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“Leva-me para o teu país, seja onde for”

Milhares de cristãos iraquianos fugiram de casa com medo de serem mortos pelos extremistas islâmicos. Uma espanhola descreve ao Expresso a sua visita a centros onde estão estes refugiados, no norte do Iraque. “Um bispo disse-nos que se nada não for feito para mudar a situação, estão a escrever-se as últimas linhas da história do cristianismo no Iraque”

As igrejas estão transformadas em casas sobrelotadas, os jardins são albergues a céu aberto e, na via pública, há espaços repletos de tendas. Erbil, no norte do Iraque, é hoje uma montra do desespero de milhares de cristãos, forçados a partir de um dia para o outro quando extremistas islâmicos lhes entraram aldeia dentro.

“Durante o dia, eles estão tranquilos, mas a situação é fantasmagórica”, conta ao Expresso Maria Lozano, vice-diretora da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), regressada de uma visita à região. “O mais importante para estas pessoas é terem um teto sobre a cabeça. Anqawa tornou-se numa enorme sala de espera. Eles perguntam: ‘O que se vai passar connosco?’”

Anqawa é o bairro cristão da cidade de Erbil (a capital do Curdistão iraquiano). Ali estão refugiados cerca de 70 mil cristãos, fugidos de Qaraqosh — cidade de maioria cristã e sede do Arcebispado de Mossul — após a chegada das forças jihadistas, na noite de 6 para 7 de agosto. “Estão distribuídos por 22 centros de ajuda: colégios, edifícios em construção, pequenos ginásios, escolas, salões paroquiais, jardins… Na catedral vivem umas 700 famílias, o jardim está cheio. E com temperaturas a rondar os 44 graus, tudo se torna mais difícil. Quem está em jardins ou parques tenta agrupar-se como pode em lugares onde haja um pouco de sombra.”

A vida ficou, subitamente, virada do avesso para quem teve de fugir, mas também para quem se dispôs a estender a mão aos refugiados. Aradin, um pequeno povoado da região de Erbil onde viviam 50 famílias cristãs, abriu as portas a 250 outras… “As pessoas fazem tudo para ajudar os refugiados, mas isto tem um grande impacto nas comunidades”, explica Maria Lozano.

Mais a norte, em Duhok, está um outro grande grupo de cristãos, fugidos de Mossul, após a conquista desta cidade pelos jihadistas, a 10 de junho. “Ameaçaram que lhes cortavam a cabeça se não se convertessem ao Islão ou não pagassem o imposto religioso. Estava claro para os cristãos que mesmo que pagassem o imposto, outras cobranças se seguiriam a quem mostrasse ter dinheiro.”

Maria Lozano estima que chegaram a Duhok cerca de 60 mil cristãos. “Ali estão mais distribuídos, em casas de familiares e amigos”. Em 2003, viviam em Mossul 35 mil cristãos, hoje não resta nenhum.

Da boca dos cristãos, Maria não ouviu histórias de que algum tenha sido assassinado por recusar a conversão ao Islão. “As zonas cristãs despovoaram-se rapidamente. Quando começaram a ouvir falar da chegada dos jihadistas, meteram-se nos carros e fugiram, deixando tudo para trás. Como cristã, penso que foi um pequeno milagre terem podido fugir e salvar as suas vidas daquilo que parecia ser um massacre iminente. Quase não houve mortos.”

O desespero de passar pelo mesmo

Os cristãos iraquianos dividem-se na hora de pensar o futuro. Uns querem continuar a viver no Iraque, onde as suas famílias ali vivem há gerações, outros querem abandonar o país. “Alguns pedem-nos ajuda para regressarem a suas casas. Todas as pessoas que viviam em Qaraqosh têm a esperança de aí regressar. Mas dizem que isso só pode acontecer se alguém lhes garantir a segurança. Não querem voltar a passar pelo mesmo sofrimento”, conta Maria Lozano.

“Depois, há um grupo de pessoas que já acumula várias experiências duras, que já teve de partir mais do que uma vez. Esses, que fugiram de Mossul, por exemplo, estão bastante mais desesperados. Têm o trauma de um país que se está a esvair em sangue e dizem que não podem continuar a viver ali. Alguns diziam: ‘Leva-me para o teu país, seja onde for. Não queremos viver mais num país em guerra, onde os direitos dos cristãos não são respeitados ou defendidos’.”

Na semana passada, a bordo do avião que o trouxe da Coreia do Sul (onde cumpriu uma visita de cinco dias), o Papa Francisco — questionado se aprovava os bombardeamentos dos EUA sobre posições jihadistas — defendeu que todos os esforços para travar os militantes islamitas que ameaçam as minorias religiosas iraquianas são lícitos.

“Nestes casos, quando há uma agressão injusta, apenas posso dizer que é lícito parar o agressor injusto. Sublinho o verbo ‘parar’. Não digo ‘bombardear’ ou ‘fazer a guerra’. Com que meios devem ser parados? Isso tem de ser avaliado”, defendeu o chefe da Igreja Católica. O Papa referiu também que a decisão de intervir não deve ser tomada por um país unilateralmente, mas deve ser uma resposta internacional coletiva.

O fim de uma igreja antiga?

Além da recolha de testemunhos, Maria Lozano e dois outros elementos da Fundação AIS que se deslocaram ao Iraque procuraram fazer um diagnóstico das carências diárias dos refugiados cristãos para canalizar ajuda. Desde o início desta crise humanitária, a fundação já enviou 230 mil euros para fazer face, sobretudo, à necessidade de cobertores, alimentos, água potável e medicamentos.

A AIS também contactou bispos, padres, religiosas e voluntários para aferir das suas preocupações. “Um bispo disse-nos que se nada não for feito para mudar a situação, estão a escrever-se as últimas linhas da história do cristianismo no Iraque.”

As estatísticas dizem que em 1991 havia cerca de cinco milhões de cristãos no Iraque; hoje, não serão mais de 300 mil. A Igreja do Iraque é das mais antigas do mundo. Maria recorda que há 1500 anos — ainda antes do advento do Islão — 80% dos iraquianos eram cristãos. “Agora são menos de 1% da população.”

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 26 de agosto de 2014. Pode ser consultado aqui

 

 

 

A hora do Curdistão

Os curdos são o maior povo sem Estado. A destruição do Iraque reacende o sonho da independência

Combatentes peshmergas espetam no solo a bandeira do Curdistão ERFAN.KURDI / WIKIMEDIA COMMONS

No Iraque, são os curdos que estão na linha da frente do combate aos radicais islâmicos. Esta semana, o Governo alemão disse estar pronto para lhes fornecer armas — diretamente e sem passar pelas autoridades de Bagdade, enfraquecidas pela incapacidade em conter a ameaça jihadista. A mesma intenção já tinha sido expressa por franceses, britânicos, italianos e espanhóis. Os Estados Unidos já estão a fornecer armas aos curdos à revelia de Bagdade. A manobra é politicamente sensível: confere estatuto aos curdos, que sonham há gerações com a criação de um Estado que os coloque em pé de igualdade com qualquer outro país.

Osamah Mohammed, um curdo de 29 anos, sente que um Curdistão independente está mais próximo do que nunca. “Há uns anos, os políticos curdos falavam da marginalização do nosso povo e não eram escutados. Na Casa Branca, ninguém estava interessado em receber os nosso líderes”, diz ao Expresso, em entrevista telefónica a partir do Curdistão iraquiano. “Agora, todos estão interessados. Os ministros dos Negócios Estrangeiros dos Estados Unidos e da Alemanha vieram cá desenvolver contactos diretos. O Curdistão está muito próximo da independência. E já é tempo!”

A região curda iraquiana (as províncias de Duhok, Erbil e Suleimaniah) goza de autonomia limitada desde 1970. Mas para os curdos (cerca de 15% dos iraquianos), esse estatuto especial não os tem poupado a problemas. “Quando o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL, entretanto batizado Estado Islâmico) tomou Mossul, a 10 de junho, o exército iraquiano fugiu e não protegeu os curdos”, recorda Osamah. “Mesmo agora, há centenas de milhares de pessoas em fuga à violência extremista e as for- ças iraquianas não estão lá. Desde o estabelecimento do Iraque como um Estado moderno (o mandato britânico terminou em 1932) que os curdos enfrentam a opressão e sofrem campanhas genocidas. É só recordar o que aconteceu em 1988, aqui, onde eu moro…”

Osamah vive em Halabja onde, já na reta final da guerra Irão-Iraque (1980-1988), cerca de 5000 pessoas foram mortas num único dia (16 de março), durante um ataque com armas químicas ordenado por Saddam Hussein. O regime tinha em curso a operação Anfal, que consistia em ataques sistemáticos contra populações não-árabes: curdos, assírios, shabaks, turcomenos, iazidis, judeus e mandeus. Hoje, para os curdos, a invasão do Iraque de 2003 — que depôs Saddam — foi uma guerra de “libertação”.

À espera do referendo

O desconforto curdo em relação aos restantes iraquianos assenta numa identidade cultural distinta. Os curdos são muçulmanos (de credo maioritariamente sunita), mas não são árabes e têm uma língua própria, de raiz indo-europeia. “Sentimos que não fazemos parte do Iraque”, continua Osamah. “Se continuarmos a integrar o país, os problemas prosseguirão. É o que está a acontecer agora. Há forças do EIIL a atacar o povo curdo a propósito de um problema que não é nosso. A maioria dos combatentes do EIIL é árabe e estão a lutar em nome de um Estado islâmico, que é algo em que os curdos nunca pensaram. Nunca tivemos problemas religiosos, temos um problema étnico com o resto do Iraque, que está a piorar.”

Em julho, Massoud Barzani, Presidente da região autónoma do Curdistão desde 2005, solicitou ao Parlamento regional a formação de uma comissão para organizar um referendo à independência. “É uma questão de meses”, garantiu então em entrevista à BBC. “O Iraque está agora efetivamente dividido. Devemos continuar nesta situação trágica que o país está a viver?”, continuou Barzani. “Já afirmei muitas vezes que a independência é um direito natural do povo do Curdistão. E todos estes desenvolvimentos recentes o reafirmam.” Osamah acredita que, se o referendo for avante, “mais de 90%” da população aprovará a independência. Em 2005, num referendo informal, o “sim” obteve 98,98%.

Aproveitando o vácuo ao nível da segurança, o Governo regional curdo, a 11 de julho, enviou peshmergas para a área dos campos petrolíferos de Kirkuk, explorados pela estatal iraquiana North Oil Company. Em teoria, esse valioso recurso permitiria aos curdos acrescentarem mais 500 mil barris à sua produção diária de petróleo. Mas com o Governo iraquiano a não abdicar da negociação de todo o crude, têm escasseado compradores para o petróleo curdo.

Segundo o sítio de análise geopolí- tica Stratfor, os curdos venderam um primeiro carregamento a um israelita e ficaram-se por aqui. Quatro petroleiros andaram “à deriva” em diferentes latitudes — um deles ao largo de Marrocos —, sem que ninguém autorizasse o descarregamento. O “United Kalavryta” dirigiu-se para a costa do Golfo, nos EUA, e fez disparar os alarmes… “Guarda Costeira, Departamento de Estado, Departamento de Seguran- ça Interna e Conselho de Segurança Nacional foram mandados à pressa quando um cargueiro tentou descarregar 100 mil barris de crude curdo”, revela a Stratfor.

Rodeados de tubarões

Nesta estratégia de desafio ao Governo de Bagdade, os curdos têm um aliado improvável — a Turquia, que alberga uma minoria curda com pretensões separatistas e que, até 1991, proibia o uso da língua curda. (Em 2012, Ancara admitiu, pela primeira vez, o ensino do curdo nas escolas, como disciplina de opção.) É através do oleoduto que liga o norte do Iraque ao porto turco de Ceyhan que sai o petróleo curdo.

Ainda assim, não deixou de causar surpresa a visita que o Presidente curdo, Barzani, fez a Ancara, a 16 de julho, onde se encontrou com o primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan. “Não espero receber assistência ativa nem oposição”, disse Barzani, referindo-se ao assunto “independência”.

“Estamos rodeados de tubarões”, disse um membro do Governo curdo, citado pelo “Financial Times”, sob anonimato. “A independência significa atarmo-nos à Turquia, o maior tubarão da vizinhança.” A questão curda pressiona quatro países, todos com minorias curdas de milhões de pessoas. Além da Turquia e do Iraque, a Síria continua a sucumbir à guerra civil, com parte do território nas mãos do EIIL. E a leste, o Irão também teme um contágio doméstico de uma eventual emancipação dos curdos.

A Jerusalém dos curdos

Porém, a tensão não se sente apenas nos países limítrofes. Dentro do Iraque, Kirkuk, por exemplo, é um potencial campo de batalha. Se hoje o centro político curdo é Erbil, Kirkuk é a capital desejada. Há quem diga que está para os curdos como Jerusalém está para os palestinianos.

No entanto, além dos curdos, também turcomenos e árabes reclamam o controlo da cidade: os primeiros, alegam direitos históricos e uma maioria populacional no seu centro; os últimos, a quem chamam “os árabes dos dez mil” (chegaram ali no âmbito de um programa de arabização do regime que lhes dava 10 mil dinares de ajuda), querem ficar e ter voz política.

Osamah garante que o novo país seria socialmente estável. “Fiz a universidade em Duhok, onde agora estão refugiadas milhares de pessoas (que fugiram à violência jihadista). Havia iazidis, cristãos, muçulmanos, árabes, curdos, que viviam em comunidade. Nunca senti que algum iazidi ou cristão não fazia parte da nossa sociedade. Tenho cinco amigos que foram afetados pelos recentes acontecimentos em Sinjar (perseguições aos iazidis). Um deles teve de fugir para a montanha. Ligava-lhe todos os dias para saber se estava em segurança. E como eu, também outros amigos muçulmanos.”

CURIOSIDADES

  • Saladino, o grande herói dos árabes que conquistou Jerusalém aos cruzados, era curdo. Nasceu em 1138, em Tikrit, onde também nasceu e está sepultado Saddam Hussein.
  • Após a I Guerra Mundial, o Tratado de Sèvres (1920), celebrado entre Aliados e o derrotado Império Otomano, contemplou a criação de um Curdistão, no atual território turco. De fora ficariam os curdos do Irão, do Iraque (controlado por britânicos) e da Síria (tutelada pela França). Tratados posteriores silenciaram o assunto.
  • Em janeiro de 1946, apoiados pela União Soviética, os curdos do Irão fundaram a República Mahabad, no Nordeste do país. A experiência terminou no fim do ano com a tomada do território por forças iranianas.
  • Os peshmergas (“os que enfrentam a morte”, em curdo) têm brigadas femininas, comandadas por mulheres. Atualmente, estão envolvidas em combates contra os jihadistas. Em 2003, já tinham participado na guerra do Iraque e, no ano anterior, em combates contra o Ansar al-Islam (grupo salafita maioritariamente curdo), em Halabja.

Artigo publicado no Expresso, a 23 de agosto de 2014

Novo primeiro-ministro no Iraque

Mais de três meses após as eleições legislativas, surge finalmente um nome para a chefia do Governo de Bagdade

O Presidente iraquiano incumbiu, esta segunda-feira, Haider al-Abadi, vice-Presidente do Parlamento, da formação de um novo Governo. A escolha foi conhecida mais de três meses após a realização das eleições legislativas e menos de 24 horas após o atual primeiro-ministro, Nuri al-Maliki, ter acusado o chefe de Estado de bloquear a sua candidatura a um terceiro mandato.

O Presidente Fouad Massoum (curdo) deu a Abadi 30 dias para formar a nova equipa governativa e apresentá-la ao Parlamento. 

Haidar al-Abadi nasceu em Bagdade em 1952 e é doutorado em Engenharia Eletrónica pela Universidade de Manchester. Viveu em Londres, como opositor do regime de Saddam Hussein, até à queda deste em 2003. Regressou ao Iraque e foi nomeado ministro de Telecomunicações. Como o atual chefe de Governo, é xiita e membro da formação partidária Estado de Direito.

Envolver os sunitas na governação

No poder desde 2006, Nuri al-Maliki vinha sendo acusado de sectarismo e de alienação das minorias iraquianas, designadamente os sunitas (em que Saddam Hussein se apoiou), das tarefas governativas.

Descontentes, muitos sunitas têm apoiado, por uma questão estratégica, os jihadistas do Estado Islâmico (ex-Estado Islâmico do Iraque e do Levante), igualmente sunitas, que controlam grandes extensões de território no Iraque e na Síria.

“Os Estados Unidos estão prontos a apoiar plenamente um novo governo de união nacional, sobretudo na sua luta contra o Estado Islâmico”, escreveu no Twitter Brett McGurk, diplomata do Departamento de Estado dos Estados Unidos encarregado dos assuntos do Iraque e do Irão.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de agosto de 2014. Pode ser consultado aqui

Radicais anunciam Estado independente

Jihadistas do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL) decretaram um califado nas regiões que controlam na Síria e no Iraque. E exigem a obediência de todos os muçulmanos do mundo

IMAGEM Bandeira do Estado Islâmico WIKIMEDIA COMMONS

Depois da Síria e do Iraque, o EIIL quer avançar à conquista do mundo. O grupo jihadista proclamou um califado nas zonas que controla nos dois países, numa área que se estende desde a província iraquiana de Diyala à região síria de Alepo. O grupo exige agora que os muçulmanos de todo o mundo lhe jurem fidelidade.

“A legalidade de todos os emirados, grupos, estados e organizações torna-se nula através da expansão da autoridade do califa e da chegada das suas tropas a essas áreas”, declarou o porta-voz do grupo, Abu Mohamed al-Adnani. “Ouçam o vosso califa e obedeçam-lhe. Apoiem o vosso Estado, que cresce a cada novo dia.”

O califa é Abu Bakr al-Baghdadi, o líder do grupo jihadista, que entretanto se rebatizou — chama-se agora Estado Islâmico (EI). “A designação ‘Iraque e Levante’ é doravante removida de todas as deliberações e comunicações oficiais e o nome oficial passa a ser Estado Islâmico”, continuou o porta-voz do grupo.

O anúncio foi feito através de uma gravação divulgada na internet e revela uma crescente confiança por parte dos extremistas, cada vez mais percecionados como um perigo maior do que a Al-Qaeda, dada a barbaridade das suas ações.

O Observatório Sírio para os Direitos Humanos denunciou, no domingo, a execução e crucificação de oito homens na zona síria de Deir Hafer, leste de Alepo. Os homens combatiam o regime de Bashar al-Assad e também os grupos jihadistas. Após a execução, o EIIL “crucificou-os na principal praça da aldeia, onde os cadáveres ali ficarão durante três dias”, disse o Observatório. Um nono homem sofreu o mesmo fim na cidade de Al-Bab, perto da fronteira com a Turquia.

O arrependimento de Maliki

Este fim de semana, o Governo de Bagdade (xiita) desencadeou a maior ofensiva, até ao momento, contra os extremistas sunitas, que vêm avançando, desde o norte, na direção da capital. Milhares de soldados iraquianos tentam recapturar Tikrit (a cidade natal de Saddam Hussein), 160 quilómetros a norte de Bagdade.

Segundo a agência russa Itar Tass, o ministério iraquiano da Defesa pediu à Rússia a entrega urgente de aviões de ataque ao solo Su-25, após os Estados Unidos atrasarem o fornecimento aos iraquianos de 18 caças F-16.

Numa entrevista à BBC, na semana passada, o primeiro-ministro iraquiano afirmou que os iraquianos foram “enganados quando assinaram o contrato [com os EUA]”, disse Nouri al-Maliki. “Deveríamos ter procurado comprar outros caças, como britânicos, franceses e russos, para assegurar a cobertura aérea das nossas forças. Se tivéssemos essa capacidade teríamos evitado o que aconteceu.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de junho de 2014. Pode ser consultado aqui

Uma sombra negra desceu sobre o Iraque

O grupo jihadista EIIL nasceu no Iraque e deu nas vistas na Síria. Atingidos por essa ameaça, os dois países estão a desintegrar-se

Bandeira do Estado Islâmico, também usada pelos grupos terroristas Al-Shabaab, Al-Qaeda na Pemínsula Arábica, Al-Qaeda no Magrebe Islâmico e Boko Haram WIKIMEDIA COMMONS

A ofensiva de grupos jihadistas em direção a Bagdade coloca uma dúvida inquietante: poderá o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL) conseguir, no Iraque, aquilo que a Al-Qaeda nunca conseguiu? Controlar um país? “Duvido”, diz ao Expresso Bernardo Pires de Lima, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI). “Além de ser difícil conquistar áreas predominantemente xiitas, como Bagdade, surgirão diferentes abordagens e tensões entre os jihadistas e as tribos sunitas que também estão em campo contra o primeiro-ministro Nuri al-Maliki (xiita). Nesse sentido, prevejo uma dupla dificuldade no controlo do país.”

Em menos de uma semana, os jihadistas içaram a bandeira negra em cidades do norte e centro e controlam uma área maior do que Israel, com petróleo, linhas de alta tensão, prisões e armas, algumas fornecidas pelos EUA. No norte a única força militar credível é o exército do território autónomo curdo que, preventivamente, ocupou Kirkuk após a debandada das tropas de Bagdade.

A marcha do EIIL parou em Samarra, a 120 km da capital. Para Pires de Lima, a tomada de Bagdade é, porém, “uma probabilidade distante. Sendo sobretudo xiita, a cidade oferece pouco apoio sunita a uma investida militar. Por outro lado, tanto o exército, fortemente xiita, como as milícias xiitas não darão margem a que a capital seja tomada. Além disso, potências interessadas, como EUA e Irão, já estão preparadas para dar auxílio.”

O ataque irrompeu no dia 10 com a conquista de Mossul, a segunda cidade, numa zona rica em petróleo. Ao estilo de um Estado dentro do Estado, os jihadistas usam os recursos minerais em seu proveito, “fazendo como já fazem na Síria (onde controlam Deir Ezzor, província rica em petróleo): revendendo ao regime, a bom preço, para se financiarem”, diz Pires de Lima.

“A importância da Síria no mercado de petróleo é menor do que a do Iraque, e é provável que os principais compradores financiem mais segurança nas refinarias. Refiro-me à China que compra metade da produção.”

A pobretanas Al-Qaeda

Numa medida que mais parece destinada a exibir potencial e seduzir financiadores, o EIIL publica, desde 2012, o relatório anual de atividades, dando informações sobre ataques à bomba, assassínios, checkpoints, missões-suicidas, conversões de “apóstatas” e ganhos territoriais. Em 2013, o grupo diz ter feito 10 mil operações no Iraque, que provocaram 1000 mortos e resultaram na libertação de centenas de prisioneiros radicais.

Estima-se que o EIIL tenha, atualmente, 15 mil combatentes. E que antes de tomar Mossul, o EIIL já cobrasse, por mês, oito milhões de dólares (seis milhões de euros) em extorsões aos comerciantes locais. Após conquistar Mossul, o grupo assaltou o edifício local do Banco Central de onde levou 425 milhões de dólares (313 milhões de euros). Crê-se que por alturas do 11 de Setembro, o orçamento anual da Al-Qaeda rondasse os 30 milhões de dólares (22 milhões de euros).

Mais do que a sua capacidade militar, o sucesso do EIIL — com origem na Al-Qaeda do Iraque, nascida no contexto da invasão americana de 2003 e que se alimentou do colapso institucional que se seguiu à queda de Saddam Hussein — ilustra, acima de tudo, a implosão do exército de Bagdade. Vários comandantes foram dos primeiros a fugir de Mossul.

Traduz ainda a impopularidade, dentro do ‘triângulo sunita’ (os vértices são Bagdade, Ramadi e Tikrit), do Governo iraquiano que tem marginalizado a minoria sunita, em que, até 2003, Saddam (natural de Tikrit) se apoiou. Por isso e não tanto por admirarem o EIIL, muitos sunitas alinham com os jihadistas.

Para Pires de Lima, investigador também na Universidade Johns Hopkins, em Washington DC, esta ofensiva jihadista era “absolutamente previsível”. “Em janeiro, já tinham tomado Fallujah e Ramadi, pondo a nu as enormes fraquezas do exército. E, no último ano, quando se incompatibilizaram com os grupos laicos e moderados da oposição síria, aproveitaram a livre circulação entre as duas fronteiras para apontar forças ao norte e oeste iraquiano, onde os sunitas mais odeiam o Governo de Maliki, que tudo tem feito para dividir o país com um chauvinismo xiita e uma perseguição política a líderes civis e militares sunitas.”

Territórios aos bocados

O analista recorda que “o Iraque faz parte do sonho do EIIL, o Al-Sham ou a Grande Síria, geografia que não respeita as fronteiras desenhadas no fim dos impérios, antes procura agrupar a comunidade sunita submetendo-a à sharia sem qualquer contemplação”.

Quarta-feira, o Governo português repudiou “as imagens particularmente chocantes de atrocidades cometidas” por grupos terroristas, apelou “à imediata libertação dos cidadãos turcos” reféns em Mossul e defendeu que “a unidade do Iraque deve prevalecer”.

No Iraque e na Síria, essa unidade é, porém, cada vez mais artificial. A Síria “está desintegrada. Assad controla o terço territorial mediterrânico, os curdos autoproclamaram um estado autónomo a norte e os sunitas (terroristas ou militantes anti-Assad) o resto”, diz Pires de Lima. “A manutenção de Assad no poder pode ser um ponto de partida para uma investida militar de ocidente para leste. Nesse sentido, a integridade síria pode ser um capítulo em aberto. Julgo ser o quadro que mais agrada aos EUA, UE, Rússia, Irão e Turquia. A questão é a reação da Arábia Saudita e de grandes financiadores sunitas como o Qatar.”

A desintegração atinge também o Iraque, “embora exista uma estrutura mais descentralizada do Estado. Podemos ter como solução uma federação pouco dirigida pelo Governo central (como querem as tribos sunitas) e com regiões autónomas autossuficientes, como existe a norte com os curdos. Este seria o compromisso político depois de eliminada a ameaça terrorista, o que vai demorar.”

Bagdade já pediu ajuda aos EUA que dali retiraram no fim de 2011. O Irão já enviou tropas para defender a capital e os lugares santos xiitas de Najaf e Karbala. “Este terrorismo aproxima EUA e Irão, mas os EUA não querem abrir mão da aliança com a Arábia Saudita, vista por Maliki como o promotor financeiro do EIIL e das tribos sunitas. O Irão apoiará financeira e militarmente as milícias xiitas que estão ao lado do exército iraquiano e, como na Síria, são fundamentais para garantir o sucesso. Os EUA podem usar drones, mas não é de esperar que mandem tropas.”

Ainda os Açores

Num ensaio publicado no sítio da Faith Foundation, há uma semana, Tony Blair, ex-chefe do Governo britânico e um dos protagonistas da invasão do Iraque em 2003, afastou responsabilidades pelo estado do país, preferindo culpar “a situação na Síria”. “Temos de nos libertar da noção de que ‘nós’ causámos isto”, disse.

Autor do livro “A Cimeira das Lajes — Portugal, Espanha e a guerra do Iraque”, Bernardo Pires de Lima conclui: “Mais do que a guerra de 2003, o pósguerra foi um dos grandes falhanços geopolíticos das últimas décadas para o Ocidente. Não garantiu um aliado confiável em Bagdade, descredibilizou-se na região com os argumentos que originaram a guerra, depauperou a sua cadeia de informações e mostrou não ter noção do planeamento pósconflito.” O resultado está à vista.

Artigo publicado no Expresso, a 21 de junho de 2014