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Primavera árabe faz 10 anos

A esperança na mudança não se concretizou. E a ocorrência de uma segunda vaga de protestos revela que na rua árabe subsiste a insatisfação

Plantar a democracia na Praça Tahrir, no Cairo CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

A pandemia acabou com os protestos nas ruas da Argélia mas, na rede social Twitter, Said não se cala. Este argelino, que se notabilizou como ativista digital durante as manifestações pacíficas de 2019-2020, motivadas pela vontade de Abdelaziz Bouteflika de se recandidatar a um quinto mandato presidencial, continua a disparar vídeos, fotos e informação de todo o tipo, demonstrativos de tudo quanto o leva a rejeitar o regime — seja o atraso da vacinação contra a covid-19 seja o tratamento dado a manifestantes que estão presos. “Seguramente que os protestos recomeçarão em força a seguir à pandemia”, garante ao Expresso. “Haverá marchas gigantescas.”

Até aparecer o novo coronavírus, a Argélia era um dos países que protagonizavam uma espécie de segunda vida da primavera árabe — o movimento de contestação popular que explodiu em 2011 e derrubou quatro ditadores: Zine El Abidine Ben Ali, na Tunísia, Hosni Mubarak, no Egito, Muammar Kadhafi, na Líbia, e Ali Abdullah Saleh, no Iémen.

Contrato social falido

“As revoltas de 2011 puseram em marcha exigências populares, no sentido da responsabilização de governos, que continuam a colocar os regimes autocráticos sob pressão, por todo o Médio Oriente. Quanto às manifestações populares da segunda vaga — na Argélia, Sudão, Líbano e Iraque —, têm raízes diferentes e seguem trajetórias particulares. Mas partilham com os protestos de 2011 a rejeição generalizada de um contrato social falido e conseguiram desafiar governantes autocráticos e até confrontar os militares”, diz ao Expresso Eugene Rogan, professor de História Contemporânea do Médio Oriente na Universidade de Oxford (Reino Unido).

Na Argélia os protestos visaram um regime caduco. No Líbano começaram depois de o Governo taxar serviços de comunicação como o WhatsApp e cedo atingiram o sistema confessional que define a organização política. No Iraque os alvos foram a corrupção e o peso das milícias. E no Sudão, onde há uma transição política em curso, a revolta começou após a triplicação do preço do pão.

Aprender com os erros

Se em 2011, estes quatro países — traumatizados por guerras civis não muito longínquas — não reagiram à primavera árabe, hoje são a prova de que a insatisfação se mantém nas ruas. Segundo o historiador norte-americano, há espaço para os árabes continuarem a sonhar. “Resta ver se estes novos movimentos aprenderam as lições de 2011 sobre como conter o poder dos militares, organizar grupos de ação política capazes de assumir o poder após a queda dos governantes autocráticos, institucionalizar a mudança política através de uma reforma constitucional, evitar soluções armadas para problemas civis. Resta ver se terão mais êxito ou mostrarão mais resistência a forças contrarrevolucionárias do que os movimentos de 2011.”

Hisham pagou caro o envolvimento nos protestos no seu Egito natal. Simpatizante da Irmandade Muçulmana, foi preso após a formação islamita — que venceu as primeiras eleições livres, a seguir à revolução — ter sido arredada do poder por um golpe militar liderado pelo atual Presidente, Abdul Fatah Al-Sisi. “Estive preso 366 dias”, conta ao Expresso. Saiu do Egito e viveu uns anos na Turquia. Hoje mora no Reino Unido. “Pedi asilo aqui e concederam-mo. Em 2025, terei cidadania britânica. Depois poderei viajar até ao Egito com passaporte do Reino Unido. Ninguém me poderá tocar.”

O peso dos mais jovens

Engenheiro de formação, Hisham está a oito meses de terminar um mestrado em Inteligência Artificial, na Universidade de Plymouth. “Depois talvez consiga lecionar em universidades, aqui.” Aos 38 anos, traça na sua mente todo um futuro que lhe está vedado no seu país. “Neste momento, nada no Egito é aconselhável enquanto a democracia não regressar.”

A odisseia de Hisham evidencia feridas abertas durante a primavera árabe: a perseguição a vozes da oposição e a falta de perspetivas dos jovens. “Nas sociedades árabes o verdadeiro desafio é o crescimento demográfico, o peso político dos que têm menos de 30 anos”, diz Eugene Rogan. “Governos autocráticos incapazes de proporcionar aos jovens um bom futuro, dependentes da repressão para permanecer no poder, ver-se-ão desafiados por revoltas populares demasiado grandes para serem controladas.”

Dez anos passados, a esperança de um novo Médio Oriente, mais livre e democrático, não se materializou. Líbia, Síria e Iémen foram engolidos por guerras intermináveis. Dos quatro países que viram ditadores depostos, apenas a Tunísia concretizou um processo de transição democrática.

“A Tunísia, sem dúvida, lançou as bases da democracia há dez anos. O progresso político é uma realidade. Nesse aspeto, a revolução cumpriu a sua promessa. O problema é que esta abertura política, que se deu de forma brutal, não foi acompanhada de progresso social e económico”, comenta ao Expresso a politóloga marroquina Khadija Mohsen-Finan, autora do livro “Tunisie, l’Apprentissage de la Démocratie — 2011-2021” (Tunísia, a aprendizagem da democracia, sem edição portuguesa). “A vida das pessoas não melhorou, pelo contrário. Para os tunisinos a democracia tornou-se obstáculo à mudança e não é essencial, tendo em conta as suas dificuldades quotidianas.”

O peso dos mais jovens ??????????????

Um dos aspetos que tornam o processo tunisino único decorre da atuação do partido islamita Ennahda, vencedor das primeiras eleições livres, que optou por fazer pontes com as demais forças — o que a Irmandade Muçulmana não fez no Egito —, chegando ao ponto de abdicar da sua agenda religiosa.

Se em 2011, os partidos islamitas emergiram como sucessores naturais das ditaduras, hoje não é certo que isso se repita. “No Líbano e no Iraque, os manifestantes apelaram a uma política não-sectária. Além disso, a Irmandade Muçulmana foi fortemente reprimida na maioria do mundo árabe, a seguir à contrarrevolução de 2013 no Egito. Na Argélia e no Sudão, os protestos permaneceram essencialmente seculares, em termos de liderança e orientação”, conclui Rogan. “Já não parece que uma onda islâmica vá seguir-se aos protestos contra os governos autocráticos.” Aos dez anos, a chamada primavera árabe reinventa-se.

O QUE ACONTECEU

TUNÍSIA — A 14 de janeiro de 2011 Ben Ali fugiu do país, após 28 dias de protestos e 23 anos de poder. Iniciou-se uma transição democrática na qual têm prevalecido o diálogo e a propensão para o consenso. Os militares nunca interferiram.

EGITO — Hosni Mubarak não resistiu à contestação na Praça Tahrir e a Irmandade Muçulmana emergiu da clandestinidade para vencer as primeiras eleições livres. Em 2013, um golpe militar sentenciou os islamitas e devolveu o poder a um homem-forte, o general Sisi.

LÍBIA — Ao fim de 42 anos no poder, Muammar Kadhafi foi morto numa rua de Sirte, quando o país levava meses de protestos. Seguiu-se a guerra civil (que continua, com interferência externa), alimentada pelo carácter tribal da sociedade.

IÉMEN — Acossado pelas ruas, Ali Abdullah Saleh negociou a saída do poder. A rivalidade entre tribos, a existência de grupos separatistas e de um braço da Al-Qaeda alimentaram uma guerra que subsiste, com consequências humanas catastróficas.

SÍRIA — Bashar al-Assad combateu a contestação popular com o fogo das armas, dando origem a uma guerra civil que arrastou vários países da região e não só.

BAHREIN — Os protestos populares foram esmagados com a ajuda dos tanques da vizinha Arábia Saudita, que entrou no país em socorro dos Al-Khalifa.

(FOTOS De cima para baixo e da esquerda para a direita: Protestos no Egito (Praça Tahrir), Tunísia, Líbia, Iémen, Síria e Bahrain (Praça da Pérola) WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 15 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui

Sinais de esperança em conflitos sem fim

Quatro testemunhos recolhidos pelo Expresso descrevem confiança e resiliência em territórios onde parece só haver problemas

A cidade iraquiana de Mosul é possivelmente um dos locais em todo o mundo onde hoje o sentimento de esperança está mais em alta. Vai para sete anos ali foi autoproclamado o infame Estado Islâmico. Libertada do jugo jiadista, a cidade reergue-se agora das cinzas através de uma parceria entre o Governo de Bagdade e a UNESCO, que tem em curso a reconstrução de monumentos e infraestruturas.

Em inícios de março, Mosul estará nas bocas do mundo quando receber o Papa Francisco, naquela que será a primeira viagem apostólica ao estrangeiro em 15 meses. Com esta visita ao Iraque, o Papa levará alento à minoria cristã do Médio Oriente, a região onde nasceu o cristianismo e que tem sido martirizada por sucessivas disputas.

Quatro testemunhos recolhidos pelo Expresso revelam como noutras latitudes turbulentas a confiança num futuro melhor germina, apesar de um presente de grandes dificuldades. Desde o campo de refugiados de Kutupalong, no Bangladesh, o rohingya Faruque conta como um projeto de realização de vídeos sobre o património cultural rohingya, partilhado nos telemóveis, se tornou um promotor de esperança entre o seu povo.

No Sudão, Pedro Matos, funcionário do Programa Alimentar Mundial da ONU, descreve o que o faz sentir-se confiante em relação ao futuro do país. Marta Abrantes Mendes recorda os anseios de paz de iemenitas com quem trabalha, num projeto de reconciliação nacional. E, com a experiência de quem já serviu no Afeganistão, o major-general Carlos Branco acredita que a paz é possível no país dos talibãs.

ROHINGYA
Gravar memórias e acreditar

Vídeos sobre saúde, cultura e educação feitos por refugiados são formas de resiliência

Faruque tem 32 anos e vive há 28 no maior campo de refugiados do mundo. Tinha quatro quando os pais se fizeram à estrada para salvar a família de uma morte certa. Em Myanmar, fugir para o vizinho Bangladesh é, há décadas, a única escapatória para a minoria rohingya (muçulmana), perseguida naquele país de maioria budista.

Hoje, os horizontes de Faruque estão confinados aos limites do campo de Kutupalong, onde vivem mais de 600 mil rohingyas. “Como em Myanmar, não somos autorizados a circular livremente, não temos direito à educação formal nem podemos trabalhar. Numa prisão pode sair-se em liberdade cumprida a sentença, aqui vivemos assim indefinidamente. Mas tenho esperança de que as coisas mudem…”

Com a mesma lucidez com que descreve as limitações de um povo que não é plenamente reconhecido nem mesmo pelo país que o acolhe, Faruque fala de um projeto que o move diariamente: a Rohingya Film School. Criada no início do ano pelo irmão mais novo, Omar, que colaborava com órgãos de informação como a BBC e que morreu em maio, aos 21 anos, de ataque cardíaco, esta escola nasceu com um duplo objetivo: dar formação a jovens na área da fotografia e do vídeo e registar em som e imagem a herança cultural dos rohingyas.

Com a covid-19, o projeto (rebatizado de Omar’s Film School) tornou-se também um agente de saúde pública. “Com a pandemia, o acesso ao campo dos trabalhadores humanitários ficou limitado. Os refugiados ficaram numa situação ainda mais trágica. Começaram a circular rumores de que quem apanhasse covid-19 seria morto ou levado para uma ilha remota. Muitas pessoas não queriam ser testadas.”

Os voluntários começaram então a fazer vídeos sobre práticas higiénicas e cuidados a ter face ao vírus e a partilhá-los através do telefone. Hoje, fazem filmes sobre saúde, património, cultura, educação, para além de promoverem atividades da ONU e de ONG.

Para Faruque, trabalhar no projeto é uma forma de homenagear o irmão e de lutar pelo futuro da filha, de três anos. “Tenho esperança de que chegue o tempo em que eu viva num lugar a que possa chamar lar, a minha filha seja matriculada numa escola e as nossas capacidades sejam reconhecidas.”

SUDÃO
Resiliência a muitas guerras

Pais poupam para os filhos irem à escola. Os sudaneses acreditam no futuro

Os 12 anos que Pedro Matos leva de experiência humanitária apuraram-lhe a perceção na hora de identificar sinais de esperança em países devastados pela guerra. É o caso do Sudão, onde trabalha como coordenador para a digitalização do Programa Alimentar Mun­dial (PAM), a agência da ONU que recebeu o Nobel da Paz 2020. “O povo sudanês é incrivelmente resiliente. Vemos sinais disso por todo o lado, desde pais que poupam o que têm para manter os filhos na escola, onde eles nunca puderam ir, até à esperança dessas crianças, que vão para escolas remotas do Darfur com t-shirts esfarrapadas e sonham ser médicos ou advogados.”

O português realça também “a quantidade de mulheres em cargos de gestão por todo o país em associações locais e nos Ministérios da Educação ou da Saúde”. E simboliza esse ativismo no feminino na figura de Hawa Salih, que lidera uma rede de organizações de base comunitária em El Fasher, na região do Darfur. “É uma força da natureza, trabalha incansavelmente para montar projetos de emprego para milhares de mulheres em coisas tão diversas como o fabrico de tijolos até plantações de árvores para combater o avanço do deserto.”

Arrasado por várias guerras desde a independência, inundações históricas este ano e um aumento dos preços dos alimentos de 700% nos últimos cinco anos, o Sudão tem no PAM um parceiro crucial: presta assistência alimentar a 6,5 milhões de pessoas, promove projetos de ‘comida por trabalho’, apoia agricultores, fornece refeições escolares e investe na prevenção e tratamento da desnutrição.

AFEGANISTÃO
Talibãs fazem parte da solução

Em 2021, passam 20 anos sobre o início da guerra. Governo e talibãs estão em diálogo

A5 de janeiro, o reinício das conversações de paz entre o Governo afegão e os talibãs devolve esperança ao futuro do país. “Se por futuro entendermos instauração de uma democracia liberal, então seguramente não teremos futuro”, alerta o major-general Carlos Branco, que foi porta-voz da força internacional no Afeganistão em 2007 e 2008. “Mas há outros futuros possíveis, sem vio­lência e com paz. Tudo dependerá da solução política e da fórmula governativa que forem negociadas, que terão inevitavelmente de contar com a participação dos talibãs.”

“Quanto menor for a ingerência internacional neste processo, melhor, em particular das potências regionais.” Porém, “quaisquer que sejam as soluções adotadas, terão de ter em conta os interesses das grandes potências, em particular dos EUA. O que significa para os talibãs respeitar o compromisso de não manterem relações com a Al-Qaeda e não permitirem que o território seja utilizado por organizações terroristas”.

IÉMEN
Vozes que anseiam por paz

Os estereótipos reduzem-no a um país sem solução. Mas é importante ouvir os iemenitas

Marta Abrantes Mendes trabalha a partir do Líbano num projeto sobre reconciliação nacional e justiça transicional no Iémen, país do qual se diz ser a pior crise humanitária do mundo. Desenvolve, pois, grande parte do seu trabalho ao telefone, a falar com iemenitas.

“Ouvi representantes da sociedade civil sobre memória, necessidade de reconciliação e justiça social e vias de responsabilização pelas violações registadas durante o conflito. Algumas conversas duravam mais de duas horas e o quadro que se desenhou foi de um país com um grande ensejo de encontrar paz e encerrar os ciclos contínuos de violência de grande parte da sua história contemporânea.”

Marta incomoda-se com as representações externas em relação ao Iémen. “São sempre muito contundentes, como se não houvesse volta a dar. Tudo seria mais fácil se o palco fosse ocupado por iemenitas.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 31 de dezembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Sinais de esperança em conflitos sem fim

Quatro testemunhos recolhidos pelo Expresso descrevem confiança e resiliência em territórios onde parece só haver problemas

O empreendedorismo das mulheres é uma arma para o futuro do Sudão FOTO PEDRO MATOS / PAM

A cidade iraquiana de Mosul é possivelmente um dos locais em todo o mundo onde hoje o sentimento de esperança está mais em alta. Vai para sete anos ali foi autoproclamado o infame Estado Islâmico. Libertada do jugo jiadista, a cidade reergue-se agora das cinzas através de uma parceria entre o Governo de Bagdade e a UNESCO, que tem em curso a reconstrução de monumentos e infraestruturas.

Em inícios de março, Mosul estará nas bocas do mundo quando receber o Papa Francisco, naquela que será a primeira viagem apostólica ao estrangeiro em 15 meses. Com esta visita ao Iraque, o Papa levará alento à minoria cristã do Médio Oriente, a região onde nasceu o cristianismo e que tem sido martirizada por sucessivas disputas.

Quatro testemunhos recolhidos pelo Expresso revelam como noutras latitudes turbulentas a confiança num futuro melhor germina, apesar de um presente de grandes dificuldades. Desde o campo de refugiados de Kutupalong, no Bangladesh, o rohingya Faruque conta como um projeto de realização de vídeos sobre o património cultural rohingya, partilhado nos telemóveis, se tornou um promotor de esperança entre o seu povo.

No Sudão, Pedro Matos, funcionário do Programa Alimentar Mundial da ONU, descreve o que o faz sentir-se confiante em relação ao futuro do país. Marta Abrantes Mendes recorda os anseios de paz de iemenitas com quem trabalha, num projeto de reconciliação nacional. E, com a experiência de quem já serviu no Afeganistão, o major-general Carlos Branco acredita que a paz é possível no país dos talibãs.

ROHINGYA — Gravar memórias e acreditar

Vídeos sobre saúde, cultura e educação feitos por refugiados são formas de resiliência

Faruque tem 32 anos e vive há 28 no maior campo de refugiados do mundo. Tinha quatro quando os pais se fizeram à estrada para salvar a família de uma morte certa. Em Myanmar, fugir para o vizinho Bangladesh é, há décadas, a única escapatória para a minoria rohingya (muçulmana), perseguida naquele país de maioria budista.

Hoje, os horizontes de Faruque estão confinados aos limites do campo de Kutupalong, onde vivem mais de 600 mil rohingyas. “Como em Myanmar, não somos autorizados a circular livremente, não temos direito à educação formal nem podemos trabalhar. Numa prisão pode sair-se em liberdade cumprida a sentença, aqui vivemos assim indefinidamente. Mas tenho esperança de que as coisas mudem…”

Com a mesma lucidez com que descreve as limitações de um povo que não é plenamente reconhecido nem mesmo pelo país que o acolhe, Faruque fala de um projeto que o move diariamente: a Rohingya Film School. Criada no início do ano pelo irmão mais novo, Omar, que colaborava com órgãos de informação como a BBC e que morreu em maio, aos 21 anos, de ataque cardíaco, esta escola nasceu com um duplo objetivo: dar formação a jovens na área da fotografia e do vídeo e registar em som e imagem a herança cultural dos rohingyas.

Com a covid-19, o projeto (rebatizado de Omar’s Film School) tornou-se também um agente de saúde pública. “Com a pandemia, o acesso ao campo dos trabalhadores humanitários ficou limitado. Os refugiados ficaram numa situação ainda mais trágica. Começaram a circular rumores de que quem apanhasse covid-19 seria morto ou levado para uma ilha remota. Muitas pessoas não queriam ser testadas.”

Os voluntários começaram então a fazer vídeos sobre práticas higiénicas e cuidados a ter face ao vírus e a partilhá-los através do telefone. Hoje, fazem filmes sobre saúde, património, cultura, educação, para além de promoverem atividades da ONU e de ONG.

Para Faruque, trabalhar no projeto é uma forma de homenagear o irmão e de lutar pelo futuro da filha, de três anos. “Tenho esperança de que chegue o tempo em que eu viva num lugar a que possa chamar lar, a minha filha seja matriculada numa escola e as nossas capacidades sejam reconhecidas.”

SUDÃO — Resiliência a muitas guerras

Pais poupam para os filhos irem à escola. Os sudaneses acreditam no futuro

Os 12 anos que Pedro Matos leva de experiência humanitária apuraram-lhe a perceção na hora de identificar sinais de esperança em países devastados pela guerra. É o caso do Sudão, onde trabalha como coordenador para a digitalização do Programa Alimentar Mundial (PAM), a agência da ONU que recebeu o Nobel da Paz 2020. “O povo sudanês é incrivelmente resiliente. Vemos sinais disso por todo o lado, desde pais que poupam o que têm para manter os filhos na escola, onde eles nunca puderam ir, até à esperança dessas crianças, que vão para escolas remotas do Darfur com t-shirts esfarrapadas e sonham ser médicos ou advogados.”

O português realça também “a quantidade de mulheres em cargos de gestão por todo o país em associações locais e nos Ministérios da Educação ou da Saúde”. E simboliza esse ativismo no feminino na figura de Hawa Salih, que lidera uma rede de organizações de base comunitária em El Fasher, na região do Darfur. “É uma força da natureza, trabalha incansavelmente para montar projetos de emprego para milhares de mulheres em coisas tão diversas como o fabrico de tijolos até plantações de árvores para combater o avanço do deserto.”

Arrasado por várias guerras desde a independência, inundações históricas este ano e um aumento dos preços dos alimentos de 700% nos últimos cinco anos, o Sudão tem no PAM um parceiro crucial: presta assistência alimentar a 6,5 milhões de pessoas, promove projetos de ‘comida por trabalho’, apoia agricultores, fornece refeições escolares e investe na prevenção e tratamento da desnutrição.

IÉMEN — Vozes que anseiam por paz

Os estereótipos reduzem-no a um país sem solução. Mas é importante ouvir os iemenitas

Marta Abrantes Mendes trabalha a partir do Líbano num projeto sobre reconciliação nacional e justiça transicional no Iémen, país do qual se diz ser a pior crise humanitária do mundo. Desenvolve, pois, grande parte do seu trabalho ao telefone, a falar com iemenitas.

“Ouvi representantes da sociedade civil sobre memória, necessidade de reconciliação e justiça social e vias de responsabilização pelas violações registadas durante o conflito. Algumas conversas duravam mais de duas horas e o quadro que se desenhou foi de um país com um grande ensejo de encontrar paz e encerrar os ciclos contínuos de violência de grande parte da sua história contemporânea.”

Marta incomoda-se com as representações externas em relação ao Iémen. “São sempre muito contundentes, como se não houvesse volta a dar. Tudo seria mais fácil se o palco fosse ocupado por iemenitas.”

AFEGANISTÃO — Talibãs fazem parte da solução

Em 2021, passam 20 anos sobre o início da guerra. Governo e talibãs estão em diálogo

A 5 de janeiro, o reinício das conversações de paz entre o Governo afegão e os talibãs devolve esperança ao futuro do país. “Se por futuro entendermos instauração de uma democracia liberal, então seguramente não teremos futuro”, alerta o major-general Carlos Branco, que foi porta-voz da força internacional no Afeganistão em 2007 e 2008. “Mas há outros futuros possíveis, sem violência e com paz. Tudo dependerá da solução política e da fórmula governativa que forem negociadas, que terão inevitavelmente de contar com a participação dos talibãs.”

“Quanto menor for a ingerência internacional neste processo, melhor, em particular das potências regionais.” Porém, “quaisquer que sejam as soluções adotadas, terão de ter em conta os interesses das grandes potências, em particular dos EUA. O que significa para os talibãs respeitar o compromisso de não manterem relações com a Al-Qaeda e não permitirem que o território seja utilizado por organizações terroristas”.

Artigo publicado no “Expresso”, a 31 de dezembro de 2020

Mubarak morreu em paz. O que aconteceu aos outros líderes que combateram a “Primavera Árabe”?

Dos seis líderes que enfrentaram os principais palcos de contestação da chamada Primavera Árabe, apenas dois continuam vivos, e ambos no poder. Um graças ao apoio de um dos pesos pesados do Médio Oriente, outro após um banho de sangue que dura há quase nove anos

Hosni Mubarak, Presidente do Egito entre 1981 e 2011 THIERRY EHRMANN / CREATIVE COMMONS

A morte do antigo líder egípcio Hosni Mubarak, conhecida na terça-feira, foi o culminar da lenta agonia de um homem que chegou a ser tratado, ainda que em sentido figurado, pelo título de “faraó”. No poder entre 1981 e 2011, foi o Presidente que mais tempo governou o Egito, até os ventos da mudança que varreram o Médio Oriente — o movimento da “Primavera Árabe” — chegarem também ao Cairo. Durante 18 dias, ignorou os apelos à demissão que saíam da Praça Tahrir, mas acabou deposto, a 11 de fevereiro de 2011.

Diante da Justiça, teve de responder por crimes relacionados com corrupção, abuso de poder e o assassínio de manifestantes, mas raramente abriu a boca. A fragilidade com que aparecia em tribunal — deitado numa cama de hospital, dentro de uma gaiola e de óculos escuros — foi a suprema humilhação para quem se julgara intocável à frente de um país que fora outrora uma das grandes civilizações universais. Foi condenado a prisão perpétua, depois absolvido e libertado a 24 de março de 2017, mas a saúde não deu trégua. Morreu aos 91 anos, com a imagem de um homem irredutível em sair do poder quando não era mais desejado, mas também de um grande comandante da Força Aérea na guerra israelo-árabe de 1973 e da nostalgia de um país estável e cheio de turistas.

TUNÍSIA: ZINE EL ABIDINE BEN ALI

Foi na Tunísia que a “Primavera Árabe” começou e foi o seu líder também o primeiro a cair, ao 28º dia de protestos. A 14 de janeiro de 2011, numa corrida contra o relógio, Ben Ali passou o poder “temporariamente” para o seu primeiro-ministro e fugiu do país, com a mulher, Leila, e os três filhos. Após a França negar autorização de aterragem ao seu avião, rumou à cidade saudita de Jeddah, onde um outro ditador, o ugandês Idi Amin, viveu os últimos dias.

No seu exílio saudita, Ben Ali escapou ao mandado internacional de prisão, mas não à justiça tunisina. A 20 de junho de 2011, o ex-casal presidencial foi condenado “in absentia” a 35 anos de prisão por roubo e posse ilegal de dinheiro e joias. Ben Ali morreu a 19 de setembro de 2019, de cancro na próstata, num hospital de Jeddah e foi enterrado na cidade de Medina. Tinha 83 anos.

LÍBIA: MUAMMAR KADHAFI

A revolução na Líbia levava oito meses nas ruas quando, a 20 de outubro de 2011, Muammar Kadhafi tombou às mãos dos seus — tinha 69 anos de idade. Linchado numa rua de Sirte, o último reduto das forças que lhe eram leais, terminava de forma inglória 42 anos de poder absoluto. Ruía também o sonho de um país único, cuja estrutura política e forma de governo ele próprio idealizara no famoso “Livro Verde”, uma espécie de Constituição, publicado em 1975 e distribuído pelas embaixadas líbias nos quatro cantos do mundo. Hoje, apesar da estabilidade continuar a ser uma miragem no país — e as milícias armadas um grande desafio à paz —, o Livro não passa de uma peça de coleção e Kadhafi um líder que desperta sentimentos contrários na Líbia.

IÉMEN: ALI ABDULLAH SALEH

Abandonou o poder pelo próprio pé ainda que pressionado por dez meses de manifestações populares no Iémen. A 23 de novembro de 2011, em Riade, Ali Abdullah Saleh assinou um acordo de transferência de poder para o seu vice-presidente. Em troca, obteve imunidade para si e para a família, suspeita de enriquecimento à custa do erário de um dos países mais pobres do mundo.

Com a justiça dos tribunais de mãos atadas, vingou a justiça das ruas. A 4 de dezembro de 2017, Saleh foi assassinado nos arredores de Sana quando, após uma emboscada, tentava chegar de carro a território controlado pelos sauditas. Não chegou ao seu destino, atingido mortalmente por um “sniper” dos rebeldes houthis. Estes — que controlavam e ainda controlam a capital — são antigos aliados contra quem Saleh apelara à revolta dois dias antes de ser morto, aos 70 anos.

SÍRIA: BASHAR AL-ASSAD

Aos 54 anos, Bashar al-Assad faz jus ao seu nome de família e resiste no poder, em Damasco, como um leão (“assad”, em árabe). Dos quase 20 anos que o líder sírio leva no poder, metade foram vividos a defender-se, no contexto de uma guerra civil iniciada em março de 2011 e alimentada por uma componente jiadista (Daesh e Al-Qaeda) e por muitos interesses geopolíticos.

O conflito resultou da repressão com que Bashar respondeu aos protestos da “Primavera Árabe” a que os sírios achavam que também teriam direito e que em Tunis e no Cairo já tinham resultado em revoluções. O sírio sobreviveu politicamente mas hoje, no estrangeiro, poucas capitais estão dispostas a estender-lhe a passadeira, para além dos aliados Rússia e Irão. Entre milhares de mortos e milhões de refugiados, “a Síria é a grande tragédia deste século”, disse António Guterres, quando ainda era Alto Comissário da ONU para os Refugiados. Bashar al-Assad é o rosto dessa grande catástrofe.

BAHRAIN: HAMAD BIN ISA AL-KHALIFA

Era uma revolução condenada à nascença, ainda assim uma fatia importante da população do Bahrain não quis deixar de ir à luta. Maioritariamente xiitas, os habitantes deste pequeno reino ribeirinho ao Golfo Pérsico são governados por uma monarquia sunita. Por essa razão quando, em fevereiro de 2011, se viu acossado por manifestações antirregime em Manama, o rei Hamad bin Isa al-Khalifa apressou-se a pedir ajuda à vizinha Arábia Saudita (o gigante sunita da região), que ajudou a conter a rebelião enviando tropas e tanques. O eventual sucesso de uma revolta xiita na Península Arábica causava calafrios aos sauditas pelo significado que teria para o rival Irão (o gigante xiita), do outro lado do Golfo.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 26 de fevereiro de 2020. Pode ser consultado aqui

As 20 perguntas para 2020 (de Trump ao Brexit, de Lula a Hong Kong)

Alguns dos principais temas que dominaram a agenda noticiosa internacional de 2019 transitam para o novo ano sem uma evolução clara. Da incerteza do Brexit à imprevisibilidade da Coreia do Norte, das indefinições políticas em Espanha e Israel à contestação popular nas ruas nos quatro cantos do mundo

Donald Trump irá ser reeleito ou destituído?

É certo que o 45.º Presidente dos Estados Unidos vai enfrentar o Senado num julgamento onde se decidirá se é ou não destituído do cargo. Isto porque a Câmara dos Representantes já aprovou dois artigos de impeachment: obstrução ao Congresso e abuso de poder. Tudo indica, porém, que a maioria republicana no Senado vai segurá-lo (teria de haver 20 senadores a virar a casaca para alcançar os dois terços que a destituição exige). Economia robusta, promessas cumpridas e uma base de apoio quase intacta, além de não haver opositor óbvio, dão-lhe francas possibilidades de ser reeleito em 2020.

A tensão vai regressar à península da Coreia?

Muito possivelmente. A boa relação entre Donald Trump e Kim Jong-un tem vindo a degradar-se indisfarçavelmente. A Coreia do Norte deu um ultimato aos EUA para que, até ao final deste ano, recompensem as suas demonstrações de boa fé e levantem sanções económicas. Se isso não acontecer, Pyon­gyang ameaça retomar os testes com armas nucleares, uma dinâmica militar que em 2017 colocou o mundo em alerta máximo, receoso de nova guerra na península coreana.

O ‘Brexit’ vai mesmo acontecer?

Vai. A maioria conquistada pelo Partido Conservador a 12 de dezembro é um mandato democrático que mata o sonho de impedir a saída do Reino Unido da UE. Esta acontece no próximo dia 31 de janeiro, às 23 horas (meia-noite em Bruxelas), data consagrada em lei e confirmada com a aprovação do acordo de saída de Boris Johnson, que também proíbe prolongamentos do período de transição para lá do final de 2020. Depois da saída restarão, pois, 11 meses para negociar uma nova relação com os 27, que, dirão alguns, é o verdadeiro critério para se dizer que o ‘Brexit’ está concluído. O primeiro-ministro assegura que irá conseguir.

A China vai ceder às exigências dos manifestantes em Hong Kong?

A algumas, pelo menos. De outra forma os manifestantes continuarão nas ruas. Há atual­mente quatro exigências por cumprir por parte do Executivo local. Se uma delas — a eleição do Chefe de Governo por sufrágio direto e universal — é complicada, por implicar alterações de fundo à dinâmica política do território, já a amnistia aos manifestantes presos ou a alteração da retórica do Governo, para o qual os protestos são “motins”, pode ser mais fácil de concretizar. Resta saber se são cedências suficientes para acalmar as ruas.

Macau vai deixar de ser um território pacífico?

Dependerá muito da permeabilidade do Governo de Macau — que vive sob a fórmula “um país, dois sistemas” — a eventual legislação pró-Pequim, como aconteceu em Hong Kong com a lei da extradição, que espoletou as manifestações em curso. Dependerá também, em menor grau, da evolução da situação em Hong Kong. Em agosto, a PSP de Macau não autorizou uma concentração convocada para condenar a violência policial em Hong Kong porque poderia “passar a mensagem errada à sociedade”.

Os protestos dos Coletes Amarelos irão acabar?

“Info alerta: Macron não vai abandonar o projeto de reforma das reformas”, lia-se a 18 de dezembro no “GJ Magazine”, órgão central dos manifestantes que desde outubro de 2018 desafiam o Governo francês nas ruas de todo o país. Declaram “inaceitável a violência da polícia a mando de Macron e Castaner” [Christophe Castaner, ministro do Interior] e prometem que “as pessoas vão invadir o Eliseu e ejetar Macron”. A violência dos confrontos com a polícia escalou ao longo do tempo e nas manifestações mais recentes, convocadas contra a proposta presidencial para as reformas, os Coletes Amarelos contaram com o apoio de todos os sindicatos, mesmo os que até agora tinham permanecido do lado do Executivo.

Israel vai conseguir formar Governo?

Vai tentar, pelo menos. A 2 de março, o país realizará as suas terceiras eleições legislativas em menos de um ano, sem que as duas anterio­res (em abril e setembro) tenham resultado na formação de um Executivo. Nem Benjamin Netanyahu (de direita) — o israelita que mais tempo leva como primeiro-ministro — nem Benny Gantz (centrista) tiveram argumentos para constituir uma coligação maioritária. O eleitorado israelita está muito dividido, pelo que a manutenção do atual xadrez partidário poderá indiciar a continuação do bloqueio.

O Irão vai retomar o programa nuclear?

Já retomou, ainda que não tenha rasgado o acordo internacional de 2015 que limita as suas atividades nucleares. A retirada dos EUA desse pacto e a reintrodução de sanções económicas decretadas por Donald Trump colocaram Teerão na posição de contra-ataque. Atividades recentes em reatores nucleares iranianos fazem temer o pior, ainda que no contexto atual soem mais como forma de pressão sobre a União Europeia, a quem o Irão exige rotas alternativas àquelas penalizadas pelos EUA para poder vender o seu petróleo. Apesar do sufoco económico, é de prever que Teerão encare 2020 com paciência, na esperança de que em novembro o inquilino da Casa Branca seja substituído.

Os sauditas pararão os bombardeamentos no Iémen?

Não é expectável. A Arábia Saudita desencadeou essa ofensiva militar com o objetivo de derrotar os huthis e entregar o poder ao Presidente reconhecido internacionalmente, mas os rebeldes (aliados do Irão), que controlam a capital, não dão mostras de desgaste. Esta situação pode eternizar-se, refém de um conflito maior entre os dois gigantes do Médio Oriente (Arábia Saudita e Irão), que têm no Iémen uma frente (indireta) de batalha.

Merkel vai governar até ao final do mandato, em 2021?

A tendência para ler os acontecimentos políticos na Alemanha como ameaça à longevidade do quarto mandato da chanceler tem sido prática corrente desde que a GroKo (grande coligação) tomou posse, em janeiro de 2018, após as negociações entre os partidos mais votados nas eleições de 24 de setembro de 2017. A perda de eleitorado dos dois partidos do Governo nas eleições regionais (os democratas-cristãos da CDU e os sociais-democratas do SPD) tem sido crescente e a convulsão interna e crise de liderança do SPD têm contribuído para a fragmentação dos votos. A dificuldade de projetar um futuro político sem Merkel ajuda a desenvolver cenários catastróficos, não consentâneos com o ADN da república desde 1947.

Os protestos pelo clima irão radicalizar-se?

Há quem defenda que a Extinction Rebellion já contém no nome a potência para a radicalização. O movimento foi criado há pouco mais de um ano, em Londres, e espalhou-se depressa por todo o mundo, com a adesão de milhões de pessoas. Rebelião implica oposição. Se os objetivos reivindicados em defesa do planeta vierem a ser sistematicamente ignorados, é bem possível que os métodos dos ativistas conheçam uma escalada. Cada movimento com o seu método, todos contribuem para uma consciência coletiva que não tem retorno. O #FridaysForFuture, por exemplo, originou um diálogo intergeracional até agora inexistente. Há milhões de pessoas empenhadas, que poderão vir a ficar frustradas.

A rainha Isabel II vai ceder o trono ao herdeiro?

Só se morrer. A jubilação de monarcas de idade avançada, verificada em anos recentes em Espanha, Bélgica ou Holanda, não é tradição no Reino Unido. Ali, abdicação é termo que evoca a crise de 1936, quando Eduardo VIII, tio da atual rainha, prescindiu do trono para casar com a mulher que amava, e que o sistema rejeitava por se tratar de uma americana divorciada. Aos 93 anos, Isabel II vai calmamente passando deveres públicos aos filhos e até aos netos (não faz, por exemplo, viagens intercontinentais), sobretudo ao herdeiro Carlos, mas mantém-se em plenas funções e é a maior referência do país. Em situação de incapacidade por doença, tal como para o caso de monarcas menores de idade, estão previstos mecanismos de regência.

A UE vai conseguir marcar pontos na regulação da proteção de dados?

A pessoa escolhida pela Comissão Europeia para trabalhar a transição digital é nada menos que Margrethe Vestager, ex-comissária para a concorrência, que vê reforçados os seus poderes como vice-presidente executiva e que vai coordenar toda a política da UE para preparar a era digital. Mantém funções na área da concorrência, na qual, na última legislatura, se transformou numa espécie de pop star planetária ao desafiar o direito dos gigantes tecnológicos à isenção de contribuições. Vestager é a protagonista de um dos maiores desafios que enfrenta a atual Comissão Europeia: recuperar o tempo perdido na adaptação do mercado à era digital, tirar o máximo partido da inteligência artificial e dos grandes volumes de dados, melhorar a cibersegurança “e garantir a todo o custo a nossa soberania tecnológica”, protegendo os direitos dos cidadãos. No panorama mundial, a UE tem meios para o fazer e tem oportunidade de fazer a diferença.

A China e a Rússia vão continuar a aumentar o seu poder em África?

A Rússia é alvo de sanções da UE e dos EUA, o que a leva a investir cada vez mais nas trocas comerciais com os países africanos. A energia nuclear para produção de eletricidade está no topo dos investimentos de Moscovo nalguns deles, como foi abordado na Cimeira Rússia-África, em Sochi, em outubro. Em 2016 a Rússia fez um acordo com a Zâmbia para apoiar o desenvolvimento deste sector, está a financiar mais de 80% dos fundos para construir a segunda central nuclear do continente — no Egito —, que vai custar mais de €22,5 mil milhões. A China é o maior credor de África e continua a apostar neste mercado em crescimento. Recorde-se que nos primeiros 17 anos deste século as autoridades de Pequim emprestaram cerca de €130 mil milhões a países e empresas africanas.

O novo Governo de Espanha vai passar e durar?

Primeiro, é preciso que exista. Sem maioria absoluta, o socialista Pedro Sánchez, vencedor das legislativas de 10 de novembro, procura apoios. Ao pacto firmado com a aliança esquerdista Unidos Podemos (de Pablo Igle­sias) deverá somar o apoio de vários partidos regionais, entre os quais é indispensável a Esquerda Republicana da Catalunha. Isso abre um dossiê complexo, sobretudo se esta força independentista fizer exigências incompatíveis com a Constituição, que não permite a realização de um referendo sobre a questão catalã (nem Pedro Sánchez o deseja). Do outro lado, a direita (Partido Popular, Ciudadanos e Vox) extrema o discurso sobre a unidade de Espanha. Se lograr formar um Executivo, a estabilidade do mesmo será bem mais difícil de assegurar do que, por exemplo, o da lusitana ‘geringonça’.

A nova Comissão Europeia vai apoiar refugiados e migrantes?

Apoiar, por exemplo, através de ajudas financeiras aos países que mais lidam com a situação (€2 milhões adicionais vão ser entregues à Bósnia-Herzegovina), sim; mas a UE não irá pressionar Estados-membros como a Hungria ou a República Checa a aceitarem mais pessoas nem abandonar as muito criticadas colaborações com a Turquia ou a Líbia no sentido de conter o fluxo de migrantes. Entre as prioridades da nova Comissão está a “instituição de um novo sistema de candidatura a asilo”, “continuar a salvar vidas e a deter os fluxos” e “mais ajuda à integração”.

João Lourenço conseguirá lidar com a crise angolana?

É muito difícil. João Lourenço lidera um país de desigualdades gritantes, onde a desvalorização do kwanza faz disparar a dívida, onde o abanão económico dizimou 300 mil postos de trabalho em três meses e onde muitas famílias não têm dinheiro para comprar o básico. O plano do Presidente passa pela industrialização do país, porque “a população está cansada da simples exploração e exportação dos seus recursos minerais em estado bruto”, disse no Fórum Económico Rússia-África, e pela alienação de quase 200 empresas públicas.

Lula da Silva permanecerá em liberdade?

O futuro do ex-Presidente do Brasil só ficará decidido depois de os seis processos que ainda correm na justiça transitarem em julgado. A decisão do Supremo Tribunal de Justiça — que decretou a libertação de Lula em novembro, por considerar que a prisão só deve ocorrer depois de terem sido esgotados todos os recursos — deve prevalecer até à resolução destes seis processos. No entanto, é preciso estar atento ao futuro do ministro da Justiça, Sergio Moro, o juiz que ganhou fama no combate à corrupção e que teve um papel determinante na fase inicial do processo Lava Jato. Os seus pares, incluindo Deltan Dallagnol, continuam sem conseguir perceber porque é que Moro aceitou ser ministro de Jair Bolsonaro. Tanto ou mais do que o caso Lula, o desfecho da investigação sobre o assassínio de Marielle Franco pode ensombrar a governação de Moro.

A onda de protestos na América do Sul vai continuar?

É um subcontinente cheio de recursos naturais, mas política e socialmente volátil. A onda de protestos que se iniciou no Chile e já chegou à Colômbia, passando pelo Haiti, Equador e Bolívia, é um rastilho que ainda não ardeu todo. James Bosworth, analista de risco político, escreveu na “Business Insider” que os motivos que levaram aos protestos não se esgotaram nestes primeiros meses de sobressaltos e as ruas podem até ficar mais violentas em 2020: “Os cidadãos de muitos países da América Latina estão zangados com os seus sistemas políticos, com a corrupção, com a falta de segurança, com o crescimento económico baixo, a desigualdade e o custo de vida crescente.”

O Papa Francisco vai avançar mais na ordenação de casados?

A resposta mais provável é não. Mas tudo depende do documento a ser divulgado até ao final deste ano, ou já em 2020, com a interpretação de Francisco sobre a ordenação de homens casados, dando sequência ao relatório aprovado no Sínodo da Amazónia. Esta proposta estipula que sejam pessoas respeitadas e reconhecidas pela comunidade da região, de preferência indígenas. A ordenação de casados no contexto da especificidade da geografia amazónica pode até avançar, mas resta saber se a interpretação do Papa abre espaço para que a prática seja alargada a outras latitudes do catolicismo. Com o objetivo de incentivar e promover a participação feminina na igreja, foi defendida no sínodo a valorização do papel da mulher, tendo levado o Papa a reabrir a comissão de peritos que estuda o diaconado feminino na história da Igreja.

Texto escrito com Ana França, Cristina Peres, Manuela Goucha Soares e Pedro Cordeiro.

Artigo publicado no “Expresso”, a 28 de dezembro de 2019. Pode ser consultado aqui