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Enquanto a paz não chega a Cabo Delgado, Pemba minimiza as fricções entre deslocados e locais com o poder do diálogo

A violência jiadista no norte de Moçambique condena milhares de pessoas a um vaivém constante em busca de segurança. Em Pemba, os deslocados que chegaram à cidade correspondem a 40% da população. Um projeto elaborado por um economista português e apoiado pelo International Growth Centre fez o levantamento das fricções sociais e pôs locais e forasteiros à conversa, com resultados visíveis. “É quase um medicamento que ajuda a aliviar sintomas, enquanto soluções mais duradouras possam ser pensadas”, diz Henrique Pita Barros

A partir de julho, as tropas moçambicanas ficarão mais sós no combate à insurgência terrorista no país. “A Missão Militar da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral [SAMIM, na sigla inglesa] está a enfrentar problemas financeiros” e decidiu retirar-se de Moçambique, anunciou, há dias, a ministra dos Negócios Estrangeiros, Verónica Macamo.

Os oito países africanos que contribuem com soldados para essa força “não estão a conseguir colocar o dinheiro necessário”, acrescentou a governante moçambicana. “Também temos de tomar conta das nossas tropas e teríamos dificuldades em pagar” pelos serviços da missão.

Em face dos constrangimentos orçamentais, a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), organização regional de que emana esta força, optou por dar prioridade à sua missão na República Democrática do Congo, onde mais de 120 grupos armados disputam o acesso a recursos naturais com grande violência sobre as populações. O número de deslocados neste país da região dos Grandes Lagos ascende já a sete milhões de pessoas.

O anúncio da retirada da SAMIM, que estava em Moçambique desde 2021, originou preocupação no país, fustigado por uma nova vaga de ataques jiadistas, na província de Cabo Delgado (norte), após meses de acalmia. Em fevereiro, a violência provocou quase 100 mil deslocados, dos quais mais de 60 mil eram crianças.

Acolher 140 mil deslocados em cinco anos

Para as localidades diretamente afetadas pela insurgência — seja por ataques, seja por serem porto de chegada de milhares de pessoas em fuga à violência —, a vida quotidiana é um acumular de dificuldades. Pemba, a capital de Cabo Delgado, é um espelho vivo do drama.

Com 200 mil habitantes, à época do censo de 2017 — ano em que os jiadistas se anunciaram neste país lusófono com um ataque em Mocímboa da Praia —, Pemba absorveu 140 mil deslocados nos cinco anos seguintes, cerca de 40% da população da cidade. “É muita gente. Pode-se imaginar a pressão gigante que um fluxo de deslocados tão grande cria, tendo em conta o ambiente de pobreza generalizada”, diz ao Expresso Henrique Pita Barros, autor de um projeto de investigação em Pemba que visa aproximar deslocados e comunidades acolhedoras e reduzir a fricção social.

Em Pemba, a tensão entre locais e forasteiros é, à partida, uma inevitabilidade. “O acolhedor é alguém que vive mal. Na cidade, muitas pessoas vivem abaixo do limiar de pobreza e, portanto, querem algo em troca para acolher o deslocado, por exemplo, no quintal da sua casa.” A contrapartida passa, em geral, por partilhar o apoio dado pelo Programa Alimentar Mundial (PAM), que distribui senhas de comida. “Os acolhedores ficam com uma parte, no fundo, com uma comissão”, explica o economista, a concluir o doutoramento na Universidade de Brown (Rhode Island, Estados Unidos).

Trabalhos forçados e violência sexual

Há relatos de extorsão e trabalhos forçados, quase escravatura do acolhedor sobre o deslocado, e situações de discriminação verbal e de violência física. E também de violência sexual envolvendo mulheres e meninas, a quem são exigidos favores sexuais para dar acolhimento. Os cortes no financiamento do PAM aumentaram as dificuldades.

Em 2023, o PAM angariou apenas 7500 milhões de dólares (quase 7000 milhões de euros) dos 23.500 milhões de dólares (mais de 21 mil milhões de euros) necessários para custear as suas operações, na que foi a pior queda no financiamento desta agência em 62 anos de história.

“Os atores no terreno, sejam autoridades governamentais, organizações não governamentais ou agências internacionais, como o PAM ou a Organização Internacional para as Migrações [OIM], fazem o que podem com os recursos que têm, que são sempre escassos. E, por vezes, não conseguem intervir por questões de segurança”, diz Pita Barros.

“Que podemos fazer para aproximar os deslocados e as pessoas que os acolhem num contexto de recursos escassos e em que a capacidade de atuação dos agentes é limitada? Podemos usar o diálogo”, responde, “delegar nas pessoas a tarefa da integração, usar a própria comunidade para ajudar à inclusão de forma rápida e com recursos baixíssimos”.

Com esta ideia em mente, o economista desenvolveu um projeto de investigação, em conjunto com o International Growth Centre (IGC), uma instituição ligada à London School of Economics com escritório em Maputo, que abriu portas num contexto tão sensível como Cabo Delgado.

Reuniões comunitárias de dez pessoas

O projeto arrancou em agosto de 2022 e consistiu, de início, na organização de reuniões comunitárias, cada uma com a participação de dez pessoas — umas deslocadas, outras anfitriãs. As conversas eram moderadas por facilitadores, no caso, líderes religiosos muçulmanos de Cabo Delgado, a única província de Moçambique com população maioritariamente de credo islâmico. Os participantes eram sobretudo muçulmanos, havendo também cerca de 20% de católicos.

Ao ar livre, os participantes sentavam-se em círculo e conversavam durante três horas, seguindo um guião previamente elaborado. O diálogo era seguido de perto pela equipa do projeto, pessoas conhecidas da comunidade e da sua confiança, que dominavam as três línguas usadas — Mwani, Makua e Makonde — e recolhiam a informação que resultava daquela interação.

“Os conteúdos das conversas foram totalmente definidos pela comunidade. Eu, como estrangeiro que quer realizar o projeto, o pior que podia fazer era dizer-lhes: ‘Eu é que sei, vocês têm que fazer desta maneira ou daquela’”, explica Pita Barros. Cerca de 70% dos participantes nas reuniões eram mulheres: no caso dos deslocados, porque quem foge são sobretudo mulheres e crianças; no caso dos acolhedores, porque eram quem tinha mais disponibilidade para participar, já que os homens tinham de trabalhar.

Aos deslocados, perguntava-se, por exemplo: “Em comparação com a vida que tinha na aldeia de origem, como é que a sua vida mudou aqui em Pemba?” E aos locais: “Como é que a sua vida mudou com a chegada dos deslocados aqui ao bairro?” À vez, todos respondiam às perguntas.

No final da sessão, havia lugar a uma conversa aberta em que os participantes podiam contar as suas histórias pessoais e partilhar experiências traumáticas vividas durante os ataques dos insurgentes. “Foi a parte mais sensível da reunião, porque ficámos a saber de tudo”, diz o economista.

Ficar, apesar do sofrimento

“Ouvimos relatos bastante gráficos e explícitos de todo o horror. Alguns participantes choravam e ficavam bastante perturbados. Nós sugeríamos que saíssem do projeto, para não se exporem, mas diziam que queriam ficar para contar a sua história. Era quase um alívio para essas pessoas.”

Quem foge à violência jiadista testemunha situações de grande violência, como decapitações. Para os acolhedores, as sessões serviram para criar identificação com o sofrimento de quem chega à procura de ajuda. “Os acolhedores vivem ao lado dos deslocados sem saber que o marido daquela senhora foi morto pelos insurgentes ou que a filha foi raptada ou ainda que ela passa fome. Vivem lado a lado e não falam, ou falam pouco.”

Concluída a fase das reuniões comunitárias, Henrique Pita Barros observou, no curto prazo, um aumento da tolerância e da confiança dos acolhedores relativamente aos deslocados, associados, muitas vezes, a alguma insegurança na cidade.

O projeto permitiu também sistematizar as três principais fontes de fricção entre deslocados e acolhedores.

  • ‘A inveja dos acolhedores’. Os acolhedores vivem quase tão mal como os deslocados e não percebem quando a ajuda é direcionada para os deslocados. Depois de conhecerem as histórias dos deslocados, tendem a ser mais compreensivos relativamente à necessidade de apoio.
  • Urbanos versus rurais. Os acolhedores de Pemba vivem em meio urbano e muitos dos deslocados são oriundos de zonas rurais. As vivências são diferentes numa aldeia e numa cidade como Pemba, desde logo ao nível dos hábitos de higiene ou das formas de comunicar, sendo uns mais formais e outros mais permeáveis ao calão.
  • Receio de infiltrados. Os acolhedores desconfiam da possibilidade de haver insurgentes infiltrados ou simpatizantes escondidos entre os deslocados, nomeadamente mulheres, que chegam sozinhas. “O curioso é que a desconfiança é só das pessoas de Pemba para com os deslocados”, acrescenta o investigador. “Ninguém pensa que é provável que haja pessoas em Pemba que são simpatizantes dos insurgentes. A cidade nunca foi atacada, o que é uma questão interessante.”

O investigador tem planos para regressar a Cabo Delgado e desenvolver um novo projeto vocacionado para a reintegração dos deslocados nas suas zonas de origem.

Projetos deste tipo são “quase um medicamento que ajuda a aliviar sintomas, enquanto soluções de longo prazo, mais duradouras, possam ser pensadas, por exemplo, pelo Governo de Moçambique ou pelo Banco Mundial”, conclui o economista. “Não é uma bala de prata que vai resolver tudo, mas é algo que ajuda a minimizar.”

(FOTO Reunião comunitária envolvendo pessoas deslocadas e membros da comunidade acolhedora, em Pemba CORTESIA HENRIQUE PITA BARROS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de março de 2024. Pode ser consultado aqui

Ataques terroristas voltam a aumentar em Moçambique: “A acalmia nos combates não foi uma vitória, talvez uma pausa estratégica”

A insurgência jiadista em Cabo Delgado dura há mais de seis anos. Nos últimos meses, uma descida consistente da quantidade de ataques fazia prever o fim da ameaça e o regresso à normalidade daquela província no norte de Moçambique. “Houve um otimismo talvez um pouco exagerado. Agora, em janeiro, fomos surpreendidos”, alerta o historiador Eric Morier-Genoud, autor de um livro que aborda as origens do problema

Eric Morier-Genoud, fotografado em Lisboa NUNO FOX

A 3 de janeiro passado, ainda o mundo recuperava da folia própria da entrada num novo ano, um duplo ataque suicida na cidade iraniana de Kerman recentrou a Humanidade nas angústias do dia-a-dia. Esses atentados, que provocaram 94 mortos, fizeram temer o alastramento da guerra na Faixa de Gaza a todo o Médio Oriente pelo duro golpe infligido ao Irão.

O banho de sangue em Kerman foi reivindicado pelo autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh, no acrónimo árabe), a organização terrorista que o Irão ajudou a derrotar no Iraque e na Síria e que se julgava quase inativa, após meses de declínio consistente do número de ataques.

No dia seguinte à chacina, o Daesh içou a bandeira da jihad (guerra santa) e, numa mensagem áudio divulgada na Internet, o seu porta-voz, Abu Hudhayfah al-Ansari, anunciou uma nova campanha global de terror jiadista intitulada “Matem-nos onde quer que os encontrem”. Os “soldados” do Daesh foram instados a “procurar alvos fáceis antes dos difíceis, alvos civis antes dos militares” e a “alvejar judeus, cruzados [cristãos] e os seus aliados criminosos em todos os lugares da Terra e sob todos os céus”.

O anúncio teve repercussões nas semanas seguintes, em especial na África Subsariana, onde está ativa uma constelação de grupos armados leais ao Daesh.

Na República Democrática do Congo, no espaço de uma semana, os jiadistas da Província da África Central do Estado Islâmico (ISCAP, na sigla inglesa) atacaram aldeias cristãs e decapitaram 50 pessoas. No nordeste do Mali, o braço Província do Sahel do Estado Islâmico (ISSP), que se movimenta em áreas muçulmanas, atacou forças governamentais e uma milícia tuaregue rival.

No passado fim de semana, na Nigéria, a célula designada Província da África Ocidental do Estado Islâmico (ISWAP) investiu contra uma sede da polícia, no estado de Borno, matando quatro agentes.

“Viagem de pregação”

Uma quarta frente subsariana deste ressurgimento jiadista é Moçambique. A 29 de janeiro, o Daesh anunciou uma “viagem de pregação” pelo norte deste país lusófono, após acusar o Exército moçambicano de realizar “massacres contra muçulmanos” na província de Cabo Delgado, de maioria muçulmana, uma das mais pobres e distanciadas da capital, Maputo.

Os alvos do Daesh são posições de tropas governamentais, postos administrativos e, não raras vezes, as populações civis. Há notícias de mortes violentas, raptos, saques, destruição e invasões de propriedades agrícolas. “Há relatos de mortos, alguns decapitados, e de populações em pânico e em fuga”, partilhou, a 2 de fevereiro, a Fundação Ajuda À Igreja que Sofre, após receber testemunhos de missionários católicos em Cabo Delgado.

“No último trimestre do ano passado, houve pouquíssimos ataques por parte dos rebeldes e começou a desenvolver-se a ideia de que a insurgência estava na reta final. Em janeiro, surgiram muitos ataques contra bases militares do Governo. Foi uma surpresa geral porque, durante três meses, houve uma acalmia e parecia que as coisas estavam a resolver-se. Agora, os ataques estão a intensificar-se”, comenta ao Expresso Eric Morier-Genoud, autor do livro “Towards Jihad? — Muslims and Politics in Postcolonial Mozambique” [A caminho da Jihad? – Muçulmanos e Políticas em Moçambique Pós-Colonial] (2023, não traduzido na língua portuguesa).

Paralelamente às ações armadas, o Daesh “desenvolveu uma campanha mediática muito forte, com declarações e divulgação de fotografias e vídeos dos ataques”, acrescentou o investigador da Universidade Queen’s de Belfast (Irlanda do Norte). “Começou a surgir a impressão de que havia muita coisa a acontecer, mais do que acontecia na realidade.”

O recrudescimento do terrorismo no norte de Moçambique arrasa a esperança de normalização e estabilidade que tinha começado a instalar-se no país. “Houve um otimismo talvez um pouco exagerado. Agora, em janeiro, fomos surpreendidos. Afinal, a acalmia nos combates não foi uma vitória, talvez uma pausa estratégica.”

Esse otimismo foi, em parte, também potenciado pelo anúncio da Total Energies, a gigante francesa do sector da energia, de que planeia retomar o desenvolvimento do seu projeto de exploração de gás natural liquefeito no norte de Moçambique no primeiro trimestre de 2024. A operar no país desde 1991, a Total suspendeu as atividades em Cabo Delgado em abril de 2021 devido à ofensiva jiadista na região.

“Os insurgentes não têm meios para desenvolver este tipo de estruturas [económicas]. Não penso que tenham em mente controlá-las”, avalia o professor Genoud. “Para eles, é mais um meio de fazerem publicidade e dizerem à população que há desigualdade, que as gentes locais não recebem nada enquanto se desenvolvem grandes projetos e que têm de seguir outra lei, que não a do Governo atual, para poderem ser uma sociedade mais justa.”

As preocupações do Presidente

Nas últimas semanas, o Presidente moçambicano tem abordado com grande frequência a situação no norte do país. “O momento não é dos melhores, não porque o nosso trabalho não esteja bem, mas porque em todas as guerras — refiro-me agora ao combate ao terrorismo — há momentos altos e momentos baixos, mas também há momentos em que o inimigo se reestrutura, e é o que está a acontecer agora. Estão a movimentar-se muito”, disse Filipe Nyusi, a 26 de janeiro, citado pelo jornal moçambicano “O País”.

“O modus operandi dos terroristas nos últimos dias tem exigido fortes medidas de vigilância”, afirmou o chefe de Estado, a 2 de fevereiro, durante uma receção ao corpo diplomático, no Palácio da Ponta Vermelha, em Maputo.

“Queremos apelar à nossa resiliência coletiva, para suster as investidas dos terroristas. Aos jovens, apelamos para não aderirem ao recrutamento e a reportarem qualquer movimento estranho que possa condicionar a segurança das comunidades”, disse no dia seguinte, numa intervenção por ocasião do Dia dos Heróis Moçambicanos.

A insurgência jiadista em Cabo Delgado fez-se anunciar ao mundo a 5 de outubro de 2017, quando homens munidos com facas, machetes e armas de fogo atacaram três postos da polícia na cidade de Mocímboa da Praia, aos gritos de “Allahu Akbar” (Deus é Grande).

Este episódio é descrito nas suas múltiplas vertentes — quem o fez, como e com que objetivo — no livro “Towards Jihad? — Muslims and Politics in Postcolonial Mozambique”, uma investigação histórica sobre a relação entre “a mesquita e o Estado” desde a independência de Moçambique, em 1975, e que aborda também as origens da ameaça jiadista.

Publicada em 2023, a obra procura responder à pergunta: será que as opções políticas relativamente aos muçulmanos moçambicanos — primeiro adotadas pelo poder colonial português, de matriz católica, e depois pela Frelimo, o partido de orientação marxista-leninista que sempre governou o país — empurraram a comunidade na direção da violência?

“A jihad não é um desenvolvimento natural do Islão em Moçambique”, responde Morier-Genoud. “A insurgência podia muito bem não ter acontecido, não há nenhuma inevitabilidade em relação ao que aconteceu. Nesse sentido, penso que o processo pode inverter-se até à renúncia da violência. A esmagadora maioria dos muçulmanos de Moçambique não quer a sharia total nem um califado, nem aceita a violência como forma de atingir esses objetivos.”

“A ideia de que houve uma radicalização por parte dos muçulmanos moçambicanos é errada”

Mais de seis anos após o seu início, a rebelião jiadista já provocou quase 5000 mortos e um milhão de deslocados. Hoje, os terroristas atuam ao estilo de uma guerrilha clássica, com uma circulação de combatentes extremistas através da fronteira com a Tanzânia. Porém, refere o especialista, “a base dos insurgentes está em Moçambique e a maioria da liderança e dos combatentes são moçambicanos”.

Desde julho de 2021, uma força militar africana — formada por efetivos de oito países da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC), que compõem a Missão da SADC em Moçambique (SAMIM), e um contingente de cerca de 3000 soldados do Ruanda — apoia Moçambique no “combate ao terrorismo e aos atos de extremismo violento” em Cabo Delgado, como consta do seu mandato.

“Essa intervenção regional teve um impacto muito grande”, comenta o historiador. “Conseguiu-se reduzir o número de combatentes em 90%, comparativamente aos que existiam em finais de 2020. Também foi possível reduzir a área de atuação dos insurgentes. Nesse sentido, é um sucesso. O problema é o passo seguinte… já foi anunciado que a SADC vai retirar-se de Moçambique a partir de julho. Há preocupações que foram expressas, inclusive, pelo Presidente da República. É uma transição e, como em qualquer transição, há riscos.”

A 14 de dezembro passado, o Parlamento moçambicano aprovou o aumento do serviço militar obrigatório de dois para cinco anos, medida que configura uma resposta direta à necessidade de reforçar a capacidade de combate do país. A mobilização de reservistas é outra possibilidade sugerida pelo chefe de Estado para fazer face à retirada dos militares da SAMIM, a partir de julho próximo.

Em paralelo, na sequência de um pedido de ajuda dirigido por Maputo à União Europeia, a 3 de novembro de 2021, foi lançada a Missão de Formação Militar da UE (EUTM, sigla inglesa), visando o treino de tropas especiais moçambicanas no combate ao terrorismo. Portugal participa com militares e assegura o comando da força.

Ao contrário da Missão da SADC, as tropas ruandesas irão continuar em Moçambique. Além da perseguição aos extremistas, estes efetivos têm adotado uma postura de grande proximidade às populações. Protegem cidades, reabrem estradas e participam na construção de obras públicas, como poços.

Este patrulhamento de proximidade, que possibilitou o regresso a casa de populações que tinham fugido dos ataques, granjeou-lhes prestígio e aprovação junto das populações. “Os ruandeses parecem ser as tropas mais eficientes”, avalia Morier-Genoud. “Falam suaíli [língua predominante no extremo norte de Moçambique], têm ótimas relações com a população e tiveram muito sucesso nas zonas onde estão.”

Califado perdido

Em 2019, o Daesh reconheceu oficialmente os Al-Shabaab moçambicanos (A Juventude, em árabe), a seita que está na origem da insurgência em Cabo Delgado, como uma das suas províncias — o Estado Islâmico de Moçambique (ISM). O juramento de fidelidade dos jiadistas moçambicanos contribuiu para internacionalizar o problema, numa altura em que o Daesh já perdera o califado que chegou a controlar em um terço da Síria e 40% do Iraque (2014-17).

“Eles querem depor o Governo tal como existe e estabelecer um Governo que siga unicamente a sharia [lei islâmica]. Uma vez que agora estão ligados ao Estado Islâmico, há todo um discurso relativo ao estabelecimento de uma província do califado mundial na zona de Cabo Delgado. Eles pedem à população que siga o Alcorão e que não interaja com o governo secular, militares e polícia.”

A presença jiadista em Moçambique distorce a imagem da comunidade muçulmana no país, aproximadamente 20% da população total de quase 35 milhões de pessoas. “A esmagadora maioria dos muçulmanos está satisfeita com a liberdade religiosa que existe no país e com a forma como o Governo atua”, conclui Eric Morier-Genoud. “O que existe é um grupo muito pequeno — falamos de dezenas ou centenas de pessoas — que se radicalizou e quer criar uma sociedade islâmica à margem da sociedade existente.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de fevereiro de 2024, e no “Expresso”, a 16 de fevereiro de 2024. Pode ser consultado aqui

Cabo Delgado precisa urgentemente de ajuda. A Fundação Aga Khan já disse ‘presente’

Com atividade em Moçambique há mais de 20 anos, a Fundação Aga Khan acaba de lançar um projeto de fortalecimento do sector agrícola na província de Cabo Delgado, fustigada pela violência jiadista. Financiado pelo Governo da Noruega, visa em especial mulheres e jovens

Jovem formado com o apoio da Fundação Aga Khan Moçambique lidera uma equipa na produção de espécies florestais FUNDAÇÃO AGA KHAN MOÇAMBIQUE

Nos últimos quatro anos, a região de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, emergiu no mapa-mundo como um dos pontos negros do jiadismo internacional. Para as populações daquela província, o quotidiano transformou-se num filme de terror, com ataques de grupos armados contra aldeias, execuções bárbaras, raptos e muita gente em fuga.

Segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM), a violência em Cabo Delgado já provocou mais de 3100 mortos e 800 mil deslocados internos, 27% dos quais são mulheres e 52%, crianças.

Em agosto, quando visitou Moçambique, o diretor-geral da OIM, António Vitorino, lançou um apelo: “Exorto à rápida expansão da assistência humanitária para apoiar centenas de milhares de indivíduos deslocados pela contínua insegurança em Cabo Delgado”. É o que já está a fazer a Fundação Aga Khan, que há duas semanas lançou um projeto de desenvolvimento nas áreas da agricultura, segurança alimentar e coesão social.

“O projeto visa contribuir para o desenvolvimento e recuperação da atividade agrícola das comunidades deslocadas acolhidas pelas comunidades residentes, através do fornecimento de materiais, insumos agrícolas e conhecimento técnico”, explica ao Expresso Nazim Ahmad, representante diplomático da Rede Aga Khan para o Desenvolvimento (AKDN, sigla em inglês) em Moçambique.

Mulher é atendida numa brigada móvel de prestação de cuidados de saúde oferecida à sua comunidade com apoio da Fundação FUNDAÇÃO AGA KHAN MOÇAMBIQUE

O principal alvo são as mulheres e os jovens dos distritos de Chiúre e Metuge, perto de Pemba, e o universo de beneficiários ascende a 15 mil pessoas, entre os quais 3000 deslocados internos que fugiram à violência.

“Esses dois distritos são os que receberam o maior número de deslocados internos”, diz Nazim Ahmad. “As condições de segurança estão asseguradas, dado que os distritos a sul da província de Cabo Delgado estão fora da zona de conflito.”

Na prática, os principais serviços prestados pelo projeto passam por:

  • equipar famílias com kits agrícolas
  • melhorar as condições pós-colheita para minimizar as perdas
  • estabelecer ligações de mercado entre as famílias e atores económicos locais
  • formar lavradores em “agricultura inteligente face ao clima”, um conceito desenvolvido pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO)
  • melhorar as infraestruturas e as condições de ensino e aprendizagem em escolas agrícolas
  • estabelecer famílias deslocadas em terrenos seguros

“Este projeto irá permitir o financiamento de ações nas áreas da segurança alimentar, resiliência socioeconómica e coesão social”, resume o dirigente da AKDN.

No terreno, a intervenção é facilitada pelo trabalho dos chamados Comités de Desenvolvimento de Aldeias (CDA), criados e desenvolvidos com o apoio da Fundação Aga Khan Moçambique. Organizações de base comunitária, os CDA são compostos por pessoas reconhecidas localmente pela sua capacidade de influência em aspetos importantes do desenvolvimento local. Neste projeto, serão cruciais para “apoiar a integração de deslocados internos”, diz Nazim Ahmad.

Outra instituição essencial ao desenvolvimento do projeto é o Instituto Agrário de Bilibiza (IABil), em Ócua (distrito de Chiúre), que a Fundação Aga Khan tem apoiado, na formação de técnicos agrários qualificados. Este polo recebeu 370 alunos e todo o corpo docente do IABil de Quissanga, que foi atacado, pilhado e destruído pelos insurgentes, em inícios de 2000.

Este projeto é financiado pelo Governo da Noruega e está orçado em 10 milhões de coroas norueguesas (980 mil euros).

Assinatura do protocolo entre a Fundação Aga Khan e o Governo da Noruega, representados por Nazim Ahmad e o embaixador da Noruega em Moçambique, Haakon Gram-Johannessen (ambos em pé), a 23 de novembro passado FUNDAÇÃO AGA KHAN MOÇAMBIQUE

Presente em 30 países — incluindo Portugal, há 35 anos, com intervenção junto de comunidades migratórias —, a Fundação Aga Khan está em Moçambique desde 1998, ano em que foi assinado um acordo de cooperação entre a instituição e o Governo de Maputo.

Em todo o país, a Fundação Aga Khan Moçambique emprega 1180 pessoas, das quais 97% são moçambicanas e 63% mulheres.

Em Cabo Delgado — a província mais pobre, apesar de ser a mais rica em recursos naturais —, além de Metuge e Chúre, a instituição opera também nos distritos de Ancuabe, Pemba, Mecufi, Montepuez, Balama, e Namuno. A degradação das condições de segurança, sobretudo a partir de 2020, obrigou a Fundação a adaptar-se à nova realidade. Mas sem nunca abandonar o país.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de dezembro de 2021. Pode ser consultado aqui