Arquivo de etiquetas: Irão

Batalha entre ayatollahs

Enquanto milhares de iranianos pedem, nas ruas, a repetição do acto eleitoral, nos bastidores do regime trava-se uma luta pelo poder

Akbar Hashemi Rafsanjani, de turbante branco, e Ali Khamenei, de turbante preto WIKIMEDIA COMMONS

Há quatro meses, órgãos de informação de todo o mundo recordavam como, há 30 anos, grandes manifestações populares em Teerão levavam à queda do Xá da Pérsia e ao fim de um regime com 2500 anos. Nos dias que correm, essa mesma imprensa tenta perceber qual o alcance dos protestos, igualmente gigantescos, que tomaram conta da capital iraniana desde o anúncio da vitória de Mahmud Ahmadinejad, nas presidenciais do dia 12.

Milhares de apoiantes do candidato derrotado — Mir Hossein Mousavi — perguntam: “Onde está o meu voto?” E decretam: “Morte ao ditador”. A quem se referem? A Ahmadinejad, creditado com 62,6% dos votos mas a quem acusam de ter feito um “golpe de Estado”? Ou a Ali Khamenei, o Líder Supremo que se apressou a confirmar a reeleição do Presidente, ignorando as denúncias de fraude? Está a Revolução Islâmica em causa após 30 anos de vida?

Os gritos “Allahu Akbar” (“Deus é grande!”) saídos das bocas de muitos apoiantes de Mousavi — a quem chamam “o Gandhi do Irão” — parecem desmentir qualquer tentativa de assalto à Revolução. De resto, o verde que o candidato escolheu para pintar a sua campanha é a cor mais exaltada pelos muçulmanos, por ser a preferida do Profeta Maomé.

Por outro lado, não há dúvidas quanto ao compromisso de Mousavi com a Revolução de 1979. Tido como um conservador moderado—apesar de ter apoios reformistas —, Mousavi angariou grande popularidade quando foi primeiro-ministro numa das épocas mais difíceis da História recente do país: a guerra Irão-Iraque (1980-1988), em que morreu um milhão de iranianos.

O factor perturbador da sua candidatura situa-se, porém, à retaguarda. Mousavi é apoiado por aquele que é considerado a “eminência parda” do regime iraniano — o ayatollah Akbar Hashemi Rafsanjani, de 75 anos, Presidente do Irão entre 1989 e 1997 e antigo confidente do ayatollah Ruhollah Khomeini, o fundador da República Islâmica do Irão. Na pirâmide do poder, Rafsanjani detém a presidência de duas instituições (ver infografia), sendo considerado a segunda figura mais poderosa do país. Tal não impediu, porém, que, esta semana, a Justiça proibisse dois dos seus filhos de saírem do país, por “incitamento e organização de manifestações ilegais”, anunciou, na quinta-feira, a agência iraniana Fars.

Rafsanjani é um conservador pragmático que se aproximou do campo reformista após ter sido derrotado por Ahmadinejad nas presidenciais de 2005. Dono de uma das maiores fortunas do Irão e detentor de uma grande capacidade intelectual, dele diz-se que daria um Líder Supremo à altura do cargo…

Esta aparente batalha pelo poder entre Ali Khamenei e Rafsanjani — no coração da Revolução — não ilude a questão imediata que muitos iranianos querem ver esclarecida: houve ou não fraude nas eleições presidenciais?

Milagre da reprodução dos votos

A vitória de Ahmadinejad não estava fora das conjecturas. Ele conta com uma ampla base de apoio, sobretudo nas áreas rurais, onde costumava distribuir dinheiro vivo durante as visitas que efectuava. Ahmadinejad governa para os pobres e, entre o povo, pela sua simplicidade e populismo, rapidamente se transforma num entre iguais.

A surpresa da sua vitória reside, antes, na vantagem em relação ao seu opositor. Mousavi, que teve 33,7%, vinha captando o eleitorado com uma dinâmica de vitória, em especial nas grandes cidades, porém, segundo os resultados oficiais, nem na sua província natal (Azerbaijão Oriental) Mousavi venceu: teve 42% contra 57% de Ahmadinejad que, em 2005, conseguira apenas 10%.

O mapa dos resultados é, de resto, fértil em proezas por parte de Ahmadinejad. Também Mehdi Karubi, o candidato reformista, se deu mal na província onde nasceu, Lorestan: em 2005, “esmagara” Ahmadinejad com 55% contra 9%; agora, obteve 5% contra 71%. Outro volte-face deu-se na província de Ardabil, onde Ahmadinejad foi governador: em 2005, teve 7%; agora, 51%…

Os contestatários da vitória de Ahmadinejad, que pedem a repetição do sufrágio, alegam ainda que num país tão vasto como o Irão é impossível concluir a contagem de 42.036.078 de votos no próprio dia das eleições.

Ontem, numa rara aparição pública, o Líder Supremo Ali Khamenei fez o sermão da oração do meio-dia na Universidade de Teerão. Com Ahmadinejad na primeira fila, Khamenei confirmou os resultados eleitorais, disse que eventuais dúvidas devem ser investigadas através dos canais legais e apelou aos apoiantes dos candidatos derrotados para que acabem com os protestos. “Caso contrário, serão responsáveis pelas suas consequência e pelas consequências de qualquer espécie de caos”. À hora de fecho desta edição, não era ainda conhecida a reacção de Mousavi.

Na quarta-feira, em Lisboa, perante a insistência dos jornalistas em obterem justificações acerca da repressão das autoridades sobre os manifestantes e as limitações ao trabalho dos repórteres, Mehdi Safari, secretário de Estado dos Assuntos Europeus do Irão, perdeu a paciência: “Mais de 40 milhões de pessoas num universo de 46 milhões de eleitores foram votar. Comparando com as eleições europeias, este número é mais do dobro. Isto mostra a democracia que há na Europa e na Ásia…” Mostra também que um regime com uma taxa de afluência às urnas a rondar os 85% não está moribundo. Já os protestos mostram que precisa de mudanças.

REACÇÕES

Barack Obama: “Ao ver violência contra manifestações pacíficas e protestos tranquilos a serem reprimidos, fico preocupado”

Benjamin Netanyahu: “Houve mesmo uma eleição no Irão? É um Estado totalitário que talvez tenha eleições de vez em quando”

Angela Merkel: “É preciso uma investigação transparente à alegada fraude”

Luís Amado: “É bom que haja um Presidente com total legitimidade (…) há grande expectativa de entrar numa nova fase de negociações”

 

REDES SOCIAIS
Protestos em 140 caracteres

Se muitos opositores já tinham blogues, foi nas presidenciais que o Twitter e o Facebook ganharam um papel relevante no Irão. O Twitter, rede social que permite trocar mensagens até 140 caracteres, é fácil de usar e pode ser alimentada através do telemóvel. Foi tal a adesão que o Twitter adiou uma paragem de manutenção, na passada segunda-feira, a pedido de inúmeros utentes e até da Administração Obama. O protesto alastra também no Facebook, onde centenas de páginas de apoio ao candidato opositor Mousavi reúnem mais de 100 mil adeptos. Há por toda a Net ícones verdes (cor associada ao movimento de protesto) que qualquer um pode adicionar ao seu site. Os cibernautas iranianos fintam a censura recorrendo a servidores estrangeiros e pedem aos utilizadores da Net em todo o mundo que indiquem o Irão como país de residência, para confundir os censores.

DISCURSO DIRECTO

Muitos governos preocupam-se com armas na mão do povo. O Irão teme os computadores!
#IranElection Twitter

Por favor, façam uma lista de comentários sobre métodos contra software de filtragem no Irão
Mir Hossein Mousavi Facebook

Esta noite às 10, 11 e 12, ‘Alá é Grande’ nos telhados
@mousavi1388 Twitter

Hoje, até os candeeiros de rua do Irão ficaram verdes!
@mialoponis525 Twitter

EM 29 ANOS, DEZ ELEIÇÕES, SEIS PRESIDENTES

JANEIRO DE 1980
Abolhassan Banisadr venceu as primeiras presidenciais realizadas no Irão, com cerca de 80% dos votos. As eleições foram as mais concorridas de sempre, com dez candidatos (número só igualado em 2001). Impugnado em Junho de 1981, pelo Parlamento iraniano, fugiu para Versalhes, onde ainda vive.

JULHO DE 1981
Mohammad Ali Rajai, primeiro-ministro durante a Presidência de Banisadr, sucedeu-lhe por apenas 28 dias. Morreu num atentado, que também vitimou o então primeiro-ministro Mohammad Bahonar, a 30 de Agosto, numa reunião do Conselho Superior de Defesa, em Teerão.

OUTUBRO DE 1981
Ali Khamenei conquistou 95% dos votos e tornou-se no primeiro clérigo a chegar à Presidência, onde esteve oito anos. Foi uma figura decisiva na Revolução Islâmica e um confidente do ayatollah Khomeini. É o Líder Supremo, desde 1989, e chefe das Forças Armadas.

AGOSTO DE 1985
Ali Khamenei foi reeleito com 85% dos votos. Teve um papel interventivo na guerra Irão-Iraque (1980-1988). Foi fotografado a apoiar militares iranianos na linha-da-frente e desaprovou a decisão do Líder Supremo Ruhollah Khomeini de entrar no Iraque em resposta à invasão sofrida.

JULHO DE 1989
Akbar Hashemi Rafsanjani foi um dos dois candidatos autorizados a concorrer às presidenciais, entre uma lista de 79. Exerceu dois mandatos e foi o primeiro chefe de Estado a cumprir o mandato até ao fim. Perdeu o terceiro, em 2005, para o actual Presidente Mahmud Ahmadinejad.

JUNHO DE 1993
Akbar Hashemi Rafsanjani concorreu contra o conservador Ahmad Tavakkoli (ex-ministro do Trabalho) e foi reeleito com 62,9% dos votos. Com os cofres do Estado cheios, levou à prática políticas de liberalização económica. Durante o seu mandato, a inflação atingiu o máximo histórico de 49%.

MAIO DE 1997
Mohammad Khatami, quinto Presidente do Irão, manteve-se no cargo até 2005. Atraiu as atenções internacionais ao arrecadar 70% dos votos. Durante os dois mandatos lutou pela liberdade de expressão e pela tolerância e consolidou relações diplomáticas com a Ásia e a UE.

JUNHO DE 2001
Mohammad Khatami foi o mentor do Ano do Diálogo entre Civilizações, declarado pelas Nações Unidas, em 2001. Visto como o primeiro Presidente reformista, defensor da democracia, foi acusado pelos próprios apoiantes de ter falhado o objectivo de tornar o Irão mais livre e democrático.

JUNHO DE 2005
Mahmud Ahmadinejad disputou a segunda volta com o ex-Presidente Akbar Hashemi Rafsanjani e venceu, protagonizando uma viragem dos resultados conseguidos na primeira volta (19,43% contra 21,13% de Rafsanjani). Obteve 61,69%, mas não se livrou de suspeitas de fraude eleitoral.

JUNHO DE 2009
Mahmud Ahmadinejad volta a vencer as eleições, com quase o dobro dos votos do opositor Mir Hossein Mousavi (62,63% contra 33,75%). A União Europeia e vários países ocidentais expressaram preocupação pela denúncia de irregularidades e questionaram a autenticidade dos resultados.

Artigo publicado no Expresso, a 20 de junho de 2009

30 anos de Islão

11 de Fevereiro de 1979 — Os mullah sucederam aos Pahlevi. A revolução inspirada em Deus baniu 2500 anos de monarquia

Ajudado por um piloto da Air France, o “ayatollah” Khomeini desce as escadas do avião que o trouxe do exílio em Paris até Teerão, a 1 de fevereiro de 1979 WIKIMEDIA COMMONS

KHOMEINI — Justiça de Deus sobre a lei dos homens

Assim que a partir do exílio o ayatollah Khomeini instou os iranianos a expulsarem os ministros do Xá, Shirin Ebadi foi das primeiras a aderir. Mas após irromper pelo Ministério da Justiça, em vez do governante, foi surpreendida por um velho juiz: “Você! Porque está aqui? Não sabe que está a apoiar pessoas que lhe vão tirar o emprego se chegarem ao poder?” Ela respondeu: “Prefiro ser uma iraniana livre do que uma advogada escravizada!”

Em 1978, Shirin Ebadi era já uma figura pública. Tornara-se a primeira mulher-juiz no Irão, mas sonhava com mais liberdade. Traída pelos “vira-casacas”, como escreve no livro “O despertar do Irão”, não só não obteve a liberdade ansiada como acabou por se tornar uma voz crítica ao regime — o Prémio Nobel da Paz que recebeu em 2003 foi o reconhecimento dessa luta.

Mas a adesão de Shirin Ebadi à Revolução atesta o seu carácter singular: não resultou de uma guerra ou da revolta de militares descontentes, mas antes de uma coligação de opositores ao regime do Xá (constitucionalistas, marxistas, islamistas), organizada por um homem carismático: Ruhollah Khomeini.

Ao contrário das Revoluções Russa e Francesa, que dizia serem inspiradas por considerações materiais, Khomeini defendia que a Revolução Iraniana se movia pelo divino. Mais do que um guia espiritual, o profeta do Islão era administrador, justiceiro e líder político. “Ele corta mãos, decepa membros do corpo e apedreja adúlteros até à morte”, explicou no livro “Governo Islâmico”.

Com a Revolução, o povo passa então a obedecer à moral do profeta. Cobrir a cabeça torna-se uma imposição para as mulheres, a que não escapam as estrangeiras que visitam o país. Com frequência, a “polícia de costumes” (os basiji) sai às ruas para repreender as mulheres de aparência fashion ou pares de namorados indiscretos — por respeito, um iraniano só deve tocar nas mulheres da sua família.

Ao denunciarem as imoralidades, os basiji — jovens voluntários de ambos os sexos — agem como guardiães da Revolução, vigiando o cumprimento quotidiano dos códigos de conduta islâmicos e a sua imunidade aos valores “corruptos” do Ocidente. A homossexualidade é punida com a pena capital, mas não a mudança de sexo, aceite por uma fatwa (decreto religioso) de Khomeini.

Outra deliberação do ayatollah instituiu um dos aspectos mais surpreendentes da Revolução: a protecção aos judeus iranianos, confirmada pela Constituição que os reconhece como minoria religiosa e lhes confere o direito a elegerem um deputado. Com Israel, a Revolução tem uma relação hostil, de que as “tiradas” anti-semitas do Presidente Mahmud Ahmadinejad — “Israel devia ser apagado do mapa” — são a frente mais recente. Khomeini declarou a “entidade sionista” um “inimigo do Islão” e colocou-a num “eixo do mal” em que Israel é o Pequeno Satã e os EUA o Grande Satã.

Trinta anos após o corte de relações com os EUA, o Irão não parece ressentir-se desse statu quo. O projecto nuclear, iniciado pelo Xá, desenvolve-se sem contratempos e a evolução política do Médio Oriente tornou o gigante persa um actor crucial para a estabilização do mundo árabe. A teocracia xiita tem um ascendente ideológico sobre o Hezbollah (Líbano) e uma ligação estreita com o Hamas (Palestina), mas é no Iraque que o Irão mais tem a jogar. De 1980 a 1988, os dois países travaram uma guerra sangrenta, mas após a deposição de Saddam e a subida ao poder da maioria xiita, os regimes tornaram-se aliados naturais.

A História diz que foi durante uma bonança bilateral que o ayatollah ganhou estatura internacional. No início da Revolução — vivia ele na cidade santa iraquiana de Najaf, com segurança apertada —, Saddam acedeu ao apelo do Xá e expulsou-o. Khomeini foi para França, onde teve total liberdade para passar a palavra. Nos quatro meses em Neauphle-le-Château, deu 132 entrevistas.

O IRÃO E A SUA SOCIEDADE

38
anos durou o reinado de Mohamed Reza Pahlevi, de 1941 a 1979

50
por cento dos iranianos têm menos de 25 anos. Não conheceram outro regime que não a teocracia islâmica

89
por cento dos 70 milhões de iranianos são muçulmanos xiitas, 8% são sunitas e 3% professam outras religiões

52
por cento dos universitários são mulheres. Em 2007, 502 cineastas iranianas exibiram obras em festivais internacionais e estavam inscritas no Ministério da Educação Física 870 mil atletas. Há oito deputadas no majlis

Artigo publicado no Expresso, a 7 de fevereiro de 2009

CIA já está no terreno

Equipas de operações especiais dos EUA estarão secretamente em território iraniano

O sentimento não é consensual, mas há quem considere que a guerra no Irão é já uma realidade. “Silenciosamente, pela calada, escondida das câmaras, a guerra no Irão já começou. Várias fontes confirmam que os Estados Unidos, empenhados na desestabilização da República Islâmica, aumentaram a ajuda a movimentos armados entre as minorias étnicas azeri, baluque, árabe e curda, que correspondem a cerca de 40% da população iraniana” — é assim que Alain Gresh, editor do ‘Le Monde Diplomatique’ e especialista em Médio Oriente, inicia um artigo divulgado esta semana.

Ao Expresso, Gresh explica o raciocínio: “Os planos militares de que ouvimos falar nos EUA não visam a invasão. Os americanos não têm tropas para isso, mas pensam que se bombardearem massivamente as instalações nucleares e os comandos político e militar beneficiarão da impopularidade do regime e da ajuda dos azeris, árabes e curdos e provocarão uma mudança de regime”.
Em Abril, a televisão ABC noticiou que os EUA tinham apoiado o grupo baluque Jund al-Islam (Soldados do Islão), responsável por um ataque que matou guardas revolucionários iranianos. “Este tipo de apoioé perigoso”, diz Gresh. “Pressupõe que no Irão não há nacionalismo persa, que há azeris, curdos e que podemos usá-los. Isto foi feito no Iraque com o resultado que conhecemos…” Acredita-se que equipas de operações especiais e da CIA foram já colocadas no terreno no Irão para assinalar alvos, estudar o território e fomentar a rebelião. Pelo menos desde 2002 que grupos de planeamento da força aérea estão a “listar alvos” e os chefes de estado-maior completaram recentemente planos de contingência que permitiriam a Bush atacar o Irão em 24 horas.

Pelo menos desde 2002 que grupos de planeamento da Força Aérea dos EUA estão no Irão para listar alvos, estudar o território e fomentar a rebelião

O Pentágono tem dois porta-aviões no Golfo Pérsico que dão aos EUA a capacidade de manter uma longa campanha de bombardeamentos. O novo comandante militar regional, almirante William Fallon, é perito na coordenação do tipo de operações combinadas terra-ar.

Rufam os tambores da guerra

No círculo próximo do Presidente dos EUA não falta quem considere que é uma obrigação moral tratar do Irão antes de Bush deixar a Casa Branca. O vice-presidente Dick Cheney disse-o em público e John Bolton, o pouco diplomático ex-embaixador dos EUA na ONU, já começou a rufar os tambores. “Se a escolha é entre um Irão com capacidade nuclear e o uso da força, então temos de usar a força”, disse Bolton ao ‘The London Telegraph’. Para ele, vive-se um momento comparável àquele em que Hitler deveria ter sido parado, após a ocupação alemã dos Sudetas, e o mundo não fez nada.

Vincent Cannistraro, ex-chefe do departamento de contraterrorismo da CIA, disse ao Expresso que “a decisão de atacar o Irão foi adiada e é pouco provável que seja tomada este ano”. Cannistraro, ainda hoje próximo dos corredores da segurança nacional, não duvida que uma decisão para atacar o Irão seja possível, embora informações recentes estimem que as reacções a um tal assalto seriam “terríveis”, pois “destruiria a última hipótese de Bush estabilizar o Iraque”. No palco iraquiano, multiplicam-se entretanto sinais de nervosismo em relação a um conflito iminente: aviões de vigilância americanos sobrevoam o espaço aéreo iraniano; tropas americanas invadiram o consulado persa no Norte do Iraque capturando seis iranianos; os EUA têm açambarcado “stocks” de petróleo; milhares de ‘marines’ têm sido deslocados para a fronteira Iraque-Irão e a aviação é usada com cada vez mais agressividade.

Para Alain Gresh, um grande conflito armado no Irão não é “inevitável”. A situação no Iraque e a contestação interna desaconselham a Administração Bush a uma nova frente de guerra. Mas há motivações para o conflito. “A principal é talvez a forma como Bush vê o mundo. Ele vê-se como o líder de uma nova guerra mundial, à semelhança de Churchill na II Guerra. Bush já deixou claro que a luta é ideológica”. Em pleno Congresso o ex-conselheiro para a Segurança Nacional, Zgbniew Bzrezinski, considera que os EUA estão a caminho de um “pântano que durará 20 anos ou mais e estender-se-á ao longo do Iraque, Irão, Afeganistão e Paquistão”.

Artigo escrito em colaboração com TonyJenkins, correspondente em Nova Iorque

OUTRAS OPERAÇÕES SECRETAS

1953, Irão
A CIA e o MI6 orquestram a deposição do primeiro-ministro, Mohammed Mossadegh, e a subida ao poder do Xá

1961, Cuba
A CIA patrocina a malograda invasão da Baía dos Porcos e várias tentativas para assassinar Fidel Castro

1967, Bolívia
Uma operação militar organizada pela CIA culmina na captura e execução de Che Guevara pelo Exército boliviano

1968, Iraque
A CIA apoia o golpe contra Rahman Arif que coloca o Partido Baas no poder

1975, Angola
EUA começam a apoiar a UNITA

1979, Nicarágua
Início do apoio aos Contras, opositores do Governo sandinista

“DESTRUIR 30 ALVOS IMPLICA CHUVA DE BOMBAS”

Para o israelita Ely Karmon, investigador do Herzlya, centro de contraterrorismo, Irão, Síria, Hamas e Hezbollah formam o “eixo da desestabilização”. Entrevista

Como antevê o desfecho da crise nuclear iraniana?
Não creio que as sanções vão resultar. A Rússia parou de construir a central de Bushehr e de fornecer urânio, mas se calhar é tarde de mais… Outra opção é uma acção militar por parte dos EUA. Uma terceira é permitir que o Irão se nuclearize e depois ser dissuadido, mas não creio que esta seja a melhor solução pois permitirá aos iranianos serem muito mais agressivos.

Israel pode atacar o Irão como fez em 1981 contra o reactor iraquiano de Osirak?
Não é possível. Os peritos militares dizem que para destruir as cerca de 30 instalações nucleares, algumas enterradas a grande profundidade, seriam necessárias pelo menos duas a três semanas de bombardeamentos permanentes, o que é uma missão muito difícil, mesmo para Israel.

Teme uma proliferação nuclear no Médio Oriente?
Já começou, na Jordânia, no Egipto, nos países do Golfo… Na Turquia discute-se o assunto. A Turquia beneficia do chapéu nuclear da NATO mas não sei se o considera suficiente. Acho que a Turquia vai optar pelo nuclear.

Tem havido contactos oficiais entre os EUA e a Síria…
Também os europeus têm tentado tirar a Síria deste ‘eixo’. Os sírios continuam a entregar armas ao Hezbollah e a liderança do Hamas que está a sabotar o processo de paz está em Damasco. O regime sírio tem medo das consequências da paz e prefere correr o risco e continuar…

A alternativa a este regime é a Irmandade Muçulmana?
O problema é exactamente esse. Após a Síria sair do Líbano, houve pressões para mudar o regime. Depois pararam. Israel já declarou ter aconselhado americanos e europeus a não mudar o regime. Por isso a Síria continua a assassinar pessoas no Líbano e a apoiar Hezbollah e Hamas.

A imprensa israelita fala numa guerra contra a Síria.
Não creio que a Síria vá atacar Israel. O Hezbollah pode provocar, mas isso dependerá da decisão do Irão. Israel será reactivo.

Irão e Síria são países-chave para a estabilização do Iraque?
O Irão não quer desestabilizar o Iraque, quer controlar o Governo para poder discutir o processo nuclear. O Irão foi inteligente: em 2003 deixou os EUA atacar o Iraque sem intervir; esteve o tempo todo em contacto com a oposição xiita e pediu-lhe que não cooperasse com os EUA durante a guerra. No fim, saiu vencedor.

Artigos publicados no Expresso, a 19 de maio de 2007

Inconformados com a revolução

Não gozam de liberdade para dizerem tudo o que pensam, mas não fazem disso desculpa para se acomodarem. Se fora de portas o Irão é visto como uma ameaça, na sua terra, dois médicos, uma estilista, um “rocker”, uma activista política, uma fotógrafa e um “ayatollah” revelam-nos um país desconhecido. Reportagem no Irão, com fotografias de António Pedro Ferreira

Jovens iranianos convivem na Avenida Valiasr, que atravessa Teerão ANTÓNIO PEDRO FERREIRA

Shila nasceu homem há 24 anos e cedo se incompatibilizou com o seu sexo. Esse desconforto, depositou-o recentemente nas mãos do cirurgião Bahman Mir-Djalali, fez uma operação de mudança de sexo e tornou-se protagonista de um dos aspectos mais surpreendentes da República Islâmica do Irão.

Shila, podes entrar, diz Bahman Mir-Djalali a partir do interior do seu consultório. Shila abre a porta, encara com desconhecidos sentados junto à secretária do seu médico e encosta-se, envergonhada, a uma parede do consultório. Shila, podes preparar-te. Vou já ver-te, continua o médico. Shila dirige-se para trás de um biombo, posiciona-o de modo a que ninguém ouse espreitar do outro lado e começa a despir-se. Estão a ver? Tem os mesmos cuidados que uma mulher…, comenta Mir-Djalali.

A mudança de sexo foi legalizada após o advento da revolução islâmica de 1979, através de um decreto (fatwa) do ayatollah Ruhollah Khomeini, para quem estas operações eram aceitáveis, em último recurso, em pessoas cuja imagem não era compatível com o seu sexo. Pura hipocrisia, alertam os críticos ao regime religioso. A mudança de sexo não visa o bem-estar de ninguém, antes combater aquilo que no Irão é considerado um crime maior — a homossexualidade, punível com pena de morte. Formado pela Universidade de Paris, Mir-Djalali é o precursor das cirurgias a transexuais no Irão. Operou pela primeira vez há 18 anos e, nos últimos 12 anos, abriu processos a 560 pacientes, operando 420 deles. Antes de Shila, o médico tratou de um inválido de guerra na casa dos 40 anos, com barba e bigode, recorda.

Para o cirurgião, a aceitação da mudança de sexo por parte da teocracia iraniana mostra quão tolerante é o Islão. Actualmente, o governo islâmico já começa a ajudar quem quer fazer estas operações, sobretudo quem não tem nada e é alvo de discriminação social. Rejeitada pela família, Shila vive com uma família adoptiva. Também no Irão, a diferença leva tempo a ser socialmente aceite. As estatísticas dizem que os iranianos recorrem à cirurgia oito vezes mais do que as iranianas. Os transexuais homens vivem muito pior, sobretudo nas sociedades orientais, diz o médico. Um rapaz com comportamentos femininos, que se maquilha, etc. é mal aceite pela sociedade. Já uma mulher com aparência e comportamentos masculinos, sobretudo nas aldeias, é bem vista. No Irão, até se costuma dizer: ‘Essa mulher, que Deus a guarde, é um verdadeiro homem!’

Shila, transexual, e o cirurgião Bahman Mir-Djalali, que fez a operação ANTÓNIO PEDRO FERREIRA

Um outro fenómeno social que lança dúvidas sobre a moralidade do regime é a figura do casamento temporário (sighe). Um iraniano pode celebrar um contrato de casamento por um ano, um mês, um dia ou uma hora… Findo o período contratualizado, o marido paga à esposa uma verba acordada previamente e segue-se o processo de divórcio.

A revolução islâmica ilegalizou os prostíbulos, mas engendrou esta forma camuflada de prostituição. Os seus partidários dizem que para ser decretado o divórcio há que esperar algum tempo para ver se a mulher está grávida. Se for o caso, o homem é obrigado a assumir as responsabilidades, o que nunca aconteceria em caso de prostituição. Mas, no Irão como em qualquer parte do mundo, uma mulher que aceita casar-se nestes moldes não deixa de ser uma mulher fácil.

A câmara indiscreta de Zohreh

Ainda não foi desta que Zohreh Soleimani repetiu a façanha de fotografar iranianas dentro de um estádio de futebol. Em Abril, o Presidente Mahmud Ahmadinejad propôs ao Parlamento a delimitação de zonas especiais para mulheres nos recintos desportivos, na crença de que a presença de mulheres e de famílias nos lugares públicos imporia uma moralidade e um decoro saudáveis. O regime considerou anti-islâmica a possibilidade das mulheres fixarem o olhar nas pernas dos atletas e Ali Khamenei, o líder espiritual, vetou a proposta.

Assim sendo, as fotos disparadas por Zohreh no dia em que, pela primeira vez desde 1979, as iranianas entraram num estádio de futebol continuam a ter um carácter histórico no portfolio desta fotojornalista de 36 anos. O Irão acabara de se qualificar para o Mundial de 1998 e as autoridades organizaram uma recepção de boas-vindas aos atletas, interdita às mulheres. Centenas de iranianas forçaram com sucesso os portões de entrada do Estádio Azadi e Zohreh furou no meio delas. Com a objectiva, captou não só a paixão das iranianas pelo futebol mas sobretudo a sua determinação em lutar pela igualdade de direitos. Depois aproveitei a chegada dos jogadores para me escapar. Tinha medo que me tirassem os negativos. E foi assim que consegui publicar o meu primeiro trabalho fora do Irão, recorda Zohreh.

À direita, a fotojornalista Zohreh Soleimani ANTÓNIO PEDRO FERREIRA

Nove anos depois deste episódio, esta reivindicação das iranianas continua entregue a formas criativas de luta. Aquando do último jogo de preparação da selecção iraniana antes do Mundial da Alemanha, dezenas de mulheres, com bilhete na mão, tentaram entrar no estádio. Foram impedidas, mas não se deram por vencidas. Colocaram um aparelho de televisão no exterior do estádio e ali ficaram a ver o jogo, até à polícia chegar.

Desta vez, Zohreh não estava lá, logo ela que também está habituada a contornar imprevistos. Na juventude, fintou o destino que a projectava como engenheira civil e inscreveu-se na Universidade de Arte de Teerão, onde estudou fotografia durante quatro anos e se apaixonou por Sebastião Salgado. Entrou no mercado de trabalho com facilidade, mas rapidamente se confrontou com os limites à liberdade de expressão. O regime era implacável com quem o criticava e os jornais reformistas onde Zohreh trabalhava fechavam uns atrás dos outros.

Há sete anos decidi não trabalhar mais para jornais iranianos. Desisti e comecei a trabalhar como ‘free-lancer’ para a imprensa ocidental. Evita assim chatices diárias, mas não se livra de riscos. Se publicar numa revista estrangeira fotos de iranianas a maquilharem-se, por exemplo, pode ter sérios problemas. Acresce que há certos acontecimentos, sobretudo de cariz religioso, que, por ser mulher, Zohreh não está autorizada a fotografar, nem mesmo de chador, diz. Só muito raramente fotografias do líder espiritual Ali Khamenei são tiradas por mulheres.

Cansada destas limitações, a fotógrafa começou a apostar na reportagem. Há cinco anos, rumou até ao Afeganistão, palco da guerra pós-11 de Setembro. Queria fotografar os campos de refugiados junto à fronteira com o Irão para um projecto da UNICEF. Durante uma semana travei uma luta para entrar no Afeganistão. Diziam-me que as leis tinham mudado e que eu tinha de regressar a Teerão para obter uma autorização nova. Eu era mulher, estava sozinha e eles não queriam deixar-me passar. O comandante do posto militar estava chocado por me ver ali sozinha. Então eu disse-lhes: ‘Se vocês não me autorizarem a passar a fronteira, eu entro ilegalmente. Suborno alguém e entro. Não tenho outra opção. Preciso de trabalhar’. Eles olhavam para mim e pareciam pensar: ‘Mas quem é esta mulher?’. A fibra de Zohreh deu frutos e lá acabou por atravessar a fronteira.

Se fores, apanhas!

Quando recebeu o Expresso no apartamento onde funciona a organização Iranian Civil Society Organizations Training & Research Center, à qual se dedica de corpo e alma em defesa dos direitos das mulheres, Fariba Davoudi ainda tinha o corpo dorido das bastonadas que recebera na última manifestação em que participou. O regime iraniano teme as concentrações públicas e não enjeita a linguagem da força para as dispersar. Tenho medo, mas ponho o meu medo de lado, diz Fariba.

Por isso, na agenda ela tinha já apontado a data da próxima manifestação — e recebido das autoridades cinco ou seis telefonemas ameaçadores: Se fores, vais apanhar como da última vez. A última vez não fora a pior. Há três anos, Fariba esteve presa durante 40 dias numa cela solitária por ter escrito um artigo em defesa dos direitos das mulheres.

Face à lei iraniana, as mulheres têm metade do valor dos homens. O homem é o chefe de família, é ele quem, em última instância, toma sempre a decisão final. As mulheres necessitam de uma autorização do marido para obterem um passaporte e para trabalharem fora de casa, por exemplo. Se o marido não concorda com o emprego que a mulher arranjou, um juiz pode escrever uma carta especial ao patrão dela para despedi-la. E em casos de divórcio, a lei protege os homens, não as mulheres, exemplifica Fariba.

Fariba Davoudi, a voz defensora das mulheres ANTÓNIO PEDRO FERREIRA

Detentora de um mestrado em Ciências Políticas pela Universidade de Teerão, Fariba é uma mulher profundamente religiosa o que confere às suas reivindicações uma legitimidade acrescida. Acredito em Deus, mas os outros não têm de acreditar em Deus da mesma maneira que eu, diz. Por ter uma relação lúcida com o Islão, revolta-se contra quem invoca cegamente a sua religião, sobretudo quando são mulheres a fazê-lo. Recentemente, Fatimeh Aliya, uma das doze deputadas iranianas, afirmou que a poligamia é uma forma de melhorar a sina de muitas mulheres pobres. No Irão há mulheres no Parlamento, mas escolhidas a dedo…

Em maioria nas universidades, as mulheres — metade dos 68 milhões de habitantes do Irão — são hoje o principal motor do movimento reivindicativo de direitos e liberdades. Há iranianas na política e na polícia, há advogadas, médicas, bombeiras, motoristas e até pilotos de rally. Cantoras é que não. No Irão, a voz das mulheres é um instrumento musical proibido. Mas Fariba Davoudi não se calará, nem mesmo que a voz lhe doa.

A ovelha negra do regime

Se Hossein-Ali Montazeri fosse o líder espiritual do Irão, o regime não teria perdido a sua natureza islâmica, mas seria com toda a certeza muito diferente do que é hoje. Nascido em 1922, Montazeri foi um dos líderes da revolução islâmica de 1979 e, durante muitos anos, o sucessor natural de Khomeini, que dizia ser Montazeri o fruto da sua vida.

Três meses antes de morrer Khomeini retirou-lhe esse estatuto. Montazeri caíra em desgraça quando começou a criticar o rumo que a revolução levava, denunciando a falta de liberdade, a repressão em nome do Islão, a interferência em eleições, o encerramento de jornais, as execuções sumárias e a perseguição aos dissidentes.

Em Outubro de 1997, foi colocado em prisão domiciliária, após questionar a infalibilidade do líder espiritual, Ali Khamenei. Montazeri continuava a acreditar nas virtudes da doutrina velayat-e-faqih” (o governo do jurisconsulto), a pedra angular da república islâmica teorizada por Khomeini, mas considerava que a responsabilidade do Líder Supremo (faqih), enquanto representante de Deus na Terra, era grande de mais para uma só pessoa pelo que era de todo aconselhável que o líder não dispensasse o aconselhamento com peritos e estudiosos.

Na sua casa, o nº 328 da Haram Boulevard, na cidade santa de Qom, o Grande Ayatollah Montazeri recebe diariamente estudantes de Teologia, mullahs” ou cidadãos a quem dá conselhos e tira dúvidas. Num dos topos da rua está montado um posto de vigia, com jovens guardas atentos a quem entra e sai da casa. Mal se passa o portão entra-se numa espécie de garagem onde se tira os sapatos, na presença de dois guardas de poucas falas. Depois, atravessa-se um pátio interior, que funciona como uma espécie de terra-de-ninguém” e chega-se ao espaço de Montazeri.

O clérigo recebe o Expresso numa sala simples, despojada de decorações e de novas tecnologias. Oficialmente, já não está em prisão domiciliária desde 2003, mas tem com o regime uma espécie de acordo de cavalheiros: ele doseia as palavras — pediu desculpa por não dar a entrevista solicitada pelo Expresso — e o regime permite-lhe uma vida aparentemente normal.

O “ayatollah” Montazeri ANTÓNIO PEDRO FERREIRA

Sentado à secretária, Montazeri não se inibe de dar conselhos: Com a graça de Deus, espero que vocês, como jornalistas, descrevam as coisas que vêem neste país de forma independente. E não tenham medo se alguém vos questionar sobre aquilo que escreverem. Sejam vocês próprios. Ao fundo da sala, um jovem guarda assiste em silêncio a toda a conversa, para depois reportar. São os olhos e os ouvidos do regime nos aposentos do principal dissidente da revolução iraniana. Seguindo o conselho de Montazeri, em qualquer rua iraniana salta à vista a omnipresença de Khomeini em posters, retratos, outdoors ou murais. O pai da revolução morreu em 1989, mas os iranianos continuam a recordá-lo como um homem bom, ainda que o regime que inspirou lhes continue a amordaçar a língua. A língua, mas não o sentido de humor… Nos telemóveis dos iranianos circulam dezenas de SMS com piadas, muitas delas injuriosas, sobre os mullahs e o Presidente. Uma delas diz que no dia seguinte à eleição de Mahmud Ahmadinejad para a presidência do Irão, a população de Teerão foi avisada que não haveria água nas 24 horas seguintes. Ahmadinejad ia tomar o primeiro banho da sua vida…

Hiroshima, minha irmã

Hamid Salehi é um iraniano querido em Hiroshima. Carinhosamente, os japoneses chamam-lhe Salehi-san. Tinha apenas 16 anos quando tomou uma decisão que lhe mudou o curso da vida, alistando-se como voluntário na guerra Irão-Iraque (1980-1988). Senti que tinha de defender o meu país, recorda. Em Março de 1982, foi surpreendido no meio de um ataque iraquiano com gás mostarda, junto à fronteira a sul. A máscara que tinha era maior do que a sua cara, pelo que só a colocou quando começou a sentir os primeiros efeitos do gás. Demasiado tarde.

Ficou 22 dias com os olhos fechados devido às inflamações e com a vida condicionada para sempre. Hoje, casado, com três filhos e um mestrado em Ciências Políticas, Salehi é um dos membros mais activos da Sociedade de Apoio às Vítimas de Armas Químicas. Quase duas décadas após o fim do conflito, mais de 50 mil sobreviventes dos ataques químicos continuam, com ele, a padecer de problemas crónicos ao nível dos pulmões, dos olhos e da pele.

Na sede desta organização não-governamental, em Teerão, uma exposição fotográfica revela como a tragédia iraniana é em tudo semelhante à de Hiroshima. O que aconteceu no Irão é comparável a uma bomba atómica, diz Shahriar Khateri, um médico de 36 anos que assegura as relações internacionais da organização, que tem naquela cidade japonesa um parceiro de intercâmbios por força dessa geminação sentimental.

O médico Shahriar Khateri ANTÓNIO PEDRO FERREIRA

Anualmente, morrem cerca de 200 doentes. Mas o médico informa que a mortalidade decorrente da exposição ao gás mostarda, por exemplo, só atinge o pico 25 anos após o contacto com o químico. Shahriar Khateri indigna-se que a tragédia iraniana não tenha o mediatismo do gaseamento dos curdos iraquianos em Halabja (1988) e sobretudo que o isolamento do Irão na cena internacional dificulte a partilha de conhecimentos médico-científicos. Quando os terroristas libertaram uma pequena quantidade de gás sarin no metro de Tóquio, em 1995, houve muitas contribuições por parte de médicos de todo o mundo no sentido de estudar os efeitos e ajudar as vítimas. Posso provar que foram usadas 400 toneladas de gás sarin contra os iranianos e 800 toneladas de gás mostarda, mas não houve qualquer tipo de colaboração, acusa.

O isolamento internacional do Irão tem na sua base a inimizade política com os Estados Unidos, quase tão antiga quanto a própria revolução. Nas pinturas e slogans anti-americanos que decoram os muros da antiga embaixada norte-americana em Teerão promete-se à América uma pesada derrota, mas os transeuntes já não param para apreciar.

Porém, à revelia do discurso oficial, o Irão não vive de costas voltadas para a América. Nos hotéis, torcem o nariz quando o cliente tenta pagar em moeda local. Dólar, dólar…, preferem. Os jeans e a Coca-Cola — ainda que os iranianos produzam a Zam-Zam, uma Cola nascida com a revolução, menos doce e menos gaseificada — são consumo obrigatório dos mais jovens. E a CNN está apenas à distância de uma parabólica.

Nas ruas, os iranianos expressam o seu ódio a Bush e ao seu regime e a sua admiração pelo povo americano e pela sua cultura — ou pelo que conhecem dela… No seu cartão profissional, o taxista Ebrahim Mahmmoodi, de 51 anos, orgulha-se de 25 anos ao serviço da imprensa estrangeira. Já trabalhou para jornalistas dos quatro cantos do mundo, incluindo Christiane Amanpour (CNN). É uma espécie de motorista privativo da CBS e estrela do livro Lifting the Veil: Life in Revolutionary Iran, de John Simpson, o jornalista da BBC que acompanhou Khomeini no regresso do exílio. Uma tarde, perante a curiosidade que desperta, na montra de uma livraria nos arredores da Universidade de Teerão, um livro com uma foto de Marilyn Monroe na capa, Mahmmoodi interroga: Quem é ela? Uma jornalista?

Anathema, só no mercado negro

Como é que se diverte um país onde 70% dos habitantes têm menos de 30 anos e os bares e as discotecas são proibidos? Divirto-me a comer com os amigos, nos cafés e nos restaurantes, diz Rana, uma contabilista de 25 anos, que acaba de lanchar num café de Teerão na companhia da amiga Parisa, uma empregada comercial de 27 anos.

Entre os mais abonados há quem opte por andar às voltas de carro, sem planos definidos, em artérias bem-frequentadas como a Avenida Valiasr ou a Rua Jordan. Eles aproveitam para mostrar carros potentes e elas as maquilhagens. Parisa e Rana falam dessas exibições com distanciamento. Preferem realçar a frustração que sentem por não poderem escolher o seu próprio estilo de vida. Quero poder escolher se uso ou não o lenço (‘hijab’), diz Parisa, enquanto apaga um cigarro no cinzeiro.

Namorar no Irão é também um exercício que requer alguma criatividade. Ao fim-de-semana, o Parque Melad enche-se de jovens casais apaixonados. Sentados nos bancos dos jardins ou nos relvados do parque, conversam contidamente e privam-se de carícias, não vá um agente da autoridade estar à espreita por trás de um arbusto para punir comportamentos decadentes. Neste contexto, tentar testemunhar um beijo ou um segredar ao ouvido é pura perda de tempo.

Na impossibilidade de se divertirem publicamente, é em casa que os jovens iranianos mais procuram a diversão, organizando festas com os amigos. Se a família tiver mentalidade para tal, os pais abandonam a casa para os filhos estarem mais à vontade; se o meio é conservador, os pais também marcam presença e tudo é mais controlado.

É também dentro de portas que a Internet veio ajudar a passar o tempo — e abrir algumas janelas proibidas sobre o mundo exterior. O anonimato dos chats” permite a abordagem de assuntos que são tabu na sociedade iraniana, como o poder ditatorial dos mullahs ou a partilha de experiências sexuais. E a liberdade de expressão ilimitada associada aos blogues tornou-os meios de subversão temidos pelo regime que, de tempos a tempos, doseia essa invasão cultural e promove rusgas de moralidade, bloqueando sítios no ciberespaço e apreendendo equipamentos malditos, como as antenas parabólicas.

Para não arranjar problemas com as autoridades, Abolfazl, de 23 anos, cumpre as regras quando tem tempo livre. Formou uma banda com os amigos e, sob o nome artístico de Mendieta, desdobra-se nas guitarras eléctrica, clássica e espanhola. Adora heavy-metal, mas não pratica o estilo, que é proibido no Irão. Se um dia quiser comprar um CD da sua banda favorita, Anathema, terá de se aventurar no mercado negro, onde tudo se vende, da música interdita aos sucessos de Hollywood, do álcool à pornografia. Para não se ser surpreendido, a técnica é ir sempre acompanhado: enquanto um trata das compras o outro fica à coca, não vá a polícia aparecer.

O “rocker” Abolfazl ANTÓNIO PEDRO FERREIRA

Abolfazl trabalha numa loja do Capital Computer Building, uma espécie de sede da revolução digital em Teerão, muito procurada pelos jovens. Lá podem encontrar-se as últimas novidades em matéria tecnológica, de PC a telescópios, de máquinas fotográficas a mp3. Marsa, de 21 anos, namora demoradamente uma montra de telemóveis. Mana, de 15 anos, procura headphones” para o seu ipod. Numa montra com jogos para computador anuncia-se que os campeões de vendas são O Cógico Da Vinci e o Alemanha 2006. Na loja da Akai, o funcionário Amir, de 21 anos, diz que o negócio está bom por causa do futebol. No Mundial da Alemanha, a selecção iraniana não conseguiu vencer nenhum jogo, mas à sua custa os iranianos travaram uma corrida aos LCD.

Está lá? Daqui fala Zeta-Jones

Com o advento da revolução islâmica, uma das máximas que tomou de assalto o quotidiano dos iranianos foi Manter as aparências do Islão. A maneira de vestir dos iranianos passou então a ser uma montra desse desígnio. As mulheres passaram a cobrir o cabelo e a usar vestes largas e longas para disfarçar os contornos do corpo e os homens a evitar mangas curtas e calções.

27 anos depois, as regras mantêm-se, mas a revolução tornou-se mais irreverente. Pelas ruas de Teerão e em locais como o Jaam-e-jam food-hall ou o Ghandi Shopping Center passeiam-se cada vez mais mulheres maquilhadas, com lenços coloridos a descaírem da cabeça e calças curtas a ameaçar deixar à mostra a barriga da perna. No Ghandi Shopping Center, uma dessas passerelles” de modernidade, as lojas têm coladas no vidro autocolantes com o perfil de uma mulher velada: Não é permitida a entrada a mulheres sem a cabeça coberta, é a leitura que se impõe.

O regime está atento aos abusos e, sobretudo no Verão, promove campanhas contra as mulheres mal vestidas. Nas ruas, os basiji” — uma milícia voluntária de jovens (homens e mulheres) devotos da revolução — comportam-se como uma espécie de chicote do regime e confrontam as mulheres com vestes mais atrevidas, os homens com penteados estranhos ou qualquer pessoa que se atreva a passear um cão (considerado um animal impuro). Ao estilo de uma polícia de costumes, multam ou detêm os prevaricadores para os repreenderem.

É por isso que pessoas como a estilista Mahla Zamani têm de medir a criatividade que investem no seu trabalho para não terem problemas com as autoridades. A imposição do lenço após a revolução limitou-lhe a liberdade de criar, mas aguçou-lhe o apetite por desenhar roupas modernas. Em cima de um balcão no seu ateliê, na bem-frequentada zona norte de Teerão, Mahla tem expostas pequenas estátuas vestidas com trajes tradicionais iranianos que lhe servem de inspiração. Ao lado, dentro de um armário, guarda o que não pode mostrar a qualquer um: catálogos de vestidos justos e decotados usados por manequins de cabelo solto e em poses provocantes, susceptíveis de escandalizar o mais moderado dos mullahs. Mahla trabalha sobretudo para cidadãos estrangeiros e para a alta sociedade de Teerão, habituada a festas faustosas ao estilo ocidental. Dentro de casa, ninguém pode impor nada, precisa a estilista.

Mahla Zamani, a estilista ANTÓNIO PEDRO FERREIRA

Ela veste as suas próprias criações e delas não abdica, mesmo quando tem de se deslocar a um organismo público. Eles não gostam muito, mas eu vou assim na mesma, diz. Afinal de contas, foi ela que, em 2004, vestiu Catherine Zeta-Jones para a cerimónia dos Óscares. E uma estilista que é procurada por uma estrela de Hollywood pode dar-se ao luxo de sair à rua como quer — ou, tratando-se do Irão, quase como quer.

(Foto de aberturaprincipal: Jovens iranianos convivem na Avenida Valiasr, que atravessa Teerão ANTÓNIO PEDRO FERREIRA)

Artigo publicado na revista Única do “Expresso”, a 2 de setembro de 2006, e republicado no “Expresso Online”. Pode ser lido aqui

“Ocupar o Irão seria um pesadelo”

Henry Kissinger numa fotografia de 29 de abril de 1975, era ele secretário de Estado dos Estados Unidos WHITE HOUSE PHOTOGRAPHIC OFFICE / WIKIMEDIA COMMONS

A ocupação militar do Irão seria um pesadelo. Não creio que nenhuma pessoa séria considere somar a ocupação do Irão à ocupação do Iraque, disse ontem o antigo secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger, em resposta a uma pergunta do Expresso durante uma conferência em Lisboa. As mudanças de governo no Irão têm de ser levadas a cabo pelo povo iraniano. Mas isso não exclui outras opções. A questão não é a deposição do Governo iraniano através de forças militares americanas, mas antes as armas nucleares no Irão e a sua ameaça para a humanidade, disse.

Kissinger continua a dar crédito às negociações, mas diz que elas não podem continuar indefinidamente, sob pena de se tornarem um método para a proliferação.

Quando era secretário de Estado (1973-1977), a ameaça nuclear foi a sua maior preocupação — hoje, esse perigo não é menor. As pessoas dizem que os Estados têm sido responsáveis. Nem por isso. Olhando para a distribuição do ‘know-how’ paquistanês, feita através de um alegado sistema privado, e para a Coreia do Norte, isso significa que as duas entradas mais recentes no clube do nuclear espalharam informação nuclear. Um bom passo seria a criação de um sistema internacional de instalações de enriquecimento de urânio.

Artigo publicado no Expresso, a 13 de maio de 2006