Arquivo de etiquetas: Índia

17 respostas para 2023: da guerra na Ucrânia aos protestos na China e no Irão, passando por epidemias e acordos globais

Podemos prever o futuro? Provavelmente não, tal como não escapamos a apostar no desenvolvimento dos temas que acompanhamos ao longo do ano. Aqui ficam as respostas da equipa do Internacional às perguntas que colocaram por si, leitor

1 A Guerra na Ucrânia vai acabar?
Sem vontade de procurar uma solução diplomática, a guerra só pode terminar no terreno com uma conquista suficientemente esmagadora (ou, no caso da Ucrânia, uma reconquista) que obrigue o outro lado a capitular ou a aceitar negociações de paz. O Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, diz que a paz pressupõe que a Rússia entregue a Kiev todos os territórios anexados desde 2014, o que é pouco realista. Do lado russo continuam os ultimatos e ameaças. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov, disse que a Ucrânia tem de completar o processo de “desnazificação e desmilitarização”, ou “o assunto será resolvido pelo exército russo”.

2 A próxima COP (28) conseguirá um acordo de redução dos combustíveis fósseis?
O elefante no meio da sala das conferências globais das Nações Unidas para o Clima permanece a ausência de acordo para a redução das emissões de gases com efeito de estufa de modo a impedir que o aumento da temperatura média do planeta ultrapasse os 1,5º, o que já é uma irrealidade em si. A vitória da COP27 foi o reconhecimento das “perdas e danos” e “falar-se” em indemnizações para os países mais prejudicados pelas ondas de calor prolongadas, secas agudas prolongadas, subida do nível da água do mar, acidificação dos oceanos, incêndios selvagens, inundações bíblicas e extinção de espécies no chamado Sul global. O lóbi dos combustíveis fósseis não perdeu ainda terreno.

3 Lula da Silva vai governar o Brasil à esquerda?
O homem que, pela terceira vez, toma posse como Presidente a 1 de janeiro tem de privilegiar as políticas sociais e ambientais para cumprir as promessas feitas na campanha eleitoral. O grande desafio do novo Governo é conseguir atribuir verbas para a Cultura, Educação, Saúde e Ambiente – sobretudo no combate ao desmatamento da Amazónia – e manter o equilíbrio das contas públicas para evitar uma escalada inflacionista. A resposta executiva passa, em boa parte, pelo trabalho dos futuros titulares da pasta da Fazenda, Fernando Haddad, e da pasta do Planeamento, Simone Tebet.

4 Cyril Ramaphosa é destituído da presidência da África do Sul?
Em 13 de dezembro, Cyril Ramaphosa sobreviveu a um voto de destituição na Assembleia Nacional pedido pelos partidos da oposição. O Presidente da República e do ANC, que sucedeu a Jacob Zuma após escândalos de corrupção sem precedentes e captura do Estado, prometeu voltar a pôr o país nos eixos. Porém viu-se envolvido num processo cujas acusações combate ainda em tribunal, o qual pode vir a acusar Ramaphosa de “má conduta e violação da Constituição”. Ainda que tenha vencido até agora, o ANC, tem perdido eleitores em cada eleição desde 1994. Por enquanto, Ramaphosa conta com o apoio do ANC para limpar o seu nome sem perder a credibilidade política. Até quando, se 2023 é ano de eleições gerais?

5 Como vai acabar a revolta no Irão?
Os protestos já contam mais de 100 dias e as imagens que nos chegam do Irão mostram que as pessoas continuam a acorrer às ruas apesar dos castigos aplicados serem cada vez mais severos. Pelo menos 506 pessoas já perderam a vida e outras 40 aguardam execução, segundo uma investigação da CNN. Sem liderança coesa e com este nível de repressão, tortura, prisão e morte é pouco provável que a liderança dos aiatolas venha a ser derrubada, porém os iranianos dizem que algumas mudanças já são visíveis nas ruas. Um exemplo é a recusa de muitas mulheres em usar o lenço sobre os cabelos.

6 O regime chinês vai ceder aos protestos?
Semanas depois de o Presidente Xi Jinping assumir um terceiro mandato na liderança do Partido Comunista da China emergiram protestos em várias cidades do país contra a política de ‘zero casos’ de covid-19. Foram a maior demonstração pública de descontentamento desde o massacre de Tiananmen em 1989. A ida à rua parece ter resultado. Várias medidas foram relaxadas no seu seguimento e demonstrou a capacidade da população em manifestar-se apesar da censura existente no país. No entanto, é incerto quais são as políticas estatais que podem vir a gerar oposição com esta capacidade de mobilização.

7 As pandemias e vírus assustadores vieram para ficar?
O risco de novas epidemias é certo e os especialistas alertam os Estados para que tenham respostas enérgicas. Tal como os tsunamis, a covid-19 convenceu da necessidade de sistemas de alerta que permitam detetar os problemas de forma a controlá-los. Antes da Sars-cov-2, a década de 1980 conheceu a sida. Porém, foi “a partir do ano 2000 que se assistiu a uma série de acontecimentos que traduzir a emergência inesperada de fenómenos epidémicos de natureza zoonótica”, como lembra Francisco George, ex-diretor-geral de Saúde de 2005 a 2017, referindo-se a doenças que têm origem em agentes infecciosos que têm animais como reservatório.

8 Erdogan perde a presidência da Turquia?
É possível. Porém não se sabe ainda se é provável, uma vez que a oposição, grande parte dela unida com o único propósito de derrotar Erdogan, ainda não apresentou candidato. As sondagens, contra um opositor desconhecido, dão ao incumbente cerca de 34% das intenções de voto, o mesmo valor atribuído ao seu partido, Justiça e Desenvolvimento (AKP), nas eleições parlamentares, também em 2023, o ano do centenário do país. Não chega para a vitória. O declínio da economia vai ser o tema principal da campanha. Resta saber a quem vai o povo atribuir a culpa.

9 A Itália de Giorgia Meloni vai continuar nas boas graças de Bruxelas?
Giorgia Meloni – líder do partido de extrema-direita Irmãos de Itália – foi eleita primeira-ministra de Itália em setembro. A postura de euroceticismo gerou preocupação, porém Meloni tem procurado acalmar a esfera internacional assumindo um discurso mais moderado. Perante o Parlamento repudiou o fascismo e mostrou oposição a “qualquer forma de racismo”; em viagem a Bruxelas afirmou querer uma defesa dos interesses nacionais “dentro da dimensão Europeia”. A reação foi positiva, com a Presidente da Comissão Europeia a agradecer Meloni pelo “forte sinal” ao escolher Bruxelas como a primeira viagem enquanto líder do governo italiano.

10 A Índia vai continuar a comprar petróleo à Rússia?
É provável. A Rússia tornou-se o principal fornecedor de petróleo da Índia em novembro, com importações a chegarem aos 908 mil barris por dia. As declarações de figuras do governo indiano não sugerem mudanças de rumo. Em dezembro, o ministro dos Negócios Estrangeiros deu a entender que se a Europa pode priorizar as suas necessidades energéticas, não deve pedir à Índia para nao priorizar as suas também. Em outubro, a Assembleia Geral das Nações Unidas votou numa resolução a condenar os referendos ilegais de anexação realizados pela Rússia em territórios da Ucrânia. A Índia foi um dos 35 países a absterem-se.

11 O regime talibã vai ser reconhecido internacionalmente?
Não é de esperar. Os talibãs estão há mais de um ano no poder, o tempo suficiente para que algum país os reconhecesse como governo legítimo. Na década de 1990, quando governaram pela primeira vez, foram reconhecidos por Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Paquistão. Decisões como a recente proibição do acesso das mulheres afegãs às universidades tornam embaraçoso o reconhecimento do regime. A medida foi criticada de forma generalizada, inclusive por países muçulmanos: a Arábia Saudita expressou “espanto e desapontamento” e a Turquia considerou a decisão “nem islâmica nem humana”.

12 O conflito no Nagorno-Karabakh voltará a escalar?
É inevitável. Não há um processo de paz digno desse nome neste conflito que opõe dois países tornados independentes após o desmembramento da União Soviética: a cristã Arménia e o muçulmano Azerbaijão. De um lado e do outro, há apoios importantes que conferem a este conflito, que se arrasta desde finais da década de 1980, uma dimensão geopolítica: a Rússia apoia os arménios e a Turquia os azeris. Esta disputa pelo enclave de Nagorno-Karabakh, no sul do Cáucaso, que oscila entre períodos de guerra aberta e outros de tensão latente, ressente-se muito do estado da relação entre estes dois países.

13 O embargo dos EUA a Cuba vai terminar?
Não é provável, ainda que as razões que sustentam o bloqueio económico à ilha sejam cada vez mais indefensáveis. O embargo dura há décadas basicamente por uma questão de política interna dos EUA. É ponto de honra da imensa comunidade cubana que vive na Florida, que odeia o regime cubano e que, a cada ato eleitoral, vota em função da posição dos partidos / candidatos em relação a Cuba. A eleição de Joe Biden, que não venceu na Florida, prova que o voto cubano não é imprescindível. A nível internacional, os EUA estão praticamente isolados nesta questão: na ONU apenas Israel vota ao seu lado.

14 Ron DeSantis vai entrar na corrida presidencial?
É muito possível. A menos de dois anos das presidenciais de 2024, ele é visto como o republicano melhor posicionado para bater o pé a Donald Trump, que já anunciou que irá disputar as primárias do partido do elefante. O potencial de Ron DeSantis decorre da reeleição como governador da Florida, em novembro, derrotando o candidato democrata com quase 60% dos votos. Entre os republicanos, também o antigo vice-presidente de Trump, Mike Pence, dá cada vez mais sinais de querer aventurar-se na corrida à Casa Branca: lançou um livro e tem-se desdobrado em viagens pelo país, discursos e entrevistas.

15 Isabel dos Santos pode ir parar à prisão?
Desde que a investigação do Luanda Leaks começou a ser divulgada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação, no início de 2020, a filha do antigo Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, tem confiado nos melhores escritórios de advogados dos vários países europeus onde os negócios que ali fazia se transformaram em problemas. Autoridades de Portugal e da Holanda arrastaram contas bancárias, imobiliário e participações em empresas e, mais recentemente, o Supremo Tribunal de Angola autorizou o arresto preventivo dos bens da empresária Isabel dos Santos no valor de mil milhões de dólares, a pedido do Ministério Público. As múltiplas camadas usadas nos negócios ainda a protegem, porém, o cerco aperta-se.

16 A China vai invadir Taiwan?
A China afirma que Taiwan é “uma questão interna” e “a primeira linha vermelha que não deve ser cruzada” nas relações com os Estados Unidos. A aliança internacional que os EUA e a União Europeia mostraram contra a Rússia pode levar a China a ser mais cautelosa nos passos para uma reunificação com Taiwan, mas as tensões têm-se vindo a agravar e mantêm-se os receios de um escalar da situação. No Congresso do Partido Comunista da China, o líder Xi Jinping afirmou que o objetivo é uma reunificação pacífica ainda que o país não renuncie ao uso da força. Em outubro, o almirante americano Mike Gilday alertou que pode ocorrer uma invasão até 2024.

17 Irá Donald Trump ser acusado formalmente pelo Departamento de Justiça norte-americano?
Há vários indicadores nesse sentido, sim. Porém o caso é muito sensível uma vez que Trump já apresentou a candidatura à Casa Branca e levá-lo a tribunal poderia ser considerado um ato desenhado especificamente para o impedir de voltar à presidência, e provocar uma divisão ainda maior no país. No entanto, o homem que neste momento dirige as investigações, Jack Smith, já enviou diversas intimações para depor a várias pessoas que estiveram em contacto com Trump durante as suas tentativas para interferir com o resultado das presidenciais de 2020.

Texto escrito com Ana França, Cristina Peres, Manuela Goucha Soares e Salomé Fernandes.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 29 de dezembro de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui

A “joia da coroa” das presidências portuguesas

A Índia é assunto querido à diplomacia portuguesa. Foi em 2000, durante uma presidência portuguesa do Conselho da União Europeia, que se realizou a primeira cimeira UE-Índia, em Lisboa. Este sábado, no Porto, uma nova edição tenta reatar as negociações comerciais entre ambas, paralisadas há oito anos. Para a UE, este caminho para a Índia revela a procura de alternativas à dependência da China. Para Portugal, é o continuar de uma relação histórica com mais de 500 anos. “Portugal pode desempenhar o papel de um facilitador especial e fazer a ponte entre a Índia e a Europa”, diz ao Expresso uma investigadora indiana

A Índia é um país tão grande e diversificado que a dúvida se instala com legitimidade: é a Índia um país ou será mais um continente? Em superfície, o mapa indiano engole os 16 territórios menores da União Europeia (UE). Já em termos populacionais, estima-se que dentro de cinco anos ultrapasse a China e se torne o país mais populoso do mundo.

É este colosso geográfico e demográfico que este sábado se vai ‘sentar à mesa’, ainda que de forma virtual, com a União Europeia. A cimeira decorrerá no Palácio de Cristal do Porto e foi, desde a primeira hora, rotulada por António Costa de “joia da coroa” da presidência portuguesa do Conselho da UE, em matéria de política externa.

“Tanto Portugal como a UE reconhecem que é necessário aprofundar as relações com a Índia para depender menos da China. Mas o desafio é que, ao contrário da China, a Índia tem sido um ator económico menos relevante e também relutante em relação à liberalização do comércio e dos investimentos, com negociações que se arrastam desde 2007, e que foram interrompidas em 2013”, comenta ao Expresso Constantino Xavier, investigador no Centro do Progresso Económico e Social de Nova Deli. “A cimeira de sábado deverá indicar um novo compromisso político para aprofundar a dimensão económica, reatando negociações.”

A relação entre a UE e a Índia — duas das maiores economias do mundo — formalizou-se em 1994, através de um Acordo de Cooperação bilateral. O objetivo maior de um acordo de livre comércio nunca viu a luz do dia, inviabilizado por divergências, sobretudo a nível das tarifas alfandegárias a pagar pela indústria automóvel e da livre circulação de determinadas categorias profissionais. A cimeira do Porto ambiciona desbloquear o impasse e relançar o diálogo.

COMÉRCIO UE-ÍNDIA

10º

lugar é a posição da Índia no ranking dos parceiros comerciais da União Europeia

posição é a que a União Europeia ocupa na lista de destinos das exportações indianas

“A Índia tem procurado aprofundar o seu relacionamento com a Europa desde meados dos anos 2000, como parte de um impulso geral na política externa indiana para diversificar as suas parcerias em todo o mundo. A novidade é que a Índia começou a envolver-se, além de Berlim, Paris e Bruxelas, com outros estados europeus, incluindo Portugal, Espanha, países nórdicos, da Europa Central e Oriental também”, diz ao Expresso a indiana Garima Mohan, investigadora no German Marshall Fund. “Enquanto a Índia tenta recuperar das consequências da pandemia, precisará de trabalhar mais com a Europa, também na questão da distribuição equitativa de vacinas.”

Tanto para Bruxelas como para Nova Deli, a cimeira do Porto servirá para tomarem o pulso uma à outra. “Do lado europeu, vai permitir aferir quão tangível é o interesse da Índia em cooperar mais com a UE, e em que setores a cooperação pode ser acelerada”, comenta ao Expresso Tiago André Lopes, professor de Relações Internacionais na Universidade Portucalense.

“Para a Índia, permite a Modi aferir das intenções da UE no que toca a objetivos geopolíticos e geoeconómicos. Nova Deli tem a grande expectativa de a cimeira resultar num empurrão ao Acordo de Cooperação de 1994 e procura alavancar a iniciativa ‘Make In India’ (que tem por mote ‘Zero Defeitos e Zero Efeitos’), através da qual se posiciona como alternativa viável à ideia da China como fábrica do mundo. A Índia procura parceiros que a confirmem como uma potência regional emergente, alicerçada na ideia de tailored-by-size diplomacy [diplomacia à medida].”

2000, 2007 e 2021

A confirmar-se o relançamento das negociações entre europeus e indianos, será mais um marco na afirmação de Portugal como ponte entre a Índia e a Europa, alicerçada numa relação histórica bilateral com mais de 500 anos.

“O facto de este histórico encontro de líderes decorrer sob a presidência portuguesa tem sido amplamente notado na Índia”, diz Mohan. “Portugal pode desempenhar o papel de um facilitador especial e fazer a ponte entre a Índia e a Europa.”

Foi durante uma presidência portuguesa do Conselho da UE, a 28 de junho de 2000, que se realizou a primeira cimeira UE-Índia, em Lisboa. Foi ainda na presidência portuguesa do segundo semestre de 2007 que foram lançadas as negociações com vista a um acordo de comércio livre, que agora se tenta retomar.

“A Índia é a maior democracia à escala global e nós temos de valorizar, tendo um relacionamento cada vez mais estreito, designadamente pelo contributo que poderemos dar em conjunto para componentes fundamentais dos processos de transição climática e digital. Falo do desenvolvimento da inteligência artificial ou da ciência de dados. Europa e Índia podem desenvolver uma aliança estreita para o futuro.”

António Costa primeiro-ministro português

“Portugal tem desempenhado um papel importante na aproximação entre Nova Deli e Bruxelas, agindo essencialmente como facilitador de diálogo”, acrescenta Tiago André Lopes. “O facto de ser, uma vez mais, em Portugal que se discutem as relações entre o bloco europeu e o gigante asiático permite-nos, como anfitriões, gozar de um canal de influência não apenas como moderadores da discussão, mas como parte ativa na fixação da agenda. O sucesso desta cimeira irá firmar o crédito de Portugal no seio da UE como ponte e porta-voz dos 27 na relação com a Ásia e com África.”

A cimeira deste sábado não pode deixar de ser enquadrada na Nova Estratégia de Cooperação no Indo-Pacífico, que a UE lançou a 19 de abril e que tentará injetar “estabilidade”, “segurança”, “prosperidade” e “desenvolvimento sustentável” numa região que é palco de grande concorrência geopolítica e revela muitas tensões. “Durante a sua presidência, Portugal tem tido um papel pioneiro na revisão da política europeia para a Ásia, que nos últimos anos tem pendido para a China, culminando no polémico acordo de investimentos de 2020”, diz Constantino Xavier.

“Portugal cedo reconheceu que é necessária uma política para a Ásia mais equilibrada, não só com a Índia, mas também com o Japão, e que essa diversificação europeia contribui para uma Ásia mais multipolar e estável. É nesse sentido que a UE está a assumir um perfil mais estratégico na Ásia, além de uma mera abordagem mercantilista, focada sobretudo nos grandes negócios da China. Seja na Índia ou no resto da Ásia, esse papel de peso da UE é recebido de braços abertos, como mais uma alternativa para preservar uma Ásia multipolar, menos exposta ao crescente poderio e centralidade da China.”

A ÍNDIA E PORTUGAL

0,2%

das exportações portuguesas tiveram como destino a Índia, em 2020. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), a Índia é o 46º cliente das exportações portuguesas de bens

0,9%

do total de importações portuguesas vêm da Índia. É o 15ª mercado onde mais Portugal compra

17.619

cidadãos estrangeiros de origem indiana vivem em Portugal, segundo o Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) referente a 2019. São, na esmagadora maioria (13.235), homens

“O fator China é uma explicação importante para a aproximação entre UE e Índia. As perceções europeias sobre a Índia têm mudado à medida que aumentam as tensões com a China”, diz Garima Mohan. “Revigorar a parceria com a Índia é também um pilar fundamental da estratégia Indo-Pacífico da UE.”

“Da mesma forma, a resposta da Índia ao desafio da China concentrou-se no fortalecimento de parcerias, dissociação económica e diversificação. Isso inclui não só o fortalecimento dos laços com os seus parceiros do grupo Quad (Austrália, Japão e Estados Unidos) e com o Sueste Asiático, mas também com a Europa. Não é por acaso que assuntos da agenda UE-Índia — como a segurança marítima no Oceano Índico, alternativas à Belt and Road Initiative (Nova Rota da Seda), tecnologias emergentes, 5G e Inteligência Artificial —, todos têm elementos de competição com a China.”

A relação entre europeus e indianos tem potencial para exercer um impacto geopolítico maior. “UE e Índia também procuram liderar esforços para proteger a ordem internacional da crescente rivalidade sino-americana”, alerta Constantino Xavier.

“Seja na luta contra as alterações climáticas, na regulação das novas tecnologias ou no desenvolvimento sustentável, Bruxelas e Nova Deli estão a coordenar posições comuns para oferecer soluções globais, especialmente pela via do multilateralismo. Ambas reconhecem que para depender menos dos Estados Unidos ou da China, têm de aprofundar as suas relações e coordenar as suas políticas com outras potências e blocos regionais.”

É todo este longo caminho que a presidência portuguesa do Conselho da UE tem promovido e que a cimeira do Porto quer ajudar a trilhar.

(FOTOS A 24 de junho de 2017, António Costa recebeu Narendra Modi, no Palácio das Necessidades, em Lisboa GABINETE DO PRIMEIRO-MINISTRO DA ÍNDIA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 7 de maio de 2021. Pode ser consultado aqui

Golpes na democracia

O retrocesso democrático sob a liderança de Narendra Modi faz temer a transformação do país numa autocracia

os meandros das relações internacionais, a referência à “maior democracia do mundo” não carece de explicação, já que se tornou sinónimo de Índia. Mas se “maior” é adjetivo incontestável para o caso, dada a dimensão do país onde vive quase um quinto da população mundial (1300 milhões) e onde cada ato eleitoral dura vários dias, já o carácter democrático do seu sistema de governo é cada vez mais questionável.

A perceção de uma certa degradação acentua-se perante casos como o que envolveu Disha Ravi, ativista de 22 anos detida, faz amanhã duas semanas, após ter divulgado um “kit para protestos” publicado na rede social Twitter pela ambientalista sueca Greta Thunberg. O documento alertava para a luta dos agricultores indianos, há meses em pé de guerra com o Governo devido a três novas leis que os farão perder rendimentos em detrimento das grandes empresas. Ravi sugeria formas de luta.

A vaidade ferida do governo

Neta de agricultores, a ativista conheceu desde o berço as dificuldades de quem vive da terra, agravadas ano após ano pelas alterações climáticas que danificavam as colheitas com secas ou chuvas abundantes. Levada pela polícia da casa onde vive com a mãe, em Bangalore, Ravi — que trabalhava num restaurante vegan e esteve na origem da versão indiana das Sextas-Feiras pelo Futuro iniciadas por Thunberg — foi acusada de sedição.

Quando são criticadas por terem políticas discriminatórias, as autoridades optam por punir os críticos

Terça-feira passada, um tribunal de Nova Deli libertou-a após considerar haver “provas escassas e incompletas” de sedição nas suas ações. O juiz criticou também a atuação das autoridades, por serem ágeis a deter quem discorda das políticas governamentais. “Mesmo os nossos pais fundadores concederam o devido respeito à divergência de opinião, reconhecendo a liberdade de expressão como direito fundamental inviolável”, disse o magistrado Dharmender Rana. “O direito à dissidência está firmemente consagrado no artigo 19 da Constituição da Índia.” O juiz acrescentou que “a sedição não pode ser invocada para servir a vaidade ferida do governo”.

Dissidentes como terroristas

“A repressão da dissidência pacífica é extremamente preocupante”, comenta ao Expresso Meenakshi Ganguly, diretora para a Ásia do Sul da Human Rights Watch. “As autoridades indianas estão a fazer acusações contra críticos ao abrigo de leis draconianas de contraterrorismo ou antissedição.”

Casos como o de Ravi expõem ameaças quotidianas às liberdades civis, como a criminalização da dissidência e da liberdade de expressão, que têm levado a Índia a perder posições nas classificações internacionais que avaliam a qualidade da democracia no mundo. Divulgado há três semanas, o último Índice da Democracia elaborado pela The Economist Intelligence Unit coloca a Índia no 53º lugar. Em 2014, quando Narendra Modi foi eleito primeiro-ministro pela primeira vez, o país estava na 27ª posição.

“As normas democráticas estão sob pressão desde 2015”, diz o relatório, que justifica a queda consistente com “um retrocesso democrático sob a liderança de Narendra Modi”, apologista do nacionalismo hindu. “A crescente influência da religião sob o Governo de Modi, cujas políticas fomentaram o sentimento antimuçulmano e os conflitos religiosos, prejudicou o tecido político do país.”

Minoria de quase 200 milhões

Uma medida que incendiou as sensibilidades e gerou confrontos violentos foi a aprovação de uma emenda à Lei da Cidadania, a 10 de dezembro de 2019, que facilita a obtenção da cidadania indiana a pessoas oriundas de um conjunto de países e que professem determinadas religiões, mas não a muçulmana. Na Índia, os muçulmanos são uma minoria de quase 200 milhões, visados pela nova lei e pela atitude discriminatória e o discurso de ódio que ela normalizou. Em fevereiro de 2020, confrontos entre hindus e muçulmanos em Nova Deli provocaram 53 mortos.

“É a agenda política do partido nacionalista hindu [Bharatiya Janata], no poder, que muitas vezes demoniza as minorias religiosas”, denuncia Meenakshi Ganguly. “Quando são criticadas por terem políticas discriminatórias ou por causa de ataques violentos realizados por apoiantes do Governo, infelizmente, as autoridades optam por punir os críticos. Vemos um padrão de preconceito na atuação contra o discurso dos críticos do Governo, acusando-os de serem antipatriotas ou de causarem inimizade entre as comunidades, enquanto os apoiantes do Governo que incitam abertamente ao ódio e à violência são protegidos.”

Há duas semanas o jornal norte-americano “The Washington Post” recuperou um caso com três anos que mancha a credibilidade da Índia enquanto Estado de direito. Era 1 de janeiro de 2018 e na aldeia de Bhima Koregaon, no ocidente da Índia, comemorava-se o 200º aniversário da batalha com o mesmo nome, que os dalits (“intocáveis”, a casta mais baixa da sociedade indiana) sentem como vitória sobre um adversário de casta superior. A celebração originou atos violentos entre hindus e dalits e levou à detenção de ativistas defensores dos mais desprivilegiados, acusados de conspirar para derrubar o Governo de Modi.

Segundo a investigação do jornal americano, os ativistas — alguns dos quais estão presos há mais de dois anos sem julgamento, ao abrigo de legislação antiterrorista — foram incriminados por informação colocada no portátil de um deles durante um ciberataque. A descoberta foi feita por uma empresa digital forense dos Estados Unidos, que analisou uma cópia do computador a pedido do advogado do ativista. Solicitado pelo jornal, as conclusões foram depois revistas por três peritos em malware, que as validaram.

Casos como este tornam as conclusões de outro barómetro internacional da democracia pouco surpreendentes. Segundo o Instituto Variedades de Democracia (V-Dem), da Suécia, a Índia integra o top 10 das democracias que mais depressa se estão a transformar em autocracias.

OPINIÃO

Três revoluções em curso

Ademocracia indiana está em contínuo desenvolvimento com múltiplos desafios, como todas as outras, incluindo a portuguesa e a americana. Mas ao contrário das democracias ocidentais, a indiana é bem mais jovem. Em termos formais, comemora 75 anos em 2022, marcando o fim do colonialismo britânico em 1947. Na prática, a democracia indiana é um processo revolucionário em curso, marcado por três ruturas desde os anos 90: uma revolução demográfica, com a maior população jovem do mundo e uma média de idades de 27 anos, naturalmente ambiciosa e impaciente; uma revolução económica, com a abertura do mercado e aceleração das reformas a reduzirem drasticamente a pobreza; e uma revolução social e política, com a ascensão de castas e classes tradicionalmente marginalizadas por via das quotas e outras garantias constitucionais. No seu conjunto, esta transição puxa para dois sentidos opostos: uma Índia menos anglófona e elitista com a expansão da participação democrática, por via da mobilização hindu, nacionalista e identitária, o que coloca crescente pressão sobre instituições, minorias e liberdades. O paradoxo é que a Índia está mais jovem e democrática do que nunca, mas também menos liberal e cosmopolita.

Constantino Xavier, investigador no Centro para o Progresso Social e Económico, de Nova Deli

(ILUSTRAÇÃO DEVIANTART)

Artigo publicado no “Expresso”, a 26 de fevereiro de 2021. Pode ser consultado aqui

China movimenta-se na fronteira com a Índia como quem fatia um salame

A tensão regressou esta semana à região da Caxemira, desta feita junto à fronteira entre a Índia e a China, depois de soldados dos dois lados se terem envolvido em confrontos que resultaram no incidente mais mortífero em mais de 50 anos. Um analista indiano explica ao Expresso a estratégia de corrosão da fronteira indiana que a China vem levando a cabo desde há décadas

Nos Himalaias, a região indiana de Ladaque — que faz parte do conturbado e disputado território da Caxemira — viveu há séculos tempos gloriosos. Grandes caravanas de comércio, hordas de conquistadores, vagas de cultura, tudo por ali passou numa dinâmica de contacto contínuo entre o Império Indiano e a Ásia Central. A chegada de Vasco da Gama à Índia, em 1498, retirou importância a essa rota terrestre, ao demonstrar as vantagens do transporte por mar. Ladaque perdeu relevância mas não o interesse dos países em redor.

“Tem imensa importância estratégica para a China e para a Índia”, explica ao Expresso o investigador Dhruva Jaishankar, da Observer Research Foundation, em Nova Deli (Índia). “Para a China, o planalto de Aksai Chin [encostado a Ladaque, controlado pela China e reivindicado pela Índia] era o elo entre o Tibete e Xinjiang [região chinesa de maioria muçulmana], duas regiões agitadas.” Essa importância estratégica levou a que a China ali construísse uma estrada, na década de 1950.

“Para a Índia, a presença chinesa em Ladaque pressiona a sua capacidade de defender a fronteira com o Paquistão. Por essa razão, controlar a estrada, que é o que a Índia tenta fazer atualmente, é uma necessidade. Porém, o desenvolvimento da infraestrutura indiana levou à mobilização do Exército de Libertação Popular da China, dando origem a impasses em quatro locais”, com os soldados praticamente cara a cara.

Foi num desses locais que, esta semana, soldados chineses e indianos se envolveram nos confrontos mais mortíferos desde 1967. Tudo aconteceu quando, no decurso de uma patrulha, soldados indianos foram surpreendidos pela presença de militares chineses (em maior número) numa zona onde não era esperado que estivessem.

Durante horas, na escuridão da noite e com temperaturas negativas, as tropas envolveram-se em lutas corpo a corpo, com recurso a pedras e ferros, e empurrando adversários ravina abaixo, a 4200 metros de altitude.

O facto de nem um tiro ter sido disparado decorre de um protocolo celebrado entre China e Índia, em 1996, que prevê que os contingentes destacados ao longo da fronteira não tenham armas de fogo. Pretende-se com isto evitar que pequenos atritos evoluam para situações graves.

A contenda de segunda-feira à noite demonstra que a chacina é possível mesmo na ausência de armas de fogo. A Índia noticiou 20 soldados mortos (incluindo um comandante), a China não reconheceu qualquer fatalidade.

“Na ausência de provas credíveis, a comunidade internacional não deve dar como certa a versão chinesa ou indiana dos acontecimentos”, aconselha ao Expresso Robert Daly, diretor do Instituto Kissinger para a China e os EUA, do Centro Wilson (Washington DC, EUA). “A China é a nação mais forte e tem sido cada vez mais assertiva no Pacífico Ocidental nos últimos meses. Mas isso não é motivo suficiente para supor que a China tenha sido o agressor.”

Vizinhos distraídos com a pandemia

Precisamente a assertividade da China no Pacífico leva o indiano Brahma Chellaney, analista de geopolítica e escritor, a consolidar uma teoria segundo a qual também a animosidade nos Himalaias faz parte de uma estratégia de longa duração empreendida pela China, composta por pequenas ações não suscetíveis de se tornarem casus belli por si só, mas que com o tempo levam a uma alteração estratégica a favor da China.

“[O Presidente chinês] Xi Jinping tenta tirar vantagem do facto de os seus vizinhos estarem distraídos com a pandemia de coronavírus e abriu várias frentes na sua campanha para tornar a China a principal potência do mundo“, explica ao Expresso. “Como parte das suas ambições, Xi iniciou um conflito com a Índia invadindo algumas áreas fronteiriças indianas em Ladaque.”

O analista indiano compara a estratégia chinesa ao ato de “fatiar o salame”. “A China começou a aperfeiçoar esta tática nos Himalaias na década de 1950, quando cortou o planalto de Aksai Chin, do tamanho da Suíça, que fazia parte da região de Ladaque”, explica. “Nos anos mais recentes, tem ‘fatiado o salame’ no Mar do Sul da China. As suas recentes invasões em Ladaque são outro exemplo desta estratégia. Mordida atrás de mordida, a China tem vindo a corroer as fronteiras himalaias da Índia.”

Estima-se que fruto das movimentações das forças chinesas ao longo da fronteira durante o passado mês de maio, a China tenha tomado entre 40 a 60 quilómetros quadrados de território que a Índia considera seu. slém da conquista territorial, Pequim parece querer, com estas ações, testar a preparação militar, a vontade política e a determinação da Índia para responder.

Índia quer a paz, mas…

“Quero assegurar à nação que o sacrifício dos nossos jawans [soldados do Exército indiano] não será em vão. A Índia quer paz mas é capaz de dar uma resposta adequada se for instigada”, afirmou o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, numa mensagem ao povo transmitida pela televisão.

“Enquanto as forças chinesas não se retirarem, haverá riscos de mais confrontos”, vaticina Brahma Chellaney. “É improvável que a Índia tolere a agressão da China, e um prolongado impasse militar não pode ser descartado. A China calculou mal ao acreditar que poderia causar uma agressão gratuita.”

Uma guerra aberta entre chineses e indianos resultaria num cenário tão apocalíptico que é muito natural que nenhum dos países a deseje. Frente a frente estariam os dois exércitos com o maior número de efetivos no ativo do mundo — o chinês com 2,2 milhões e o indiano com 1,4 milhões —, ambos com acesso a armas nucleares.

Os dois países são liderados por homens profundamente nacionalistas e habitados por cerca de 1300 milhões de pessoas. Ou seja, um conflito entre China e Índia envolveria diretamente um terço da população mundial. “Haverá sem dúvida um aumento das tensões, e muita ira popular contra a China na Índia. Mas há muitas razões para acreditar que este caso não levará a um conflito total”, acrescenta Dhruva Jaishankar. “Mas suspeito que vamos ver menos cooperação ao nível económico ou diplomático entre a Índia e a China no futuro próximo.”

Xi Jinping e Narendra Modi — nos cargos desde 2013 e 2014 respetivamente — vinham desenvolvendo uma relação amigável nos últimos anos. Em abril de 2018, em Wuhan (China), iniciaram um mecanismo de cimeiras informais anuais que teve continuação em outubro de 2019, em Bengala (Índia), onde Xi convidou Modi para nova visita à China em 2020. Aparentemente, a relação não se ressentia do facto da China ser um importante aliado do arqui-inimigo da Índia, o Paquistão, com quem disputa a região himalaia da Caxemira.

Entre estes dois colossos, “a Índia é a nação mais fraca e tem de proceder com a maior cautela, independentemente da sua razão”, defende Robert Daly. “A guerra é improvável. Nem a China nem a Índia têm um interesse vital em jogo em Ladaque e os dois líderes estão profundamente conscientes da necessidade de evitar a violência. As matanças são uma escalada preocupante, mas não aconteceu ainda nada que não possa ser revertido e negociado se houver vontade para tal.”

A fronteira entre a China e a Índia é uma amálgama de disputas territoriais não-contíguas ao longo de uma cordilheira montanhosa. Mesmo o comprimento da fronteira é objeto de discórdia, oscilando entre os 4057 km (métrica internacional), os 3488 km (Governo indiano) e os 2000 km (media chineses). A maior parte do troço não está demarcado, correndo ao sabor de montanhas, rios e desfiladeiros. Tem, pois, muito potencial de desestabilização, assim haja esse interesse.

(IMAGEM Bandeiras da Índia e da China THE HINDU)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de junho de 2020. Pode ser consultado aqui

Uma cobiça que extravasa as fronteiras

Para Índia e Paquistão, a Caxemira é um jogo de soma zero: aquele que a controlar coloca uma ameaça existencial ao outro

Em Caxemira, parece haver um conluio que torna a perspetiva de paz num grande desafio. Nele participam a História e a geografia, bem como os interesses económicos e as necessidades de segurança de três potências nucleares: Índia, Paquistão e China. Ali já se travaram três guerras: a quarta pode ser espoletada pelas alterações climáticas.

HISTÓRIA. Problema de nascença

O conflito em Caxemira é uma ferida aberta pela História. Em 1947, quando da divisão do Império britânico — originando a Índia (hindu) e o Paquistão (muçulmano) —, a maioria dos numerosos estados principescos concordou em juntar-se a um ou a outro. O estado de Jammu e Caxemira, o mais setentrional, foi uma das exceções: a maioria da população (muçulmana) queria unir-se ao Paquistão; o marajá Hari Singh (hindu) defendia uma independência neutra.

A disputa redundou na primeira de três guerras (1947, 1965 e 1999), com o Paquistão a invadir a Caxemira e o marajá a ceder a soberania à Índia em troca de apoio militar. Em 1949, o estabelecimento de uma Linha de Controlo selou a trégua. Hoje, a Índia controla 45% da região, o Paquistão 35% e a China 20%.

GEOGRAFIA. O milagre da água

Basta abrir um mapa para perceber por que razão Caxemira é vital para Índia e Paquistão. A região é a principal fonte de abastecimento hídrico de ambos: o Paquistão com 200 milhões de habitantes e a Índia com 1300 milhões e a caminho de ultrapassar a China como o país mais populoso do mundo — em 2024, diz a ONU. Mediado pelo Banco Mundial, o Tratado das Águas do Indo (1960) deu a cada um o controlo de três rios da bacia do Indo, alimentados pelos glaciares.

Para a Índia, essa água é essencial ao fornecimento de eletricidade a centenas de milhões de pessoas. Para o Paquistão, está em causa a sua subsistência agrícola, uma vez que mais de 90% da produção tem origem na bacia do Indo. O problema ganhou dimensão com o aquecimento global: os glaciares derretem mais rapidamente, provocando inundações nos dois países; a prazo, a secura dos leitos dos rios provocará apagões prolongados.

SEGURANÇA. Terreno de rebeldes

Num estudo desenvolvido para uma escola do Exército paquistanês, o general Javed Hassan defendeu que o principal objetivo da doutrina estratégica do Paquistão era balcanizar a Índia. Publicado em 1990, o trabalho não foi retirado de circulação, o que indicia uma sintonia em relação à doutrina oficial. O estudo constatava que a Índia tem “uma incapacidade histórica para existir enquanto Estado unificado” e que “está refém de uma tradição centrífuga e não centrípeta”. Caxemira era identificada como uma zona vulnerável a infiltrações visando a fragmentação ou enfraquecimento da Índia.

Por essa altura, o apoio do Paquistão a grupos separatistas na região já era uma realidade, muito graças aos milhões canalizados pelos EUA no âmbito do combate aos soviéticos no Afeganistão (1979-1989). Essa ajuda permitiu ao Paquistão dotar-se de uma das maiores máquinas de guerra do mundo (ainda assim aquém da indiana) e mascarar apoios a grupos armados.

Em 2008, a célula que realizou os atentados de Bombaim (166 mortos) recebeu ordens do Lashkar-e-Taiba, um dos grupos terroristas mais ativos da Ásia Meridional, sediado na Caxemira paquistanesa. David Headley, um americano-paquistanês detido nos EUA que deu informações para o ataque, testemunhou que a secreta paquistanesa esteve envolvida na preparação.

ECONOMIA. Rotas cruzadas

Um pequeno troço da Caxemira paquistanesa faz fronteira com o Afeganistão, país que é uma porta de entrada na Ásia Central. Esta, abundante em recursos hídricos e naturais, é também uma ponte entre a Ásia e a Europa e, por isso, uma componente vital para grandes projetos com que Índia, Paquistão e China querem afirmar-se no mundo. São exemplos a iniciativa chinesa “Faixa e Rota” e o Corredor Económico China-Paquistão (CPEC).

O Paquistão beneficiará com infraestruturas que vão facilitar a ligação entre a China e a Ásia Central, algumas delas em Caxemira. Para a China, o Paquistão poderá garantir uma saída para o Mar Arábico. Quanto à Índia, está também a desenvolver uma rota comercial até à Europa: o Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul. Mas sem poder atingir o Afeganistão — no meio está a Caxemira paquistanesa —, tem de navegar até ao Irão e daí seguir por terra. A Índia acusa o CPEC de violar a sua “integridade territorial” — ao atravessar a Caxemira paquistanesa que diz ser sua.

Artigo publicado no “Expresso”, a 17 de agosto de 2019. Pode ser consultado aqui