na Rússia, jeovás têm rótulo “extremista”
Um relatório recente publicado pelo Pew Research Center, um think tank com sede em Washington D.C., conclui que “ao longo da década 2007-2017, as restrições governamentais à religião — leis, políticas e ações de funcionários do Estado restritivas de crenças e práticas religiosas — aumentaram acentuadamente em todo o mundo”.
Em 2007 estavam identificados 40 países com níveis “altos” ou “muito altos” de restrições à liberdade religiosa. Dez anos depois, eram já 52. Um deles é a Rússia, onde, recorda o académico, “toda uma narrativa de fausto e glória, marcada por uma visão etnocentrada, encontra na Igreja Ortodoxa a ligação a uma legitimação história e, assim, fortemente identitária”. O relatório refere o assédio das autoridades russas a minorias religiosas através de ‘visitas’ da polícia a propriedades, em especial das Testemunhas de Jeová, rotuladas como grupo “extremista” desde 2017.
“Por parte do que hoje designamos por Estados, a religião surge como forma de criar uniformidades, discursos e narrativas de identidade”, comenta o professor. “Hoje, a relação que vemos cada vez mais forte entre muitos Estados e algumas religiões vem no seguimento da criação de narrativas de instabilidade, onde o fator religioso é instrumental na solução.”
Fobias várias num quadro de medo
Na Hungria, em 2012, uma nova lei introduziu alterações ao processo de registo de grupos religiosos, as quais afetaram o estatuto de mais de 350, com consequências ao nível do seu financiamento e da prestação de serviços de caridade. Na chefia do Governo desde 2010, Viktor Orbán tem-se destacado, na Europa e no mundo, com um discurso populista, xenófobo e anti-imigração.
“Parte do movimento geral de limitação da liberdade religiosa advém de um quadro de medo, relacionado diretamente com o pós-11 de Setembro de 2001 e, mais recentemente, com o fenómeno do radicalismo islâmico do Daesh”, explica Mendes Pinto. “Esta onda de perceção e representação de insegurança, de medo, condicionou os cidadãos a aceitarem limitação às suas mais variadas liberdades como um sacrifício necessário para a sua segurança.”
Em dez anos, o número de países europeus que levantam obstáculos à liberdade religiosa aumentou de cinco para 20. Este processo vem sendo fortalecido “através de fobias várias”, conclui Paulo Mendes Pinto. “Fobias que levam, por exemplo, a que França seja hoje tida como um Estado que ergue grandes restrições à liberdade religiosa, fruto de um extremar das suas posições laicistas que advogam a proibição, muitas vezes, do uso de vestes religiosas.”
UMA TENDÊNCIA GLOBAL
ANGOLA — A 23 de janeiro deste ano, a Assembleia Nacional aprovou a nova Lei sobre a Liberdade de Religião, Crença e Culto para organizar a proliferação de grupos. Há mais de 2000 ilegais
TAILÂNDIA — A Constituição de 2017 elevou o estatuto do budismo Theravada, quase que dotando o reino de uma religião oficial
SAMOA — Este país da Polinésia passou a ser uma “nação cristã” após a revisão constitucional de 2017
ERITREIA — O Governo reconhece apenas a Igreja Ortodoxa Eritreia, o Islão sunita, a Igreja Católica e a Igreja Evangélica Luterana da Eritreia. Desde 2002 não são autorizadas cerimónias de nenhum outro culto
CHINA — Apenas são autorizados a realizar cultos grupos que pertençam às religiões reconhecidas por Pequim: Budismo, Taoismo, Islão, Catolicismo e Protestantismo. Mas há milhares de muçulmanos (uigures) em “campos de reeducação”
CABO VERDE — A concordata de 2013 garante ao Vaticano privilégios inacessíveis a outro credo
COMOROS — Aprovado em referendo, em 2009, o Islão passou a ser a religião do Estado
MALDIVAS — Promover uma religião que não o Islão é crime punido com até cinco anos de prisão
ALEMANHA — Em 2012, um tribunal de Colónia criminalizou a circuncisão por razões não-médicas. Pressionado por judeus e muçulmanos, Berlim legalizou essa prática religiosa
BIRMÂNIA — A minoria muçulmana (rohingya) não tem direito à cidadania. Tem sido perseguida e alvo de grande violência
HÁ UMA ILHA DE TOLERÂNCIA NO MÉDIO ORIENTE
Arábia Saudita, Irão e Israel são dos países com leis mais restritivas em matéria de liberdade religiosa. Na região, só um país não favorece uma fé
Em todo o mundo, a maioria dos Estados que submetem a vida dos seus cidadãos à vontade de Deus (de forma mais ou menos formal) é muçulmana. No Médio Oriente e Norte de África, há apenas um país que não tem uma única religião oficial ou favorece declaradamente um só credo — o Líbano. Independente desde 1943, o “País do Cedro” é um xadrez étnico-religioso complexo, organizado politicamente com base num Pacto Nacional celebrado entre as principais confissões religiosas. Este acordo não escrito determina que o Presidente da República é sempre um cristão maronita, o Parlamento é presidido por um muçulmano xiita e o primeiro-ministro é um muçulmano sunita.
Este entendimento sobreviveu a uma sangrenta guerra civil (1975-1990). Depois do conflito a proporção entre cristãos e muçulmanos no Parlamento passou de 6/5 para a paridade (5/5). E resistiu também à evolução demográfica do Líbano: se em 1943 havia uma curta maioria de cristãos no país, hoje estima-se que a larga maioria dos quase sete milhões de libaneses seja muçulmana.
Na classificação do Pew Research Center, o Líbano não consta do grupo mais preocupante de países com leis mais restritivas à liberdade religiosa, que é liderado pela Eritreia. Não é o caso, porém, da Arábia Saudita (8º lugar), do Irão (12º) e de Israel (13º).
Israel não tem uma Constituição escrita mas sempre se definiu — e assim foi concebido — como um Estado judaico onde a religião está omnipresente na vida quotidiana. Casamentos, divórcios e funerais, por exemplo, competem à jurisdição do Rabinato Chefe de Israel, uma instituição ortodoxa. E, na maioria das cidades, o respeito pelo Shabat (sábado) implica que não haja transportes públicos a circular.
Na Jordânia, o Governo vigiou as prédicas nas mesquitas e exigiu aos pregadores que não falassem de política
A relação entre o Estado e o judaísmo definiu-se mais claramente a 19 de julho de 2018, com a aprovação de uma nova Lei da Nacionalidade: Israel passou a ser “a nação do povo judeu” e o hebraico a única língua oficial. A aprovação do diploma fez disparar acusações de discriminação e lançou o ceticismo sobre o futuro das minorias, nomeadamente os israelitas árabes (muçulmanos e cristãos), que são 20% da população. Representados no Parlamento, são muitas vezes impedidos de aceder a lugares sagrados como o Monte do Templo, em Jerusalém.
Pátria de uma das comunidades de judeus mais antigas do Médio Oriente — os judeus da Pérsia, anteriores ao advento do Islão —, o Irão tem um histórico de perseguição da comunidade bahai (não-muçulmana). Outrora a maior minoria no Irão, as autoridades consideram-na hoje “herética” e “imunda”.
Teocracia muçulmana xiita desde 1979, o Irão tem no topo da sua hierarquia política um ayatollah. Oficialmente, a República Islâmica reconhece três minorias — zoroastras, judeus e cristãos — e reserva-lhes assentos parlamentares. Uma diferença substancial em relação à rival sunita Arábia Saudita, onde não existem igrejas nem sinagogas. Guardião das mesquitas sagradas de Meca e Medina, o reino considera ilegal a prática de outras religiões, bem como o uso de símbolos religiosos. Os sauditas estão proibidos de se converterem a outras fés e os que professam o ramo xiita são olhados com grande desconfiança.
Em novembro de 2017, Riade fez aprovar uma nova lei de combate ao terrorismo que criminaliza “qualquer pessoa que desafie, direta ou indiretamente, a religião ou a justiça do rei ou do príncipe herdeiro” e proíbe “qualquer tentativa de lançar dúvidas sobre os fundamentos do Islão”. No mesmo ano, alegando preocupações com o terrorismo, as autoridades ordenaram a demolição de um bairro antigo de maioria xiita.
No Médio Oriente, com maior ou menor formalidade, todos os países árabes são condescendentes em relação ao Islão. No Egito, em caso de disputa familiar, por exemplo, se um dos cônjuges for muçulmano e o outro cristão copta, a lei que se aplica é a islâmica (Sharia).
Mas casos há também em que o alvo das restrições governamentais é o próprio Islão. Na Jordânia, o Governo vigiou as prédicas nas mesquitas e exigiu aos pregadores que se abstivessem de falar de política, para não contribuírem para agitação social e visões extremistas. Sugeriu temas e recomendou textos para orientar os imãs. Quem não acatar é multado ou proibido de voltar ao púlpito.
Artigo publicado no “Expresso”, a 27 de julho de 2019. Pode ser consultado aqui
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.