Arquivo de etiquetas: Islão

Os guardiães muçulmanos do túmulo de Jesus

O local que abriga o túmulo de Cristo é, desde há séculos, protegido por duas famílias muçulmanas. Os Joudeh guardam as chaves do Santo Sepulcro e os Nusseibeh estão encarregados de abrir e fechar a porta exterior do templo. Ao Expresso, Adeeb Joudeh explica todo o ritual

Em época pascal, o Santo Sepulcro torna-se o centro da cristandade. Localizado no bairro cristão de Jerusalém — cidade santa também para judeus e muçulmanos —, o templo abriga os locais onde, segundo a tradição cristã, Jesus Cristo foi crucificado e sepultado.

Diariamente, a alta e pesada porta de madeira que dá para o exterior, e por onde entram todos os anos milhões de peregrinos e turistas, abre-se pelas quatro da manhã — um pormenor, não fosse o fiel depositário das chaves daquela importante igreja cristã ser… um muçulmano.

“As chaves foram entregues à minha família no ano de 1187 quando o grande líder [muçulmano] Saladino libertou Jerusalém dos cruzados”, conta ao Expresso Adeeb Jawad Joudeh Alhusseini, 52 anos, que detém o pomposo título “Depositário das Chaves do Santo Sepulcro & Titular do Selo do Túmulo Sagrado”. É ele que, a cada madrugada, atravessa a pé as estreitas ruelas da parte velha de Jerusalém levando consigo duas velhas chaves de ferro fundido usadas para abrir a porta do Santo Sepulcro.

Adeeb Joudeh segura uma das chaves, no pátio junto à entrada do Santo Sepulcro ADEEB JOUDEH

Em sua posse, além das chaves, a família Joudeh tem mais de 165 decretos reais emitidos pelos sucessivos sultões que reinaram sobre Jerusalém. Os documentos comprovam a história da família e autenticam o seu papel no ritual de abertura daquele importante templo cristão.

“O Santo Sepulcro é a minha segunda casa”, diz Adeeb. “Sinto a história dos meus antepassados em cada canto deste santuário.”

As duas chaves necessárias para abrir o Santo Sepulcro, sobre um decreto real que atesta o papel da família Joudeh ADEEB JOUDEH

Os zeladores muçulmanos do Santo Sepulcro não se esgotam, porém, nos Joudeh. Uma outra família educada no Islão — os Nusseibeh — é “a porteira” da igreja. Adeeb explica como ambas são indispensáveis para abrir o templo. “Diariamente, eu, na qualidade de guardião das chaves, entrego-as a Wajeh Nusseibeh, o atual porteiro, que, por sua vez, sobe a uma escada para destrancar a fechadura de cima, depois desce e destranca a fechadura de baixo. No fim devolve-me as chaves.”

Na hora de fechar o Santo Sepulcro ao público, pelas 21h, basta bater a porta — após três batidas na aldrava espaçadas meia hora — pelo que apenas os Nusseibeh são chamados a participar.

“Os Joudeh e os Nusseibeh são das famílias mais antigas de Jerusalém”, explica Adeeb. “Têm uma excelente relação entre si, mas cada qual tem a sua própria tarefa.”

Rivais dentro da mesma fé

Durante as épocas festivas — como a Páscoa —, o Santo Sepulcro abre e fecha várias vezes ao dia, mediante solicitação das seis igrejas cristãs representadas no seu interior: ortodoxos gregos, ortodoxos arménios, católicos romanos (franciscanos), coptas, siríacos e etíopes. Monges de todas elas garantem que, diariamente, terminado o horário de visitas para fieis e turistas, a vida dentro do Santo Sepulcro nunca páre.

Rivais dentro da mesma fé, as várias igrejas disputam espaço — capelas, túneis e grutas — e tempo, definindo com rigidez os horários das celebrações de cada comunidade religiosa. Nos sítios mais importantes do Santo Sepulcro — o Calvário, onde Jesus Cristo foi crucificado, e o Edículo, a construção em madeira que envolve o túmulo onde foi sepultado —, as responsabilidades são partilhadas pelas igrejas maiores: ortodoxos gregos, arménios e católicos.

Dentro do Santo Sepulcro estão assinaladas as últimas quatro estações da Via Sacra, o trajeto percorrido por Jesus carregando a cruz. O Edículo, que protege o túmulo de Cristo, é a última WIKIMEDIA COMMONS

A coexistência entre as várias igrejas é regulada pelo “Status Quo” — uma coleção de tradições históricas, normas e leis que definem as relações, atividades e movimentações no interior do Santo Sepulcro. Mas nem sempre o convívio é pacífico… Os monges protegem ferozmente os seus direitos de acesso às várias partes do santuário e o simples direito a limpar determinada superfície, por exemplo, pode originar situações um litígio.

Por vezes, os monges chegam mesmo a vias de facto… A 9 de novembro de 2008, religiosos gregos e arménios envolveram-se em confrontos físicos quando os arménios — que se preparavam para realizar uma cerimónia própria — tentaram colocar um dos seus padres à entrada do Edículo. A rixa obrigou mesmo a polícia israelita a entrar no Santo Sepulcro para apartar as hostes.

Notícia no sítio do jornal britânico “The Telegraph” de 9 de novembro de 2008 sobre confrontos entre monges no interior do Santo Sepulcro, que obrigaram à intervenção da polícia israelita. Foram detidos dois religiosos de cada lado

“O que se passa dentro da igreja são assuntos internos nos quais não interferimos”, diz Adeeb. “O nosso trabalho é proteger as chaves e a igreja. Qualquer conflito entre os monges é uma questão interna com a qual eles próprios têm de lidar.”

Responsabilidade em tenra idade

Adeeb tinha oito anos quando o pai lhe entregou as chaves do Santo Sepulcro pela primeira vez. Aos 13 anos, aprendeu como se sela o túmulo sagrado. “Foi uma sensação muito boa. Transmitiu-me o sentido de responsabilidade e o orgulho da continuação da história dos meus antepassados”, diz Adeeb. “Ser-nos confiadas as chaves de uma das igrejas mais sagradas do mundo é uma grande honra para a família Joudeh AlHusseini em particular e para a comunidade muçulmana em geral.”

Neste cargo, Adeeb já conheceu quatro Papas — três católicos (João Paulo II que visitou a Terra Santa em 2000, Bento XVI em 2009 e o Papa Francisco em 2014) e um copta (Tawadros II de Alexandria, em 2015). “Todos eles elogiaram-nos por este trabalho honroso que vimos a desempenhar há mais de oito séculos. O Papa João Paulo II até nos deu presentes. E o Papa Tawadros partilhou um artigo na sua página do Facebook sobre o papel da nossa família na Igreja.”

Adeeb Joudeh cumprimenta o Papa Francisco, durante a visita do chefe da Igreja Católica à Terra Santa, em maio de 2014 ADEEB JOUDEH

Casado e pai de uma rapariga e de três rapazes, Adeeb tem no filho mais velho, Jawad, o seu sucessor na tarefa da abertura da porta do Santo Sepulcro e da segurança das chaves. “Elas estão protegidas num local muito seguro, não há preocupações.”

(Foto principal: Adeeb Joudeh junto à porta do Santo Sepulcro perante o interesse de uma equipa de filmagens ADEEB JOUDEH)

Artigo publicado no Expresso Diário, a 13 de abril de 2017, e republicado no “Expresso Online”, a 16 de abril de 2017. Pode ser consultado aqui e aqui

Defensor do uso da burqa, Daesh proíbe… a burqa

O autodenominado Estado Islâmico (Daesh) abriu uma exceção num dos seus princípios puritanos: por razões de segurança, em Mossul, as mulheres estão proibidas de entrar com burqa em infraestruturas relacionadas com a segurança

O autodenominado Estado Islâmico (Daesh) declarou guerra à burqa invocando razões de segurança. A medida aplica-se a vários edifícios militares ou infraestruturas relativas à segurança do grupo extremista, na cidade de Mossul (norte do Iraque), onde as mulheres não poderão entrar se trajarem burqa (vestimenta que cobre todo o corpo) ou niqab (lenço que cobre toda a cabeça, deixando apenas os olhos à mostra).

Os jiadistas abrem assim uma brecha num dos seus princípios puritanos até agora não negociável: a imposição do uso da burqa às mulheres, sob pena de serem espancadas pela chamada “polícia da moralidade” ou mesmo executadas.

O recuo nesta obrigação surge na sequência de vários ataques, nos últimos meses, levados a cabo por mulheres que disfarçaram armas nas suas vestes e que resultaram na morte de vários jiadistas, incluindo alguns comandantes.

A 5 de setembro, num posto de controlo em Sharqat (sul de Mossul), uma mulher tapada matou dois membros do Daesh usando uma pistola.

Fora dos centros militares e dos postos de segurança, as populações sob controlo do Daesh — na Síria, Iraque e Líbia — terão de continuar a respeitar o estrito código de vestuário, pelo menos enquanto a relação de forças na sua região não se alterar…

No início de agosto, após a libertação da cidade de Manbij pelas forças sírias, nas mãos do Daesh desde inícios de 2014, surgiram imagens de mulheres a queimarem burqas em público, como forma de celebração. “Maldita invenção estúpida que nos obrigaram a usar”, diz uma delas. “Somos seres humanos, temos a nossa liberdade.”

“Num eco surreal do recente angustiante debate em França sobre proibir ou não o burquíni nas praias”, escreve a agência noticiosa iraniana Al-Alam, “o Estado Islâmico alega agora preocupações com a segurança para proibir mulheres de taparem a cara nalgumas circunstâncias.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 7 de setembro de 2016. Pode ser consultado aqui

Um Ramadão sangrento

O mês islâmico dedicado ao jejum foi marcado por uma sequência nunca vista de atentados

Para qualquer muçulmano, o Ramadão é uma época de recolhimento, jejum e partilha, seja o crente sunita, xiita ou professe qualquer outra interpretação do Islão. Este ano, o mês sagrado muçulmano — de 5 de junho a 5 de julho — transformou-se num banho de sangue em vários pontos do globo. Algo difícil de perceber quando os atacantes invocam Alá para justificar os atos e as vítimas são, muitas vezes, irmãos de fé.

“Há uma frase corânica que diz: ‘Fizeste tu bem a um homem, salvaste a humanidade. Fizeste tu mal a um inocente, fizeste mal a toda a humanidade’. Este princípio devia, à partida, inibir qualquer atentado”, diz ao “Expresso” Paulo Mendes Pinto, do Instituto Al-Muhaidib de Estudos Islâmicos (Universidade Lusófona). “O Ramadão é uma cerimónia longa em que os muçulmanos mais se sentem irmanados uns com os outros. Se há época em que faz sentido falar de comunidade islâmica no seu todo é essa. Fazer um atentado no Ramadão é a maior negação do sentido de fraternidade islâmica.”

Correspondendo a um apelo do líder do Daesh, em finais de maio, visando a época do Ramadão, simpatizantes jiadistas — sob ordem direta de Abu Bakr al-Baghdadi ou inspirados por ele — realizaram atentados tão diferentes quanto o ataque à bomba de 3 de julho numa área comercial de Bagdade (292 mortos) ou o massacre de 12 de junho numa discoteca de Orlando, EUA (49 mortos).

No primeiro caso — o pior atentado no Iraque pós-Saddam —, os alvos foram muçulmanos em grande azáfama com as compras para o ‘Id al-Fitr, a festa do fim do Ramadão. O segundo, levado a cabo por um atirador isolado, teve como alvo uma discoteca gay.

A lei do Daesh

À lista de ataques em pleno Ramadão somam-se 43 mortos em quatro ataques à bomba contra um checkpoint em Mukalla (Iémen, 27 de junho), ao fim da tarde quando os militares tomavam a refeição que quebra o jejum (“iftar”); 44 mortos num triplo ataque suicida no aeroporto de Istambul (Turquia, 28 de junho); e 23 mortos num restaurante em Daca (Bangladesh, 2 de julho). Ontem, após o Ramadão, suicidas e atiradores mataram 35 pessoas num santuário xiita da cidade iraquiana de Balad, suspeitando-se do Daesh.

“Se olharmos para esta sequência louca de atentados, vemos que há um grupo que se reivindica detentor do Islão ortodoxo. Isto acontece regularmente, no Islão e noutras religiões, cristianismo, hinduísmo, etc. A certa altura, há um grupo que diz: ‘O que nós dizemos e fazemos é o que está certo’”, continua Paulo Mendes Pinto. “Eles têm dois alvos. O principal é externo, não especificamente contra o Ocidente, mas contra o modo de vida ocidental.” Daí os ataques a bares, discotecas, estádios, espaços públicos, aeroportos ou associações como aquela em Bagdade onde, a 13 de maio, 16 adeptos iraquianos do Real Madrid foram assassinados por homens armados.

“O outro alvo é um inimigo interno, aqueles que se dizem muçulmanos mas que o Daesh diz não serem verdadeiros muçulmanos.” O recente atentado no bairro comercial de Karrada, em Bagdade, enquadra-se nesta lógica, já que a área visada é maioritariamente xiita (o Daesh é sunita). “Eles acham que a maioria dos muçulmanos precisa de se reislamizar segundo aquilo que o Daesh diz estar certo. Para eles, é legítimo o ataque a muçulmanos, porque as vítimas não são muçulmanos corretos. Se fossem, estariam com o Daesh.”

Ataque no coração do Islão

Esta semana, aquele que foi dos atentados menos sangrentos do Ramadão foi, porventura, o mais relevante politicamente. Na segunda-feira, três ataques suicidas atingiram outras tantas cidades da Arábia Saudita, provocando quatro mortos, todos agentes de segurança: um em Jeddah, perto do consulado dos EUA, outro junto a uma mesquita xiita em Qatif (no leste, onde se concentra a minoria xiita saudita) e o terceiro na cidade santa de Medina, próximo da mesquita onde jaz o profeta.

“Os recentes ataques na Arábia Saudita, Bangladesh, Iraque e Turquia podiam ser interpretados como um sinal de força do grupo. No entanto, por muitos estragos, vítimas e sofrimento que causem, na minha opinião, são mais um sinal de fraqueza”, comenta ao Expresso Manuel Almeida, doutorado em Relações Internacionais pela London School of Economics. “A organização central do Daesh está sob uma pressão sem precedentes a nível militar e financeiro no Iraque, Síria e Líbia. Figuras importantes foram eliminadas nos últimos meses e esforços para evitar que aspirantes a jiadistas se juntem ao grupo têm surtido efeito. O projeto de um califado que domine, pelo menos, grande parte de Iraque e Síria está a revelar-se cada vez mais irrealizável.”

Pressão passa pela Síria

Após a vitória em Fallujah, as forças governamentais iraquianas apoiadas pela coligação internacional já planeiam o assalto a Mossul (norte), enquanto na Síria forças maioritariamente curdas têm infligido derrotas importantes ao Daesh. “Se a pressão se mantiver — ou até aumentar em resultado de um acordo entre americanos e russos sobre a Síria e Bashar Al-Assad —, iremos ver o Daesh comportar-se mais como um grupo terrorista ‘tradicional’, apostando mais em ações de guerrilha e atentados do que no controlo efetivo de cidades e grandes áreas”, defende Manuel Almeida. “A tendência é para um aumento do número de ataques, muitos levados a cabo por indivíduos com laços ténues ao grupo, com pouco ou nenhum treino e que apenas partilham a ideologia. Os ataques quase simultâneos, esta semana, em três cidades sauditas sugerem-no.”

(Foto: “Fanous”, a lanterna egípcia tradicionalmente usada no Ramadão IBRAHIM.ID / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no Expresso, a 9 de julho de 2016

Muharram 1437 *

* Que é como quem diz, feliz ano novo islâmico. Milhões de muçulmanos assinalam, esta quinta-feira, a chegada de um novo ano

Passagem de ano é sinónimo de festa, feriado e… uma mesa farta com a família à volta. É assim em muitas casas portuguesas — e na generalidade do mundo muçulmano, que assinala esta quinta-feira a chegada do ano 1437. “Na Tunísia, temos o hábito de preparar um bom cuscus, que é o nosso prato nacional, com uma carne seca e salgada (o mesmo modo de preparação do bacalhau)”, explica ao Expresso a tunisina Sihem, que vive em Lisboa. “Normalmente, essa carne foi preparada antes, a partir do borrego sacrificado no ‘Id’, a festa que marca o fim da peregrinação a Meca.”

“Por norma, o dia é feriado administrativo em todos os países muçulmanos”, continua Sihem. “Os festejos diferem de país para país, mas em geral privilegia-se os encontros familiares sempre à volta de uma mesa rica.” Com a família na Tunísia, ela confessa que a data já lhe passa um pouco ao lado. “Cá não dá para festejar. As nossas festas passam muito pela família. Já me habituei a ignorar a data.”

O calendário muçulmano tem na sua origem um importante acontecimento histórico: a fuga do Profeta Maomé, e dos seus seguidores, de Meca para Medina. Em Meca, a popularidade das suas pregações era sentida, pelo poder instalado, como uma ameaça crescente. A hégira de Maomé (“hijra” em árabe significa “migração”) aconteceu a 622 d.C., que passou a ser o ano 1 do calendário islâmico.

Menos 11 dias todos os anos

Para determinar o ano em que vivem os muçulmanos não basta subtrair 622 ao ano em curso no Ocidente. O calendário muçulmano é lunar e totaliza, por ano, 354 ou 355 dias. Na prática, isto resulta num desfasamento de cerca de 11 dias comparativamente ao calendário gregoriano, que é solar.

Daqui resulta também uma rotação dos 12 meses do calendário islâmico — cada mês tem, alternadamente, 29 e 30 dias. Isto significa que a data da passagem de ano islâmica é variável, assim como as datas das festividades muçulmanas.

O primeiro dos 12 meses islâmicos chama-se Muharram (tem 30 dias). O mês mais famoso é o nono, Ramadan (30 dias), que corresponde ao período de jejum, que constitui uma das cinco obrigações de cada muçulmano. As outras quatro são o testemunho da fé, a oração, o pagamento da esmola e a peregrinação a Meca. O mês do Ramadão, por exemplo, demora 36 anos a perfazer uma volta ao calendário gregoriano.

Cada mês do calendário islâmico corresponde ao período entre duas lunações — tempo entre duas luas novas consecutivas. Em alguns países, o início do novo ano é determinado após observação da Lua, mas na maioria fazem-se cálculos astronómicos.

Métodos diferentes originam, por vezes, um hiato de um ou dois dias entre países na determinação do primeiro dia do ano. Nada que perturbe os negócios ou o normal funcionamento das instituições, já que, mesmo para os muçulmanos, o calendário lunar é usado apenas para determinar as datas das festividades religiosas. Em tudo o resto, é o calendário gregoriano ocidental que mede o tempo.

Sunitas vs xiitas: cisma também no calendário

Entre os cerca de 1200 milhões de muçulmanos em todo o mundo, este não será, porém, o primeiro “reveillon” de 2015. No Irão, e em países com grupos étnicos de influência persa, como é o caso do Afeganistão, o novo ano é assinalado impreterivelmente a 21 de março, coincidindo com a entrada da primavera.

O “Nowruz” — assim é conhecida a festa — está associado a tradições oriundas da religião zoroastriana, fundada na antiga Pérsia, muito antes do advento do Islão. “Apesar de sermos muçulmanos e de festejarmos todas as festas islâmicas, nós, iranianos, temos mais festas religiosas, como o ‘Id al-Ghadir’”, explica ao Expresso a iraniana Sepideh, que trabalha em Portugal. “Mas o nosso ano novo é o Nowruz. Seguimos o calendário solar persa.”

O “Id al-Ghadir” de que fala Sepideh refere-se à escolha de Ali, pelo Profeta, como seu sucessor, algo em que apenas os xiitas (como os iranianos) acreditam. Os sunitas não reconhecem essa nomeação, facto que está na origem do grande cisma entre muçulmanos sunitas e xiitas.

Em Portugal, como no resto do mundo, a esmagadora maioria dos cerca de 50 mil muçulmanos são sunitas. Estão maioritariamente concentrados na zona da grande Lisboa (Odivelas, Laranjeiro, Palmela e Barreiro), mas também há locais de culto no Porto e no sul do país.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 15 de outubro de 2015. Pode ser consultado aqui

Papa continua a lançar pontes, desta vez na Turquia

O Papa Francisco chega sexta-feira à muçulmana Turquia. O líder da Igreja Católica vai encontrar-se com o patriarca ortodoxo de Constantinopla, numa altura em que os cristãos correm o risco de desaparecer do Oriente

O Papa Francisco chega na sexta-feira à Turquia — onde 98% dos 74 milhões de habitantes são muçulmanos — para cumprir a sua quinta visita ecuménica. O líder da Igreja Católica tem previsto um encontro com o ortodoxo Bartolomeu I, Patriarca de Constantinopla, numa altura em que as minorias cristãs no Médio Oriente sofrem perseguições generalizadas — as mais graves das quais às mãos do “Estado Islâmico”, no Iraque e na Síria.

Estima-se que mais de 100 mil cristãos, ameaçados pelos extremistas, tenham sido forçados a fugir da província de Nínive, no norte do Iraque. Em agosto, o Sumo Pontífice admitiu que o uso da força contra o autodenominado Estado Islâmico “pode justificar-se”.

O avião papal aterra no aeroporto de Ancara na sexta-feira à tarde, onde Francisco terá à sua espera o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan. Na capital, o Papa visitará o túmulo de Mustafa Kemal Ataturk, o fundador da Turquia moderna (país herdeiro do Império Otomano), promotor de uma identidade nacional secular cada vez mais posta em causa por medidas de caráter islamizante impulsionadas pelo Presidente.

Sábado será o dia dedicado a Istambul e ao encontro com o representante da igreja ortodoxa. Francisco visitará também a Basílica de Santa Sofia (Hagia Sophia), construída no século VI para ser a Catedral de Constantinopla e convertida em mesquita após a conquista muçulmana da cidade, em 1453. Hoje, o templo é um museu.

Francisco será o quarto líder católico a visitar a Turquia – após Paulo VI (1967), João Paulo II (1979) e Bento XVI (2006). O início do diálogo entre estas duas igrejas cristãs remonta a janeiro de 1964, ano em que o Patriarca Grego Ortodoxo Atenágoras I de Constantinopla e o Papa Paulo VI se encontraram em Jerusalém. Foi o primeiro encontro ecuménico ao mais alto nível desde o Grande Cisma do século XI. 

Discurso no Parlamento Europeu
Antes da sua deslocação à Turquia, o Papa Francisco viajou até Estrasburgo. Na terça-feira, falou no Parlamento Europeu — o último Papa a discursar naquele hemiciclo foi João Paulo II, em 1988, ainda o Muro de Berlim estava intacto.

“É necessário enfrentarmos juntos a questão migratória. Não se pode tolerar que o Mar Mediterrâneo se torne um grande cemitério!”, alertou o Papa, cuja primeira viagem oficial, em julho de 2013, foi à ilha italiana de Lampedusa, ponto de chegada de milhares de imigrantes africanos em busca de trabalho na Europa.

“Nos barcos que chegam diariamente às costas europeias, há homens e mulheres que precisam de acolhimento e ajuda. A falta de apoio no seio da União Europeia arrisca-se a incentivar soluções particulares para o problema que não têm em conta a dignidade humana dos migrantes, promovendo o trabalho servil e contínuas tensões sociais.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 26 de novembro de 2014. Pode ser consultado aqui