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Governo e extremistas disputam a maior refinaria do Iraque

A refinaria de Baiji é palco de violentos combates entre as forças de Bagdade e milícias radicais sunitas. Barack Obama diz que se a situação no terreno o exigir, os EUA poderão adotar ações militares “precisas e direcionadas”

Forças leais ao Governo iraquiano e militantes jihadistas do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL) estão envolvidos em batalhas violentas pelo controlo da refinaria de Baiji, a maior do país, e do aeroporto de Tal Afar, ambos no norte.

Os rebeldes içaram as suas bandeiras negras à volta da refinaria de Baiji, mas o Governo garante ter recuperado o controlo total daquela central, que produz diariamente 320 mil barris de petróleo.

Os combates acontecem nas vésperas do secretário de Estado norte-americano, John Kerry, — que inicia, este fim de semana, um périplo pelo Médio Oriente — chegar a Bagdade. Na capital iraquiana, espera-se que pressione as autoridades, lideradas pelos xiitas, no sentido de formarem um Governo mais representativo do xadrez étnico iraquiano e, assim, a tensão inter-étnica possa aliviar.

Ontem, o Presidente dos Estados Unidos anunciou o envio de mais de 300 conselheiros militares para assessorar o Governo iraquiano (xiita), no combate aos militantes radicais sunitas. “As forças norte-americanas não regressarão aos combates no Iraque”, disse Barack Obama, acrescentando que os EUA “estão preparados para adotar ações militares precisas e direcionadas se e quando nós determinarmos que a situação no terreno o requer”.

Os preparativos para a guerra parecem já ter começado junto de muitos iraquianos. Milhares de xiitas — a etnia maioritária e também aquela que está no poder — estão a alistar-se, de forma voluntária, no exército iraquiano para defenderem o país da ameaça colocada pelos sunitas do EIIL — especialmente os lugares santos xiitas de Najaf e Karbala.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 20 de junho de 2014. Pode ser consultado aqui

Fareed estudava sem luz e ao som das bombas

Há vidas com um antes e um depois daquele momento em que os protagonistas decidiram parar de repetir a palavra aguentar e decidiram conjugar o verbo mudar. A história do iraquiano Fareed Nabeel

Aos 24 anos Fareed estava empenhado em dar uma grande alegria aos pais. Para qualquer clã iraquiano, ter um filho médico ou engenheiro é das maiores fortunas que podem desejar. Nascido em 1979, o mais velho dos três filhos daquela família católica de Bagdade queria dar o exemplo e provar que não precisava mais do que os seis anos curriculares para se formar em Medicina. Teria sido assim se a guerra não rebentasse. Os exames finais coincidiram com a invasão americana, em Abril de 2003. Estudava sem luz e ao som das bombas. A temperatura chegava aos 50 graus. O Iraque estava um caos, recorda Fareed.

Por causa da guerra, qualquer médico recém-licenciado tinha vaga. Fareed foi colocado em Sadr City, um bairro xiita problemático nos arredores de Bagdade. “Às vezes, para não correr riscos de ser atingido por uma bala perdida, ia a rastejar até ao hospital. Um colega meu morreu assim”. Passou a viver ao dia, sem garantias de regressar a casa são e salvo. De manhã, despedia-se da família como se não mais os voltasse a ver. “Sentia-me como se fosse para um campo de batalha. A minha mãe chorava e pedia-me para não ir trabalhar, mas tinha de ser…” Um dia, foi ameaçado. Queriam que deixasse o hospital. Pela primeira vez, sentiu que ser católico era uma adversidade.

Então, tomou conhecimento que em Portugal havia falta de médicos. E predispôs-se à mudança. “Cheguei em Abril de 2006. Era tudo estranho. No Iraque, praticamente, só conhecemos o país através do futebol…” Com a cabeça a prémio no Iraque, inicia um processo de sobrevivência em Portugal. Para exercer Medicina tinha de fazer o exame de equivalência, dali a uns meses e não falava uma palavra de português. “Arrendei um quarto a uma senhora de idade, a Dona Guida. Quando entrei em casa dela pela primeira vez só comunicávamos por gestos. Tirei um curso intensivo e comecei a ouvir rádio e a ver as telenovelas. Quando a Dona Guida se sentava para tomar o café, lia-lhe artigos dos jornais e ela corrigia”.

A história de Fareed cruza-se, então, com a do seu próprio país. Com os pais reformados, o seu irmão do meio, que trabalhava como engenheiro electrotécnico em Bassorá, era o único que lhe podia valer. “Ele chegava a pedir ao patrão para depositar o ordenado dele, integralmente, na minha conta”. Mas no Iraque pós-Saddam quem trabalhasse na reconstrução do país colocava-se na mira dos insurgentes. Um dia, o irmão de Fareed é ameaçado por homens armados. Se não deixasse aquele trabalho pagaria com a vida.

Sem meios de subsistência e com o exame à porta, no Hospital Santa Maria, Fareed venceu a vontade de desistir. Contou a sua história na Fundação Gulbenkian, na Associação dos Médicos Católicos e no Serviço Jesuíta aos Refugiados e conseguiu apoios e um trabalho, a cuidar de um doente com parkinson. Como milhares de iraquianos fugidos à guerra, chegado a Portugal, Fareed podia ter solicitado o estatuto de refugiado. “Não escolhi essa via por uma questão de princípio. Quis fazer tudo com esforço próprio”.

Em Junho de 2007, Fareed obteve a desejada equivalência, na Faculdade de Medicina de Lisboa, com a mesma nota que teve no Iraque, 13. Agora, frequenta o internato geral em Torres Novas. Aos poucos, sente que a vida começa a estabilizar. Gosta de cozido à portuguesa, apaixonou-se por Cascais e não dispensa o cafezinho pela manhã. Ainda não foi a Fátima, como a mãe lhe pediu, mas reza para, um dia, retribuir a generosidade do irmão: “O que eu mais queria é que ele viesse trabalhar para Portugal”.

Artigo publicado na revista Única do Expresso, a 13 de setembro de 2008

Nove cartas fora do baralho

Faz amanhã um ano que o ás de espadas foi executado. Saddam não teve a sorte de outros

Ainda estão à venda em vários “sites” da Internet, mas os baralhos de cartas estampados com as fotos dos homens mais procurados do Iraque já não suscitam a mesma curiosidade do passado. Em Abril de 2003, decorria já a invasão, Saddam Hussein — que foi executado faz amanhã um ano — e 54 altas individualidades do seu regime eram os rostos malditos que urgia fazer desaparecer da face da Terra.

O ditador iraquiano — o ás de espadas — seria o 42.º a ser caçado, a 13 de Dezembro de 2003. Hoje, de acordo com o “site” do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, nove permanecem em paradeiro desconhecido, mas a sua captura já não merece grandes investimentos por parte das forças ocupantes. “Não faço a mínima ideia quantos ainda andam por aí. Já não usamos essas cartas. O baralho foi feito há quatro anos, ainda antes da criação da Força Multinacional-Iraque”, confessou ao “Expresso”, solicitando anonimato, um dos porta-vozes deste comando, criado em 2004 e liderado pelos Estados Unidos.

Mas a atentar no noticiário que chega do Iraque, há pelo menos um alvo que as forças da coligação não esqueceram totalmente — Izzat Ibrahim al-Duri, o general que só era ultrapassado por Saddam na hierarquia do Conselho de Comando Revolucionário, que lhe sucedeu na liderança do Partido Baas e que chefia, desde Outubro passado, um grupo insurgente sunita chamado Comando Supremo para a Jihad e a Libertação. “As buscas à procura dele continuam…”, acrescentou o porta-voz, sem se alongar muito nos pormenores.

General finta as tropas

A 8 de Dezembro, Al-Duri — o rei de paus — terá escapado a um raide nos arredores de Tikrit, a cidade natal de Saddam Hussein. “Não foi uma operação da coligação, mas antes das forças iraquianas”, continua o porta-voz. “Receberam uma informação de que Al-Duri poderia estar em determinado local, mas não estava”. Ter-se-á tratado de uma informação falsa ou o general terá fugido? “Não o encontraram…”, conclui a mesma fonte.

Por alturas do cerco ao general iraquiano, o vice-governador da província de Salaheddin, de que Tikrit é a capital, foi bem mais esclarecedor: “As forças não encontraram Al-Duri, mas apreenderam documentos com informações sobre a rede da Al-Qaeda e outras milícias, sobre as suas actividades bem como as técnicas usadas em operações no norte do Iraque”, afirmou Abdullah Hussein Jbara.

Uma das operações esboçadas nas papeladas confiscadas prende-se com um ataque à prisão Badush, em Mosul, que efectivamente aconteceu em Março, resultando na fuga de dezenas de prisioneiros.

Companheiros de fuga

Entre os ilustres que continuam a monte destacam-se igualmente Hani abd al-Latif al-Tilfah al-Tikriti, director da Organização Especial de Segurança e sobrinho de Saddam; Sayf al-Din Fulayyih Hasan Taha al-Rawi, chefe de Estado da Guarda Republicana, de quem se diz estar escondido numa pequena cidade perto de Bagdade após ter simulado a sua morte e o seu próprio funeral; Tahir Jalil Habbush al-Tikriti, director dos Serviços de Inteligência; e Rukan Razuki abd al-Ghafar Sulayman al-Nasiri, chefe dos Assuntos Tribais e o principal guarda-costas de Saddam Hussein.

Não existem estudos sobre a eficácia desta técnica de comunicação militar, mas dela resulta uma curiosidade. O baralho dos 55 iraquianos mais procurados foi desenvolvido por especialistas da Agência de Inteligência da Defesa dos Estados Unidos na senda de uma velha tradição norte-americana que recorre à batota — companheira de longas horas na caserna — para transmitir aos militares o perfil do inimigo. Esta prática já tinha sido usada na Guerra Civil norte-americana, na Segunda Guerra Mundial — altura em que foram impressos baralhos com silhuetas de aviões de combate alemães e japoneses — e também na Guerra da Coreia.

E como, pelos vistos neste domínio, a tradição ainda é o que era, há cerca de meio ano, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos distribuiu milhares de baralhos pelas tropas no Iraque e no Afeganistão com um novo motivo: monumentos históricos e sítios arqueológicos, visando sensibilizar as tropas para a importância do património histórico e da prevenção de danos desnecessários em pedaços insubstituíveis da História.

CONSTRUIR O ESTADO A PARTIR DAS REGIÕES

O Iraque tem Presidente, Governo e Parlamento, mas o novo Estado pós-Saddam tarda em consolidar-se. A estratégia passa agora por recorrer aos poderes locais

Ainda que, entre os iraquianos, não haja grande vontade de rir, há uma anedota que corre com alguma ligeireza. “Se os EUA têm 50 estados e são o país mais poderoso do Mundo, então se o Iraque tiver 51 será ainda mais forte do que eles”. A fragmentação do Iraque em várias unidades políticas é uma possibilidade que decorre da guerra de 2003 e do despertar das rivalidades entre as várias comunidades iraquianas — contidas, durante décadas, pela lei do ditador.

Num artigo divulgado na quarta-feira, Charles Tripp, docente na Universidade de Londres, invoca o desaparecimento de Saddam para melhor caracterizar a conjuntura actual. “Como disse um iraquiano, ‘Os EUA livraram-se de um Saddam e substituíram-no por 50’. Para muita gente, negociar com os pequenos Saddams, com as suas milícias, centros de detenção, tribunais e impostos locais, tornou-se uma questão de vida. É o preço a pagar por segurança acrescida na comunidade, bairro ou rua”.

“Os Estados Unidos livraram-se de um Saddam Hussein e substituíram-no por 50”, diz-se no Iraque

O professor salienta a fraca autoridade das “instituições nacionais” e recorda que é sob a vigilância de autoridades locais que acontecem alguns dos mais bárbaros atentados aos direitos e liberdades. Só nos últimos três meses, por exemplo, cerca de 40 iraquianas foram mortas na região de Bassorá por usarem maquilhagem, não usarem o véu ou não observarem as leis decretadas pelas milícias locais.

A eficácia das tribos

No último balanço sobre a situação no Iraque, feito na semana passada, o Pentágono creditou grande parte do sucesso no combate à insurgência — os grandes ataques diminuíram 50% desde Março — aos ‘Conselhos do Despertar’, grupos tribais sobretudo sunitas. “É talvez um dos mais importantes desenvolvimentos de 2007. Foi uma decisão de cidadãos iraquianos para confrontar a Al-Qaeda e expulsá-la da vizinhança”, afirmou, na quarta-feira, Kevin Bergner, porta-voz das forças americanas. Para ele, a integração destes grupos locais na sociedade é um grande desafio para 2008.

“Eles querem ser reconhecidos como membros legítimos da sociedade. O governo do Iraque (de maioria xiita) tem de agarrar esta oportunidade”, acrescentou o general Rick Lynch, comandante da zona sul de Bagdade. Em causa estão compensações financeiras e a integração nas forças de segurança.

Em declarações ao “Expresso”, Glen Rangwala, professor no Trinity College da Universidade de Cambridge e autor do livro ‘O Iraque em Fragmentos: A Ocupação e o Seu Legado’, defendeu que a consolidação do Estado iraquiano depende não só da paz e estabilidade mas também da “reconciliação política, o que ainda não aconteceu”.

Para promover a confiança inter-sectária, o magnata da imprensa iraquiana, Fakhri Karim, organizou, há duas semanas, o casamento de 70 casais mistos, em Bagdade. Houve danças sunitas, curdas e xiitas, um cortejo pela capital, mas não os tradicionais disparos para o ar, por razões de segurança.

Artigo publicado no Expresso, a 29 de dezembro de 2007

Nassíria longe do paraíso

A cidade que vai acolher os 128 agentes da Guarda Nacional Republicana — Nassíria — era, desde o fim da guerra (1 de Maio) e até quarta-feira, das mais pacíficas do Iraque. «Apenas» um sargento norte-americano tinha lá morrido, em Julho, na sequência de um acidente de viação.

Mas após o atentado suicida contra o quartel-general das tropas italianas, de que resultaram pelo menos 26 mortos (entre os quais 12 «carabinieri» e cinco soldados), Nassíria tornou-se mais uma cidade «infectada» pela resistência terrorista e mais um ponto no mapa de preocupações da coligação.

O ataque contra os «carabinieri» — o maior e mais mortífero contra as forças da coligação estacionadas na região sob comando britânico (que superintende a força italiana e, no futuro, a portuguesa) — veio demonstrar que a reacção terrorista à presença militar estrangeira está a conquistar todo o Iraque. O sul do país, de maioria xiita, vinha sendo poupado aos ataques perpetrados pela guerrilha, mais frequentes no chamado «triângulo sunita» (Bagdade, Tikrit, Falujah).

A instabilidade no terreno é cada vez mais visível e o ataque em Nassíria culminou essa degradação. A Casa Branca demonstrou ter compreendido o aviso e empreendeu já uma viragem na sua estratégia político-militar, com George W. Bush a anunciar estar em curso a aceleração da transferência do poder para os iraquianos.

Mas até que tal se efective, Washington terá de iludir a crescente degradação da situação no terreno, através de demonstrações de força. Na sequência do atentado em Nassíria, foi lançada a operação «Martelo de Ferro», uma contra-ofensiva em larga escala que representa um retrocesso na decisão dos Estados Unidos de limitar ao máximo as acções ofensivas.

Países revêem decisões

A calma aparente que se vivia em Nassíria no pós-guerra faz definitivamente parte do passado e os países chamados a servir com homens no processo de reconstrução reequacionam os seus planos, cada vez mais desajustados à situação no terreno. O Japão adiou o envio de um contingente, a Coreia do Sul vai mandar menos homens do que o previsto e a Dinamarca congelou o envio suplementar de tropas.

Nassíria parece estar de volta aos dias da guerra, quando foi das cidades que maior resistência ofereceu à passagem das forças anglo-americanas a caminho de Bagdade. Situada na margem norte do rio Eufrates, Nassíria, com mais de meio milhão de habitantes, tinha uma grande importância estratégica para o abastecimento, em homens e equipamento, da capital, 375 quilómetros a noroeste.

Ainda durante a guerra, Nassíria foi palco de um dos episódios mais mediáticos e também mais controversos: o aparatoso resgate da soldado norte-americana Jessica Lynch, de 19 anos, feita prisioneira na sequência de uma emboscada, a 23 de Março, de que resultaram nove soldados mortos. Lynch acusa agora o Pentágono de ter encenado a sua libertação com fins propagandísticos.

É, pois, numa cidade confrontada com a ameaça terrorista que os GNR portugueses irão servir. Por enquanto, e até terem condições para se instalarem em Nassíria, ficarão aquartelados em Bassorá, a maior cidade do sul do Iraque, onde está sediado o comando britânico. Setenta quilómetros para norte, situa-se Qurna, onde se unem os rios Tigre e Eufrates e onde, conta a lenda, terá florido o bíblico Jardim do Éden. Hoje, porém, a região está muito longe de ser um paraíso.

Artigo publicado no “Expresso”, a 15 de novembro de 2003