Arquivo de etiquetas: Irão

Nowruz Mubarak! O novo ano persa começou esta quinta-feira: seguem-se 13 dias de fogueiras, piqueniques e mesas com ‘sete ésses’

Para milhões de pessoas de cultura persa, a chegada da primavera coincide com a entrada num novo ano. É altura de celebrar o Nowruz, festividade de 13 dias que celebra a natureza e o que dela cada um pode extrair para viver o novo ano com otimismo e positividade. Sete curiosidades sobre o Nowruz

Um iraniano participa na festa do fogo, em Teerão, um dos rituais do Nowruz ABEDIN TAHERKENAREH / EPA

Em várias regiões do globo, centenas de milhões de pessoas de cultura persa aperaltam-se, esta quinta-feira, para entrar num novo ano. Pelo calendário persa (solar), começa hoje o ano 1404.

O início das festividades — a que chamam Nowruz (“novo dia”, em língua farsi) — coincide com o equinócio da primavera. Durante 13 dias, famílias e comunidades celebrarão o recomeço (representado pela entrada num novo ano) e o renascimento (simbolizado pelo ciclo de renovação da natureza que a primavera representa).

A cada pessoa, individualmente, o Nowruz convida à reflexão e proporciona uma oportunidade para recarregar energias.

ASSIM FALOU ZARATUSTRA

As raízes do Nowruz remontam ao Zoroastrismo, religião muito antiga que o Império Persa (550 a.C.-651 d.C.) — de que a República Islâmica do Irão é herdeira — tornou religião oficial. Esse credo foi fundado por Zoroastro, profeta também conhecido como Zaratustra, que terá vivido ainda antes de o império se afirmar.

No Zoroastrismo, o Nowruz tem um significado profundamente espiritual e cósmico. Segundo a tradição, a festividade significa o regresso a um espírito que esteve ausente durante os meses do inverno e simboliza o triunfo do bem sobre o mal, da alegria sobre a tristeza, da luz sobre a escuridão.

DA TURQUIA AO AFEGANISTÃO

Nowruz é celebrado por grupos étnicos que habitam territórios ao longo da antiga Rota da Seda. É o caso de iranianos, paquistaneses, afegãos, turcos, tajiques, curdos e também os tártaros da Crimeia, território ucraniano que a Rússia invadiu e anexou em 2014.

Nalguns países da Ásia Central, Médio Oriente, Cáucaso e Balcãs, é feriado nacional. Naturalmente, o Nowruz é também assinalado um pouco por todo o mundo no seio das comunidades de origem persa na diáspora.

Quando esteve na Casa Branca, Barack Obama assinalou a data, anualmente, com uma mensagem dirigida ao povo e às autoridades do Irão. Nesta, em 2013, mostrou-se esperançoso de que Estados Unidos e Irão pudessem “ir além das tensões” e “ultrapassar décadas de desconfiança”.

‘ABANAR A CASA’

Apesar de o tiro de partida para os 13 dias de festa ser dado apenas pelo equinócio, os preparativos começam com semanas de antecedência.

Para entrar no novo ano com o pé direito, há que ter a consciência limpa e a casa num brinco, pelo que uma das tarefas prioritárias é uma limpeza a fundo — um ritual chamado Khane-takani, que significa “abanar a casa”.

Na prática, são feitas intervenções não tão quotidianas como lavar os tapetes, limpar o quintal, arrumar o sótão, livrar-se de tralha e até pintar a casa.

Tudo contribui para criar a sensação de um recomeço limpo e fresco. E as casas ficam asseadas para receber familiares, como também é tradição no Nowruz.

A MESA DOS SETE ‘S’

Nas casas, o convívio familiar faz-se à volta de mesas fartas e decoradas a preceito. Uma das principais tradições do Nowruz passa por compor uma mesa com sete objetos, todos com nomes começados pela letra S — os haft sin (sete ésses, em farsi). Cada um deles representa desejos para o novo ano.

  • Sabzeh (rebentos de trigo, cevada ou lentilhas cultivados num prato uma ou duas semanas antes do Nowruz) simboliza o renascimento e o crescimento.
  • Samanu (pudim doce feito de trigo) representa a doçura e a fertilidade.
  • Senjed (fruta seca de oleastro) visa despertar o amor.
  • Seer (alho) simboliza a medicina e a saúde.
  • Seeb (maçã) invoca a beleza.
  • Somagh (sumagre) simboliza o nascer do sol e o recomeço.
  • Serkeh (vinagre) simboliza a idade e a paciência.

A composição da mesa pode diferir de região para região e, frequentemente, há outros objetos: espelho (autoconhecimento e reflexão), moedas (riqueza), relógio (tempo), ovos pintados (fertilidade, criação e renovação da vida), peixes dourados (vida e movimento), velas (luz, sabedoria e esperança), jacintos (chegada da primavera) e um livro de sabedoria, geralmente o Alcorão, mas também pode ser um livro de poesia.

Este ano, o Nowruz coincide com o mês sagrado do Ramadão, pelo que as refeições têm de esperar pelo pôr do sol.

NOITE DAS FOGUEIRAS

Na última quarta-feira do ano que finda, realiza-se o Charshanbeh Suri ou noite da fogueira. Trata-se de uma celebração comunitária em que as pessoas saltam por cima de fogueiras acesas em praças públicas para purgar as negatividades do ano que fica para trás.

À volta das fogueiras, interpretam-se canções tradicionais e realizam-se danças. No ar, há fogo de artifício. Há também quem vá de porta em porta pedir iguarias, recebendo geralmente frutos secos.

O fogo é um elemento importante no Zoroastrismo, que considera que o deus do bem é adorado mediante o fogo sagrado mantido aceso pelos sacerdotes nos templos. Por essa razão, a cremação não é permitida para que esse elemento natural não seja contaminado.

Neste dia, há famílias que aproveitam para reabastecer o seu domicílio de água, num gesto associado à ideia de purificação e à saúde.

FIROUZ, O ENTERNAINER

Na época do Nowruz, sai à rua Haji Firouz, uma personagem imaginária do folclore iraniano. Veste-se com roupas vermelhas brilhantes e um chapéu de feltro e tem o rosto coberto de fuligem. Entretém os transeuntes com cânticos tradicionais, danças e a tocar pandeiretas, em troca de algumas moedas.

PIQUENIQUES NA NATUREZA

O 13.º e último dia do Nowruz é dedicado à natureza (Sizdah Bedar). Tradicionalmente, as pessoas passam o dia fora de casa, em parques, nas margens de rios ou em campos, para desfrutar do meio ambiente, ouvir música, jogar ou simplesmente passar o tempo à conversa com familiares e amigos.

Este dia é também aproveitado para atirar aos cursos de água o sabzeh, os rebentos plantados num prato e colocados na ‘mesa dos sete ésses’. Acredita-se que estas plantações absorveram as agruras do ano que termina pelo que, com este gesto simbólico de as atirar à água corrente, afastam a má fortuna do novo ano.

No Irão, em alturas de manifestações populares e tensões com as autoridades, estes momentos relaxados ao ar livre são aproveitados para atitudes de desafio às regras conservadoras impostas pelos ayatollahs. Não raras vezes, homens e mulheres dançam uns com os outros. E os lenços (hijabs) de muitas mulheres, de uso obrigatório no país, descaem da cabeça para os ombros e deixam os cabelos à mostra.

No Irão, o Nowruz é uma celebração secular que resiste ao espartilho social e cultural que decorre da Revolução Islâmica de 1979. Os seus rituais estão firmemente enraizados na cultura iraniana e são cumpridos por cidadãos de todas as religiões e origens étnicas. Trata-se de uma celebração nacional e não religiosa, que o regime teocrático aceita como feriado oficial.

A Organização das Nações Unidas reconheceu o poder do Nowruz como cimento cultural da resiliência e sustentabilidade das sociedades e inscreveu-o na Lista de Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO.

“Nestes tempos de grandes desafios, o Nowruz promove o diálogo, a boa vizinhança e a reconciliação”, defendeu o secretário-geral da ONU, António Guterres.

A 21 de março de cada ano, é celebrado o Dia Internacional do NowruzNowruz Mubarak!

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 20 de março de 2025. Pode ser consultado aqui

Cessar-fogo em Gaza e retaliação do Irão a Israel: as duas frentes de um jogo perigoso

As negociações com vista a um cessar-fogo na Faixa de Gaza, previstas para quinta-feira, são uma prova de fogo para o Irão: uma trégua pode fazer abortar o prometido ataque contra Israel, em retaliação pelo assassínio do líder do Hamas em Teerão. Em cima da mesa das conversações está um plano em três fases, apresentado por Joe Biden, que, pela primeira vez em dez meses de guerra, propõe uma “cessação permanente das hostilidades”

A região do Médio Oriente vive dias profundamente contraditórios em que tanto se fala de um iminente ataque do Irão contra Israel como de negociações com vista a um cessar-fogo na Faixa de Gaza. A verdade é que a conclusão do segundo processo — a trégua em Gaza — pode determinar a ocorrência do primeiro — a retaliação iraniana contra Israel.

Israel e o Hamas estão convocados para nova jornada de negociações indiretas, agendadas para esta quinta-feira. Sobre a mesa está um plano que, pela primeira vez, aborda uma “cessação permanente das hostilidades”, incluindo a retirada israelita de Gaza e a libertação dos reféns.

“Concordamos que não pode haver mais atrasos”, defenderam o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, o Presidente francês, Emmanuel Macron, e o chanceler alemão, Olaf Scholz, numa declaração conjunta divulgada na segunda-feira.

A concretizarem-se, serão as primeiras negociações com Yahya Sinwar na liderança do Hamas, a partir dos túneis de Gaza. Até recentemente, o interlocutor era Ismail Haniyeh, exilado no Catar, que foi assassinado em Teerão, a 31 de julho, num atentado atribuído a Israel, embora não reivindicado pelo Estado hebraico.

Porquê negociar agora?

A guerra em Gaza dura há mais de dez meses, o território está cada vez mais inabitável, o número de mortos entre a população civil não cessa de aumentar e os reféns israelitas tardam em regressar a casa. Paralelamente, a região está cada vez mais perto de uma guerra generalizada.

Na semana passada, os mediadores Catar, Egito e Estados Unidos instaram Israel e o Hamas a retomarem as discussões, a 15 de agosto, no Cairo ou em Doha, para discussão de um “acordo-quadro” cuja finalização está presa “apenas pelos detalhes”.

“Não há mais tempo a perder nem desculpas de qualquer das partes para mais atrasos. É tempo de libertar os reféns, iniciar o cessar-fogo e aplicar este acordo”, defenderam os presidentes Joe Biden (Estados Unidos), Abdel Fattah el-Sisi (Egito) e o emir Tamim bin Hamad Al Thani (Catar), num comunicado conjunto de 8 de agosto.

Em cima da mesa está uma proposta apresentada pelo Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, a 31 de maio, numa intervenção a partir da Casa Branca. “Depois de intensa diplomacia levada a cabo pela minha equipa e das minhas muitas conversas com os líderes de Israel, Catar, Egito e outros países do Médio Oriente, Israel apresentou uma nova proposta abrangente. É um roteiro para um cessar-fogo duradouro e para a libertação de todos os reféns. Esta proposta foi transmitida pelo Catar ao Hamas.”

A data das negociações poderá não ser inocente. Na próxima segunda-feira, nos Estados Unidos, arranca, em Chicago, a convenção do Partido Democrata que deverá confirmar o ticket Kamala Harris-Tim Walz na corrida à Casa Branca. Como ficou visível na recente visita a Washington do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, a questão palestiniana divide fortemente o Partido Democrata.

Um eventual acordo de cessar-fogo seria uma grande vitória para Biden e para a sua “diplomacia paciente”, como lhe chamou o jornal americano “The Washington Post”. O Presidente dos Estados Unidos tem tentado equilibrar o papel do seu país como pacificador do Médio Oriente, enquanto mantém apoio incondicional a Israel.

Que plano está na mesa do diálogo?

A proposta que israelitas e Hamas têm em mãos vai além das anteriores. Pela primeira vez, aborda um cenário de fim da guerra, uma “cessação permanente das hostilidades”, que inclui a retirada militar israelita completa da Faixa de Gaza e o regresso de todos os reféns vivos. Em concreto, prevê três fases.

FASE 1 — Decorreria durante seis semanas e passaria por um cessar-fogo “total e completo”, retirada das forças israelitas de “todas as zonas povoadas” da Faixa de Gaza, libertação de reféns – incluindo mulheres, idosos e feridos – em troca da libertação de centenas de prisioneiros palestinianos. Civis palestinianos seriam autorizados a regressar a casa “em todas as áreas de Gaza”, incluindo ao norte do território. Haveria um aumento da ajuda humanitária, com a previsão de 600 camiões a entrar diariamente em Gaza. Centenas de milhares de abrigos temporários seriam fornecidos pela comunidade internacional.

FASE 2 — Haveria uma troca de prisioneiros que permitiria a libertação dos restantes reféns vivos, incluindo os soldados do sexo masculino. As forças israelitas retirar-se-iam de Gaza e “desde que o Hamas cumpra os seus compromissos”, o cessar-fogo temporário evoluiria — “nas palavras da proposta israelita”, enfatizou Biden — para uma “cessação permanente das hostilidades”.

FASE 3 — Teria início um grande projeto de reconstrução de Gaza. Os restos de reféns mortos seriam devolvidos às famílias.

    Este plano foi confirmado pela resolução 2735 do Conselho de Segurança, a 10 de junho passado, com 14 votos a favor e abstenção da Rússia.

    Como reagiu o Hamas à proposta?

    A 2 de julho, o Hamas respondeu positivamente ao plano de cessar-fogo anunciado por Biden, abdicando da exigência que vinha fazendo no sentido de um cessar-fogo total e permanente antes de se comprometer com qualquer acordo. Passado mais de um mês, o grupo jiadista defende que as negociações previstas para esta semana devem ser retomadas com base na proposta apresentada por Biden e no ponto do seu ‘sim’ dado em julho.

    O Hamas receia que, assim que as negociações forem retomadas, Israel possa apresentar novas condições. O grupo palestiniano diz ter demonstrado flexibilidade, mas que Israel não revela seriedade na vontade de alcançar uma trégua. Estas dúvidas tornam a presença de uma delegação do Hamas incerta nas negociações desta semana.

    “O que obstrui o sucesso da última proposta é a ocupação israelita”, disse Jihad Taha, porta-voz do Hamas. “Preencher as restantes lacunas no acordo de cessar-fogo passa por exercer pressão real sobre o lado israelita, que estava, e ainda está, a praticar uma política de colocação de obstáculos no caminho do êxito de quaisquer esforços que levem ao fim da agressão.”

    Que defende Israel?

    Israel anuiu ao envio de uma equipa de negociadores às conversações desta semana. Mas no país, a resistência a um entendimento com o Hamas é forte, a começar pelo próprio primeiro-ministro, que sempre defendeu que não aceitaria um acordo que estipulasse o fim da guerra sem a derrota total do Hamas. “O objetivo é o regresso dos reféns e desenraizar o regime do Hamas em Gaza”, defende Netanyahu.

    Segundo um artigo publicado, esta terça-feira, pelo jornal americano “The New York Times”, documentos que detalham as mais recentes posições negociais revelam que “Israel foi menos flexível nas recentes negociações de cessar-fogo em Gaza” e que “fez cinco novas exigências”.

    Dois exemplos: Israel exigiu que as suas forças continuem a controlar a fronteira sul da Faixa de Gaza (o Corredor Philadelphi, junto ao Egito) e impôs restrições ao regresso de deslocados palestinianos à parte norte do território, o que não constava na proposta apresentada por Biden. Segundo a imprensa israelita, a introdução de novas exigências foi feita por Netanyahu. Na prática, contribuem para sabotar a proposta de cessar-fogo, o que originou um braço de ferro entre o primeiro-ministro e a sua equipa de negociadores.

    Na semana passada, o jornal digital israelita “The Times of Israel” descreveu discussões acaloradas entre responsáveis políticos e da área da segurança israelitas a propósito da proposta de cessar-fogo. “Altos funcionários, incluindo o ministro da Defesa, Yoav Gallant, e o chefe das FDI [Forças de Defesa de Israel], Herzi Halevi, terão dito […] ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu que a sua insistência em novos termos sabotaria o acordo de cessar-fogo e a libertação de reféns em negociação, levando o primeiro-ministro a afirmar que foi o Hamas, e não ele, a introduzir novas exigências”, relata a publicação.

    Outra altercação descrita por “The Times of Israel” envolveu o chefe da Mossad, que tem liderado as negociações por parte de Israel. David Barnea terá dito, numa reunião com o primeiro-ministro, que há um acordo pronto e que Israel deve aceitá-lo. “Você é fraco!”, terá gritado Netanyahu. “Não sabe como conduzir uma negociação difícil. Está a pôr palavras na minha boca. Em vez de pressionar o primeiro-ministro, pressione Sinwar.” Segundo o jornal, posteriormente, o gabinete do primeiro-ministro negou a afirmação.

    A imprensa israelita escreve que, além do líder da Mossad, são favoráveis a um acordo de cessar-fogo o chefe das FDI, Herzi Halevi, e Ronen Bar, chefe do Shin Bet, a agência interna de segurança de Israel. Para os três, dez meses de uma guerra intensa em Gaza infligiram danos suficientes à capacidade militar do Hamas.

    Outro crítico da atuação de Netanyahu no atual contexto é Benny Gantz, que abandonou o gabinete de guerra em junho em rota de colisão com o primeiro-ministro e que o acusa de dar prioridade à sobrevivência do seu governo em detrimento do resgate dos reféns. “A segurança de Israel durante a campanha mais difícil da sua história tornou-se vítima de caprichos políticos”, disse Gantz, veterano militar tornado político centrista.

    Há relação entre estas negociações e o esperado ataque do Irão a Israel?

    São, basicamente, duas faces de uma mesma moeda. Esta terça-feira, a agência Reuters avançou que “só um acordo de cessar-fogo em Gaza decorrente das negociações esperadas para esta semana impediria o Irão de retaliar diretamente contra Israel”. A convicção decorre de afirmações de “três altos funcionários iranianos”.

    Para o Irão, não retaliar o atentado que vitimou o líder do Hamas, em território iraniano, será admitir fraqueza. Haniyeh estava no Irão a convite do regime, assistira nesse dia à tomada de posse do Presidente Masoud Pezeshkian e ficara alojado numa casa controlada pelos Guardas da Revolução, onde foi morto. Teerão atribui o ataque a Israel.

    Por outro lado, o regime dos ayatollahs está consciente que esse atentado adicionou complexidade a quaisquer negociações com vista a um cessar-fogo em Gaza. Se o Irão retaliar sobre Israel, não só se arrisca a destruir as hipóteses de um cessar-fogo como potencia uma guerra alargada na região.

    Em Teerão, ações como o atentado que vitimou Haniyeh ou, noutra escala, bombardeamentos como o de sábado, que visou uma escola transformada em abrigo para deslocados, na cidade de Gaza, são “armadilhas” de Netanyahu para arrastar o Irão para uma guerra mais ampla, em especial à medida que aumenta a pressão para um cessar-fogo.

    As opções do Irão são limitadas. A aliança dos Estados Unidos com Israel dissuade a República Islâmica de avançar para ações maiores, diretamente ou por procuração. E a continuação dos combates em Gaza corre o risco de contaminar o Líbano e resultar numa derrota do Hezbollah, o aliado mais importante do Irão.

    Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de agosto de 2024. Pode ser consultado aqui

    A escalada que (quase) todos tentam evitar

    Teerão desferiu o primeiro ataque assumido contra o território do Estado judaico. Telavive já decidiu que vai retaliar

    O aparatoso ataque da República Islâmica do Irão contra o Estado de Israel, na noite de sábado, fez lembrar os dias da Guerra do Golfo de 1991, a primeira a ser transmitido em direto pela televisão. Fundada 10 anos antes, a emissora americana CNN apostou numa cobertura inédita dessa guerra.

    Sábado passado, após ter sido noticiado que o Irão lançara um enxame de 330 drones e mísseis balísticos e de cruzeiro na direção de Israel, o mundo colou-se à televisão ‘à espera de os ver chegar’. “Assistimos a isso na Guerra do Golfo, quando os mísseis caíam em Bagdade. Agora estávamos à espera que chegassem. Quase que havia notícias sobre os países que atravessavam…”, ilustra, em conversa com o Expresso, José Palmeira, professor de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade do Minho.

    A investida do Irão — que Teerão afirma ter sido “limitada”, visando apenas alvos militares e realizada em retaliação pelo ataque de 1 de abril contra o seu consulado em Damasco, atribuído a Israel — abriu porta a novo conflito. O gabinete de guerra israelita já decidiu retaliar, não havendo pistas sobre em que moldes. Teerão promete reagir de imediato. Estados Unidos e União Europeia tentam dissuadir Israel, para que a situação não se agrave ainda mais. Em paralelo, procuram isolar a República Islâmica, adotando novas sanções.

    IRÃO 
Que motivação para atacar?

    É percetível uma componente interna. “O Governo dos ayatollahs está muito desacreditado, há uma crise económica, a população vive mal e a polícia dos costumes tem tido atitudes radicais”, explica Palmeira. “Uma das formas de o regime se credibilizar e ter união interna é criar inimigos externos.” Em paralelo, há objetivos regionais. O gigante xiita do Médio Oriente quer ser uma potência hegemónica e “ser temido por todos os outros”. Isso justifica o apoio ao “eixo da resistência”, que passa por aliados regionais xiitas (como o libanês Hezbollah e os iemenitas hutis) e sunitas (como o palestiniano Hamas).

    Teerão quis demonstrar poder. “O Irão mostra força quando vende drones à Federação Russa, os quais têm tido papel relevante na guerra na Ucrânia. Revela capacidade tecnológica e ganha dinheiro de que precisa, porque os vende a bom preço.” Até à guerra na Ucrânia, o Irão era o país mais sancionado do mundo.

    O ataque foi de grande espetacularidade, mas não provocou grandes danos em Israel, que diz ter intercetado 99% dos projéteis. “O Irão não atacou com mais força porque temia uma retaliação. Quer ter capacidade nuclear, se é que já não tem. Sabe-se onde o urânio está a ser enriquecido e essas localizações seriam o primeiro alvo de Israel, tal como as fábricas de drones”, acrescenta o docente da Universidade do Minho. “O Irão não quis provocar ao ponto de Israel — se tivesse sofrido mortos e feridos — ter de responder obrigatoriamente para não ficar numa situação de fraqueza.”

    ISRAEL 
E agora, Estados Unidos?

    O ataque aconteceu numa altura em que a aliança histórica entre Israel e os Estados Unidos revelava desgaste por causa da operação militar na Faixa de Gaza. Mas cedo ficou claro que as forças americanas estacionadas no Médio Oriente estariam ao lado do Estado judaico. “Israel é a única democracia da zona, o que é, para os Estados Unidos e o Ocidente, um elemento relevante a preservar”, comenta Palmeira, “assim como a sobrevivência do Estado de Israel depende, em grande medida, do apoio ocidental e dos Estados Unidos.”

    Por outro lado, um conflito entre Israel e o Irão arrisca-se a ter consequências económicas globais, como revela a reunião dos líderes do G7, no próprio dia, de onde saiu um alerta de uma “escalada regional incontrolável”. Mas, realça o académico, “uma coisa é o interesse de Israel, outra é o de Benjamin Netanyahu, acossado internamente”, por causa do 7 de outubro e dos reféns, “e externamente, porque a intervenção em Gaza provocou uma catástrofe humanitária”, diz. “Está a lutar pela sua sobrevivência política e acha que quanto mais duro for, mais isso o favorece.”

    “O Irão não atacou Israel com mais força porque temia uma retaliação, pois quer ter capacidade nuclear”, diz o perito José Palmeira

    JORDÂNIA 
Porquê ajudar Israel?

    O reino hachemita está exposto à conflitualidade no Médio Oriente, desde logo pela grande quantidade de palestinianos que vive no país. Amã tem sido palco de manifestações contra a guerra em Gaza e, já no pós-7 de outubro, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Ayman Safadi, afirmou que “o acordo de paz entre Israel e a Jordânia [de 1994] está na prateleira e a acumular poeira”.

    Durante o ataque do Irão a Israel, o reino não hesitou. Caças da Força Aérea jordana abateram drones iranianos em apoio de Israel. Segundo o Presidente francês, Emmanuel Macron, França — que tem tropas na Jordânia — neutralizou projéteis iranianos a pedido de Amã. “A Jordânia tem tido uma atitude construtiva, que começa a mudar a partir do momento em que o Irão surge como ameaça e apoia o Hezbollah no Líbano e grupos jiadistas que estão na Síria e no Iraque. Isto também ameaça a Jordânia. Há receio de um Irão hegemónico, sobretudo a partir do momento em que tenha armas nucleares.”

    Recentemente, o comandante do grupo Kataib Hezbollah, uma das maiores milícias pró-iranianas no Iraque, afirmou-se pronto para armar e treinar 12 mil jordanos para se juntarem à frente de resistência anti-Israel.

    ARÁBIA SAUDITA 
Equidistante?

    Ataques como o do Irão a Israel têm o potencial de deixar o Médio Oriente “à beira do abismo”, como disse o secretário-geral da ONU, António Guterres. Isso é um grande revés nos planos de modernização da Arábia Saudita e de outras monarquias do Golfo que se aproximavam de Israel. “O Irão tende a ficar isolado, porque os vizinhos querem paz. Vivem em grande medida do turismo, da atração de figuras como Cristiano Ronaldo. Procuram estabilidade e querem ser vistos do exterior como países onde há qualidade de vida”, comenta Palmeira.

    “Ao contrário de outros países, como o Irão, que têm capacidade militar, a Arábia Saudita quer ser forte no plano económico.” Vários países do Golfo “estão a fazer a transição de uma economia assente no petróleo para energias limpas e têm consciência de que esse é o futuro. Não lhes interessa crises económicas nem a desestabilização da zona. Daí um conjunto de países sunitas ter boas relações com Israel, o que isola o Irão, que consideram um perturbador regional.”

    Após o ataque do Irão, o Ministério dos Negócios Estrangeiros saudita emitiu um comunicado lacónico, expressando preocupação perante a “escalada militar” e pedindo a “todas as partes que exerçam a máxima contenção”. Se é verdade que Riade desbravava um caminho de aproximação a Israel, a 10 de março de 2023 fez as pazes com o Irão, após sete anos de relações congeladas.

    O contexto força Riade a jogar “um papel quase dúbio”, conclui Palmeira. “Interessa-lhe que a relação com o Irão seja pacificada, mas também, caso o Irão revele apetência para maior escalada, alargar o âmbito das suas alianças, incluindo com Israel. A Arábia Saudita procura não alienar a relação com o Irão e equilibrar a ascensão do Irão com alianças com outros países da região.”

    (MAPA MIDDLE EAST POLICY COUNCIL)

    RELACIONADO: As pistas deixadas por um ataque arriscado (mas contido) sobre a relação de forças no Médio Oriente

    Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

    Israel atacou o Irão, mas a resposta à chuva de mísseis e drones que sofreu “virá mais tarde”

    A aguardada retaliação de Israel ao ataque direto do Irão ao seu território aconteceu esta sexta-feira através de um ataque desferido a partir de território iraniano. Sem provocar grandes danos, Telavive mostrou que consegue obter informações e ter capacidade operacional para atacar infraestruturas sensíveis iranianas. Especialistas ouvidos pelo Expresso ajudam a perceber como foi possível, vaticinam o que se segue e explicam por que razão enquanto Benjamin Netanyahu continuar no poder em Israel, Telavive e Teerão estarão mais próximo de uma confrontação direta

    Seis dias. Foi quanto demorou Israel a responder à chuva de 300 drones e mísseis lançados desde o Irão contra o seu território. Esta sexta-feira, o mundo acordou com a notícia de um ataque a território iraniano prontamente atribuído a Israel e temeu o início de uma nova guerra.

    À semelhança do ataque iraniano de sábado passado, a ofensiva israelita foi contida ao nível dos danos que procurou infligir. Mas a dinâmica de ataque e contra-ataque que toma Telavive e Teerão pode não ficar por aqui.

    “Devemos assumir que esta está longe de ser a resposta definitiva de Israel ao ataque militar direto por parte do Irão, no fim de semana passado”, diz ao Expresso Luís Tomé, professor de Relações Internacionais na Universidade Autónoma de Lisboa.

    “Esta ação faz parte de uma resposta que foi concebida para, por um lado, respeitar os compromissos que Israel terá assumido perante os Estados Unidos e outros países europeus e vizinhos, nomeadamente países árabes de não retaliar de forma militar direta contra o Irão.”

    Por outro lado, “há um aviso ao Irão no sentido de Israel mostrar não só que teve capacidade para se defender daquelas centenas de mísseis e drones lançados, mas também que é capaz, a partir de dentro do Irão, de obter informações e ter capacidade operacional para atacar infraestruturas sensíveis bem no centro do país.”

    Teerão tentou minimizar o ataque admitindo ter sido realizado por “mini-drones”. Ao Expresso, o iraniano Mohammad Eslami, especialista em tecnologias militares emergentes, revela que os aparelhos usados em ataques às cidades iranianas de Isfahan e de Tabriz foram drones quadricópteros. Neutralizados pelo sistema de defesa iraniano, “foram lançados a partir de dentro do Irão”, acrescenta.

    Estes drones “têm um alcance entre cinco e dez quilómetros” e “uma ogiva explosiva muito pequena, o suficiente para fazer explodir um carro ou um veículo blindado”. Transportam “pequenas granadas” e, se forem um pouco maiores, “podem carregar um número maior de granadas e, às vezes, uma arma para atirar em alvos humanos”, detalha Eslami, professor de Relações Internacionais na Universidade do Minho.

    Sem que Telavive e Teerão falem abertamente dos contornos da operação, há notícias que dão conta que Israel terá também disparado mísseis desde o exterior do Irão a partir de caças.

    “Não é claro se a intenção de Israel foi fazer uma operação real ou apenas identificar o tipo de defesa aérea e as suas localizações”, acrescenta. “Na verdade, esta não foi uma resposta de Israel, foi um ato subversivo. Confirma a ideia de que agentes israelitas estão a trabalhar ativamente no Irão.”

    As autoridades iranianas reconheceram que Isfahan foi atacada por três drones. Não foi a primeira vez que esta localidade, no centro do Irão, foi um alvo de Israel. A cidade abriga património mundial da humanidade reconhecido pela Unesco mas também estruturas onde o Irão desenvolve o seu programa nuclear, uma grande base da força aérea e fábricas associadas nomeadamente à produção de drones.

    “Até que ponto este tipo de operações pode causar danos?”, questiona Eslami. “Muito baixo. Há alguns anos, Israel também atacou um local de enriquecimento de urânio em Isfahan usando estes quadricópteros. O dano foi muito pequeno”, diz.

    “A nível tático, Israel tem vantagem devido à forte capacidade de obter informações e às tecnologias de ponta. Mas a nível estratégico, é muito frágil e vulnerável contra o Irão. Por isso, uma guerra é algo a que Israel não se pode permitir.”

    Sabotagem, ciberataques e assassínios de cientistas

    Israel tem um longo histórico de ataques clandestinos dentro do Irão. Luís Tomé recorda que “há muito tempo que Israel vem desenvolvendo uma guerra indireta, híbrida contra o Irão”, que passa por atos de sabotagem, ciberataques e assassinatos de cientistas da área do nuclear.

    Com este ataque, Israel passa a mensagem que “conhece as instalações nucleares, sabe onde elas se localizam e que pode fazer ataques a partir de dentro do Irão contra infraestruturas sensíveis”, continua o professor da Universidade Autónoma.

    “A resposta de Israel àquilo que aconteceu no dia 13 de abril [ataque do Irão] virá mais tarde. Israel está a tentar congregar uma coligação de vontades dos Estados Unidos e de países vizinhos para fazer uma retaliação mais massiva contra infraestruturas nucleares, que são uma ameaça não apenas para Israel, mas também para países árabes da região, designadamente a Arábia Saudita.”

    Luís Tomé acredita que a resposta de Israel ao mega ataque iraniano de 13 de abril vai acontecer mesmo sem uma nova provocação do Irão. “Benjamin Netanyahu tem esse interesse pessoal, porque a continuação do conflito na Faixa de Gaza, mas sobretudo a escalada, até certo ponto controlada, do conflito com o Irão, é uma forma do primeiro-ministro de Israel sobreviver politicamente e escapar a algum tipo de pressão que se estava a acentuar muito, interna e externamente”, diz.

    Por outro lado, “Israel não pode deixar de assumir uma resposta de facto ao que sofreu. É verdade que o Irão, há décadas, vem fazendo ataques contra Israel, mas ataques indiretos, no campo da guerra híbrida, através dos seus proxies e também de ciberataques. Sofrendo pela primeira vez um ataque militar direto a partir do Irão, Israel não pode deixar de responder e de uma forma assumida porque todos estes ataques que Israel vem fazendo em regra nunca são assumidos.”

    No curto prazo, “o enfrentamento direto terá terminado aqui, mas o indireto vai continuar”, defende ao Expresso, José Palmeira, professor de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade do Minho.

    “Os proxies iranianos que estão mais próximos do território israelita — seja o Hezbollah libanês, a Jihad Islâmica na Síria e no Iraque, sejam os hutis do Iémen — podem continuar a operar. O próprio Hamas [na Faixa de Gaza] — apesar de ser praticamente impossível, hoje, fazer-lhe chegar armamento — não deixará de seguir orientações iranianas nalguns aspetos”.

    Como tem sido prática, Israel não reivindicou o ataque desta sexta-feira. A única indicação, a nível oficial, de que terá estado por trás desta ação — para além da declaração de Washington de que “foi informado” — foi feita pelo ministro da Segurança Nacional, o ultra-ortodoxo radical Itamar Ben-Gvir, que escreveu na rede social X (antigo Twitter): “Fraco”.

    De pronto, Yair Lapid, o líder da oposição em Israel, reagiu. “Nunca antes um ministro tinha causado danos tão graves à segurança do país, à sua imagem e ao seu estatuto internacional. Num tweet imperdoável de uma só palavra, Ben-Gvir conseguiu escarnecer e envergonhar Israel.”

    ‘Não fomos nós’

    José Palmeira explica porque razão Israel nunca assume os ataques que desfere, como aconteceu também com o bombardeamento ao consulado iraniano em Damasco, a 1 de abril. “Israel nunca assume para se defender ao nível do direito internacional. Fa-lo para se defender perante instâncias internacionais, como o Tribunal Internacional de Justiça e o Tribunal Penal Internacional. Se houver uma acusação nesses tribunais, pode dizer: ‘não fomos nós’.”

    Para o Irão, o facto de Israel não ter reivindicado o ataque pode ser útil para alimentar uma narrativa interna. “Permite ao Irão dizer à sua opinião pública que não houve um ataque direto, logo não tem de retaliar”, continua Palmeira. “Mas ao mesmo tempo, para consumo interno, ter o inimigo dentro do próprio território, não o detetar e não evitar que isto aconteça não deixa de ser muito preocupante.”

    Com uma área de cerca de 1.648.000 km², o Irão é 75 vezes maior do que Israel (22.145 km²). Igualmente, a República Islâmica faz fronteira (terrestre e naval) com 13 Estados soberanos: Iraque, Turquia, Azerbaijão, Arménia, Turquemenistão, Afeganistão, Paquistão, Kuwait, Arábia Saudita, Bahrain, Catar, Emirados Árabes Unidos e Omã. “Não é fácil, em termos de segurança, controlar um país tão grande. Através de alguma fronteira, pode entrar alguma coisa para dentro do território iraniano”, acrescenta Palmeira.

    A identificação de quem, no Irão, foi cúmplice de Israel está, de momento, no domínio da especulação. No país, há vários tipos de oposição interna ao regime, desde logo membros de fações de uma linha democrática e secular que rejeitam a revolução islâmica e que, frequentemente, são detidos, reprimidos e mortos pelas forças do regime.

    “Sabemos que os próprios ayatollahs têm oposição interna. Mas não faria muito sentido que essa oposição atuasse sobre o arsenal nuclear ou sobre uma base aérea”, comenta José Palmeira. “Não seria muito racional, mas fica sempre a dúvida.”

    Inimigos e interesses comuns

    Acrescenta Luís Tomé. “Há informações que indicam que agentes estrangeiros, designadamente pró-israelitas, operam juntamente com alguns grupos separatistas. Os iranianos gostam de vincar a tese, que me parece pouco credível, de que há uma relação e uma articulação de inimigos comuns, como israelitas e o Daesh. Mas obviamente que operacionais estrangeiros a atuar dentro do Irão têm de ter apoios diversos que não podem resultar apenas do pagamento a locais. Há interesses coincidentes desde logo na hostilidade ao regime iraniano.”

    Num cenário de confronto direto entre Teerão e Telavive, “Israel tem a capacidade de atacar o Irão, mas não de vencer uma guerra contra o Irão”, diz Eslami. “As infraestruturas ofensivas do Irão estão distribuídas por todo o país, não é possível atingi-las a todas. Já Israel é um território pequeno, pelo que uma guerra longa e erosiva resultará na destruição de Israel. Israel pode, sem dúvida, atacar o Irão, mas não pode defender-se contra os ataques em massa iranianos durante muito tempo.”

    Com Benjamin Netanyahu no poder em Israel, a eventualidade de uma confrontação direta entre os dois países é maior. “Há muito tempo que defendo que, no caso da Ucrânia, só iríamos começar a conhecer um desfecho próximo ou depois das eleições nos Estados Unidos”, conclui Luís Tomé.

    “E a partir de 7 de outubro [ataque do Hamas] digo a mesma coisa” em relação à guerra em Gaza e à escalada da situação no Médio Oriente. “Netanyahu, como tem problemas com Joe Biden que não tinha com Donald Trump, vai fazer o possível para esticar a conflitualidade até que — sonha ele — Trump volte. Ele acha que se sobreviver no poder até ao regresso de Trump, terá outra margem de manobra para poder fazer algumas coisas, designadamente contra o Irão. Não me parece que isto vá acalmar nos próximos tempos.”

    Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui

    As pistas deixadas por um ataque arriscado (mas contido) sobre a relação de forças no Médio Oriente

    O Irão lançou um ataque a Israel sem a intenção de ferir. Israel quer responder, mas os Estados Unidos não garantem apoio. A Jordânia é o país que melhor acolhe os palestinianos e saiu em defesa do Estado hebraico. A Arábia Saudita, que estava em rota de aproximação a israelitas e iranianos, ficou praticamente em silêncio. A ofensiva de Israel contra o Irão expôs uma geografia variável na região e um desejo comum — ninguém quer a escalada, mesmo quem não se contém na hora de dar ordem de ataque

    O aparatoso ataque da República Islâmica do Irão contra o Estado de Israel, na noite de sábado, fez lembrar os dias da guerra do Golfo de 1991. Desencadeada pela invasão iraquiana do Kuwait, a 2 de agosto de 1990, este foi o primeiro conflito da história a ser transmitido em direto pela televisão.

    A emissora americana CNN, fundada dez anos antes, apostou numa cobertura inédita desta guerra e ganhou dimensão mundial. A linguagem dos mísseis — como os ofensivos scuds e os defensivos patriots — entrou na retórica quotidiana dos telespectadores.

    Sábado passado, após rebentar a notícia de que o Irão lançara um enxame de drones da direção de Israel, o mundo colou-se à televisão ‘à espera de ver chegar’, dali a umas horas, os 330 drones e mísseis balísticos e de cruzeiro, após uma viagem de 2000 quilómetros.

    “Assistimos a isso na guerra do Golfo, mas quando os mísseis já estavam a cair em Bagdade. Agora estávamos à espera que chegassem. Quase que havia notícias sobre os países que estavam a atravessar…”, ilustra, em conversa com o Expresso, José Palmeira, professor de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade do Minho.

    Da mesma forma que, então, os céus da capital iraquiana eram iluminados pelos clarões das explosões, na noite de sábado a imagem do céu escuro sobre a emblemática Cúpula do Rochedo, em Jerusalém, atravessado por projéteis e ao som das sirenes de alerta “marca uma nova era e um novo momento na história de Jerusalém, da Terra Santa e do Médio Oriente”, comentou o historiador britânico Simon Sebag Montefiore na rede social X (antigo Twitter).

    A investida do Irão sobre Israel, que Teerão afirma ter sido “limitada”, visando apenas alvos militares e realizada em retaliação pelo ataque de 1 de abril contra o seu consulado em Damasco, atribuído a Israel, abriu a porta de novo conflito. O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, avisou repetidas vezes que o seu país responderia a qualquer ataque iraniano. Teerão fez saber de pronto que reagirá a qualquer provocação israelita.

    Esta segunda-feira, o gabinete de guerra de Israel reuniu-se para definir o tipo de resposta, em função não só dos seus objetivos, mas, sobretudo, do apoio com que poderá contar dos aliados. Muito dependerá das reações internacionais ao inédito ataque do Irão.

    IRÃO. Que motivações teve para atingir Israel?

    Desde logo, é percetível uma componente interna para justificar o ataque a Israel. “O Governo dos ayatollahs está muito desacreditado, há uma crise económica e a população vive mal, a polícia dos costumes tem tido atitudes radicais”, como no caso da jovem Mahsa Amini, explica Palmeira. “Uma das formas do regime se credibilizar e se unir internamente é criar inimigos externos”, como Israel e os Estados Unidos, que funcionam como “cimento de um Irão dividido”.

    Em paralelo, sobram objetivos regionais. O gigante xiita do Médio Oriente, que faz fronteira com 12 países, quer ser potência hegemónica e “ser temido por todos os outros”. Isso justifica o seu apoio ao “eixo da resistência”, que passa por aliados regionais xiitas (como o libanês Hezbollah e os iemenitas hutis), mas também sunitas, como o palestiniano Hamas.

    Com este ataque, Teerão quis demonstrar força e poder. “O Irão mostra força quando vende drones à Federação Russa, drones esses que têm tido papel relevante na guerra na Ucrânia. Revela capacidade tecnológica e ganha dinheiro, porque os vende a bom preço e o Irão precisa de dinheiro.” Até à guerra na Ucrânia, o Irão era o país mais sancionado do mundo, sendo depois ultrapassado pela Rússia.

    O ataque foi de grande espetacularidade, mas não provocou grandes danos em Israel, que diz ter intercetado 99% dos projéteis. “O Irão não atacou Israel com mais força porque temia uma retaliação. O Irão quer ter capacidade nuclear, se é que já não tem. Sabe-se onde o urânio está a ser enriquecido e essas localizações seriam imediatamente o primeiro alvo de Israel, tal como as fábricas de drones”, acrescenta o docente da Universidade do Minho. “O Irão não quis provocar Israel ao ponto de Israel — se tivesse sofrido mortos e feridos — ter de responder obrigatoriamente para não ficar numa situação de fraqueza.”

    ISRAEL. Como fica a relação com os Estados Unidos?

    O ataque do Irão aconteceu numa altura em que a aliança histórica entre Israel e os Estados Unidos revelava desgaste por causa da operação militar israelita na Faixa de Gaza. O incómodo americano ficou mais visível quando, a 25 de março, Washington não exerceu o veto a uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que não era do interesse de Israel.

    Mas mal o Irão iniciou o ataque a Israel, ficou claro que as forças dos Estados Unidos estacionadas no Médio Oriente estariam ao lado do Estado judeu. “Israel é a única democracia daquela zona, o que significa que para os Estados Unidos e para o Ocidente isso é um elemento relevante a preservar”, comenta Palmeira. “Por outro lado, a sobrevivência do Estado de Israel depende, em grande medida, do apoio ocidental e, fundamentalmente, dos Estados Unidos.”

    Por outro lado ainda, um conflito entre Israel e o Irão arrisca-se a ter consequências económicas globais, como revela a pronta reunião dos líderes do G7, no próprio dia, de onde saiu um alerta de uma “escalada regional incontrolável”.

    “Interessa, neste momento, que a guerra escale e que haja um conflito que ponha em causa os preços do petróleo, que já estão a subir, e de outras matérias-primas com reflexos na inflação? Interessa ao mundo outra crise económica? Não interessa.” Mais ainda em contexto pré-eleitoral nos Estados Unidos.

    Mas, realça o académico, “uma coisa é o interesse de Israel, outra coisa é o interesse de Benjamin Netanyahu, acossado internamente”, ainda antes do ataque de 7 de outubro e, mais recentemente, por causa da questão dos reféns. “E também externamente, porque a intervenção militar israelita na Faixa de Gaza provocou uma catástrofe humanitária”, com impacto emocional nas opiniões públicas internacionais.

    “Netanyahu está a lutar pela sua sobrevivência política e, nesse sentido, quanto mais duro for, a priori, acha que isso o favorece. Se atacasse o Irão de seguida, sairia vencedor.” O governante israelita saiu ileso deste confronto graças à eficácia demonstrada pelo sistema de defesa do país, que neutralizou o ataque com aparente facilidade, mas a falta de apoio militar dos Estados Unidos a uma contrarresposta contra o Irão pode condicioná-lo.

    JORDÂNIA. Porque acorreu a defender Israel?

    O reino hachemita está particularmente exposto à conflitualidade no Médio Oriente, desde logo pela grande quantidade de palestinianos que vivem no país (outrora a Transjordânia) e a quem é concedida cidadania jordana. No atual contexto de guerra em Gaza, Amã tem sido palco de grandes manifestações contra Israel e, já no pós-7 de outubro, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Ayman Safadi, afirmou que “o acordo de paz entre Israel e a Jordânia [celebrado em 1994] está na prateleira e a acumular poeira”.

    Durante o ataque do Irão a Israel, contudo, o reino não hesitou. Caças da Força Aérea Jordana levantaram voo para abater drones iranianos, em defesa de Israel. Estima-se que os pilotos jordanos tenham intercetado cerca de 20% dos drones que entraram no seu espaço aéreo. E, segundo informou o Presidente francês, Emmanuel Macron, França — que tem tropas estacionadas na Jordânia — neutralizou projéteis iranianos a pedido das autoridades jordanas.

    “A Jordânia tem tido uma atitude construtiva, que começa a mudar a partir do momento em que o Irão surge como ameaça e apoia o Hezbollah no Líbano, e grupos jiadistas que estão na Síria e no Iraque. Isto também é uma ameaça para a Jordânia. Há receio de um Irão hegemónico, sobretudo a partir do momento em que tenha armas nucleares.”

    Recentemente, o comandante do grupo Kataib Hezbollah, uma das maiores milícias pró-iranianas que operam no Iraque, afirmou-se pronto para armar e treinar 12 mil jordanos para se juntarem à “frente de resistência” contra Israel.

    ARÁBIA SAUDITA. Porque ficou equidistante o arqui-inimigo do Irão?

    Ataques como o do Irão a Israel têm o potencial de deixar o Médio Oriente “à beira do abismo”, como disse, esta segunda-feira, o secretário-geral da ONU, António Guterres, no Conselho de Segurança. É também um grande revés nos planos de modernização da Arábia Saudita e de outras monarquias do Golfo que têm vindo a aproximar-se de Israel — algumas de forma formal, através dos Acordos de Abraão.

    “O Irão tende a ficar isolado na região, porque os vizinhos querem sobretudo paz. Vivem em grande medida do turismo, da atração de figuras como Cristiano Ronaldo como medidas de soft power e querem estabilidade e ser vistos do exterior como países onde há qualidade de vida”, comenta o professor Palmeira.

    “Ao contrário de outros países que são fortes no hard power, como o Irão, pela capacidade militar que têm, a Arábia Saudita quer ser forte no plano económico.” Vários países do Golfo “estão a fazer a transição de uma economia assente no petróleo para energias limpas e têm consciência de que esse é o futuro. Não lhes interessam crises económicas nem a desestabilização da zona. Daí que um conjunto de países sunitas tenha boas relações com Israel, o que isola o Irão, que consideram uma espécie de perturbador regional.”

    Após o ataque do Irão, o Ministério dos Negócios Estrangeiros saudita emitiu um comunicado lacónico, expressando preocupação perante a “escalada militar” e apelando a “todas as partes que exerçam a máxima contenção e poupem a região e os seus povos dos perigos da guerra”. Se é verdade que Riade desbravava um caminho de aproximação a Israel, há pouco mais de um ano, a 10 de março de 2023, fez as pazes com o Irão, através de um acordo mediado pela China, após sete anos de relações congeladas.

    Os dois principais polos de poder no Médio Oriente não deixam de ser rivais a vários níveis — a Arábia Saudita é uma monarquia árabe sunita e o Irão é uma república persa xiita —, mas o atual contexto força Riade a jogar “um papel quase dúbio”, conclui Palmeira.

    “Por um lado, interessa-lhe que as relações com o Irão sejam pacificadas, mas interessa-lhe também, caso o Irão revele apetência para uma maior escalada, alargar o âmbito das suas alianças, incluindo com o Estado de Israel. No fundo, a Arábia Saudita procura jogar com essa geometria variável — não alienar a relação com o Irão e, em simultâneo, equilibrar a ascensão do Irão com alianças com outros países da região.”

    (IMAGEM O mapa assinala os territórios do Irão (a verde) e de Israel (a laranja) WIKIMEDIA COMMONS)

    RELACIONADO: A escalada que (quase) todos tentam evitar

    Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de abril de 2024, e no “Expresso”, a 19 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui