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Quem ataca quem no Médio Oriente? A Palestina é o pretexto comum, mas os nove países envolvidos têm agenda própria

Em três meses, o conflito na Faixa de Gaza assumiu uma dimensão regional, com vários Estados a envolverem-se em trocas de fogo. A Palestina é o argumento útil, mas vários países atacam no interesse de agendas próprias

INFOGRAFIA DE JAIME FIGUEIREDO

A ofensiva de Israel na Faixa de Gaza destapou o vespeiro da conflitualidade no Médio Oriente. Desde o início da guerra, a 7 de outubro, nove Estados da região já dispararam contra vizinhos. Se países como o Líbano e a Síria têm uma grande exposição ao problema israelo-palestiniano, atores internos no Iraque e no Iémen parecem agir por controlo remoto.

O Irão saiu da sombra e passou a protagonista, bombardeando três países, um deles o Paquistão, uma potência nuclear. A Turquia confirmou que mantém o foco na questão curda. E até a discreta Jordânia alvejou um vizinho.

Israel ➨ Faixa de Gaza

O ataque terrorista do Hamas a Israel, a 7 de outubro, entrou para a memória coletiva do povo judeu como uma espécie de 11 de Setembro, pela sua surpresa, dimensão, impacto emocional e pela vulnerabilidade que evidenciou um país reconhecido pela eficácia dos seus serviços de informação.

Israel retaliou contra a Faixa de Gaza, o território palestiniano controlado pelo grupo islamita, inicialmente com bombardeamentos aéreos posteriormente combinados com uma ofensiva terrestre. No próprio dia do ataque, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu disse à nação que Israel não parará até “destruir as capacidades do Hamas”.

Faixa de Gaza ➨ Israel

Desencadeada a resposta militar de Israel, o disparo de foguetes desde Gaza não cessou. Na terça-feira passada, o Hamas disparou 25 rockets contra território israelita a partir do norte do território palestiniano, que tem sido o foco principal da intervenção militar.

Ainda que a maioria dos foguetes tenham sido intercetados pelo Iron Dome, o escudo defensivo de Israel, ou caído em descampados, o seu disparo revela capacidade desafiante do Hamas e é, para as comunidades israelitas próximas da fronteira, um reviver permanente do terror vivido a 7 de outubro.

Líbano ➨ Israel

Mal começou a guerra em Gaza, a fronteira norte de Israel tornou-se numa frente de conflito, com troca de fogo de parte a parte e vítimas mortais ocasionais dos dois lados. O sul do Líbano é um bastião do Hezbollah, uma milícia xiita (e também partido político, com deputados e ministros) cujo nascimento está intrinsecamente ligado à invasão israelita do sul do Líbano, em 1982, e subsequente ocupação, até ao ano 2000.

A luta contra a ocupação israelita da Palestina e também contra a presença militar dos Estados Unidos no Médio Oriente são prioridades para o Hezbollah. Os ataques ao longo da fronteira com Israel são, por isso, frequentes, mas com a guerra em Gaza tornaram-se diários e mais intensos.

Israel ➨ Líbano

Para Israel, a sua fronteira norte é um local de tensão permanente desde que se retirou do sul do Líbano. Desde 7 de outubro, as forças israelitas têm não só alvejado posições do Hezbollah como também já atacaram nos subúrbios de Beirute, para eliminar um alto responsável do Hamas.

Este estado de guerra forçou a transferência de milhares de habitantes do norte de Israel para locais mais seguros.

Na fronteira entre Israel e Líbano, que foi demarcada pela ONU (Linha Azul), existe, desde 1978, uma missão de capacetes azuis (UNIFIL), que não tem, porém, dissuadido a troca de fogo de parte a parte.

Israel ➨ Síria

Os ataques israelitas em território sírio não são inéditos e, desde 7 de outubro, já ocorreram por diversas vezes, visando, entre outros, o Aeroporto Internacional de Damasco.

Os alvos de Israel, para além de posições do exército sírio, são prioritariamente grupos armados apoiados pelo Irão e combatentes do Hezbollah libanês, que foram cruciais para a sobrevivência política do Presidente Bashar al-Assad, após os protestos da Primavera Árabe e a guerra civil que se lhe seguiu.

A Síria mantém com Israel uma disputa territorial em torno dos Montes Golã, que Israel ocupou na guerra de 1967, anexou através de uma lei de 1981, mas que os sírios continuam a reivindicar.

Iémen ➨ Israel

No Iémen quem manda são os hutis, um grupo que conquistou o poder pela força em 2014, mas que não é reconhecido como um interlocutor legítimo pela comunidade internacional.

Estes rebeldes iemenitas, que controlam a costa ocidental do país, declararam apoio aos palestinianos e mostraram-no ameaçando navios em trânsito pelo Mar Vermelho com origem ou a caminho de portos em Israel.

Em retaliação ao assédio dos hutis às embarcações que percorrem esta via marítima, por onde passa 12% do comércio mundial, forças dos Estados Unidos e, por uma vez, também do Reino Unido já bombardearam posições dos hutis dentro do Iémen.

Irão ➨ Iraque

A 3 de janeiro, um duplo atentado suicida reivindicado pelo Daesh, na cidade iraniana de Kerman, provocou 94 mortos. O Irão retaliou esta semana e um dos alvos foi Erbil, na região autónoma do Curdistão iraquiano (norte), onde Teerão disparou 11 mísseis balísticos contra o que diz ser um centro de espionagem da Mossad (serviços secretos de Israel).

O Iraque, cuja população é maioritariamente xiita, como o Irão, ainda alberga tropas norte-americanas que ali ficaram após ajudarem no combate ao Daesh. Não raras vezes, os militares dos EUA investem contra milícias locais ligadas ao Irão e são eles próprios um alvo das mesmas, como tem acontecido desde 7 de outubro.

Esta semana, o primeiro-ministro do Iraque defendeu a saída das tropas norte-americanas do país.

Irão ➨ Síria

Paralelamente ao ataque na região iraquiana de Erbil, os Guardas da Revolução Islâmica, uma unidade de elite das Forças Armadas iranianas, atacaram também dentro da Síria, com a qual o Irão não tem fronteira.

Quatro mísseis balísticos foram lançados desde a província de Khuzestan, a oeste do Irão, na direção de posições do Daesh em Idlib, numa resposta direta aos atentados em Kerman.

Nesta região do noroeste da Síria, persiste ainda um foco rebelde de contestação ao regime sírio, que é apoiado pelo Irão. Neste ataque, noticiou a agência iraniana IRNA, Teerão disparou “nove mísseis de vários tipos” contra “grupos terroristas em diferentes áreas dos territórios ocupados na Síria”.

Turquia ➨ Iraque

O Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, tem sido dos líderes mais vocais contra o primeiro-ministro de Israel, ao ponto de já ter dito que Benjamin Netanyahu “não é diferente de Hitler”. Mas paralelamente ao seu apoio à Palestina, há uma questão maior no posicionamento da Turquia na região: o independentismo curdo.

Dentro de portas, os curdos são uma ameaça separatista que Ancara tenta combater também nos países da vizinhança onde vivem minorias curdas.

No sábado passado, caças turcos alvejaram posições no Curdistão iraquiano (norte), onde a Turquia tem várias bases militares. Na véspera, um ataque a uma dessas bases atribuído ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, na sigla inglesa) provocou nove mortos entre os militares turcos.

Turquia ➨ Síria

Os curdos foram o alvo de bombardeamentos turcos também na Síria, dentro do mesmo espírito que levou Ancara a atacar no Curdistão iraquiano.

Segundo o Ministério da Defesa da Turquia, foi alvejado um total de 29 localizações — incluindo “cavernas, bunkers, abrigos e instalações petrolíferas” — associadas ao PKK e às Unidades de Proteção Popular (YPG, na sigla inglesa). Esta organização armada da região do Curdistão sírio teve um papel central na coligação liderada pelos EUA que derrotou o Daesh na Síria.

Dos quatro países do Médio Oriente que têm populações curdas — Turquia, Síria, Iraque e Irão —, a Síria é a que tem a minoria mais pequena.

Irão ➨ Paquistão

No dia seguinte a ter atacado no Iraque e na Síria, o Irão bombardeou também o Paquistão. Os dois países partilham uma fronteira de 900 quilómetros e um inimigo comum: os separatistas do Balochistão, uma região rica em gás e minérios, atravessada pela fronteira entre ambos.

Na terça-feira, o Irão usou drones e mísseis para alvejar posições do Jaish al-Adl, um grupo sunita composto por baloches envolvido em ataques dentro do Irão, numa área remota e montanhosa dessa região separatista. Morreram duas crianças e três civis ficaram feridos.

O ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão, Hossein Amir-Abdollahian, esclareceu que os alvos dos bombardeamentos não foram paquistaneses, mas “terroristas iranianos presentes em solo paquistanês”. A 15 de dezembro, 11 polícias iranianos tinham sido mortos num ataque a uma esquadra, perto da fronteira com o Paquistão.

Paquistão ➨ Irão

Islamabade respondeu ao ataque do Irão mandando chamar o seu embaixador em Teerão e disparando mísseis contra a província iraniana de Sistão e Balochistão. O bombardeamento, que teve como alvo outro grupo separatista — a Frente de Libertação Baloche —, provocou nove mortos (nenhum tinha nacionalidade iraniana).

Os ataques entre estes dois países originaram posições de condenação de parte a parte e acusações de violação da soberania, mas a relação não congelou.

No mesmo dia em que o Irão atacou o Paquistão, os dois países realizaram um exercício naval com navios de guerra, no Estreito de Ormuz, no Golfo Pérsico. E no dia seguinte (véspera da retaliação do Paquistão), os dois ministros dos Negócios Estrangeiros deitaram água na fervura e conversaram ao telefone.

Esta sexta-feira, o Governo paquistanês anunciou que o seu país e o Irão concordaram em diminuir as tensões após a troca de violentos ataques esta semana.

“Os dois ministros dos Negócios Estrangeiros concordaram que a cooperação e a coordenação no combate ao terrorismo e outras áreas de interesse comum devem ser reforçadas”, disse o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Paquistão, no final de uma chamada telefónica entre os dois governantes.

Jordânia ➨ Síria

Não foram razões políticas que estiveram na origem de bombardeamentos atribuídos à Jordânia em território sírio, mas, ao estilo de uma guerra sem regras, entre os dez mortos que o ataque provocou havia crianças.

O alvo, na quinta-feira, foi a província de Sweida, no sudoeste da Síria, uma zona não muito distante da fronteira com a Jordânia. Terá sido um esforço para atingir o tráfico de drogas — nomeadamente da anfetamina Captagon, usada pelos terroristas do Daesh para facilitar a matança — e perturbar o seu fluxo para dentro do reino hachemita.

As autoridades de Amã não se pronunciaram sobre o caso, mas é conhecido que, no passado, o país já recorreu a ataques desta natureza para atingir grupos dedicados ao narcotráfico, bem organizados e armados.

No ano passado, o Governo do Reino Unido defendeu que o Captagon é uma “tábua de salvação financeira” para a máquina de guerra do regime sírio.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui

Depois de Líbano, Síria e Iraque, também o Iémen já foi arrastado para a guerra na Faixa de Gaza

Nove anos de bombardeamentos da Arábia Saudita não quebraram os hutis. Ao estilo de piratas modernos, armados até aos dentes, os rebeldes do Iémen transformaram o Mar Vermelho num campo de batalha, em nome da solidariedade com os palestinianos. Após serem bombardeados pelos Estados Unidos, esta segunda-feira alvejaram com um míssil um navio de carga americano. Para lá do impacto regional, esta escalada é uma ameaça ao processo de paz que vinha a ganhar forma no Iémen

INFOGRAFIA DE JAIME FIGUEIREDO

A guerra na Faixa de Gaza, que cumpriu 100 dias no domingo, já pôs em ebulição países além de Israel e dos dois territórios palestinianos (Cisjordânia e Gaza). No sul do Líbano, o movimento xiita Hezbollah alimenta confrontos diários com tropas israelitas concentradas no norte do Estado judeu.

No Iraque, aumentaram as hostilidades entre milícias apoiadas pelo Irão e tropas dos Estados Unidos no país. Na Síria, membros dos Guardas da Revolução do Irão foram assassinados em bombardeamentos atribuídos a Israel. Mais recentemente, a guerra transbordou para o Mar Vermelho e inundou o Iémen.

Desde que Israel começou a bombardear a Faixa de Gaza, em retaliação pelo ataque do Hamas de 7 de outubro, os hutis do Iémen declararam apoio aos palestinianos, em palavras e ações. Este grupo rebelde — que tomou o poder pela força em 2014 e controla, atualmente, a costa ocidental do país — fê-lo direcionando o seu poder de fogo para navios em trânsito pelo Mar Vermelho, uma via de navegação crucial para o comércio mundial.

Ao estilo de piratas dos tempos modernos, equipados com drones e vários tipos de mísseis, os hutis escolheram como alvo embarcações que seguiam de e para portos de Israel. A ação mais espetacular ocorreu a 19 de novembro, quando sequestraram o cargueiro Galaxy Leader — com ligações ao empresário israelita Abraham “Rami” Ungar —, com uma abordagem ao navio feita por uma unidade de comandos hutis a bordo de um helicóptero.

Sexta-feira passada, Estados Unidos e Reino Unido alvejaram posições militares dos hutis no interior do Iémen. Numa declaração divulgada pela Casa Branca, o Presidente Joe Biden disse ter ordenado os bombardeamentos “em resposta direta a ataques sem precedentes realizados pelos hutis contra embarcações internacionais no Mar Vermelho”. Na véspera, as forças dos dois países tinham intercetado 21 drones e mísseis disparados pelos hutis.

No sábado, os Estados Unidos voltaram a atacar os hutis, desta vez a solo. No dia seguinte, os rebeldes responderam disparando um míssil de cruzeiro (que foi intercetado) na direção do contratorpedeiro USS Laboon, da Marinha dos Estados Unidos. Já esta segunda-feira, um navio de carga americano foi atingido por um míssil balístico atirado pelos hutis.

“Se o objetivo dos bombardeamentos [dos Estados Unidos e do Reino Unido] foi forçar os hutis a cessar os seus ataques no Mar Vermelho, não funcionará. Pouco depois dos ataques, os hutis prometeram retaliar ferozmente. Isto pode assumir a forma de ataques crescentes a navios americanos e britânicos ou atingir ativos dos Estados Unidos na região. De uma forma ou de outra, a situação provavelmente vai piorar”, analisou ao Expresso Veena Ali-Khan, investigadora do Iémen na Universidade de Nova Iorque.

“Paradoxalmente, os hutis beneficiam com os bombardeamentos, uma vez que permitem que eles se aproveitem do seu sentimento pró-Palestina. Também ajuda-os a provar a sua narrativa de que o verdadeiro inimigo são os EUA. Os hutis há muito que construíram a sua legitimidade com base na hostilidade contra os Estados Unidos e Israel, pelo que estes ataques aumentam a sua popularidade — distraindo a população dos problemas internos.”

O Comando Central dos Estados Unidos — que dirige operações militares com países aliados em apoio dos interesses de Washington e cuja prioridade é “deter o Irão” — rotulou os ataques a infraestruturas militares dos hutis de medidas defensivas destinadas a diminuir a capacidade bélica dos rebeldes. Mesmo a um nível operacional, a eficácia dos bombardeamentos ocidentais é questionável.

Desde março de 2015, os hutis têm sido alvo de uma campanha militar da Arábia Saudita — a Operação Tempestade Decisiva —, que começou com bombardeamentos aéreos, prosseguiu com um bloqueio naval ao Iémen e uma invasão terrestre. Em resposta, a infraestrutura petrolífera saudita foi fortemente atingida por ataques hutis.

Nove anos depois do seu início, contudo, a ofensiva de Riade não enfraqueceu os hutis, não os privou de um arsenal potente nem os inibiu de uma postura desafiante. O grupo controla a parte ocidental do Iémen, incluindo o Estreito de Bab al-Mandeb, à entrada do Mar Vermelho.

Quem são os hutis?

A investida saudita no Iémen começou cerca de meio ano depois de os hutis irromperem pela capital, Saná, e conquistarem o poder, a 21 de setembro de 2014. Começou então uma guerra civil num dos países mais pobres do mundo, com várias reivindicações separatistas, um braço ativo da Al-Qaeda e onde se passa fome e uma criança morre a cada dez minutos.

O objetivo de Riade passou por depor os hutis e devolver o poder ao governo do Presidente Abd-Rabbu Mansour Hadi, reconhecido pela comunidade internacional. Em vão.

Na histórica disputa pela hegemonia no Médio Oriente — entre a Arábia Saudita (monarquia árabe sunita) e o Irão (república persa xiita) —, os hutis estão na esfera de influência de Teerão, o que torna o Iémen uma peça importante no xadrez das rivalidades regionais. Mas quem são os hutis?

O grupo tem origem na região de Sa’dah, no noroeste do Iémen, negligenciada pelo poder central, durante décadas, em termos políticos, económicos e sociais. Sa’dah é o centro espiritual do zaidismo, uma corrente do Islão xiita.

Nos anos 80, a região tornou-se ainda mais periférica, quando a Arábia Saudita promoveu a disseminação do sunismo radical no país, marginalizando os crentes zaiditas. Esta situação levou à emergência de um movimento de resistência — designado por “Juventude que Acredita” —, que aliava revivalismo religioso e ativismo social.

A sua agenda foi formatada por um clérigo zaidita e membro do Parlamento do Iémen, de seu nome Hussein Badreddin al-Houthi. Com a cabeça a prémio e uma recompensa choruda anunciada pelo governo iemenita pela sua captura, a 10 de setembro de 2004 as autoridades confirmaram a sua morte, em confrontos com as forças de segurança do país.

O seu grupo armado, formalmente designado “Ansar Allah” (Apoiantes de Deus), passou a ser conhecido, informalmente, pelo seu nome de família: os “hutis”.

Irão assobia para o lado

Para os hutis, o Irão era um apoio crucial para a sua manutenção no poder. Para a Arábia Saudita, o grupo tornou-se uma ameaça xiita no calcanhar da Península Arábica esmagadoramente sunita. “Ao longo dos anos, a relação dos hutis com o Irão tornou-se inegavelmente mais forte. Teerão ajudou-os com armas, tecnologia para mísseis guiados antitanque e informação”, diz Veena Ali-Khan.

“Neste momento, é difícil identificar o papel preciso do Irão na escalada do Mar Vermelho, por as provas serem limitadas. No entanto, parece improvável que os hutis tenham escalado a situação a tal ponto sem aprovação ou envolvimento do Irão. Em última análise, isto faz parte da estratégia de Teerão de negação plausível, através da qual podem usar os hutis para escalar, mantendo ao mesmo tempo a posição pública de que não têm nada que ver com os ataques.”

Em abril de 2022, as Nações Unidas mediaram com sucesso uma trégua nos combates no Iémen que comprometeu os rebeldes hutis, o Governo internacionalmente reconhecido e milícias aliadas deste último. Este cessar-fogo, prorrogado duas vezes, expirou em outubro desse ano, mas as partes continuaram a respeitá-lo, numa atitude que indicia vontade — ou urgência — em resolver o conflito.

No atual adensar da tensão em torno do Iémen, a Arábia Saudita anunciou que acompanha a situação com “grande preocupação” e apelou à “contenção e prevenção da escalada”, noticiou a agência oficial saudita. Riade é um aliado fundamental dos Estados Unidos, que fornecem cerca de 80% do total das importações de armamento dos sauditas.

No Iémen, “o cessar-fogo de facto permanece em vigor, mas não existe documento oficial que o vincule. À medida que a probabilidade de uma escalada regional aumenta a cada dia, a fragilidade do processo de paz do Iémen torna-se evidente”, defende a investigadora.

“A Arábia Saudita apresentou uma proposta ao Enviado Especial da ONU para o Iémen [o diplomata sueco Hans Grundberg] no final do ano passado, dando um passo positivo. No entanto, não houve qualquer anúncio sobre o cronograma da aplicação do acordo entre hutis e sauditas, nem sobre para quando se espera o início das conversações intra-iemenitas. Até estes detalhes serem definidos, os iemenitas permanecerão no limbo.”

O apoio que os hutis recebem do Irão inscreve os rebeldes iemenitas no chamado “eixo da resistência”, que serve os interesses da República Islâmica na região, e de que fazem parte também o libanês Hezbollah e o palestiniano Hamas.

Mas a sua identidade xiita não significa que os hutis vão cair sob a influência iraniana por omissão, já que só a Arábia Saudita poderá dar garantias de um cessar-fogo de longo prazo. Os hutis têm, pois, margem para conversar com os dois gigantes e refazer as suas alianças regionais.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui

Estes cinco países podem ganhar com o degelo entre Riade e Teerão

Usados como peças de xadrez no tabuleiro geopolítico regional, cinco Estados podem ser os primeiros a beneficiar com a reaproximação saudita-iraniana

Arábia Saudita e Irão têm uma rivalidade antiga que moldou o Médio Oriente. Mais do que um acordo, o recente entendimento é, acima de tudo, uma medida de criação de confiança entre ambos. Apesar de não contemplar um roteiro para a resolução dos diferendos que os opõem, há potencial para acreditar que possa gerar estabilidade. Também há, contudo, especificidades que transcendem a vontade dos dois gigantes.

IÉMEN

Acordo é bom, mas falta ouvir os locais

Em guerra há quase dez anos, o Iémen tem sido uma peça no xadrez das rivalidades regionais, pelo que é o país onde o impacto do acordo pode ser maior. O Irão é aliado dos rebeldes huthis (xiitas) e a Arábia Saudita lidera uma operação militar regional de bombardeamentos ao país, visando o fim da era huthi e o regresso do Governo deposto, refugiado na cidade de Aden. Mas é ingénuo pensar que basta a vontade dos dois países para ditar a paz naquele território tribal, cuja governação o antigo ditador Ali Abdullah Saleh comparou a “uma dança sobre cabeças de serpentes”.

“Há um consenso de que o acordo diplomático entre a Arábia Saudita e o Irão é bom para o Iémen. Ao mesmo tempo, existe um entendimento de que a dimensão regional é só uma parte do conflito, que também tem uma dimensão local”, explica ao Expresso Veena Ali-Khan, investigadora do International Crisis Group para o Iémen. “Um acordo regional é um passo em frente, mas não é tudo; ainda é preciso um diálogo entre iemenitas.”

No terreno o país vive um cessar-fogo que sobreviveu ao seu término oficial, em outubro passado. Apesar de não ter sido renovado, as principais linhas da frente mantêm-se congeladas, havendo registo de ataques e combates aleatórios. Oficialmente, a trégua continua em vigor e os principais grupos em contenda têm-se privado de lançar ofensivas, o que indicia uma vontade de voltar a página do conflito e seguir em frente.

“Há um ambiente de reconciliação. Os huthis estão a falar com os sauditas, mas há sempre a possibilidade de o conflito se reacender. Os huthis saudaram o pacto, mas deixaram muito claro que um acordo entre Irão e Arábia Saudita não complementa um acordo entre huthis e sauditas.”

Recentemente, num posto de fronteira entre os dois países, as partes devolveram cadáveres de combatentes, num gesto interpretado como sinal de progresso entre ambos. Os sauditas receberam seis corpos e os huthis 58, naquele que foi o terceiro acordo do género.

Enquanto algumas feridas não saram e a política continua a marcar passo, acentua-se a grande catástrofe humanitária em que se transformou o Iémen. Terça-feira, o Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas anunciou a suspensão do seu programa de prevenção da desnutrição. Tudo acontece num dos países mais pobres do mundo, altamente dependente da ajuda internacional e onde, segundo a UNICEF, uma criança morre a cada dez minutos.

Síria

Guerra não acabou, mas Assad manda

A guerra na Síria foi outro braço de ferro entre os dois rivais. O Irão foi um esteio para Bashar al-Assad, fazendo deslocar, desde o vizinho Líbano, combatentes do aliado xiita Hezbollah para defender o ditador. A Arábia Saudita, por seu lado, apoiou grupos da oposição. No entanto, 12 anos após o início do conflito, e ainda que não tenha formalmente terminado, Riade e Teerão deixaram de olhar para a Síria como uma guerra por procuração.

Com a ajuda dos bombardeamentos da Rússia, as forças de Assad recuperaram muito território. Hoje, mesmo países que, de início, estiveram do lado da oposição aceitam que reconhecer que Assad voltou a mandar no país é um atalho para limitar mais instabilidade na região. Três países árabes resistem nessa aproximação: Marrocos, Catar e Kuwait.

Em maio passado, esse consenso crescente de que o diálogo com a Síria é necessário foi coroado com a reintegração da Síria na Liga Árabe, de onde tinha sido suspensa no primeiro ano da guerra. Essa reabilitação regional de Assad aconteceu numa cimeira realizada na cidade saudita de Jeddah.

“O Irão não faz parte da Liga Árabe [é um país persa], mas esse regresso da Síria à organização faz parte da normalização entre os dois países”, diz ao Expresso Tiago André Lopes, professor de Relações Internacionais na Universidade Portucalense. “Há uma aceitação de que Bashar al-Assad venceu a guerra, e essa normalização do líder é consequência direta da normalização das relações entre Riade e Teerão.”

Na cimeira árabe de Jeddah, Assad comentou o regresso da Síria ao concerto árabe: “Espero que marque o início de uma nova fase de ação árabe pela solidariedade entre nós, pela paz na nossa região, por desenvolvimento e prosperidade em vez de guerra e destruição”. Para trás ficaram mais de 300 mil civis mortos, quase 340 ataques com armas químicas, 82 mil bombas de barril lançadas sobre zonas residenciais e dezenas de cercos a localidades ao estilo medieval. Mais de 13 milhões de pessoas tornaram-se deslocados ou refugiados.

Líbano

Polarização e crise não são prioridades

O anúncio do acordo entre sauditas e iranianos criou uma ilusão no Líbano. Com o país fortemente polarizado, a nível político, entre o movimento xiita Hezbollah e seus aliados (que representam a influência do Irão no país) e, no campo oposto, algumas fações apoiadas pela Arábia Saudita, “quando o acordo foi inicialmente tornado público, ambos os lados tiveram a expectativa de que ajudasse a resolver o impasse político no país… a seu favor”, explica ao Expresso David Wood, analista do International Crisis Group para o Líbano.

Organizado mediante um sistema confessional, que determina que o Presidente do país seja sempre cristão maronita, o primeiro-ministro muçulmano sunita e o presidente do Parlamento muçulmano xiita, o Líbano está há dez meses sem conseguir eleger o chefe de Estado. A escolha cabe ao Parlamento, que já falhou 12 tentativas.

Este impasse político, num país que reconhece, oficialmente, 18 grupos religiosos, expõe uma classe política que age em função de agendas sectárias e não de um interesse nacional. Para agravar, o país atravessa uma grave crise económica — em abril, a taxa de inflação estava nos 269% — e vive na iminência de colapso financeiro, alimentado por altos índices de corrupção, incompetência e desvios de dinheiro público.

A recuperação económica está dependente de um empréstimo de 785 milhões de euros concedido pelo Fundo Monetário Internacional, que não avança devido às múltiplas crises que o país enfrenta. À semelhança do que se passa em relação ao Presidente, os políticos também não se entendem sobre o governador do Banco Central.

“O Líbano ainda não sentiu qualquer impacto tangível da reaproximação iraniano-saudita”, assegura Wood. “Na realidade, o país é uma prioridade muito menor para Riade e Teerão, em comparação com vários outros vizinhos. Por isso, é improvável que a reaproximação faça grande diferença no Líbano até que a Arábia Saudita e o Irão resolvam outros conflitos que consideram mais urgentes, a começar pela situação no Iémen.”

Esta falta de urgência em estabilizar o Líbano prende-se também com o peso desigual que o país tem para Riade e Teerão. Para esta, é uma das pontas do chamado arco xiita, com o qual a República Islâmica projeta influência no Médio Oriente.

Iraque

Arena de diálogo para amaciar

Antes da assinatura do acordo entre Riade e Teerão, em Pequim, foi em Bagdade que, durante dois anos, as partes partiram pedra para desbravar um caminho comum. Pela sua complexidade étnica e religiosa, o Iraque tem fações naturalmente próximas de ambos os países. Essa circunstância contribuiu para transformar este país num campo de batalhas por procuração após a queda do ditador Saddam Hussein e, mais recentemente, numa arena de diálogo. Entre 2020 e 2022, realizaram-se cinco rondas de conversações que serviram para clarificar pontos de vista e criar uma prática regular de comunicação.

Com o Irão, o Iraque partilha 1600 quilómetros de fronteira e uma população de maioria xiita, que foi reprimida nos tempos do sunita Saddam e chegou ao poder nos anos da guerra iniciada em 2003. Mais ainda, é um país atravessado pelo arco xiita de influência iraniana na região. Muitos grupos armados recebem apoio direto da Guarda Revolucionária Iraniana, algo que ficou exposto quando, a 3 de janeiro de 2020, o general Qasem Soleimani — herói nacional no Irão, tido como cérebro da estratégia militar do país para o Médio Oriente — foi assassinado no aeroporto de Bagdade por drones dos Estados Unidos. Em retaliação, Teerão bombardeou uma base americana no Iraque.

Já a Arábia Saudita, que nunca teve um grau de envolvimento militar no Iraque semelhante ao do Irão, partilha uma fronteira de 800 quilómetros, onde chega a sentir vulnerabilidade. Riade tem maior afinidade com a comunidade sunita, profundamente tribal, e representa um potencial de grandes investimentos que Teerão não consegue acompanhar. Para os sauditas, o acordo com o Irão funciona também como salvaguarda, na eventualidade de escalada na sempre tensa relação entre Teerão e Washington.

Bahrain

A curta distância dos dois gigantes

Este arquipélago do Golfo Pérsico é o único reino da Península Arábica que tem uma monarquia reinante sunita e uma população de maioria xiita, por vezes apontada como potencial quinta-coluna do Irão. Esta circunstância tornou o país vulnerável a interferências do gigante xiita, como sucedeu durante a Primavera Árabe (2011) — Riade interveio em defesa da dinastia Al-Khalifa e Teerão dos manifestantes —, e condena-o a ser um permanente palco de competição ideológica e geopolítica entre os dois gigantes.

Em 2016, o Bahrain foi lesto a solidarizar-se com a Arábia Saudita e a cortar relações com o Irão no dia seguinte a Riade tê-lo feito. Desde então, acentuou as suas divergências em relação a Teerão e reconheceu o Estado de Israel, tornando-se um dos protagonistas dos Acordos de Abraão, promovidos pelo então Presidente americano Donald Trump.

Ao estilo de um efeito dominó, Bahrain, Jordânia e Egito são apontados como os países árabes que estão na calha para normalizar relações diplomáticas com o Irão. “As autoridades egípcias já afirmaram que a melhoria do relacionamento entre o Cairo e Teerão depende de como progredir a relação entre o Irão e a Arábia Saudita”, explica o académico iraniano Javad Heiran-Nia. Da relação Riade-Teerão parece depender o degelo do Médio Oriente.

Quem fica a perder?

ISRAEL

O Irão é o elemento central da política externa de Israel, que o vê como ameaça existencial (devido ao programa nuclear) e circunstancial (pelo apoio a grupos palestinianos). Os Acordos de Abraão, com que o Estado hebraico iniciou uma aproximação ao mundo árabe, visaram também isolar o Irão. Com quatro países a bordo, a Arábia Saudita era candidata. “A pressão está sobre Riade”, diz Tiago Lopes. “Terá de escolher se dá prioridade ao Irão, para reconstruir o grande espaço islâmico, se a Israel, numa lógica de estabilização da região.”

TURQUIA

“A Turquia perde espaço político no Médio Oriente com a aproximação entre Irão e Arábia Saudita”, comenta o docente da Universidade Portucalense. “No mundo sunita, sempre foi vista como poder mediador e moderado. Com a normalização, deixa de poder fazer a ponte, porque não há nada para moderar.” Tiago Lopes recorda a recente cimeira da NATO, em Vílnius, onde após colocar entraves à adesão da Suécia, Ancara acabou por ceder. “A Turquia decidiu voltar à sua política de ambiguidade, que é ter relações com o Ocidente, mas também não estragar o relacionamento que tem com a Rússia.”

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Artigo publicado no “Expresso”, a 4 de agosto de 2023. Pode ser consultado aqui

Muqtada al-Sadr anunciou a sua retirada da política. Facto ou ficção?

Quase onze meses depois das legislativas, o Iraque continua sem Governo. Um dos principais protagonistas políticos defendia, até agora, a dissolução do Parlamento e a convocação de novas eleições. Esta segunda-feira, anunciou que sai da política. Já há apoiantes revoltados e multiplicam-se receios do regresso aos dias da violência

Vencedor das últimas eleições legislativas no Iraque, mas sem apoios parlamentares suficientes para fazer passar a sua solução de Governo, o poderoso líder xiita Muqtada al-Sadr anunciou, esta segunda-feira, que vai abandonar a política.

“Decidi não me intrometer nos assuntos políticos. Portanto, anuncio agora a minha reforma definitiva”, escreveu, no Twitter, o clérigo que chefia uma poderosa fação xiita, a sensibilidade islâmica maioritária entre a população do Iraque.

De Bagdade, a agência Reuters escreveu que a decisão “provocou protestos dos seus seguidores”, muitos deles envolvidos, desde há semanas, num protesto permanente (sit-in) nos jardins do Parlamento, e que “levantou receios de mais instabilidade”.

Também presente na capital iraquiana, a cadeia televisiva Al-Jazeera testemunhou, esta segunda-feira, que “mais apoiantes de Al-Sadr juntaram-se aos que têm participado no sit-in junto ao Parlamento, originando receios de uma escalada que possa desestabilizar o país ainda mais”.

Um grupo de sadristas invadiu mesmo o Palácio Republicano e afirmou o seu poder lançando-se à piscina. À semelhança do Parlamento, este edifício cerimonial situa-se na chamada Zona Verde, a área com mais segurança de Bagdade.

Respondendo à agitação e aos alertas de violência iminente, o Exército iraquiano declarou um recolher obrigatório a partir das 15h30 desta segunda-feira.

A decisão de Muqtada al-Sadr tem como cenário uma grave crise política que tem paralisado o Iraque há quase um ano. O país realizou eleições legislativas a 10 de outubro de 2021. O Movimento Sadrista (de Muqtada) foi a formação mais votada, mas no Parlamento os diferentes partidos políticos não conseguiram acordar a formação de um novo Executivo.

Após ordenar aos seus deputados que se demitissem e incitar os seus seguidores a invadirem o Parlamento — a 30 de julho ocuparam-no e posteriormente montaram tendas nos jardins —, Al-Sadr apelou à dissolução do Parlamento e à convocação de eleições antecipadas.

Sábado passado, refez a estratégia. Defendeu que, para se resolver a crise, “mais importante” do que dissolver o Parlamento e ir de novo a votos é que “todos os partidos e personalidades que têm integrado o processo político” desde a invasão norte-americana do Iraque e a queda de Saddam Hussein, em 2003, “deixem de participar”. E esclareceu, para que não restassem dúvidas: “Isso inclui o Movimento Sadrista”.

Esta segunda-feira, paralelamente à sua retirada da política, o clérigo anunciou que “todas as instituições” ligadas ao Movimento Sadrista serão encerradas. Haverá uma exceção: o mausoléu do pai, o Grande Ayatollah Muhammad Sadiq al-Sadr, importante líder religioso xiita, assassinado a tiro em 1999, mandava ainda no país o sunita Saddam Hussein.

Muqtada al-Sadr integra uma linhagem política importante no Iraque. Aos 48 anos de vida, é já um líder experiente, com provas dadas à frente de uma milícia numerosa na luta contra as tropas dos Estados Unidos e as forças iraquianas que pactuaram com a ocupação estrangeira.

Nos corredores políticos, o clérigo é tido como figura camaleónica, que toma decisões e depois reverte-as. Os próximos dias permitirão perceber se o tweet de Al-Sadr é para valer ou se é uma forma de fazer pressão sobre as formações políticas rivais.

(FOTO Muqtada al-Sadr e o Líder Supremo do Irão, ayatollah Ali Khamenei WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 29 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui

Iraque sem governo há dez meses porque os xiitas não se entendem com… os xiitas

Depois de invadirem o Parlamento, centenas de iraquianos estão agora acampados na praça em frente ao edifício, sem prazo para dali saírem. É a imagem mais ilustrativa do caos que tomou conta da política iraquiana. O país não consegue formar governo e, nos corredores, trava-se um braço de ferro entre duas formações xiitas. Um posicionamento demarca-as de forma clara: a relação com o Irão

A data da celebração é variável já que as festividades islâmicas regem-se pelo calendário lunar. Este ano, a festa religiosa mais importante para os muçulmanos de credo xiita celebrou-se na segunda-feira. A Ashura assinala o martírio de Hussein, neto do profeta Maomé, no ano de 680 a.C., na batalha de Kerbala, hoje território iraquiano.

Esta solenidade, que não é observada pelo ramo maioritário entre os muçulmanos, os sunitas, inclui um ritual público em que homens de todas as idades batem com espadas e punhais contra o couro cabeludo. Tomados por um sentimento de culpa, outros açoitam-se com correntes. Em minutos, ficam com os corpos cobertos de sangue, num ato de autoflagelação com que procuram reviver o sofrimento do imã Hussein.

No Iraque, este ano, o rito foi cumprido com o mesmo fervor de sempre, ainda que, a nível político, a união entre os xiitas — a maior fatia da população — não seja presentemente uma realidade. O país realizou eleições legislativas a 10 de outubro, os xiitas venceram de forma inequívoca, mas não conseguem formar governo.

O escrutínio ditou que os 329 assentos do Conselho dos Representantes (como se chama o Parlamento iraquiano) fossem repartidos por 33 formações políticas (43 lugares ficaram para independentes). O Movimento Sadrista, um partido xiita, foi o mais votado, com 10% dos votos e 73 deputados eleitos.

Apesar de terem a bancada mais numerosa, os sadristas não angariaram apoio para fazer aprovar um governo. Optaram então por uma demonstração de força e, a 12 de junho, demitiram-se da assembleia, abrindo caminho a uma aliança xiita rival, o bloco maioritário seguinte. O Quadro de Coordenação, como se chama, avançou com o seu nome para a chefia do governo: Mohammed al-Sudani, um antigo ministro dos Direitos Humanos. No dia em que ia ser votado (30 de julho), centenas de sadristas irromperam pelo Parlamento e tomaram as cadeiras dos deputados.

A facilidade com que tudo aconteceu não deixa de ser surpreendente e indicia infiltrações em ministérios sensíveis como o da Defesa e do Interior. O Parlamento situa-se na Zona Verde de Bagdade, um perímetro com segurança reforçada, delimitado à época da presença das tropas internacionais. Ali ficam também os edifícios do Governo e as embaixadas.

A intenção dos sadristas ficou clara desde a primeira hora: ali ficar num protesto permanente (sit-in, em inglês) até serem atendidas as suas exigências. “Eles querem fazer uma grande pressão sobre os seus opositores (do Quadro de Coordenação) para obterem ganhos. Querem manter o seu primeiro-ministro (Mustafa Al-Kadhimi), a comissão de eleições e a lei eleitoral”, diz ao Expresso o analista político iraquiano Ahmad Rushdi. “Querem ir para eleições antecipadas e ganhar mais de 100 lugares desta vez.”

Por ordem da liderança, os sadristas acabaram por evacuar o hemiciclo e transferiram o protesto para a praça em frente ao Parlamento, onde continuam, com tendas montadas. “Não é a primeira vez que eles invadem o prédio do Parlamento, e certamente não é a primeira vez que testemunhamos um movimento político a contornar os postos de segurança governamentais em direção às instalações governamentais para enviar uma mensagem”, acrescentou ao Expresso Zeidon Alkinani, do Centro Árabe de Washington DC.

Para este analista, a tomada do Parlamento por apoiantes de Muqtada al-Sadr motiva dois tipos de especulações. Por um lado, uma oposição ao candidato a primeiro-ministro do Quadro de Coordenação. Por outro, “pode ser que o Movimento Sadrista esteja a orquestrar uma exibição de poder e de rebeldia, a pensar no previsível papel de oposição parlamentar se o Quadro de Coordenação conseguir aprovar Al-Sudani”. Para Alkinani, este parece ser o cenário com mais força para vingar.

Neste braço de ferro entre fações xiitas, há um posicionamento que as demarca de forma clara: a relação com o Irão, o gigante xiita do Médio Oriente.

Muqtada al-Sadr, um clérigo de 48 anos, sempre se distinguiu por se opor à interferência estrangeira no Iraque. Primeiro, enquanto jovem líder rebelde, combateu a ocupação norte-americana do país (2003-2011) à frente de uma poderosa milícia, o Exército de Mahdi. Hoje, defende um governo que não seja “nem ocidental, nem oriental” e opõe-se frontalmente à influência do Irão no país. Como surgiu?

A guerra no Iraque e a morte de Saddam Hussein (que pertencia à minoria sunita e governava de forma ditatorial, reprimindo a maioria xiita) escancararam as portas iraquianas aos ayatollahs iranianos. Os dois países têm uma população maioritariamente xiita — 60% no Iraque e mais de 90% no Irão — e partilham cerca de 1600 quilómetros de fronteira. Para muitos iraquianos, Al-Sadr é a esperança de que o seu país seja expurgado dessa ascendência.

No espectro oposto, o Quadro de Coordenação integra partidos alinhados com os interesses da República Islâmica. A principal figura desta formação é o antigo primeiro-ministro Nouri al-Maliki (xiita), um rival pessoal de Al-Sadr.

Iraquianos nas ruas

Este xadrez torna o Iraque um país vulnerável às disputas geopolíticas na região. “A rede por procuração da influência iraniana no Iraque não é segredo. No entanto, não podemos negar que essa influência tem diminuído significativamente”, diz Zeidon Alkinani.

“Teerão já chegou a promover a unidade do campo político xiita (desde que alinhado com a sua agenda). Hoje, não pode sequer garantir a influência contínua sobre os seus aliados xiitas remanescentes. Ser totalmente dependente da influência iraniana não atrai muitos políticos xiitas pró-Irão, especialmente após a eclosão do movimento de protesto de outubro de 2019, que teve uma forte retórica contra a intervenção iraniana nas províncias iraquianas de maioria xiita.”

A mais recente crise política no Iraque vem culminar um período de contestação popular que explodiu a 1 de outubro de 2019 com manifestações, marchas, protestos permanentes e ações de desobediência civil, muitas vezes combinado nas redes sociais, contra a corrupção, o desemprego, a ineficácia dos serviços públicos, o sectarismo na política e também o intervencionismo iraniano.

Muqtada Al-Sadr tem repetido o seu compromisso com um “governo nacional maioritário” representativo também de sunitas e curdos, as outras duas grandes fações étnico-religiosas, mas marginalizando os rivais xiitas do Quadro de Coordenação.

Contudo, arrastar sunitas e curdos para uma possível solução de governo poderá ter consequências indesejadas. “Existem divisões intra-elitistas dentro desses grupos também”, explica Zeidon Alkinani. “Nos primeiros momentos das divergências entre o Movimento Sadrista e o Quadro de Coordenação, que levaram a este impasse político que dura há dez meses, o Partido Democrático do Curdistão ficou do lado dos sadristas, enquanto a União Patriótica do Curdistão alinhou pelo Quadro.”

Entre os sunitas, também há simpatias pelos dois campos políticos xiitas, que, neste contexto, mais parecem transformados em duas frentes. “As formações pró-sadristas [entre os curdos e os sunitas] também querem eleições antecipadas”, acrescenta Ahmed Rushdi.

“Agora que os sadristas se demitiram do Parlamento e o Quadro tenta formar governo — para além do sit-in e dos distúrbios à ordem pública —, observamos uma intensa rivalidade política intra-xiita que está muito próxima do conflito. Os líderes políticos sunitas e curdos terão apenas de sugerir o diálogo e a mediação para que sobrevivam aos seus próprios estatutos frágeis no sistema político.”

Num país marcadamente confessional — onde está estabelecido que o primeiro-ministro é um xiita, o Presidente do país um curdo e o presidente do Parlamento um sunita —, a identidade parece estar em perda no terreno da política.

(IMAGEM Bandeira do Iraque. Lê-se, em árabe: “Allah é o maior” WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 10 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui