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Um recurso escasso numa região conflituosa

Opções políticas e alterações climáticas contribuíram para reduzir os caudais de quatro rios históricos. Para as populações ribeirinhas sobra um mar de preocupações

Crianças brincam no rio Nilo em Assuão, no sul do Egito KHALED DESOUKI / AFP / GETTY IMAGES

Na Antiguidade Clássica, o historiador grego Heródoto rotulou o Egito como “um presente do rio Nilo”. Para oriente, o rio Jordão foi protagonista no advento do judaísmo e do cristianismo. Ainda mais para leste, entre os rios Tigre e Eufrates, floresceu a Mesopotâmia, considerada um dos berços da civilização ocidental. Hoje, a grandeza histórica destes quatro rios esvai-se nos seus caudais, cada vez menos abundantes. Por opções políticas ou pelo efeito das alterações climáticas, há cada vez menos água disponível para as populações ribeirinhas. E tudo acontece na região mais conflituosa do mundo.

NILO Uma nova praga maligna em formação

“O Egito — nação de mais de 100 milhões de almas — enfrenta uma ameaça existencial. Uma grande estrutura de proporções gigantescas foi construída ao longo da artéria que leva vida ao povo do Egito.” O alerta foi dado há um mês, no Conselho de Segurança das Nações Unidas, pelo ministro dos Negócios Estrangeiros egípcio. A construção a que Sameh Shoukry se refere é a Grande Barragem Renascentista Etíope (GERD, na sigla inglesa), que a Etiópia começou a erguer em 2011, quando o Egito estava envolvido nas convulsões populares da Primavera Árabe. Fica no Nilo Azul, principal afluente do Nilo, que nasce na Etiópia e converge com o Nilo Branco no Sudão. Para a Etiópia, o projeto reduz a pressão energética e gera eletricidade suficiente para exportar. Para o Egito, é fonte de inquietação. Com 6650 quilómetros de comprimento, o Nilo garante 90% das necessidades hídricas do país.

A 19 de julho, a Etiópia anunciou a conclusão do segundo enchimento da barragem, o que levou as autoridades do Cairo a insurgirem-se contra as ações unilaterais de Adis Abeba. O Nilo corre de sul para norte, pelo que só chega ao Egito a água que o Sudão e a Etiópia deixarem passar. “Sempre dissemos aos nossos irmãos da Etiópia e do Sudão que os respeitamos e nos preocupamos com o seu direito à vida, tal como com o nosso. Eles têm direito a produzir eletricidade, na condição de isso não afetar a quantidade de água que nos chega”, disse, no final de julho, o Presidente Abdel Fattah al-Sisi, homem forte do Egito.

“Os danos que a GERD pode infligir afetarão todos os aspetos da vida do povo egípcio, qual praga maligna”, alerta Shoukry, recuperando a analogia bíblica das “10 pragas” para traduzir o drama atual. “O enchimento unilateral da barragem, sem um acordo que inclua os cuidados necessários para proteger as comunidades a jusante e prevenir danos significativos, aumentará as tensões e poderá provocar crises e conflitos que desestabilizem ainda mais uma região já de si conturbada.” Das Nações Unidas vêm apelos para que Egito, Sudão e Etiópia se entendam à mesa das negociações, mediadas pela União Africana. “A disputa relativamente à GERD não vai evoluir para uma guerra aberta entre os três países (ou entre dois deles). É um cenário altamente improvável”, diz ao Expresso Ana Elisa Cascão, investigadora independente e coautora de “The Grand Ethiopian Renaissance Dam and the Nile Basin” (“A Grande Barragem Renascentista Etíope e a Bacia do Nilo”). “Uma guerra ‘hídrica’ não beneficiaria absolutamente ninguém, e os custos reputacionais seriam imensos para todos. Nos últimos anos, a GERD, como ‘carta política’, tem basicamente sido usada para efeitos de política interna nos três países. Externalizar problemas internos é uma arte que todos eles dominam, mas que tem limites.”

TIGRE E EUFRATES Caudais a diminuir como nunca antes

Nascem na Turquia, desaguam no sul do Iraque e atravessam também a Síria. Espraiam-se por muitos quilómetros — o Eufrates tem 2800 quilómetros, o Tigre 1900 — em países que ora cooperam ora estão em guerra, entre si ou com terceiros. Mais do que as guerras, é o megaprojeto do Sudeste da Anatólia que tem suscitado mais preocupações relativamente ao potencial de irrigação dos dois rios.

Projetada para desenvolver 10% do território turco, esta iniciativa multissectorial prevê a construção de 22 barragens ao longo dos dois rios, a maior das quais a barragem Ataturk (nome do fundador da Turquia moderna), no curso do Eufrates.

Para o Iraque, que recolhe dos dois rios 90% da água doce que consome, o impacto das variações dos caudais é enorme. “Este ano vimos uma redução na precipitação anual de 50% em relação ao ano passado”, alertava no ano passado Mahdi Rashid Al-Hamdani, ministro dos Recursos Hídricos iraquiano, num momento de stresse hídrico. “Solicitámos ao nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros que envie uma mensagem urgente ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da Turquia a perguntar qual é o motivo para a quebra do nosso fluxo.”

Bagdade e Ancara têm acordos em vigor sobre a partilha da água, mas há que cumpri-los. Alguma da água em falta no Iraque ficou retida na Turquia, no reservatório da barragem de Ilisu (uma das 22 projetadas), que começou a funcionar no rio Tigre.

Paralelamente às opções políticas nacionais, as alterações climáticas justificam muitas das fragilidades ambientais. Nas últimas semanas, uma seca acentuada na região de Erbil, capital do Curdistão iraquiano (norte), originou grave escassez de água, que levou as autoridades locais a detalhar apelos: “Racionem o consumo e o uso de água e coloquem válvulas nos tanques de água para reduzir o desperdício.” A cidade depende em grande parte da água do rio Zab, afluente do Tigre.

No ano passado, um relatório da Organização Internacional para as Migrações (OIM) apurou que os caudais do Tigre e do Eufrates estão a diminuir “a uma taxa sem precedentes”, com impacto direto na deslocação de populações. “Em julho de 2019, a OIM no Iraque identificou 21.314 pessoas deslocadas internamente de províncias do centro e do sul devido à falta de água, a fontes de água com alto teor de salinidade ou a surtos de doenças transmitidas pela água.”

Em 2018, os grandes protestos populares que se realizaram no sul do Iraque também tiveram origem na escassez de água potável e nas falhas de eletricidade. Aconteceu o mesmo no Irão, no mês passado, na província de Khuzestan, na fronteira com o Iraque. Segundo o serviço meteorológico iraniano, entre outubro de 2020 e junho deste ano, o país viveu os meses mais secos dos últimos 53 anos.

JORDÃO Usar a água para fazer política

Há menos de um mês em funções, o novo Governo de Israel elevou a questão da água à categoria de prioridade política. No início de julho, o primeiro-ministro Naftali Bennett encontrou-se em Amã com o rei da Jordânia, Abdullah II. O governante israelita comunicou ao monarca que Israel estava disposto a vender à Jordânia mais água do que aquela a que está obrigado pelo acordo de paz de 1994, que dividiu entre ambos o acesso às águas dos rios Jordão e Yarmuk.

A Jordânia enfrenta uma grave escassez de água, que é explicada em parte pela matemática: se em 1950 o reino tinha menos de meio milhão de habitantes, hoje tem 10 milhões, embora só tenha recursos hídricos para sustentar 2 milhões.

Com este gesto de boa vontade, a Jordânia viu o seu problema temporariamente menorizado. Já Israel reabilitou uma relação que se degradara de forma substancial nos últimos anos, condenando à morte o acordo Red-Dead de 2015, que iria ligar o Mar Vermelho (Red) ao Mar Morto (Dead) através de canalização, complementada por centrais de tratamento de água nas duas margens.

Este projeto visava salvar o Mar Morto, que está em acelerado estado de degradação, originando sumidouros com dezenas de metros de diâmetro, num território que mais parece ter sido alvo de bombardeamentos. É neste ecossistema que desagua o rio Jordão, ainda que em quantidades cada vez menores, em virtude dos desvios de água realizados ao longo do seu curso, partilhado por Israel, Síria, Jordânia e território palestiniano da Cisjordânia, ocupado por Israel.

Se na margem esquerda do Jordão a situação é de escassez, na direita é agravada pela ocupação israelita da Palestina, que garante a Israel controlo sobre toda a água entre o rio e o Mar Mediterrâneo. Ao Expresso, Marta Silva, estudiosa das relações entre Israel e a Palestina, identifica o momento-chave em que os palestinianos perderam o acesso aos recursos hídricos: “Em 1967, quando Israel conquistou os territórios palestinianos da Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental.” A especialista explica que “o objetivo era garantir a colonização da região do vale do Jordão, a mais rica a nível de recursos aquíferos, logo com mais terras aráveis e férteis” — o celeiro da Palestina. Hoje, diz a organização EWASH, no vale do Jordão, um colono israelita gasta 81 vezes mais água do que um residente palestiniano.

Artigo publicado no “Expresso”, a 6 de agosto de 2021. Pode ser consultado aqui

O Papa está no Iraque depois de 15 meses sem viajar. Qual a pressa de Francisco?

O líder da Igreja Católica chegou esta sexta-feira ao Iraque para uma visita de quatro dias, a primeira que realiza nos últimos 15 meses. Francisco visitará comunidades cristãs que sobreviveram ao Daesh e terá um encontro com um dos líderes mais importantes do Islão xiita. A viagem realiza-se em contexto de pandemia, num país onde subsiste a insegurança. “Este Papa afirma-se como o pastor de todos os católicos”, diz ao Expresso o estudioso das religiões Paulo Mendes Pinto. “Se há católicos no Iraque, ele tem de lá ir”

O Papa retomou esta sexta-feira as suas viagens apostólicas ao estrangeiro. Francisco partiu para uma visita de quatro dias ao Iraque — a primeira em 15 meses.

Nunca um líder da Igreja Católica se deslocara a este importante país do Médio Oriente, de maioria muçulmana xiita. A insistência em realizar a visita, em contexto pandémico e de insegurança, confirma um padrão observado em deslocações anteriores.

“O Papa Francisco vai a sítios de grande prática católica — como Fátima, por exemplo. Mas vai também a sítios inesperados, onde não só a prática católica é reduzida, como até posta um pouco em causa pela prática religiosa dominante”, diz ao Expresso Paulo Mendes Pinto, coordenador da área de Ciência das Religiões na Universidade Lusófona em Lisboa.

Visitar locais incómodos

“Há uma dominante nas visitas do Papa, que é ir a sítios incómodos. Incómodos por serem associados a violência ou à negação da liberdade religiosa, sítios que não são tão importantes ao nível da quantidade de praticantes católicos.”

São exemplos as visitas à Albânia (2014), República Centro-Africana (2015), Myanmar (2017) ou Emirados Árabes Unidos (2019). É também o caso desta ida ao Iraque, país virado do avesso desde a invasão pelos Estados Unidos da América, em 2003, de que decorreria o surgimento do infame e autoproclamado “Estado Islâmico” (Daesh).

No início da guerra, estimava-se que a comunidade cristã no país andasse pelos 1,5 milhões de pessoas; hoje não serão mais de 250 mil.

“O Iraque é um país importantíssimo, não pela percentagem de católicos que lá existe, mas em termos simbólicos”, continua Paulo Mendes Pinto. “Até ao fim do regime de Saddam Hussein [2003], existia uma comunidade católica organizada, socialmente respeitada e integrada. Com frequência, víamos católicos na mais alta elite do país. Um dos ministros mais conhecidos de Saddam, Tariq Aziz [que ocupou entre 1979 e 2003 pastas como a dos Negócios Estrangeiros e a de vice-primeiro-ministro], era católico.”

A comunidade cristã do Iraque é das mais antigas do mundo. Integra crentes das igrejas Católica Caldeia (largamente maioritária), Assíria Oriental, Católica Siríaca, Ortodoxa Siríaca, Apostólica Arménia, Evangélica, Ortodoxa Grega, Católica Arménia e Católica Latina.

“Este país representa algo que se manteve durante muito tempo. Apesar de o Médio Oriente ser dominantemente islâmico, o Iraque manteve a existência de comunidades judaicas e cristãs. As últimas, em número mais significativo, com facilidade atingiam os 10 a 20% das populações. Essa realidade desapareceu rapidamente depois dos atentados do 11 de Setembro, à medida que a radicalização fez com que as comunidades cristãs na região passassem a ser perseguidas.”

A recente perseguição aos cristãos iraquianos às mãos do Daesh é uma preocupação do Papa, implícita no roteiro que vai percorrer, e que decorrerá em seis etapas. Esta sexta-feira, Francisco ficará pela capital, Bagdade, onde terá encontros políticos e religiosos. No sábado rumará a sul, primeiro até Najaf, cidade santa para os xiitas — onde se encontrará com o Grande Ayatollah Ali al-Sistani, um dos líderes muçulmanos mais influentes do mundo — e depois até à cidade de Ur.

Onde ainda se fala a língua de Cristo

No domingo, o Papa seguirá para norte, até ao Curdistão, com paragens em Erbil, Mosul e Qaraqosh, a maior cidade iraquiana de maioria cristã. As duas últimas ficam já na província de Nínive, onde há comunidades que ainda falam aramaico, a língua corrente na época de Jesus Cristo. Nos anos do Daesh, a presença cristã correu riscos de extinção, devido a conversões forçadas, execuções em massa, fuga à violência e destruição de património.

Quando, em novembro de 2017, Francisco foi presenteado, por um fabricante automóvel, com um Lamborghini personalizado, o argentino autografou-o e ofereceu-o para leilão. A verba angariada — 200 mil euros — foi alocada para apoiar as comunidades cristãs do planalto de Nínive, designadamente o regresso de quem fora obrigado a fugir dos jiadistas.

No périplo do Papa, duas etapas serão especialmente simbólicas para os cristãos: Ur e Mosul. Ur, no sul do país, é a cidade onde nasceu Abraão, patriarca que une as três religiões monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islão. “Há um peso muito grande dessa cidade no facto de criar pontes com as outras confissões religiosas — e o Papa Francisco tem-no feito”, garante Mendes Pinto.

Mosul, no norte, é a capital da província de Nínive. “Tem o peso de ter sido uma das principais cidades do ‘Estado Islâmico’, onde, supostamente, terá sido proferida a frase que indicava que um dos objetivos era conquistar Roma e decapitar o Papa”, recorda o professor.

Sentimento de abandono

Mosul (Iraque) e Raqqa (Síria) foram as capitais do ‘califado’ declarado pelo Daesh. Ali viveu-se sob o signo do terror durante mais de três anos.

“Há uma certa desilusão por parte de muitos cristãos porque ao longo dos anos foram sendo cometidas atrocidades contra essas comunidades, foram muitas vezes dizimadas, violentadas, no melhor dos casos obrigadas a migrações forçadas, e o ocidente, incluindo a própria Igreja cristã, nunca fez nada de significativo por elas”, recorda Paulo Mendes Pinto.

“A mensagem que o Papa leva é não apenas a de um certo saudosismo, porque ainda há pouco tempo existiam lá comunidades cristãs significativas, mas também de apoio a essas comunidades. Esta visita tem uma dimensão diplomática importantíssima.”

A 33ª deslocação do Papa Francisco ao estrangeiro — o Iraque é 51º país que visita — decorre numa altura em que a violência no país dá sinais de recrudescer. Em janeiro, um duplo ataque suicida num mercado de Bagdade provocou 32 mortos. Em fevereiro, um ataque com 14 rockets contra alvos militares em Erbil fez dois mortos. Já em março, outro ataque com foguetes atingiu uma base com presença norte-americana na província de Anbar.

Recolher obrigatório e confinamento

As condições da viagem agravam-se pelo contexto de pandemia. Com 84 anos, o Papa partiu para o Iraque vacinado, como toda a delegação que o acompanha. Mas chegou ao país num momento em que o número de casos de covid-19 disparou — um deles, na semana passada, foi o núncio apostólico no Iraque, arcebispo Mitja Leskovar  e as autoridades impuseram o recolher obrigatório noturno e confinamento total ao fim de semana.

A insistência em realizar a viagem nesta adversidade revela pressa. “É uma pressa que resulta muito do esboroar socioeconómico de toda a região. Aqueles países têm populações maioritariamente abaixo dos 35 anos, e muitas dessas pessoas estão desempregadas. Estas questões socioeconómicas fazem-se sentir com muita força e em especial junto das minorias. Para o Papa há uma urgência em acudir”, diz Paulo Mendes Pinto.

“Há também uma urgência para ele em fazer uma retoma. Com a pandemia, as reformas que estava a realizar na Igreja Católica ficaram suspensas. Haverá, no mínimo, uma certa impaciência pelo facto de o seu projeto ter perdido muito tempo, e também devido à sua própria saúde.”

Esta é a 11ª visita do Papa Francisco a países de maioria muçulmana, depois de Jordânia, Palestina, Albânia e Turquia (2014), Bósnia e Herzegovina (2015), Azerbaijão (2016), Egito e Bangladesh (2017), Emirados Árabes Unidos e Marrocos (2019).

“Anteriormente, os Papas iam aos grandes locais católicos. Este também vai a esses países, mas vai igualmente aos pequenos”, conclui Mendes Pinto. “No fundo, este Papa afirma-se como o pastor de todos os católicos. Se há católicos no Iraque, ele tem de lá ir. Esta visita revela uma dimensão missionária, de visitar locais novos e sítios onde há comunidades cristãs minoritárias, e também um pensamento de menosprezar o risco. Frequentemente, o Papa quebra o protocolo e deixa os seguranças à beira de um ataque de nervos, mas não é só isso: ele vai a sítios onde as coisas não são fáceis ao nível da segurança. Esta visita ao Iraque é o exemplo perfeito disso.”

(Papa Francisco, discursando no Palácio Presidencial em Bagdade, a 5 de março de 2021 WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de março de 2021. Pode ser consultado aqui

Sinais de esperança em conflitos sem fim

Quatro testemunhos recolhidos pelo Expresso descrevem confiança e resiliência em territórios onde parece só haver problemas

A cidade iraquiana de Mosul é possivelmente um dos locais em todo o mundo onde hoje o sentimento de esperança está mais em alta. Vai para sete anos ali foi autoproclamado o infame Estado Islâmico. Libertada do jugo jiadista, a cidade reergue-se agora das cinzas através de uma parceria entre o Governo de Bagdade e a UNESCO, que tem em curso a reconstrução de monumentos e infraestruturas.

Em inícios de março, Mosul estará nas bocas do mundo quando receber o Papa Francisco, naquela que será a primeira viagem apostólica ao estrangeiro em 15 meses. Com esta visita ao Iraque, o Papa levará alento à minoria cristã do Médio Oriente, a região onde nasceu o cristianismo e que tem sido martirizada por sucessivas disputas.

Quatro testemunhos recolhidos pelo Expresso revelam como noutras latitudes turbulentas a confiança num futuro melhor germina, apesar de um presente de grandes dificuldades. Desde o campo de refugiados de Kutupalong, no Bangladesh, o rohingya Faruque conta como um projeto de realização de vídeos sobre o património cultural rohingya, partilhado nos telemóveis, se tornou um promotor de esperança entre o seu povo.

No Sudão, Pedro Matos, funcionário do Programa Alimentar Mundial da ONU, descreve o que o faz sentir-se confiante em relação ao futuro do país. Marta Abrantes Mendes recorda os anseios de paz de iemenitas com quem trabalha, num projeto de reconciliação nacional. E, com a experiência de quem já serviu no Afeganistão, o major-general Carlos Branco acredita que a paz é possível no país dos talibãs.

ROHINGYA
Gravar memórias e acreditar

Vídeos sobre saúde, cultura e educação feitos por refugiados são formas de resiliência

Faruque tem 32 anos e vive há 28 no maior campo de refugiados do mundo. Tinha quatro quando os pais se fizeram à estrada para salvar a família de uma morte certa. Em Myanmar, fugir para o vizinho Bangladesh é, há décadas, a única escapatória para a minoria rohingya (muçulmana), perseguida naquele país de maioria budista.

Hoje, os horizontes de Faruque estão confinados aos limites do campo de Kutupalong, onde vivem mais de 600 mil rohingyas. “Como em Myanmar, não somos autorizados a circular livremente, não temos direito à educação formal nem podemos trabalhar. Numa prisão pode sair-se em liberdade cumprida a sentença, aqui vivemos assim indefinidamente. Mas tenho esperança de que as coisas mudem…”

Com a mesma lucidez com que descreve as limitações de um povo que não é plenamente reconhecido nem mesmo pelo país que o acolhe, Faruque fala de um projeto que o move diariamente: a Rohingya Film School. Criada no início do ano pelo irmão mais novo, Omar, que colaborava com órgãos de informação como a BBC e que morreu em maio, aos 21 anos, de ataque cardíaco, esta escola nasceu com um duplo objetivo: dar formação a jovens na área da fotografia e do vídeo e registar em som e imagem a herança cultural dos rohingyas.

Com a covid-19, o projeto (rebatizado de Omar’s Film School) tornou-se também um agente de saúde pública. “Com a pandemia, o acesso ao campo dos trabalhadores humanitários ficou limitado. Os refugiados ficaram numa situação ainda mais trágica. Começaram a circular rumores de que quem apanhasse covid-19 seria morto ou levado para uma ilha remota. Muitas pessoas não queriam ser testadas.”

Os voluntários começaram então a fazer vídeos sobre práticas higiénicas e cuidados a ter face ao vírus e a partilhá-los através do telefone. Hoje, fazem filmes sobre saúde, património, cultura, educação, para além de promoverem atividades da ONU e de ONG.

Para Faruque, trabalhar no projeto é uma forma de homenagear o irmão e de lutar pelo futuro da filha, de três anos. “Tenho esperança de que chegue o tempo em que eu viva num lugar a que possa chamar lar, a minha filha seja matriculada numa escola e as nossas capacidades sejam reconhecidas.”

SUDÃO
Resiliência a muitas guerras

Pais poupam para os filhos irem à escola. Os sudaneses acreditam no futuro

Os 12 anos que Pedro Matos leva de experiência humanitária apuraram-lhe a perceção na hora de identificar sinais de esperança em países devastados pela guerra. É o caso do Sudão, onde trabalha como coordenador para a digitalização do Programa Alimentar Mun­dial (PAM), a agência da ONU que recebeu o Nobel da Paz 2020. “O povo sudanês é incrivelmente resiliente. Vemos sinais disso por todo o lado, desde pais que poupam o que têm para manter os filhos na escola, onde eles nunca puderam ir, até à esperança dessas crianças, que vão para escolas remotas do Darfur com t-shirts esfarrapadas e sonham ser médicos ou advogados.”

O português realça também “a quantidade de mulheres em cargos de gestão por todo o país em associações locais e nos Ministérios da Educação ou da Saúde”. E simboliza esse ativismo no feminino na figura de Hawa Salih, que lidera uma rede de organizações de base comunitária em El Fasher, na região do Darfur. “É uma força da natureza, trabalha incansavelmente para montar projetos de emprego para milhares de mulheres em coisas tão diversas como o fabrico de tijolos até plantações de árvores para combater o avanço do deserto.”

Arrasado por várias guerras desde a independência, inundações históricas este ano e um aumento dos preços dos alimentos de 700% nos últimos cinco anos, o Sudão tem no PAM um parceiro crucial: presta assistência alimentar a 6,5 milhões de pessoas, promove projetos de ‘comida por trabalho’, apoia agricultores, fornece refeições escolares e investe na prevenção e tratamento da desnutrição.

AFEGANISTÃO
Talibãs fazem parte da solução

Em 2021, passam 20 anos sobre o início da guerra. Governo e talibãs estão em diálogo

A5 de janeiro, o reinício das conversações de paz entre o Governo afegão e os talibãs devolve esperança ao futuro do país. “Se por futuro entendermos instauração de uma democracia liberal, então seguramente não teremos futuro”, alerta o major-general Carlos Branco, que foi porta-voz da força internacional no Afeganistão em 2007 e 2008. “Mas há outros futuros possíveis, sem vio­lência e com paz. Tudo dependerá da solução política e da fórmula governativa que forem negociadas, que terão inevitavelmente de contar com a participação dos talibãs.”

“Quanto menor for a ingerência internacional neste processo, melhor, em particular das potências regionais.” Porém, “quaisquer que sejam as soluções adotadas, terão de ter em conta os interesses das grandes potências, em particular dos EUA. O que significa para os talibãs respeitar o compromisso de não manterem relações com a Al-Qaeda e não permitirem que o território seja utilizado por organizações terroristas”.

IÉMEN
Vozes que anseiam por paz

Os estereótipos reduzem-no a um país sem solução. Mas é importante ouvir os iemenitas

Marta Abrantes Mendes trabalha a partir do Líbano num projeto sobre reconciliação nacional e justiça transicional no Iémen, país do qual se diz ser a pior crise humanitária do mundo. Desenvolve, pois, grande parte do seu trabalho ao telefone, a falar com iemenitas.

“Ouvi representantes da sociedade civil sobre memória, necessidade de reconciliação e justiça social e vias de responsabilização pelas violações registadas durante o conflito. Algumas conversas duravam mais de duas horas e o quadro que se desenhou foi de um país com um grande ensejo de encontrar paz e encerrar os ciclos contínuos de violência de grande parte da sua história contemporânea.”

Marta incomoda-se com as representações externas em relação ao Iémen. “São sempre muito contundentes, como se não houvesse volta a dar. Tudo seria mais fácil se o palco fosse ocupado por iemenitas.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 31 de dezembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Seis recados que o Irão enviou com o ataque aos EUA

O Irão consumou a prometida vingança à morte do general Qasem Soleimani bombardeando duas bases militares dos Estados Unidos no Iraque. O ataque tem implícitas mensagens importantes para dentro e, sobretudo, para fora do país

As ruas iranianas clamaram por vingança e ela foi servida exatamente cinco dias após os Estados Unidos terem assassinado o general iraniano Qasem Soleimani, que comoveu toda a nação persa.

Duas rajadas de mísseis atingiram esta madrugada outras tantas bases norte-americanas no Iraque. “Uma chapada na cara” dos EUA, disse o Líder Supremo do Irão, o “ayatollah” Ali Khamenei. A bola está agora do lado dos Estados Unidos. Até se perceber se haverá resposta, é importante atentar nos recados que o Irão quis enviar com este ataque, para dentro e fora de portas.

O ataque vingou o assassínio do general

A operação “Vingança Dura”, como Teerão batizou o ataque, foi desencadeada sensivelmente à mesma hora a que, na sexta-feira passada, Qasem Soleimani foi atingido mortalmente por um drone dos EUA no aeroporto internacional de Bagdade. “Entre a 1h45 e as 2h45 [mais três horas do que em Portugal Continental], o Iraque foi atacado por 22 mísseis”, anunciaram os militares iraquianos em comunicado. “Todos os mísseis atingiram bases da coligação [internacional].”

Se na sexta-feira, Donald Trump reagiu no Twitter publicando apenas uma imagem da bandeira norte-americana, desta vez foi Saeed Jalili, representante do Líder Supremo no Conselho Supremo de Segurança Nacional, a responder-lhe à letra, ‘postando’ a bandeira do Irão. Uma brincadeira na rede social favorita de Trump reveladora da predisposição das partes para seguirem com a tática de “olho por olho”.

O Irão atacou por si e não através de terceiros

Uma das (enormes) vantagens estratégicas do Irão no Médio Oriente é o chamado “arco de influência” que construiu no mundo árabe (o Irão não é árabe, mas sim persa). São atores importantes ao serviço dessa estratégia o Hezbollah no Líbano, forças paramilitares na Síria, milícias armadas no Iraque e os huthis no Iémen, que em setembro reivindicaram um espetacular ataque contra refinarias na Arábia Saudita que afetou fortemente a produção de petróleo do reino.

Qasem Soleimani era o grande arquiteto das intervenções militares iranianas e um comandante muito presente no terreno, junto desses atores. Na hora de retaliar a sua morte, Teerão quis faze-lo por mãos próprias — e não recorrendo a um ou vários dos seus próximos (“proxies”). Não há dúvidas de que o ataque foi lançado a partir do seu território.

O programa balístico iraniano funciona

Nos dois bombardeamentos, o Irão utilizou mísseis balísticos, projéteis sofisticados com capacidade para transportar ogivas nucleares que seguem trajetórias pré-determinadas.

Uma das críticas mais fortes ao acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano — co-assinado pelos EUA de Obama em 2015 e do qual Trump retirou o país em 2018 — é o facto de excluir restrições ao programa de mísseis balísticos do Irão. Na altura, este facto foi uma grande vitória negocial do Irão: apesar de condicionado na produção de armas nucleares, ficava de mãos livres para continuar a desenvolver o seu veículo de entrega, ou seja, os mísseis balísticos.

As bases atingidas são simbólicas

Os alvos da operação iraniana foram bases militares de grande importância estratégica para os EUA. Uma delas, Al-Assad, localizada na província de Anbar, a 180 km para oeste de Bagdade, é a maior base aérea do Iraque.

Foi esta base que Trump visitou aquando da sua primeira visita a tropas em missão, no Natal de 2018. No ano passado, foi ali que o vice-presidente Mike Pence passou o Dia de Ação de Graças.

Começou a ser usada pelas forças americanas após a invasão do Iraque que derrubou Saddam Hussein, em 2003; deixou de funcionar após a retirada das tropas de combate dos EUA, em finais de 2011; e foi reativada no contexto da luta contra os jiadistas do Daesh.

A outra base alvejada situa-se em Erbil, no Curdistão iraquiano. Em outubro, foi desta base que partiu a unidade de comandos que surpreendeu e eliminou Abu Bakr al-Baghdadi, líder do autoproclamado Estado Islâmico (Daesh), na cidade síria de Barisha.

No combate ao Daesh, EUA e Irão estiveram do mesmo lado da barricada e, no Iraque, foi crucial o desempenho das Forças de Mobilização Popular (xiitas), apoiadas pelo Irão. O seu nº 2, o iraquiano Abu Mahdi al-Muhandis, foi assassinado pelos EUA no mesmo ataque que vitimou Qasem Soleimani.

Se os EUA retaliarem, há outros países em mira

Com os ecrãs das televisões tomados por rastos de luz no céu escuro do Iraque à passagem dos mísseis iranianos, correspondentes de órgãos de informação ocidentais em Teerão eram porta-vozes de mais recados do regime dos ayatollahs.

“O Irão está a avisar que se houver retaliação às duas vagas de ataques lançadas, a terceira vaga destruirá o Dubai e Haifa”, escreveu no Twitter Ali Arouzi, da televisão norte-americana NBC.

O Dubai é um dos sete emirados que compõem os Emirados Árabes Unidos, um aliado dos EUA na região. E Haifa é uma cidade de Israel, o país que mais tem pressionado o amigo americano no sentido de um confronto militar com o Irão.

Um ataque a estes dois países arrastaria todo o Médio Oriente para uma guerra total, com consequências em todo o mundo. Esta quarta-feira, o primeiro-ministro israelita advertiu: “Estamos firmes contra aqueles que buscam as nossas vidas. Estamos de pé com determinação e força. Quem tentar atacar-nos receberá em troca um golpe esmagador”, declarou Benjamin Netanyahu, numa conferência em Jerusalém. De forma não oficial, Israel tem armas nucleares.

Mensagens para dentro de portas

Na euforia do ataque, as autoridades iranianas disseram que tinham sido mortos “80 terroristas”, como o Irão passou a designar os soldados norte-americanos. Mas nem os EUA nem o Iraque confirmam a existência de vítimas mortais.

A informação terá, porém, confortado muitos iranianos, feridos no seu orgulho pela execução de uma figura popular como o general e que os orgulhava.

O ódio ao “Grande Satã” (como a República Islâmica se refere aos EUA) é um factor de unidade nacional no Irão e a primeira reação oficial iraniana ao ataque espelha-o: “Saiam da nossa região!”, escreveu no Twitter o ministro das Telecomunicações, Azari Jahromi.

Nos EUA, no conta-gotas noticioso relativo ao perfil deste ataque começaram a surgir insinuações de que o Irão pode não ter atingido soldados norte-americanos “intencionalmente”. Se assim foi, e atendendo às palavras do seu chefe da diplomacia — “Não queremos guerra com os EUA”, disse Mohammad Javad Zarif —, o Irão dá sinais de querer resolver esta crise pela via do diálogo possível.

(IMAGEM Pelo menos cinco estruturas da base foram atingidas pelos ataques com mísseis do Irão, como mostra esta imagem de satélite ©2020 Planet Labs, Inc. cc-by-sa 4.0 / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 8 de janeiro de 2020. Pode ser consultado aqui

Curdos perdem petróleo de Kirkuk para as tropas de Bagdade

O exército iraquiano recuperou o controlo dos campos petrolíferos de Kirkuk. Estavam nas mãos dos curdos, que os tinham conquistado aos jiadistas do Daesh

As tropas iraquianas assumiram esta terça-feira o controlo de todos os campos de exploração de petróleo operados pela empresa estatal North Oil Company, na região de Kirkuk.

As infraestruturas, bem como toda a cidade, estavam nas mãos dos peshmergas (forças curdas iraquianas), que a tinham reconquistado aos jiadistas do autodenominado Estado Islâmico (Daesh).

Os curdos não ofereceram qualquer resistência ao avanço das tropas de Bagdade, apoiadas no terreno por milícias xiitas.

Esta terça-feira, as autoridades de Bagdade fizeram saber que a produção de petróleo naquela zona do norte do Iraque está a decorrer com normalidade e sem interrupções.

Esta ofensiva militar, ordenada pelo Governo central, foi iniciada no domingo à noite e justificada com a necessidade de garantir a integridade territorial iraquiana. No passado dia 25, um referendo na região do Curdistão pronunciou-se, esmagadoramente, pelo “sim” à secessão.

Nas últimas horas, a conta do primeiro-ministro iraquiano no Twitter tem enumerado vários telefonemas internacionais recebidos por Haider al-Abadi, em apoio da unidade iraquiana e contra o referendo curdo. O último foi do ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de outubro de 2017. Pode ser consultado aqui