A violência regressou ao coração de Jerusalém. Desta vez, o rastilho foi o avanço da ocupação israelita sobre um bairro na parte árabe da cidade. A alimentar muita da revolta dos palestinianos está também um sentimento de abandono em relação à sua própria liderança. O recente adiamento das muito aguardadas eleições legislativas só veio acentuar essa frustração. “Nem Israel nem a Autoridade Palestiniana estão interessados que os palestinianos tenham eleições livres”, diz ao Expresso um ativista de Hebron. “Querem manter o status quo.”

O recato a que os muçulmanos têm por hábito entregar-se durante o mês sagrado do Ramadão foi tomado, nos últimos dias, por uma “intifada” (revolta) palestiniana, na Cidade Velha de Jerusalém. As zonas em redor da Mesquita de Al-Aqsa estão transformadas em campos de batalha entre palestinianos e forças israelitas.
Segunda-feira, gás lacrimogéneo e granadas de choque disparados pela polícia israelita rebentaram dentro daquele que é o terceiro lugar mais sagrado do Islão. A segunda maior religião do mundo conta cerca de dois mil milhões de crentes.
Na origem da mais recente vaga de violência entre israelitas e palestinianos está a disputa por Sheikh Jarrah, bairro em Jerusalém Oriental que foi buscar o nome ao médico pessoal de Saladino, o curdo que liderou as tropas muçulmanas na conquista de Jerusalém aos cristãos, em 1187.
Por decisão da justiça israelita, há famílias árabes que ali vivem desde sempre e que estão na iminência de serem despejadas. Domingo passado, quando já havia confrontos nas ruas, foi adiada a audiência no tribunal que devia confirmar essa expulsão.
Segundo a organização israelita Peace Now, desde o início do ano, os tribunais israelitas já ordenaram o despejo de 22 famílias palestinianas em Sheikh Jarrah e Batan al-Hawa (outro bairro de Jerusalém Oriental), num total de 139 pessoas.
Sempre que são evacuadas, as casas não ficam ao abandono — colonos israelitas tomam conta delas, garantindo que o pedaço de terra onde se erguem passe a constar nos mapas como território judeu. Aos poucos, a presença árabe em Jerusalém é uma referência cada vez mais longínqua nos livros de história.
Os palestinianos de Jerusalém Oriental vivem num limbo. Não são cidadãos de Israel (como quase dois milhões de árabes que vivem em território israelita, com direito a passaporte e a voto), nem têm o seu estatuto de residência garantido.
Vivem numa das frentes mais tensas da ocupação israelita, sem certezas em relação à vida quotidiana e mergulhados num sentimento de abandono em relação à liderança palestiniana. Dela esperavam defesa e proteção contra o avanço do projeto de colonização israelita.
“Facada” veio de mão supostamente amiga
A última “facada” nessa esperança palestiniana foi desferida pelo próprio Presidente da Autoridade Nacional Palestiniana. No passado dia 29 de abril, Mahmud Abbas anunciou o adiamento das eleições legislativas previstas para 22 de maio.
“Essa decisão só veio aumentar a frustração entre os palestinianos que esperavam um recomeço, uma nova unidade nacional que contrariasse tanto a política de ocupação e de apartheid israelita como a divisão intrapalestiniana entre Hamas e Fatah”, diz ao Expresso Giulia Daniele, do Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa.
Abbas alegou que as autoridades de Israel não garantiam a realização do escrutínio em Jerusalém Oriental, a parte árabe da cidade santa ocupada na guerra de 1967. “Mal Israel concorde, teremos eleições no prazo de uma semana”, prometeu. Mas as suas palavras soaram a pretexto. “A Autoridade Palestiniana [AP] tem feito muito pouco pela defesa desta população”, diz ao Expresso Marta Silva, investigadora na área dos estudos da sociedade israelita.
“Por um lado, representantes da Fatah [partido de Abbas, que domina a AP] colocam a culpa em Israel por recusar a instalação de mesas eleitorais em Jerusalém Oriental. Nas eleições anteriores (em 1995, 2005 e 2006), Israel tinha permitido a instalação de mesas eleitorais em postos de correio.”
Por outro lado, os mesmos representantes “recusaram a possibilidade da colocação de mesas em consulados europeus e instalações das Nações Unidas em Jerusalém Oriental. Esta recusa, que justificaram dizendo que se trataria de um ‘escape’, e não uma ‘solução’, mostra que a Fatah não estava verdadeiramente interessada em garantir a participação eleitoral destes palestinianos, e que existe outra agenda política”.
Sem votar há quinze anos
Estas eleições legislativas seriam as primeiras desde 2006 — quando a vitória do Hamas não foi reconhecida (pela Fatah, por Israel e pela comunidade internacional), o que contribuiu para dividir a Palestina em dois, com o Hamas a tomar o poder à força na Faixa de Gaza e a Fatah a entrincheirar-se na Cisjordânia.
“O anúncio das eleições, a 15 de janeiro de 2021 [a cinco dias de Joe Biden tomar posse como Presidente dos Estados Unidos], causou uma imensa onda de expectativa e esperança junto dos palestinianos, visível no número de eleitores que se registaram, na multiplicação de listas eleitorais [36 aprovadas pela comissão eleitoral] e até no número crescente de mulheres nessas listas”, recorda Marta Silva.
“Quase um milhão de jovens palestinianos teria votado pela primeira vez”, acrescenta Giulia Daniele. “O adiamento das eleições — que mais parece um cancelamento, sem nova data marcada — poderá custar muito caro à causa palestiniana, criando uma desilusão generalizada numa geração que gostaria de ser mais ouvida e de tentar mudar o status quo em que se sente presa há longo tempo.”
Com estas legislativas, os palestinianos tencionavam por fim começar a ‘arrumar a casa’. O povo exigia-o desde que o mandato presidencial de Abbas expirou, a 15 de janeiro de… 2009. A 31 de julho próximo, tinham agendadas presidenciais e a 31 de agosto eleições para o Conselho Nacional Palestiniano, órgão da Organização de Libertação da Palestina (OLP), que é a instituição que, na ausência de um Estado independente, representa o povo palestiniano a nível internacional.
“Fiquei surpreendido por Abbas aceitar fazer eleições”, diz ao Expresso o ativista palestiniano Issa Amro, ícone da resistência pacífica e da desobediência civil na Cisjordânia. “Tinha a certeza que ele não iria aceitar eleições livres. É idoso, está debilitado e incapaz. Seguramente ia perder a presidência e a sua Fatah deixaria de ser o principal partido.”
Ocupação não tem oposição
Issa vive noutra frente da ocupação israelita: a cidade de Hebron, onde moram alguns dos colonos judeus mais radicais. A 13 de abril passado, foi absolvido por um tribunal palestiniano no âmbito de um processo interposto pela AP, que lidou mal com as acusações do ativista. “A liderança da AP é muito má, tornou-se subempreiteira da ocupação”, diz Issa, que acusa: “Nem Israel nem a AP estão interessados que os palestinianos tenham eleições livres. Querem manter o status quo.”
“A presença no poder da Fatah desde 1993 [Acordos de Oslo] tem servido também os interesses de Israel, uma vez que garante que não exista oposição capaz de resistir à ocupação”, explica Marta Silva. “O governo da Fatah é visto pelos palestinianos como profundamente corrupto, e a colaboração em termos de segurança com o Estado de Israel é conhecida, e explica a detenção de vários opositores políticos da Fatah.”
Entre as listas que se preparavam para ir a votos, uma em especial estava a colocar a Fatah em sentido: a “Liberdade” — em que Issa Amro ia votar —, fundada por Nasser Kidwa, sobrinho do malogrado líder histórico palestiniano Yasser Arafat, e por Marwan Barghouti, um líder das duas Intifadas, preso desde 2004, a cumprir várias sentenças de prisão perpétua numa prisão israelita. Barghouti, a quem chamam “Mandela palestiniano”, era apontado como alternativa mais forte a Abbas e potencial vencedor das presidenciais.
Paralelamente, não estava afastada a possibilidade de se repetir em 2021 o resultado de 2006. “O futuro da Palestina e os seus equilíbrios internos são os fatores determinantes do adiamento das eleições”, diz Giulia Daniele. “Existe medo real por parte da Fatah, e também de Israel e dos Estados Unidos, de um fortalecimento significativo — e uma muito provável nova vitória — do Hamas, não apenas na Faixa de Gaza mas também na Cisjordânia.”
Várias outras formações políticas têm na origem antigos dirigentes da Fatah, que interpretaram a desilusão e a desconfiança de grande parte dos palestinianos em relação à gestão governativa do partido e assumiram a dissidência em relação ao Presidente, que leva 16 anos no cargo.
Abbas é só uma parte do problema
“Abbas tem 85 anos e problemas de saúde graves. Debates sobre quem poderá suceder-lhe existem há anos. No entanto, o problema palestiniano não reside exclusivamente em Abbas. Ele é apenas a face mais visível de uma elite política que beneficia da ocupação”, diz Marta Silva.
“A AP é uma continuação da ocupação israelita por outros meios, uma forma de terciarização da ocupação: a AP e Abbas necessitam de Israel para manter o poder sobre esse território, e Israel necessita de manter a Fatah no poder, porque sabe que a eleição do Hamas, da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), ou da ‘Liberdade’ significaria o fim da cooperação para a ‘segurança’ entre os dois lados.”
A prazo, o adiamento das eleições palestinianas, sem perspetiva de serem realizadas tão cedo, terá, na perspetiva de Marta Silva, duas consequências importantes que podem voltar-se contra os palestinianos:
- Dispersão do eleitorado palestiniano. “Acredito que uma grande percentagem dos eleitores que iam votar na Fatah por ser um ‘mal já conhecido’ comece a ponderar votar noutras listas, nomeadamente no Hamas, também pela atitude do grupo em relação a Jerusalém Oriental: representantes do Hamas dizem, desde janeiro, que Abbas não tem de pedir autorização a Israel, país ocupante, para levar a cabo as eleições em Jerusalém.”
- Favorecimento do Hamas. “Este adiamento confirma em público a imagem de uma Fatah subjugada aos interesses de Israel. O que será erradamente analisado como processo de radicalização do eleitorado palestiniano esconde, na realidade, um problema de falta de alternativas políticas. Num momento em que listas democráticas — que reconhecem o direito de existência de Israel nos territórios pré-1967 e renunciaram há muito à luta armada — estão constantemente sob ataque por parte da Fatah e de Israel, o Hamas surge como uma das poucas alternativas políticas organizadas e com capacidade de resistência à ocupação. Trata-se de uma falta de visão política espantosa por parte de Israel e da comunidade internacional, mas a história da Palestina desde o início do século XX está repleta de exemplos como este.”
Tudo acontece num contexto de grande tensão em que as ruas de Jerusalém têm sido palco de manifestações de ódio e desprezo contra os palestinianos. Segunda-feira, saiu à rua a tradicional e provocatória marcha do Dia de Jerusalém, em que milhares de pessoas agitam a bandeira de Israel para celebrar a conquista da parte árabe da cidade, na guerra dos Seis Dias (1967). Para evitar um banho de sangue, a polícia alterou o curso do desfile, afastando-o da Porta de Damasco, principal entrada da Cidade Velha e centro dos confrontos dos últimos dias.
Há três semanas, tinham sido militantes de um grupo da extrema-direita nacionalista e supremacista israelita a realizar uma marcha em Jerusalém para “restaurar a dignidade judaica”. Entre os slogans que gritaram, ouviu-se muitos “Morte aos árabes”.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de maio de 2021. Pode ser consultado aqui

