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Ataque a Rushdie fere acordo com Irão?

O esfaqueamento do escritor, 33 anos após a fatwa do líder do Irão, coincidiu com o fim do diálogo sobre o programa nuclear. Teerão nega envolvimento no atentado


1. Porque foi atacado Salman Rushdie?

Aos investigadores do ataque ao escritor, num evento em Nova Iorque, a 12 de agosto, o agressor disse ter-lhe aversão por “atacar o Islão”. Foi identificado como sendo Hadi Matar, um norte-americano de 24 anos, que vivia com a mãe em Nova Jérsia. Filho de emigrantes oriundos de Yaroun, uma zona no Sul do Líbano com forte influência do Hezbollah, grupo xiita apoiado pelo Irão, negou qualquer contacto com o Irão.

Ao jornal inglês “Daily Mail” a mãe disse que o filho, muçulmano xiita, começara a revelar fanatismo religioso após passar um mês no Líbano, em 2018. Hadi admitiu ter lido “um par de páginas” de “Os Versículos Satânicos”, a obra de Rushdie que enfureceu milhões de muçulmanos e colocou a sua cabeça a prémio, após o fundador da República Islâmica do Irão (xiita), o ayatollah Ruhollah Khomeini, emitir uma fatwa (decreto), a 14 de fevereiro de 1989, apelando à sua morte.

Hadi não era ainda nascido. Nutriu-se de um ódio que o transcende e contribuiu para uma teoria da conspiração… “Não vou chorar por um escritor que jorra ódio e desprezo sem fim pelos muçulmanos e pelo Islão”, escreveu no Twitter Mohammad Marandi, conselheiro da delegação do Irão às negociações de Viena. “Mas não é estranho que, à medida que nos aproximamos de um possível acordo nuclear, os EUA façam alegações sobre um ataque a [John] Bolton e depois aconteça isto?” Dois dias antes do caso Rushdie um membro dos Guardas Revolucionários do Irão foi acusado pelo FBI de tentativa de assassínio do ex-conselheiro para a Segurança Nacional de Donald Trump.

2. O acordo nuclear está em risco?

Não há indícios de que possa acontecer. Três dias após o ataque ao escritor britânico e norte-americano, um responsável iraniano mostrava que Teerão continuava na ofensiva, à mesa das negociações. Nasser Kanaani, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, negou qualquer envolvimento do Irão no ataque a Rushdie e disse, numa conferência de imprensa, que as conversações de Viena estavam perto de um consenso, na condição de que as linhas vermelhas do Irão seriam respeitadas e os seus principais interesses atendidos. Após 16 meses de negociações, envolvendo sete países, a última ronda terminou a 8 de agosto. A União Europeia, que mediou o processo, fez circular um “texto final” e apelou às partes que tomem decisões. “Pela primeira vez em muitos meses, na terça-feira as autoridades europeias expressaram crescente otimismo de que um restabelecimento do acordo nuclear iraniano de 2015 possa ser celebrado entre Irão e Estados Unidos”, noticiou esta semana o “The New York Times”.

3. O regime de Teerão pode ser penalizado?

Não é provável, apesar do regozijo de sectores conservadores. “Satanás a caminho do inferno”, noticiou em manchete o jornal “Khorasan”. Já o “Kayhan” escreveu: “A mão do homem que rasgou o pescoço do inimigo de Deus deve ser beijada.” Por muito que se prove que foi a fatwa de Khomeini que “guiou” Hadi Matar até Rushdie, as questões relativas aos direitos humanos não levam a melhor sobre a realpolitik. Um exemplo fresco na memória é o macabro assassínio do jornalista saudita Jamal Khashoggi no consulado do reino em Istambul (Turquia), em 2018. O crime implicou o príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman (MbS), no papel de mandante. Quando entrou na Casa Branca, Joe Biden esboçou vontade de ostracizar o reino, rotulando-o de “pária”, e revelou desprezo em relação a MbS, o líder de facto do país. Mas quando os interesses económicos falaram mais alto, Biden pôs de parte a agenda dos direitos humanos e, há um mês, deslocou-se à península. À entrada do Palácio Al Salman, em Jeddah, foi recebido por MbS.

4. A fatwa de Khomeini continua em vigor?

Em setembro de 1998, quase 10 anos após a condenação à morte de Rushdie, o então Presidente iraniano, o reformista Mohammad Khatami, defendeu que o caso estava “completamente acabado”. Dias depois, o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Kamal Kharrazi, acrescentou que o Governo de Teerão “dissocia-se” de qualquer recompensa oferecida pela morte do escritor. Ainda que em Teerão se tenham seguido presidências conservadoras, Rushdie desapareceu da narrativa político-religiosa iraniana e passou, ele próprio, a circular de forma mais relaxada.

5. Qual o estado de saúde do escritor?

Sir Ahmed Salman Rushdie sobreviveu e, segundo o seu agente, está “a caminho da recuperação”. Num e-mail enviado à agência Reuters, Andrew Wylie disse que o processo “será longo. Os ferimentos são graves, mas o seu estado evolui na direção certa”.

O escritor, de 75 anos, recebeu três facadas no pescoço, quatro no estômago, perfurações no olho direito e no peito e uma laceração na coxa direita. No hospital de Erie, na Pensilvânia, onde está internado, já teve uma conversa “articulada” com investigadores ao caso. Segundo o filho Zafar, “o seu habitual sentido de humor rebelde e desafiador permanece intacto”.

6. O que diz o livro polémico?

“Os Versículos Satânicos” romantiza a vida do profeta Maomé, uma blasfémia no Islão. Foi proibido em vários países, o tradutor japonês foi morto à facada e o italiano e o editor norueguês sobreviveram a atentados. O fantasma de um atentado ao virar da esquina perseguiu Rushdie mais de 30 anos, condenando-o a anos de clandestinidade, com segurança 24 horas e frequentes mudanças de casa. Tornou-se um símbolo da liberdade de expressão, mas também dos seus limites. John le Carré criticou-o: “A minha posição era de que não há lei na vida ou na natureza que diga que grandes religiões podem ser insultadas impunemente.” Durante 15 anos os dois insultaram-se em público, com Rushdie a chamar “burro pomposo” a Le Carré e este a acusá-lo de “autocanonização”. Em 2012 enterraram o machado de guerra: “Gostava que não o tivéssemos feito”, disse Rushdie. Le Carré correspondeu: “Também lamento a disputa.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui

Ramadão: Um desafio para o corpo, para a mente e para os hábitos quotidianos dos muçulmanos

Para os muçulmanos, o Ramadão é muito mais do que um período de jejum. É um exercício de autocontrolo, que os ensina a lidar com o sofrimento da privação e a contornar a tentação

Um quarto da população mundial — cerca de 1800 milhões de pessoas, 50 mil das quais em Portugal — cumpre por estes dias a prática do Ramadão. Durante um mês, desde o nascer até ao pôr do sol, viverão privadas de prazeres mundanos e, por isso, algo condicionadas no seu convívio quotidiano com os não-muçulmanos.

Para estes, revelar sensibilidade e respeito para com familiares, amigos ou colegas de trabalho que professem o Islão passa por evitar comer ou beber na sua presença, não agendar almoços de trabalho ou “esquecer” o colega muçulmano na pausa para o cigarro ou o cafezinho. E também desejar-lhes um bom Ramadão (“Ramadan mubarak”).

Durante este ritual, os crentes devem abster-se de comer, beber (mesmo água), fumar, ter relações sexuais e privar-se de tudo o que possa constituir um deleite para o corpo, como o uso de perfumes. O jejum deve ser cumprido também ao nível do pensamento, estando os crentes obrigados a evitar todo o tipo de pensamentos imorais.

Da mesma forma que o exercício físico fortalece o corpo, os muçulmanos acreditam que o jejum fortifica a vontade, levando-os a lidar com o sofrimento da privação e a contornar a tentação. O Ramadão surge, pois, como um ato de penitência que é encarado também como um exercício de autocontrolo.

Quebrar o jejum em convívio

O Ramadão é obrigatório para todos os muçulmanos de ambos os sexos. Estão dispensados as mulheres grávidas, menstruadas ou que estejam a amamentar, bem como doentes, idosos com fraca saúde e crianças que ainda não atingiram a puberdade, e também crentes que estejam a efetuar viagens longas.

Aqueles que, voluntária ou involuntariamente, rompam o jejum devem compensar esses dias de não-observância noutra ocasião. Terá sido o caso do futebolista egípcio Mohamed Salah que, no ano passado, interrompeu o Ramadão para disputar a final da Liga dos Campeões.

O jejum é o quarto de cinco pilares do Islão: os restantes são a profissão de fé, a oração, a obrigatoriedade da esmola e a peregrinação a Meca. Paralelamente à dimensão pessoal, tem inerente uma vertente social já que as duas refeições permitidas — após o pôr do sol (“iftar”) e antes do nascer do sol (“suhur”) — transformam-se em momentos de confraternização, partilha e celebração da fé que ultrapassam as fronteiras da família.

Ao ritmo da Lua

Contrariamente ao que acontece com o Natal cristão, o Ramadão não tem uma data fixa. A cada ano, o período de jejum antecipa sensivelmente 11 dias em relação ao ano anterior, surgindo desfasado no calendário gregoriano, umas vezes no inverno outras na primavera, e por aí em diante.

Isto acontece porque os muçulmanos regem-se pelo calendário lunar, composto por 354 ou 355 dias. Ramadão é o nome do nono mês do calendário islâmico, que pode ter 29 ou 30 dias, conforme o que a observação da Lua ditar.

Sendo o Ramadão um período de recolhimento, dedicado à meditação e à oração, as últimas dez noites são vividas de uma forma especialmente intensa. “Foi numa dessas noites que o [livro sagrado do] Alcorão começou a ser revelado [ao Profeta Maomé, através do arcanjo Gabriel, no ano de 610 d.C.]”, explica ao Expresso o “sheikh” David Munir, líder espiritual da Mesquita Central de Lisboa.

A essa noite especial os muçulmanos chamam “Laylat al-Qadr” (A Noite do Poder). “O Profeta disse que essa noite pode ser a 21.ª [noite do Ramadão], a 23.ª, a 25.ª, a 27.ª ou a 29.ª. Em termos espirituais, essa é uma noite que equivale a 1000 meses”, pelo que as orações são feitas com especial devoção.

O mês do Ramadão termina com uma grande festa — Id al-Fitr —, que muitas vezes se prolonga durante três dias.

Fogo de artifício nos céus de Sarajevo, Bósnia-Herzegovina, no domingo, para assinalar o início do Ramadão SAMIR YORDAMOVIC / GETTY IMAGES
Mulheres muçulmanas rezam numa mesquita de Jacarta, capital da Indonésia, no primeiro dia do Ramadão WILLY KURNIAWAN / REUTERS
Para além do jejum, durante o Ramadão os muçulmanos entregam-se à meditação e à oração. A imagem é de uma mesquita em Utrecht, Holanda, esta segunda-feira ROBIN VAN LONKHUIJSEN / AFP / GETTY IMAGES
Nesta banca de Rawalpindi, Paquistão, vende-se tâmaras secas, um alimento que não falta na refeição do “iftar”, após o pôr do sol FAROOQ NAEEM / AFP / GETTY IMAGES
Estudantes leem o livro sagrado do Alcorão, esta segunda-feira, na Indonésia, o país muçulmano mais populoso do mundo RAHMAD SURYADI / AFP / GETTY IMAGES
Crianças bósnias largam balões para comemorar o início do Ramadão SAMIR YORDAMOVIC / GETTY IMAGES
Trabalhadores indianos colocam guirlandas de luzes numa mesquita de Chennai, antiga Madrasta ARUN SANKAR / AFP / GETTY IMAGES
Venda de lanternas, uma decoração icónica do mês do Ramadão, esta segunda-feira, num mercado da Faixa de Gaza MAJDI FATHI / GETTY IMAGES
Um grupo de mineiros turcos faz a sua primeira refeição antes do nascer do sol (“suhur”), esta segunda-feira, na região de Kilimli FERDI AKILLI / GETTY IMAGES
Azeitonas e picles, num mercado na Faixa de Gaza, para serem consumidos nas refeições de quebra de jejum MAJDI FATHI / GETTY IMAGES
Mulheres em oração, este domingo, numa mesquita de Sarajevo, Bósnia-Herzegovina ELMAN OMIC / GETTY IMAGES
Meninas indonésias leem o Alcorão, no primeiro dia de Ramadão, em Medan, norte de Sumatra RAHMAD SURYADI / AFP / GETTY IMAGES
O início e o fim do Ramadão é determinado pela observação da Lua, como o fazem (na foto) responsáveis do Departamento Meteorológico de Karachi, Paquistão AKHTAR SOOMRO / REUTERS
“Bom Ramadão”, deseja-se por cima da entrada de uma mesquita em Kiev, a capital da Ucrânia PAVLO CONCHAR / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 7 de maio de 2019. Pode ser consultado aqui

Um Observatório para lançar pontes com o mundo islâmico

O Observatório do Mundo Islâmico é apresentado ao público esta terça-feira, em Lisboa. Ao Expresso, uma das suas dinamizadoras, Maria João Tomás, fala de “um projeto transversal a todas as áreas do conhecimento” que quer “contribuir para que não sejam feitas más interpretações do Islão”

Espalhar conhecimento, combater estereótipos, lançar pontes, é a missão a que se propõe o Observatório do Mundo Islâmico, um projeto novo apresentado esta terça-feira, em Lisboa. “O desconhecimento leva ao ódio, o ódio leva à violência, e o ciclo não acaba”, diz ao Expresso a investigadora Maria João Tomás, vice-presidente da direção. “Tem de haver conhecimento para haver entendimento.”

O Observatório pretende focar-se em “todos os países onde o Islão seja religião maioritária, religião oficial ou tenha uma representatividade importante”, explica a professora da Universidade Autónoma.

Em causa está, pois, uma longa faixa geográfica contígua que se estende de Marrocos ao Paquistão, abarcando vários outros países como o Bangladesh, a Indonésia — o país muçulmano mais populoso — e a Nigéria. Esta área é “uma importante fonte de História, que nos ajuda a compreender aquilo que somos hoje”, realça Maria João Tomás.

Um dos tópicos a serem trabalhados é a questão das minorias no mundo islâmico, nomeadamente as cristãs. O Observatório pretende também contribuir para causas. “Uma delas, que para mim é prioritária, prende-se com a excisão genital feminina, que não é uma prática islâmica, não consta do Corão.”

As religiões como arma política

O Observatório contará com o contributo de um leque alargado de pessoas — académicos e investigadores, militares, personalidades da sociedade civil, membros da Comunidade Islâmica de Lisboa. “É um projeto transversal a todas as áreas do conhecimento”, diz a professora. “Vamos dinamizar para que haja uma aproximação à sociedade civil.”

Na prática, este projeto passará pela realização de conferências, debates, discussões públicas, workshops por todo o país – numa fase inicial, as iniciativas serão mais concentradas em Lisboa, Porto, Algarve e Alentejo.

O projeto passa também pela criação de um portal na Internet que disponibilize informação que vá ao encontro das dúvidas mais complexas ou mais básicas dos portugueses. “O que é o Ramadão?”, é apenas um exemplo. “Para além dessa informação básica e simples, o Observatório quer ir um pouco mais longe e contribuir para que não sejam feitas más interpretações do Islão.”

A apresentação do Observatório do Mundo Islâmico decorre esta terça-feira, a partir das 17 horas, no Auditório 1 da Universidade Autónoma de Lisboa. A sessão incluirá a realização de dois debates sobre religião — “As Religiões como instrumento político” e “O mundo islâmico, religião e poder”. Porque, como refere Maria João Tomás, “as religiões têm sido utilizadas ao longo da História como instrumento político” para acicatar ódios e justificar guerras.

(IMAGEM “Deus”, escrito em árabe, a língua do Alcorão WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de abril de 2019. Pode ser consultado aqui

Extrema-direita holandesa promove concurso de caricaturas do Profeta Maomé

O Senado do Paquistão condena a realização de um concurso de caricaturas sobre Maomé fomentado por Geert Wilders, líder da extrema-direita holandesa. Liberdade ou insulto? Está lançada a discussão — e a polémica —, enquanto não se conhece o cartoon vencedor

Dentro de três dias, termina o prazo para apresentação de candidaturas a um concurso de caricaturas que promete levar a revolta às ruas do Médio Oriente — mais uma vez. Promovido pelo líder da extrema-direita holandesa, Geert Wilders, uma competição de cartoons sobre o Profeta Maomé terá o seu vencedor anunciado a 10 de novembro próximo.

Esta segunda-feira, o Senado do Paquistão adiantou-se à previsível controvérsia e aprovou, por unanimidade, uma resolução condenando a iniciativa. “Muito pouca gente no Ocidente compreende a dor que estas atividades blasfemas provocam aos muçulmanos”, afirmou Imran Khan, o novo chefe do Governo paquistanês, em funções desde 18 de agosto.

“Eu compreendo a mentalidade ocidental, já que passei muito tempo lá. [A antiga estrela do cricket estudou e despertou para o desporto em Inglaterra]. Eles não entendem o amor que os muçulmanos sentem pelo Profeta”, acrescentou.

No Islão, são proibidas as representações físicas de Deus (Allah) e do seu mensageiro, Maomé. No Paquistão, insultar o Profeta pode ser punido com pena de morte.

Imran Khan prometeu levar o assunto às Nações Unidas, já em setembro, quando discursar na Assembleia Geral, na tradicional maratona de discursos de chefes de Estado e de governo de todo o mundo.

O primeiro-ministro holandês, Mark Rutte, tentou distanciar o seu governo da polémica, considerando a competição anunciada por Wilders — um crítico do Islão e da presença muçulmana na Europa — “desrespeitosa” e “provocadora”. Ao mesmo tempo, defendeu: “O objetivo é provocar ao invés de forçar um debate sobre o Islão. Wilders é um político que provoca e é livre de o fazer”.

Com sede na Holanda, a organização Cartoon Movement defendeu, num comunicado, a liberdade de expressão, mas não especificamente este concurso. “Para nós, a iniciativa de Wilders tem muito em comum com o concurso de caricaturas sobre o Holocausto organizado há uns anos no Irão. Em ambos os casos, é pedido aos cartunistas que ridicularizem um assunto concreto com o objetivo de insultar um grupo específico de pessoas” — os judeus, no caso do Irão; os muçulmanos, na iniciativa promovida por Wilders. “Nos dois casos, os cartoons são empunhados como uma arma política, para atacar um grupo específico. As caricaturas jamais deverão ser usadas desta forma.”

Os vencedores da competição serão anunciados em Haia, na sede do Partido para a Liberdade (extrema-direita), que Wilders lidera e que tem a segunda bancada mais numerosa na câmara baixa do Parlamento holandês: 20 deputados num total de 150.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de agosto de 2018. Pode ser consultado aqui

Angela Merkel, os sauditas e a obsessão pelo véu

Sempre que uma governante ocidental visita a Arábia Saudita e se recusa a cobrir a cabeça com um lenço é notícia. Logo se atribui ao gesto — repetido por Angela Merkel no domingo — uma intenção política e solidária para com as sauditas privadas de se vestirem como querem. Mas o véu está longe de ser o principal obstáculo à liberdade das mulheres naquele reino

Há um mês foi a primeira-ministra britânica, Theresa May. Este fim de semana, foi a chanceler alemã, Angela Merkel. As duas governantes europeias visitaram a Arábia Saudita a guardiã das duas mesquitas sagradas do Islão (Meca e Medina) — e recusaram cobrir-se com o chamado véu islâmico (“hijab”). Foram notícia por isso.

“Angela Merkel chega à Arábia Saudita sem véu para conversações com o rei Salman”, escreveu em título, no domingo, o jornal britânico “The Independent”. “Alguém que diga ao Independent que Merkel nunca usou um lenço na Arábia Saudita. Nem nesta visita, nem nas três anteriores”, reagiu no Twitter Joyce Karam, correspondente em Washington do jornal árabe “Al-Hayat”.

A ironia da jornalista alude a uma certa obsessão atribuída a alguns órgãos de informação ocidentais em relação à questão do véu, que quase ofusca os programas e motivos de certas visitas. Desta vez, o gesto de Angela Merkel teve particular impacto uma vez que ocorreu três dias após o Parlamento alemão aprovar uma lei proibindo o uso da “burqa” (vestimenta que cobre todo o corpo) e do “niqab” (lenço que cobre toda a cabeça, deixando apenas os olhos à mostra) em determinadas profissões. Angela Merkel sempre se pronunciou pela proibição deste tipo de indumentária, defendendo que deve “ser banida onde for legalmente possível”.

Véu não é obrigação protocolar

De Riade não saiu qualquer protesto em relação ao “atrevimento” da chanceler alemã, já que o uso do véu não é uma obrigação protocolar, ao contrário do que acontece no Irão, por exemplo. Mas sempre que uma personalidade política feminina estrangeira opta por não aderir ao código de vestuário tradicional para as visitantes – o “hijab” e uma “abaya” (túnica ou casaco comprido) , é atribuído a esse gesto uma conotação política. E um objetivo: inspirar as locais (e as mulheres do Médio Oriente em geral) a rebelarem-se contra restrições às suas liberdades justificadas com preceitos culturais.

“Espero que as pessoas me vejam como uma mulher que é líder”, afirmou Theresa May, em inícios de abril, em vésperas de partir para a Arábia Saudita. “Espero que vejam o que as mulheres podem alcançar e como podem chegar a postos significativos.”

A Arábia Saudita é um reino ultraconservador onde vigora, a tírulo oficial, a interpretação waabita do Islão sunita, que pugna por uma prática purista da religião e onde se inspiram grupos terroristas fundamentalistas como a Al-Qaeda (fundada pelo saudita Osama bin Laden) ou o autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh).

É também um dos maiores aliados do Ocidente na conturbada região do Médio Oriente, e tanto a Alemanha como o Reino Unido estão entre os países que vendem armas à Arábia Saudita. Quer Angela Merkel quer Theresa May expressaram reservas em relação ao uso que Riade faz das armas que os dois países lhe vendem, nomeadamente no Iémen, onde a guerra em curso — e a intervenção militar saudita iniciada a 26 de março de 2015 — originou uma catástrofe humanitária que colocou em penúria alimentar 18 milhões de pessoas.

“Nós aceitamos as reticências alemãs em relação às exportações para a Arábia Saudita”, afirmou o vice-ministro saudita da Economia, Mohammed al-Tuwaijri, em entrevista à revista “Der Spiegel”, publicada no domingo. “Não vamos causar mais problemas ao Governo alemão com novos pedidos de armas.” Segundo o governante, Riade quer tornar a Alemanha um dos seus “parceiros económicos mais importantes”.

Hipocrisia ocidental

Também Theresa May foi a Riade motivada por questões económicas. Com o Brexit (processo de saída do Reino Unido da União Europeia) em contagem decrescente, Londres tem necessidade de procurar novos parceiros comerciais preferenciais. A Arábia Saudita surge como um alvo óbvio, uma vez que já é um grande cliente dos britânicos em matéria de… armamento. Em 2015, o Reino Unido foi quem mais armas vendeu ao reino saudita: 83% das armas exportadas pelos britânicos seguiram para Riade.

Entre interesses económicos e chorudos negócios de armas, o discurso humanitário e as iniciativas antivéu que emanam de muitas capitais ocidentais soam a hipocrisia. E constituem oportunidades perdidas para se lançar o foco sobre os reais obstáculos, neste caso, à liberdade das mulheres sauditas.

“Nem as estrangeiras (melhor dito, ocidentais) estão sujeitas ao mesmo tratamento discriminatório que as mulheres autóctones, nem a indumentária, nem a proibição de conduzir são o principal problema das sauditas”, escreve Ángeles Espinosa, correspondente do diário espanhol “El País” no Médio Oriente e autora do livro “El Reino del Desierto” (2012). “O mais grave é o sistema de tutela que, no reino e, de forma distinta, também nos outros países da Península Arábica, converte as mulheres em eternas menores, dependentes para sempre da vontade de um homem, o pai, o marido, o irmão e, às vezes, até um filho pequeno.”

(Foto: Banca de uma loja em Ramallah, no território palestiniano da Cisjordânia MARGARIDA MOTA)

Artigo publicado no Expresso Diário, a 2 de maio de 2017. Pode ser consultado aqui