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Chegou a hora de o Islão governar

Ben Ali caiu há um ano. A Tunísia deu o mote e o mundo árabe entrou em convulsão

A foto não fez manchetes, mas é, porventura, das mais simbólicas de todo o portfólio da Primavera Árabe. Nela vê-se Zine El Abidine Ben Ali, então Presidente da Tunísia, de visita a um doente hospitalizado, com o corpo totalmente coberto por ligaduras. Trata-se de Mohamed Bouazizi, de 26 anos, que se imolara pelo fogo em protesto contra a apreensão da sua banca ambulante. O ato de desespero inflamou as ruas e Ben Ali viu o seu reinado de 23 anos tremer. A visita realizou-se a 28 de dezembro de 2010. Bouazizi morreria uma semana depois. O Presidente não lhe sobreviveria politicamente muito mais tempo.

Faz hoje um ano que Ben Ali foi deposto e que a Tunísia se tornou o farol dos levantamentos populares árabes. “A maioria dos analistas diz que a Tunísia era o país lógico para um movimento como o que ocorreu. A população era homogénea (há muitos berberes, mas a identidade nacional é coerente) e educada. E era o país da região com maior classe média. Havia, pois, massa crítica para exigir direitos políticos”, diz ao “Expresso” Eugene Rogan, professor de História Contemporânea do Médio Oriente na Universidade de Oxford. “Porém, tudo isto só se tornou evidente após os factos. Antes da revolução, ninguém falava nestes termos. Ficámos surpreendidos com que tudo tivesse começado num país moderado, calmo e um destino turístico seguro como a Tunísia.”

A Revolução de Jasmim contagiou o mundo árabe e abriu a porta da democracia ao Islão. As eleições já realizadas (Tunísia, Egito, Marrocos) catapultaram para o poder partidos islamitas. Sem surpresa, para Eugene Rogan. “Política é organização e os partidos islamitas, por terem estado na oposição, eram os mais bem organizados. A ironia é que as pessoas que começaram as revoluções não eram, na sua maioria, oriundas de partidos islamitas. Diziam-se seculares e liberais e tiveram sucesso pelo facto de não terem qualquer organização hierárquica. Se a tivessem, as ditaduras teriam prendido os líderes e acabado com o movimento.”

A loucura dos partidos

Os povos queixavam-se dos regimes, a Al-Jazeera ajudava a circular palavras de ordem e dicas de resistência e as redes sociais mobilizavam. Obras como “Da Ditadura à Democracia”, de Gene Sharp — que lista 198 formas de luta não violentas — ou a experiência do movimento Otpor!, que liderou a revolta estudantil sérvia de 2000, tudo foi importante quando se tratou de derrubar ditadores.

Mas esta fórmula não resulta para disputar eleições. “O que dificultou a vida dos laicos foi a quantidade de partidos que criaram. Na Tunísia, havia 160 partidos a participar nas eleições parlamentares. No Egito, eram 80 ou 90 partidos. É uma loucura! Se se quer concorrer contra a Irmandade Muçulmana não se pode fazê-lo com 80 partidos, basta um”, diz Rogan.

“Os acontecimentos na Tunísia e no Egito, marcam a entrada numa nova era: a relação Islão/democracia. Os partidos islamitas estão comprometidos com valores democráticos. Vão criar um novo tipo de democracia islâmica. Não é coisa única. A Malásia ou a Indonésia têm eleições regulares e mudanças de governo. Não está em causa a capacidade do Islão acomodar a alternância. Mas é novo no mundo árabe. A próxima década será marcada por uma nova forma do Islão na política.”

Um ano de despertar árabe leva este professor britânico a dividir a região em três grupos: os países que tiveram revoluções; as monarquias; e os Estados em guerra civil (Argélia, Sudão, Líbano, Iraque e os territórios palestinianos), onde “as experiências recentes de conflitos civis amedrontam as populações na hora de sair à rua”.

De todas as sublevações, Rogan considera a do Bahrain a mais sensível. “Acontece na linha de fronteira entre sunitas e xiitas e numa área de grande importância estratégica (é sede da V Frota dos EUA).” A situação na Síria é, porém, a mais terrível. “Se o problema não for resolvido em breve, pode degenerar numa agonia de meses ou anos. É uma luta de vida ou de morte para os dois lados. Não há espaço para um compromisso negociado. Julgo que a morte de Kadhafi, na Líbia, foi preocupante para Bashar al-Assad. Sentiu que o seu povo poderia fazer-lhe o mesmo.”

Em “The Arabs — A History”, Eugene Rogan descreve o que podemos considerar os alicerces históricos da Primavera Árabe. Esse conhecimento leva-o a olhar para o mundo árabe com otimismo. “Surpreendeu-me ver cidadãos a rebelarem-se contra regimes tão opressivos. Esperaria um levantamento popular no Egito apenas porque, nos últimos anos, temos assistido a muitos sinais de descontentamento por parte de trabalhadores, estudantes, opositores ao regime, mas que nunca alcançaram a massa crítica que vimos em 2011”, diz. “O mundo árabe restituiu a soberania aos povos, que ganharam um novo sentido de dignidade. Não prevejo que se torne um paraíso. Na Europa, sabemos como sistemas democráticos podem originar governos muito maus. Dar a soberania ao povo pode resultar em governos liderados por tolos. Mas é uma evolução em relação ao que existia. Sim, estou otimista!”

Lançado em 2009, este livro descreve as esperanças e desilusões dos povos árabes, desde a conquista otomana (século XVI) até ao pós-11 de Setembro e à guerra contra o terrorismo. “Por que estagnou o mundo árabe?”, questiona Eugene Rogan. Publicado pela Penguin, não está traduzido em português.

REVOLUÇÕES CONCRETIZADAS

TUNÍSIA

Ficou conhecida como a Revolução de Jasmim, embora os tunisinos não apreciem o nome. Preferem chamar-lhe Revolta de Sidi Bouzid (a pequena cidade onde os primeiros protestos e reivindicações sociais saíram à rua) ou Revolução da Dignidade. A Tunísia foi pioneira nas sublevações antirregime e, consistentemente, foi o primeiro país a encetar um processo democrático. A 23 de outubro de 2010, os tunisinos foram chamados a votar para a Assembleia Constituinte — um escrutínio ao qual o antigo partido de Ben Ali estava impedido de concorrer. (Ben Ali, 75 anos, fugiu para a Arábia Saudita no mesmo dia em que foi deposto e a sua União Democrática Constitucional seria dissolvida dois meses depois.) Os islamitas do Movimento Ennahda (Renascimento) — interdito na era Ben Ali — conquistaram uns expressivos 41% dos votos, confirmando a máxima segundo a qual eleições livres no mundo árabe conduzirão os islamitas (moderados, ou não) ao poder. À nova Assembleia caberá a tarefa de nomear o governo transitório e propor uma nova Constituição. A 13 de dezembro, Moncef Marzouki — um antigo dissidente, ativista dos direitos humanos e líder de uma formação política laica de centro-esquerda (Partido do Congresso para a República) — tomou posse como Presidente interino da Tunísia. No dia seguinte, nomeou Hamadi Jebali, do Ennahda, primeiro-ministro. Politicamente, a Tunísia cumpre o roteiro previsto. A nível económico, as dificuldades são maiores. Na última semana, em incidentes separados, quatro tunisinos imolaram-se pelo fogo — como Mohamed Bouazizi.

Conhecida fora de portas como a Revolução de Jasmim (a flor nacional), os tunisinos preferem a designação Revolução da Dignidade MFARES / WIKIMEDIA COMMONS

EGITO

À semelhança do tunisino Ben Ali, também o egípcio Hosni Mubarak sucumbiu à contestação popular numa sexta-feira. O dia santo para os muçulmanos é, no contexto da Primavera Árabe, o dia da semana em que os manifestantes estão mais motivados para sair às ruas, especialmente após a oração do meio-dia. Mubarak, 83 anos, abandonou o poder a 11 de fevereiro. Durante 18 dias, aquela tinha sido a principal exigência da praça Tahrir, no centro do Cairo. Mas onze meses depois, os egípcios sentem que a revolução está por concluir. Após Mubarak, o poder foi entregue ao Conselho Supremo das Forças Armadas (SCAF). A 19 de março, os militares submeteram um conjunto de alterações à Constituição a referendo. Depois, promoveram eleições legislativas, em três fases, que terminaram esta semana. A Irmandade Muçulmana saiu vitoriosa, seguida pelos salafitas ultrarradicais do Partido Nour. “No ocidente, diz-se que, no Egito, poderá nascer uma república islâmica de modelo iraniano, mas eu não acho provável”, diz Eugene Rogan. “A Irmandade sente-se muito mais confortável com seculares liberais do que com salafitas. O Nour não considera a Irmandade um partido islamita, não lhe tem respeito e diz que não segue o verdadeiro Islão.” Para Rogan, a grande incógnita no Egito continua a ser a promessa adiada de transferência do poder dos militares para os civis. “Essa é a batalha que a praça Tahrir ainda terá de vencer. O aspeto crítico vai ser conseguirem garantias de liberdade, relativamente ao controlo militar, quando for elaborada a nova Constituição. Se os militares usarem a Constituição como um meio para preservar o poder, então a revolução egípcia ficará incompleta. É necessário controlo civil sobre os militares e a subordinação destes ao poder saído de eleições. De outra forma, temo que os egípcios tenham de voltar à luta na praça Tahrir.” Mubarak desapareceu, mas não o mubarakismo.

Após a Tunísia, o Egito foi o segundo país afetado pela Primavera Árabe a derrubar o seu ditador CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

LÍBIA

As dores de cabeça de Muammar Kadhadi começaram a 15 de fevereiro quando — já com os “irmãos” Ben Ali e Mubarak fora de cena — protestos populares centrados na Praça Verde, em Tripoli, começaram a exigir o fim deste regime de 33 anos. As ruas dividiram-se entre opositores e lealistas ao coronel e cada cidadão passou a ser um combatente, de arma na mão. Numa decisão que não colheu a unanimidade na comunidade internacional — apesar de fundamentada numa resolução da ONU (de 17 de março) autorizando o estabelecimento de uma zona de exclusão aérea sobre a Líbia —, forças da NATO desencadearam bombardeamentos a pretexto de proteger as populações civis. Durante meio ano, a Líbia viveu em clima de guerra civil. Tripoli caiu a 23 de agosto e Kadhafi, 69 anos, foi linchado a 20 de outubro, em Sirte, a sua cidade natal. O Conselho Nacional de Transição — criado em Bengasi, no leste, de onde partiu a rebelião contra Kadhafi — assumiu o poder, a título interino.

Muammar Kadhadi sonhou com um país à sua semelhança. A desobediência rebelde e os interesses económicos externos inviabilizaram-no CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

IÉMEN

Ali Abdullah Saleh demorou mais de nove meses a ceder às manifestações populares, que começaram a 3 de fevereiro. E nem o facto de ter ficado gravemente ferido num ataque à bomba contra o palácio presidencial, a 3 de junho — obrigando-o a ir para a Arábia Saudita para ser tratado — o levou a abandonar a presidência do Iémen pelo seu pé. A 23 de novembro, sob mediação do Conselho de Cooperação do Golfo, Saleh aceitou finalmente transferir o poder para o seu vice-presidente, Abd Rabbuh Mansur al-Hadi, recebendo garantias de imunidade relativas aos 33 anos em que esteve no poder — primeiro como Presidente do Iémen do Norte, depois como Presidente do Iémen unificado. Saleh, 69 anos, conserva o título de Presidente, mas é Al-Hadi o Presidente interino. A 21 de fevereiro próximo, estão previstas eleições presidenciais. Uma oportunidade para clarificar quem, de facto, manda no Iémen — um dos países mais pobres do mundo e porto de abrigo para um dos braços mais ativos da Al-Qaida, a AQPA.

Ali Abdullah Saleh saiu do poder a muito custo CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

REVOLUÇÃO CONTIDA

BAHRAIN

Assim que a Praça da Pérola, em Manama, se encheu de protestos — começaram a 14 de fevereiro — a revolução no Bahrain ficou à mercê de interferências externas. O Bahrain é um caso particular: a maioria da população é xiita e a monarquia reinante é sunita. Os cidadãos xiitas aproveitaram os protestos para pedir igualdade e liberdades políticas. Por isso, a entrada de tanques da sunita Arábia Saudita, em apoio das autoridades do Bahrain — país que se situa em frente ao xiita Irão —, nas primeiras semanas de protestos, não foi uma surpresa. A perspetiva de uma revolução nas suas fronteiras é algo inaceitável para Riade. “A diplomacia saudita tem estado muito ativa para impedir que tal aconteça”, refere Eugene Rogan. “Contiveram os protestos laborais em Omã, encorajando o sultão a fazer concessões; intervieram militarmente no Bahrain lideraram as negociações no Iémen; e têm tentado conter o que veem como uma exploração, por parte do Irão, de levantamentos em países como o Iraque, Síria, Bahrain e Líbano. Estão a fazer tudo o que podem. Têm muitos recursos, mas também dissidência interna. Nos próximos anos, a pressão aumentará sobre Riade para que faça reformas. Não creio que os cidadãos sauditas se contentem em ter menos direitos do que os egípcios e os tunisinos.”

A contestação foi reprimida com a ajuda de armas sauditas, que cruzaram o Golfo Pérsico em socorro dos Al-Khalifa CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

REVOLUÇÃO SANGRENTA

SÍRIA

Bashar al-Assad discursou à nação, na terça-feira, e anunciou uma reforma constitucional que abrirá a porta ao multipartidarismo. O novo texto irá a referendo em março. Acossado por protestos populares — que se massificaram a partir de 15 de março, na cidade de Daraa —, o Presidente sírio, 46 anos, parece apostado em segurar-se, a todo o custo, à cadeira do poder herdada do pai (Hafez al-Assad), ao estilo de uma república dinástica. “A diferença entre a Síria e as outras revoluções é que o exército, na sua maioria, ficou com o regime. Há deserções, mas na ordem das centenas. Enquanto metade não desertar, o exército vai ter sempre condições para esmagar o povo”, explica o professor Rogan. “Mas o povo vai continuar a manifestar-se. O conflito arrisca-se a tornar-se mais violento. E haverá mais ataques ao estilo da guerrilha, atentados terroristas, tudo o que acontece quando as pessoas não têm armas para lutar contra um exército. Talvez o exemplo do vizinho Iraque seja o terrível futuro da Síria.” Na quinta-feira, um jornalista francês foi morto durante uma visita promovida pelas autoridades à cidade de Homs. No terreno até ao próximo dia 19, a delegação da Liga Árabe — 160 pessoas, chefiadas por um general sudanês — não impede a violência. Só na quinta-feira, foram mortas 25 pessoas. Segundo a ONU, já morreram mais de 5000.

Bashar al-Assad não controla toda a Síria, mas recusa-se a sair da cadeira do poder CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

REVOLUÇÃO ANTECIPADA

MARROCOS

Mohammed VI soube ler os sinais das ruas e aos primeiros protestos — encabeçados pelo Movimento 20 de Fevereiro, que planeava ‘manifs’ para o dia 20 de cada mês — antecipou-se. A 9 de março, num discurso considerado histórico, anunciou uma profunda reforma constitucional, submeteu-a a referendo a 1 de julho e, a 25 de novembro, realizou eleições legislativas — ganhas pelos islamitas do Partido Justiça e Desenvolvimento, que conquistaram 107 dos 395 deputados. O seu líder, Abdelilah Benkiran, é o novo primeiro-ministro. “Os marroquinos foram confrontados com um processo político iniciado a partir de cima e mais rápido do que as exigências da rua”, diz o professor Rogan. “Chamemos-lhe o modelo marroquino. É único na Primavera Árabe e parece estar a dar à monarquia marroquina maiores perspetivas de preservação do poder do que as medidas repressivas tomadas por outros regimes.” No Norte de África, apenas a Argélia parece imune à vaga revolucionária. “Julgo que a Argélia vai sentir a pressão”, conclui Rogan. “Depois, ou segue o modelo marroquino ou vai pela via da Síria e da Líbia.”

Artigo publicado no Expresso, a 14 de janeiro de 2012

Fotogaleria: muçulmanos cumprem a peregrinação anual a meca

Quinto pilar da fé islâmica, a grande peregrinação anual ao recinto sagrado de Meca, na Arábia Saudita, é recomendada a todo o muçulmano pelo menos uma vez na vida. Vindos do mundo inteiro, milhões de muçulmanos cumprem vários rituais que comportam uma intensa carga simbólica e emocional

FALTA FOTOGALERIA

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de novembro de 2009. Pode ser consultado aqui

Sheikh Munir entre os 500 mais influentes

O imã da mesquita de Lisboa está entre os muçulmanos mais influentes em todo o mundo. Um reconhecimento que decorre do seu trabalho em prol do diálogo inter-religioso

David Munir, o imã da mesquita de Lisboa, foi considerado um dos 500 muçulmanos mais influentes em todo o mundo. A distinção consta de um índice publicado pelo Real Centro de Estudos Estratégicos Islâmicos, da Jordânia que destaca o envolvimento do sheikh Munir no diálogo inter-religioso com membros das outras fés abraâmicas. Recebi a notícia com grande satisfação, reagiu ao Expresso o sheikh Munir. Compartilho esta honra com todos os portugueses.

À frente da mesquita de Lisboa desde os 23 anos hoje, tem 46 , o imã recorda a visita do Dalai Lama ao templo islâmico, em Setembro de 2007, como um exemplo de uma manifestação inter-confessional. O líder espiritual dos budistas tibetanos participou num encontro que reuniu budistas, muçulmanos, judeus, cristãos, hindus e bahais e afirmou ter vivido uma experiência única e memorável. Já viajei por muitos países, mas foi a primeira vez que fui recebido numa mesquita. Paralelamente, o sheikh Munir destaca todo o trabalho desenvolvido pelo Fórum Abrâamico, uma associação criada por membros das comunidades judaica, cristã e islâmica portuguesas.

O ranking dos 500 muçulmanos mais influentes é liderado pelo rei da Arábia Saudita, Abdullah bin Abdul Aziz Al Saud, que é o guardião dos lugares santos do Islão de Meca e Medina. Segue-se o grande ayatollah Ali Khamenei, líder espiritual do Irão, e Mohammed VI, rei de Marrocos que ostenta o título de Comandante dos Crentes. No quinto posto surge Recep Tayyip Erdogan, primeiro-ministro da Turquia, e o Aga Khan, líder espiritual da comunidade ismaelita, aparece no 20º posto.

Publicada agora pela primeira vez, e editada pelos professores John Esposito e Ibrahim Kalin da Universidade Georgetown, de Washington, a publicação dedica ainda um capítulo às muçulmanas. Entre as 41 mulheres destacadas estão Zahra Rahnavard, mulher do candidato derrotado à presidência do Irão Mir-Hossein Mousavi, Norah Abdallah al Faiz, a primeira saudita a integrar um conselho de ministros, e Rebiya Kadeer, a líder do movimento em defesa do povo uighur, na China.

Artigo publicado no Expresso Online, a 25 de novembro de 2009. Pode ser consultado aqui

Super-heróis por Alá

99 personagens de 99 países contam ao mundo as 99 virtudes do Islão

Será um pássaro? Será um avião? É Mumita, a Destruidora! Tal como na ‘vida real’ o Super-Homem é o tímido Clark Kent, na saga ‘Os 99’ Mumita é a heroína em que se transforma a portuguesa Catarina Barbosa. Esta maria-rapaz de 17 anos nunca vira as costas a uma boa luta e ‘vive’ na primeira banda desenhada baseada nos arquétipos islâmicos.

“Mumita é uma personagem muito importante. Recorro a ela para quebrar estereótipos”, diz o criador dos desenhos, Naif al-Mutawa, em entrevista ao “Expresso”. “Quando pensamos nos 99 atributos de Alá, há sempre uma componente ‘jing jang’: há o Bondoso, mas também o Vingador… Queremos que os rapazes sejam os matulões que se envolvem nas lutas e que as raparigas fiquem em casa e sejam bondosas e delicadas… Eu quero misturar. Quero ter raparigas que também partam ossos”, acrescentou.

Nas bancas desde Maio de 2006, no Médio Oriente, Norte de África, EUA, Indonésia, Malásia, entre outros, a saga conta as aventuras de 99 super-heróis, originários de 99 países e dotados dos 99 atributos de Deus. “Nunca referimos a religião. As personagens não rezam, não recitam o Alcorão, não mencionam o Profeta ou Deus. São muçulmanas porque as histórias se baseiam nos arquétipos islâmicos”, explica Naif.

99 é um número que não deixa os muçulmanos indiferentes. No Alcorão, o profeta Maomé dirige-se a Alá através de 99 epítetos: o Clemente, o Misericordioso, o Poderoso… “Às vezes, perguntam-me como é possível recorrer aos meios de Deus e fazer uma banda desenhada? Deus é a forma absoluta destas características, mas nas minhas histórias nenhuma delas é absoluta, precisam umas das outras para resolverem problemas. São muito humanas e não à semelhança de Deus”, esclarece Naif.

O autor diz que sabe o que faz, mas abordar a religião em banda desenhada é uma tarefa sensível. “Por vezes, aparecem comentários na Internet sobre se o meu trabalho é ou não islâmico”, diz. Houve quem o acusasse de propagandear o Cristianismo ao fazer deslocar os heróis em equipas de três (numa pretensa analogia à Santíssima Trindade). Naif responde que se formasse duplas (homem-mulher) seria muito mais ofensivo… Por sua iniciativa, a indumentária de algumas personagens já foi adaptada ao Islão: “Nos primeiros números, as roupas da Mumita eram demasiado justas. Não gostei”.

Naif al-Mutawa na capa da edição de setembro de 2011 da revista “Forbes” (edição para o Médio Oriente) FORBES

Nascido em 1971, no Kuwait, e doutorado em Psicologia Clínica, Naif al-Mutawa — com experiência no apoio a vítimas de tortura do regime de Saddam Hussein — conhece os efeitos terapêuticos que projectos como ‘Os 99’ podem ter em quotidianos duros, onde os verdadeiros heróis são Osama bin Laden ou os bombistas suicidas… Há tempos, distribuiu dezenas de milhares de revistas em campos de refugiados na Palestina, Líbano e Iraque. “Durante minutos, os livros desviaram a atenção dos refugiados da situação em que vivem”, diz.

Ao criar ‘Os 99’, Naif al-Mutawa teve dois objectivos. Um primeiro, dirigido à Ummah, a comunidade dos crentes muçulmanos: “Quis tocar num ponto sensível e transmitir a ideia de que não há um único Islão. O Islão é tão multicultural e variado quanto as pessoas à face da Terra. Há diferentes formas de o praticar, em diferentes países. Na minha opinião, é a abordagem única que causa problemas, porque passamos a ser responsabilizados pelas acções de qualquer pessoa”, diz.

O autor quis igualmente mandar uma mensagem para fora do mundo árabo-islâmico: “Nos EUA, há um livro famoso, que faz parte do currículo escolar, chamado ‘The Catcher in the Rye’, de J.D. Salinger. Duas pessoas cometeram crimes em nome dele. Mark David Chapman, que matou John Lennon em 1980, disse à polícia que retirou ideias do livro para cometer o crime. John Hinckley, que um ano depois tentou matar Ronald Reagan, referiu-se ao livro no interrogatório. A culpa é de J.D. Salinger que escreveu o livro? Ou destes lunáticos que leram coisas que os outros milhões de leitores não leram?”

Para o autor de ‘Os 99’, o mesmo raciocínio aplica-se ao Livro Sagrado dos muçulmanos: “Se há pessoas que retiram do Alcorão mensagens horríveis é porque têm mentes horríveis”.

⬅ RUGHAL, O MAU DA FITA
Quer apoderar-se das 99 pedras preciosas que estão na origem dos 99 poderes para dominar todo o mundo

SOORA, A ORGANIZADORA
(em cima, à esquerda)

Na ‘vida real’ é a ganesa Jamila Adams. Reconhece padrões de comportamento e gera ordem a partir do caos

 

JABBAR, O PODEROSO (em cima, ao centro)
Chama-se Nawaf al-Bilali e é saudita. Por ter fragmentos de uma das 99 pedras no corpo, é muito forte e duro

 

DARR, O QUE ATORMENTA
(em cima, à direita)

Tetraplégico, o norte-americano John Wheeler consegue provocar ou impedir a dor através da manipulação nervosa

WIDAD, A QUE AMA
Natural das Filipinas, Hope Mendoza espalha amor à volta das pessoas e tenta que elas se sintam vazias de ódio

 

 

 

Artigo publicado no Expresso, a 28 de junho de 2008

“Perdoa-me, Salman Rushdie”

As críticas ao Islão continuam a ditar sentenças de morte. Ayaan Hirsi Ali está ameaçada desde que renegou a religião em que foi educada

Dezanove anos após o escritor Salman Rushdie se ter tornado o rosto universal dos perseguidos pelo radicalismo islâmico, casos subsistem em que a liberdade de expressão continua a ditar sentenças de morte. Dois escritores sauditas ousaram desafiar algumas interpretações do Corão e têm a cabeça a prémio. Em artigos publicados no jornal ‘Al-Riyadh’, Yousef al-Khail e Abdullah Al-Otaibi defenderam, designadamente, que cristãos e judeus não devem ser considerados infiéis pelos muçulmanos.

Há cerca de um mês, o clérigo radical Abdurrahman Al-Baraak emitiu uma “fatwa” apelando à morte dos autores dos “artigos heréticos”, colocando as suas vidas à mercê de um qualquer fanático — uma realidade bem familiar a Ayaan Hirsi Ali, a argumentista do filme ‘Submissão’, do realizador holandês Theo van Gogh.

Quatro anos após a exibição do filme, “estão a ser questionados alguns versículos do Corão que dizem que as mulheres desobedientes devem ser castigadas, que devem andar veladas, que o homem pode dispor da sua mulher sempre e quando lhe apetecer e que a mulher e o homem que cometerem adultério devem ser vergastados 100 vezes”, afirmou Ayaan Hirsi Ali, em entrevista ao Expresso. “Estes são os versos que eu seleccionei e que foram escritos no corpo da mulher (que surge no filme). Agora pergunta-se: é nisto que os muçulmanos acreditam? É desta forma que querem praticar a sua religião?”.

O realizador seria assassinado às mãos de um jovem holandês de origem marroquina que lhe cravou no peito uma carta dirigida a Ayaan — ela seria a próxima. “A morte de Theo van Gogh levanta uma questão: criticar o Islão conduz à morte daqueles que o criticam”, acusa.

Aos 38 anos, esta somali naturalizada holandesa — que foi deputada entre 2003 e 2006 — encontrou nos Estados Unidos a tranquilidade que lhe fugiu na Europa. “Pago a um segurança para me proteger, mas nos EUA sinto-me anónima. É um país enorme. Na Holanda, a minha vida tornou-se impossível, todos conheciam a minha cara e, por causa do nível de intensidade da ameaça, ninguém queria viver perto de mim…”, recorda.

O efeito 11 de Setembro

As ameaças contra Ayaan começaram ainda antes de ‘Submissão’. Em 2002, ela afirmou que “o Islão era mau para as mulheres” e renegou publicamente aquela que fora a sua religião desde o berço. Ainda hoje, recorda com clareza o dia em que o “ayatollah” Khomeini lançou uma “fatwa” — ainda em vigor — condenando à morte o autor de ‘Os Versículos Satânicos’, o indo-britânico Salman Rushdie: “Tinha 19 anos, vivia em Nairobi (Quénia) e usava voluntariamente o véu. Quando ouvi a notícia, encolhi os ombros e pensei: ‘É natural, ele fez por merecê-las. Nunca devia ter insultado o Profeta’. Hoje, peço-lhe desculpa”.

O 11 de Setembro de 2001 levou-a a reflectir como nunca antes… “Olhei-me ao espelho e pensei: a quem queres enganar? O problema não é as pessoas, mas a fé em si. As pessoas actuam em nome da fé”, recorda. “Fomos ensinados não só a ser bons muçulmanos, mas a não criticar o Islão”.

E haverá alguma religião à face da terra que aceite a crítica? “Há uma diferença entre o Islão e religiões como o cristianismo, judaísmo, budismo e hinduísmo: hoje, no Ocidente, apenas o Islão responde com violência”, acusa Ayaan Hirsi Ali.

Transformada numa feroz porta-voz dos direitos das muçulmanas, tem em preparação um novo livro sobre o tema, determinada em não paralisar perante a “fatwa” capital que a persegue. Ayaan diz nunca ter sofrido qualquer ataque físico, mas nem todos os críticos do Islão podem dizer o mesmo. Em 1992, o escritor egípcio Farag Foda foi assassinado por dois activistas do grupo Al-Gamaa al-Islamiyya, inflamados pelas suas sátiras antifundamentalistas.

Desde o caso Rushdie (1989) que as “fatwas” são vistas no Ocidente como sinónimo de condenação à morte — erradamente. Em 2005, a estrela feminina do ténis indiano, Sania Mirza, foi advertida por uma “fatwa” para que deixasse de jogar com saias curtas e ‘tops’ insinuantes. No ano passado, o astronauta malaio Sheikh Muszaphar Shukor pediu orientações ao Conselho Nacional da Fatwa do seu país sobre como cumprir os preceitos islâmicos no espaço.

O QUE É UMA “FATWA?

É um termo técnico usado na lei islâmica para indicar um decreto interpretativo ou orientativo. Exemplo curioso aconteceu em 1990 quando um “mufti” de Jerusalém emitiu uma “fatwa” confirmando que a cristã Hanan Ashrawi era a pessoa “certa” para ser porta-voz dos palestinianos na Conferência de Madrid. Uma outra surpreendente data de 2005 quando, na véspera do primeiro aniversário dos atentados de 11 de Março, em Madrid, a Comissão Islâmica de Espanha condenou “os actos terroristas de Osama Bin Laden e da sua organização Al-Qaeda” e apelou à denúncia do seu paradeiro. Recentemente, pronunciando-se sobre bebidas energéticas, um clérigo egípcio lançou a polémica ao defender que o Islão permite um nível de 0,5% de álcool. Original é a iniciativa do “mufti” Ebrahim Desai que, a partir de uma “madrassa” sul-africana, esclarece, num “site”, as dúvidas que lhe chegam por “e-mail”: “Como posso conhecer uma rapariga para casar?” “O Islão permite o uso de unhas postiças?”

A MULHER NO CORÃO

“E elas têm direitos sobre eles, como eles os têm sobre elas, condignamente; mas os maridos conservam um grau (de primazia) sobre elas” (2:228)

“E se receais que não podereis tratar com justiça os órfãos casai com as mulheres que vos parecerem boas para vós; — duas, três ou quatro. E se receais que não podereis proceder com equidade com todas casai, então, com uma somente…” (4:3)

‘‘Ó Profeta! Dize às tuas esposas e às tuas filhas e às mulheres dos crentes que se envolvam e fechem nos seus mantos (quando saírem). Isto será melhor para que possam ser reconhecidas e para que não sejam perturbadas” (33:59)

“O adúltero e a adúltera: castigai-os com severidade e cada um dos dois com um cento de varadas. E não deixeis que a piedade, por eles, vos impeça de obedecer a Alá, se credes em Alá e no Último Dia. E deixai que um grupo de crentes testemunhe o castigo” (24:2)

(Imagem: “Tolerar a intolerância é cobardia”, lê-se na citação atribuída a Ayaan Hirsi Ali)

Artigo publicado no Expresso, a 3 de maio de 2008