Arquivo de etiquetas: Jogos Olímpicos

Quarentena para equídeos, febre aftosa e Zika: o desporto já esteve condicionado antes

Prometia ser um evento histórico, disputado simultaneamente em 12 países, mas por causa do coronavírus o Euro 2020 foi adiado para o próximo ano. Não é a primeira vez que um grande evento desportivo é perturbado por ameaças à saúde pública. Recordemos três exemplos

A ameaça do vírus Zika aos participantes nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, na capa da edição de 8 de agosto de 2016 da revista “The New Yorker”

Jogos Olímpicos de Melbourne (1956)

Os primeiros Jogos Olímpicos realizados no hemisfério sul não o foram na sua totalidade. Na Austrália, estrita legislação em vigor obrigava a que os cavalos que fossem competir nas disciplinas equestres cumprissem um período de quarentena de seis meses. Apesar da pressão internacional, as autoridades mostraram-se renitentes em abrir uma exceção para as Olimpíadas. A solução foi encontrada a milhares de quilómetros de distância. Entre 11 e 17 de junho, cinco meses antes do início dos Jogos em Melbourne, cavaleiros de 29 países disputaram as disciplinas hípicas em… Estocolmo, na Suécia. Portugal enviou sete cavaleiros, uma representação mais numerosa do que aquela que enviaria a Melbourne (cinco velejadores). Pela primeira e única vez, a mesma edição dos Jogos disputou-se em duas cidades, de dois países e dois continentes, em diferentes hemisférios e distintas épocas do ano. Tudo por uma questão de saúde pública.

Campeonato das Seis Nações em râguebi de 2001

À segunda edição deste torneio — o Seis Nações é uma competição anual entre Inglaterra, França, Irlanda, Itália, Escócia e País de Gales —, um surto de febre aftosa contagiou a Grã-Bretanha. Ao contrário do coronavírus, que pode ser mortal para os seres humanos, a febre aftosa é altamente contagiante entre animais. No caso, especialmente na verdejante Irlanda, estavam em perigo os meios de subsistência de populações inteiras.

No calendário do Seis Nações de 2001, os três últimos jogos fora da equipa irlandesa (na Escócia, no País de Gales e em Inglaterra), previstos para março e abril, foram adiados para setembro e outubro, tornando esta edição a mais longa da história da competição, de fevereiro a outubro.

No estádio, o vencedor do torneio foi a Inglaterra, um dos territórios mais afetados pelo surto. Nos campos, mais de seis milhões de cabeças de ovinos e bovinos foram abatidas antes da epidemia ser contida.

Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro (2016)

Quando, menos de um ano antes de arrancarem os Jogos do Rio, começaram a surgir notícias de que, no Brasil, havia um vírus entre a população que estava na origem do nascimento de bebés com malformações, a realização do evento começou a ser questionada.

A menos de três meses da cerimónia de abertura, a Organização Mundial de Saúde (OMS) abordou diretamente a questão e defendeu que “cancelar ou alterar a localização do evento não irá alterar a proliferação internacional do vírus Zika. O Brasil é um de quase 60 países e territórios que reportaram a transmissão do Zika através de mosquitos”.

Estavam previstos viajar até ao Rio 16 mil atletas e meio milhão de visitantes, a quem a OMS sugeriu um conjunto de recomendações — do uso de repelentes à abstinência sexual. No terreno, a organização do evento concentrou-se no tratamento dos lagos de água estagnada nas imediações das instalações olímpicas e em fumigar a cidade.

Apesar destas diligências e do facto dos Jogos acontecerem durante o inverno brasileiro — época em que há menos mosquitos e o risco de contágio é menor —, houve atletas que se recusaram a participar, em especial golfistas e tenistas. No fim, a Cidade Maravilhosa venceu os céticos e os mosquitos.

Artigo publicado no “Tribuna Expresso”, a 18 de março de 2020. Pode ser consultado aqui

Cinco derrotas que entram para a História das Coreias

O importante não é vencer, mas competir. O lema olímpico aplica-se na perfeição à participação da primeira equipa da Coreia Unida nuns Jogos Olímpicos. A equipa feminina de hóquei no gelo terminou esta terça-feira a sua participação nos Jogos de PyeongChang, só com derrotas mas com a noção do dever cumprido

Logótipo da equipa de hóquei no gelo feminina da Coreia Unida que participou nos Jogos Olímpicos de Inverno, em PyeongChang WIKIMEDIA COMMONS

Cinco jogos, cinco derrotas — e as espectadores nas bancadas do centro de hóquei de Kwandong em delírio, acenando com bandeiras da Coreia Unificada e gritando “Somos Um”. Terminou esta terça-feira, desta forma festiva e emocionada, a participação da equipa feminina coreana de hóquei no gelo, nos Jogos Olímpicos de Inverno, em PyeongChang (Coreia do Sul).

“A avançada sul-coreana Kim Heewon ia enxugando as lágrimas à medida que ela e as suas companheiras de equipa iam acenando aos adeptos que as ovacionavam de pé”, lê-se na reportagem da agência Associated Press. “Alguns espectadores choraram quando as atletas fizeram um círculo no centro da pista e bateram com os sticks no gelo, num ritual antes de abandonarem o ringue.”

Pela primeira vez, uma formação coreana formada por atletas dos dois lados do paralelo 38 competiu nuns Jogos Olímpicos. A equipa foi formada dias antes do início dos Jogos de Inverno organizados pela Coreia do Sul, quando a diplomacia conseguiu inverter meses de grande tensão na península coreana — provocada por sucessivos testes nucleares realizados pela Coreia do Norte que ameaçaram fazer deflagrar uma guerra no Pacífico.

Ao autorizar a participação de atletas norte-coreanos — para além das 12 hoquistas, o Norte enviou outros 10 atletas —, Pyongyang contribuiu para uma jornada conciliadora entre as duas Coreias, desavindas desde 1948.

A relevância política da participação norte-coreana ofuscou por completo o desempenho desportivo — insignificante — da equipa unida. As hoquistas coreanas somaram derrotas em todos os jogos disputados, sofrendo 28 golos e marcando apenas dois: 0-8 e 0-2 contra a Suíça, 0-8 e 1-6 frente à Suécia e 1-4 diante o Japão.

Com a sensação do dever cumprido, as norte-coreanas regressam, agora, ao seu país, sem certezas de um dia voltarem a ver ou a falar com as coprotagonistas deste episódio histórico. É que mesmo em tempos de paz os contactos entre sul e norte-coreanos estão totalmente proibidos, seja por telefone, carta ou email.

Artigo publicado na “Tribuna Expresso”, a 20 de fevereiro de 2018. Pode ser consultado aqui

“Temos infraestruturas, falta cultura desportiva”

Num debate sobre “100 anos de olimpismo em Portugal”, falou-se de feitos desportivos e de dificuldades organizativas. Carlos Lopes recordou como, há 25 anos, sabia que a vitória na maratona em Los Angeles não lhe ia escapar…

ILUSTRAÇÃO DEVANATH / PIXABAY

Durante dois anos e meio Carlos Lopes não pensou noutra coisa… “Fui para Los Angeles para ganhar a maratona. Tinha-a preparado ao detalhe durante dois anos e meio, observado os adversários… No ano anterior aos Jogos, corri 12 mil quilómetros. O meu grande objectivo era ser campeão olímpico!”, recorda.

A 12 de Agosto de 1984, desde que soou o tiro de partida para a corrida mais longa do atletismo, o maratonista nascido em Vildemoinhos (Viseu) limitou-se a fazer a sua corrida. Concluiu o percurso em 2h09m21s. “Se tivesse tido necessidade de fazer menos tempo, teria feito!”, continua a relembrar.

Na segunda-feira à noite, Carlos Lopes falou dessa determinação na palestra “100 anos do olimpismo em Portugal”, organizada pelo curso de Administração e Gestão Desportiva da Universidade Autónoma de Lisboa.

Marco histórico alterou filosofia

Essa vitória foi um marco da história olímpica portuguesa — pela primeira vez, um atleta luso ganhava uma medalha de ouro — e da própria filosofia das participações do país nos Jogos. Se até então o objectivo era participar — fazendo jus aos ideais do barão Pierre de Coubertin, fundador dos Jogos Olímpicos da era moderna —, a partir dos anos 1980 começou a ser imposto um limite qualitativo mínimo à participação dos atletas.

As condições melhoraram a partir dos Jogos de Barcelona de 1992, quando passou a haver um apoio directo a atletas e treinadores. Mas devido à proximidade geográfica com Barcelona, Portugal quis deslumbrar…

“Barcelona era aqui ao lado, tínhamos de nos mostrar. Levámos quase 100 atletas mas não trouxemos uma única medalha. Foram desistências atrás de desistências…”, recordou Vicente Moura, presidente do Comité Olímpico de Portugal (COP), outro participante no encontro.

 

Dentro do avião, durante a viagem de regresso a Lisboa, Vicente Moura foi confrontado com um pedido insólito por parte da equipa olímpica. “Pediram-me que os autorizasse a despir a farda oficial. Estavam envergonhados e queriam passar incógnitos no aeroporto…” E assim foi.

Preparação custa dinheiro

A cumprir o seu quinto mandato à frente do COP, Vicente de Moura referiu que a gestão diária do COP é difícil, mas disse ter “excelentes relações com todas as federações, sem excepção”. O grande obstáculo ao funcionamento do COP prende-se com a questão do financiamento.

Recusada que foi, no passado, a possibilidade de o Comité ter uma fonte de financiamento fixa proveniente das receitas do Totoloto, a estrutura fica mais dependente de patrocinadores. ” À velha maneira portuguesa, os sponsors aparecem mais nos anos próximos aos Jogos…” — quando, na realidade, os apoios são necessários durante toda a fase de preparação dos atletas. “‘Ainda falta muito para os Jogos’, costumo ouvir. ‘Volte a falar quando lá chegarmos…'”, lamentou-se Vicente de Moura.

Orçado em 14,6 milhões de euros, o projecto olímpico Londres/2012 — envolvendo 90 atletas — está já em desenvolvimento. Todos os meses, o COP distribui uma verba entre 170 e 180 mil euros por atletas e federações.

“Receber o dinheiro a tempo e horas cria estabilidade para os atletas. Todas as condições que lhes dermos nunca são demais”, disse o presidente do COP. O comandante referiu ainda que a isentação de IRS da bolsa dos atletas foi uma conquista importante e que, apesar da crise, o financiamento ao programa olímpico tem-se mantido.

Suar ou jogar playstation?

Porém, o desporto escolar é insuficiente: “Em Portugal, não consigo sequer compreender que percentagem do PIB o Estado dedica ao desporto. Fiz uns cálculos… julgo andar à volta dos 0,8%. É pouco”, insistiu.

O Brasil, por exemplo, tem um programa de “detecção de talentos” da responsabilidade do Ministério da Educação. “Os talentos estão nas aulas de Educação Física”, concordou o judoca Nuno Delgado (medalha de bronze nos Jogos de Sydney/2000), também presente no debate. “Mas a maioria dos miúdos prefere ir jogar Playstation…”

Nuno Barreto (medalha de bronze, com Hugo Rocha, nos Jogos de Atlanta/1996, em vela) e presidente da Comissão de Atletas Olímpicos, estabeleceu um paralelismo entre o seu próprio percurso e a realidade que hoje observa: “Eu só comecei a sair para o mar acompanhado de treinador três anos antes dos Jogos. Durante muitos anos, fui para o mar sozinho. Hoje, os miúdos não querem ir para dentro de água sem treinador, ao frio, à chuva… Preferem ficar em casa”.

A falta de “cultura desportiva” é, porventura, um dos maiores obstáculos à obtenção de mais e melhores resultados desportivos. Nuno Delgado defendeu que não faltam boas infraestruturas desportivas em Portugal. “O problema é que não estão bem distribuídas. Não são rentabilizadas até ao limite”, disse o judoca, que dirige a sua própria escola de judo.

Conclusão de Vicente de Moura: “O desporto evoluiu. Portugal progrediu. O drama é que os outros também progridem…”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 24 de novembro de 2009. Pode ser consultado aqui

Pôr os PALOP no mapa

Sem grande esperança na obtenção de medalhas, os PALOP levam delegações simbólicas a Pequim. A moçambicana Lurdes Mutola é a estrela maior. Os restantes atletas vão pela experiência e para mostrar o país 

Desde miúdo que Talata se habituou a recorrer à força dos braços para lançar os adversários ao tapete. Hoje, para sobreviver, este antigo campeão africano de luta livre, que fez história ao tornar-se o primeiro guineense a qualificar-se, por mérito próprio, para uns Jogos Olímpicos (Atlanta, 1996), usa a força para partir pedra e carregar baldes de cimento, em Portugal. Nas obras, chamam-lhe campeão, e os colegas guineenses que testemunharam os seus dias de glória lamentam a injustiça da sua situação: “O Estado da Guiné não presta. Onde já se viu um grande homem a trabalhar nas obras”, comentam.

Nascido em 1963, em Gabu, Talata Embalo é um ídolo no seu país. Graças ao primeiro lugar que obteve no Campeonato Africano de Luta Livre, em 2000, na Tunísia, o hino guineense fez-se ouvir e encheu toda a nação de orgulho. “Foi muito emocionante ouvir o hino e ver a bandeira. As pessoas perguntavam-me: ‘Onde fica a Guiné?’”, recorda o lutador.

Sem tapete para treinar, Talata tinha a seu favor a escola da luta tradicional. “Para as pessoas que vivem nas aldeias, a luta é a primeira modalidade. É a brincadeira das crianças. Todos lutamos, ‘tabanca’ contra ‘tabanca’. E o vencedor ganha fama e respeito”, diz Alberto Pereira, que treinou Talata entre 1991 e 2000.

Nenhum dos três filhos do lutador, a viverem na Guiné, pratica a luta. “Agora é mais futebol”, diz Talata, que ainda sonha com um futuro ligado ao ensino da luta. “Na Guiné, não falta matéria-prima.”

Em 2000, Talata Embalo foi campeão africano, contra grandes adversidades. No estágio em Marrocos que antecedeu a competição, foi projectado para fora do tapete e lesionou-se num joelho. Mas o seu talento e força de vontade levaram-no a conquistar a medalha de ouro e a, nesse mesmo ano, participar nos Jogos de Sydney. No entanto, a lesão minou-lhe a carreira. Há oito anos que Talata espera que as autoridades guineenses se lembrem dele e o ajudem a fazer os tratamentos. “Sinto-me esquecido. Ninguém pergunta: ‘Onde está o campeão?’”

Todos os PALOP beneficiam do princípio da “solidariedade olímpica”, que não obriga a provas de qualificação

Entre os guineenses, a luta continua a ser a modalidade mais competitiva fora de portas. Até ao momento, o lutador Augusto Midana é o único guineense qualificado para os Jogos de Pequim. Estreante nas lides olímpicas, foi medalha de bronze no Campeonato Africano de 2007. Mas no universo de atletas oriundos dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) que competirão na capital chinesa, o sonho de uma medalha só é mesmo permitido à moçambicana Maria de Lurdes Mutola. Aos 35 anos, a medalha de bronze em Atlanta e campeã olímpica em Sydney nos 800 metros prepara-se para viver os seus últimos Jogos.

Kurt Couto é o outro moçambicano que acompanhará Lurdes Mutola no atletismo (400 metros barreiras). Em Outubro de 2006, na primeira edição dos Jogos da Lusofonia, em Macau, Kurt foi o primeiro atleta africano a conquistar uma medalha de ouro, quebrando a hegemonia de brasileiros e portugueses.

Para além destes dois atletas, Moçambique deverá levar a Pequim dois nadadores e um judoca, ao abrigo de um privilégio atribuído pelo Comité Olímpico Internacional aos países menos competitivos. Todos os PALOP beneficiam desta solidariedade olímpica, que não obriga à disputa de provas de qualificação ou à obtenção de resultados mínimos.

São Tomé e Príncipe, por exemplo, conta levar a Pequim uma delegação de 12 pessoas, incluindo técnicos e dirigentes. O arquipélago recebeu um convite (“wildcard”) para preencher dois lugares no atletismo, vagas que são disputadas por quatro atletas são-tomenses (Celma da Graça, Deodato Freitas, Naiel da Almeida e Glória Diogo), todos federados em clubes portugueses. “Estamos muito longe de obter qualquer medalha, mas se o pódio aparecer será bem-vindo, já que a esperança é a última coisa a morrer”, disse o chefe da equipa técnica da pré-selecção olímpica de atletismo, António de Menezes. O técnico aposta “numa participação condigna” em nome dos são-tomenses e numa “maior visibilidade” do país.

Pela primeira vez, o arquipélago de Cabo Verde disputa uma vaga para o torneio olímpico de basquetebol

À semelhança de São Tomé, também Cabo Verde iniciou as suas prestações olímpicas em Atlanta (1996) com uma representação simbólica. Temos ido aos Jogos sem a pretensão de trazer medalhas para casa, explica o presidente do Comité Olímpico Cabo-Verdiano, Franklin Palma. “A nossa preocupação maior é garantir com a nossa presença alguma visibilidade para Cabo Verde, diz.

Graças a um convite, Cabo Verde tem já assegurada a participação de três atletas em Pequim: Wânia Monteiro (ginástica rítmica), Nelson Cruz (maratona) — ambos radicados em Portugal — e Lenira Santos (200 e 400 metros). Mas é no basquetebol que pode fazer furor… Pela primeira vez, vai disputar uma vaga para o torneio olímpico de basquetebol. Entre 14 e 20 de Julho, a selecção cabo-verdiana masculina participará em Atenas no Torneio Pré-Olímpico Mundial, onde, na primeira fase, enfrentará a Alemanha e a Nova Zelândia. Isto decorre do feito dos bravos crioulos, como ficaram conhecidos os basquetebolistas cabo-verdianos, que no ano passado, em Angola, ganharam a medalha de bronze no Afrobasket.

A jogar em casa, os Palancas Negras confirmaram a hegemonia que vêm evidenciando nos últimos anos no basquetebol, revalidando o título africano e assegurando desde logo o passaporte para Pequim. Neste momento, Angola tem já qualificados 30 atletas (12 no basquetebol masculino, 14 no andebol feminino, 2 na natação, 1 no atletismo e 1 na canoagem). Os angolanos não esperam obter medalhas, mas os basquetebolistas fazem-nos sonhar… Em 1992, em plenos Jogos Olímpicos de Barcelona, a selecção angolana de basquetebol derrotou a equipa da casa por 20 pontos de diferença, silenciando os ruidosos espanhóis que enchiam o Pavilhão Olímpico de Badalona.

Artigo elaborado com o contributo de correspondentes do “Expresso” nos PALOP e publicado na revista Única, a 21 de junho de 2008. Pode ser consultado aqui

Jogos políticos

Em 112 anos de história, nunca os Jogos se realizaram à margem da política. Sobreviveram a dois conflitos mundiais, a décadas de boicotes colectivos, a manifestações anti-racistas e a actos terroristas

PIXY

A escassos dias do início dos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, Diogo Freitas do Amaral, então presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, socorreu-se de uma tradição da Antiga Grécia para apelar às tréguas olímpicas” (“ekecheria”). “Todos os conflitos paravam durante o período de tréguas, que começava sete dias antes da abertura dos Jogos e terminava no sétimo dia a seguir ao encerramento, de modo a que os atletas, artistas, as suas famílias e os peregrinos pudessem viajar em segurança para as Olimpíadas e depois regressar aos seus países”, afirmou durante uma intervenção em Nova Iorque.

Realizada exactamente 100 anos após o nascimento da Era Moderna da competição em Atenas, esta quarta edição dos Jogos em solo norte-americano haveria de ficar marcada pelo terrorismo. Medidas de segurança antes nunca vistas nos recintos dos Jogos não obstaram a que uma bomba explodisse no Parque Olímpico do Centenário, durante um concerto rock, e provocasse dois mortos e 111 feridos. Vinte e quatro anos depois, o “fantasma de Munique” tomava de assalto a cidade da Coca-Cola.

Ao longo do século XX, duas guerras mundiais obrigaram ao cancelamento dos Jogos, em 1916, 1940 e 1944. Mas a existência de quezílias políticas no palco da competição é quase tão antiga quanto o evento em si. Numa das primeiras edições, em Londres-1908, o verniz estalou quando a delegação norte-americana se apercebeu de que, entre as bandeiras que decoravam o estádio olímpico para a cerimónia de abertura, não figurava a “Stars and Stripes”.

Eis senão quando, durante a parada dos atletas, o desportista encarregue de transportar a bandeira norte-americana se recusou a baixá-la diante da tribuna do Rei Eduardo VIII. “Esta bandeira não se inclinará nunca diante de um Rei à face da Terra”, afirmou então o discóbolo Martin Sheridan.

Com o tempo, as tomadas de posição política ganhariam uma expressão mais colectiva, levada ao extremo durante a Guerra Fria, altura em que os Jogos se transformaram num confronto ideológico entre dois blocos e as prestações dos atletas eram encaradas como manifestações de superioridade de um modelo de vida sobre o outro.

Um dos episódios mais tensos durante a Guerra Fria foi em Munique-1972, quando a URSS venceu os EUA por um ponto, na final de “basket”

Helsínquia-1952 marcou a entrada da União Soviética no convívio olímpico, ainda que à maneira soviética… Por não quererem partilhar a aldeia olímpica com os “atletas capitalistas”, os soviéticos ficaram numa residência estudantil. Nestes Jogos, os soviéticos revelaram-se concorrentes à altura dos norte-americanos, pois somente no último dia de competições os EUA garantiram a liderança no quadro final de medalhas. Em boa verdade, o domínio norte-americano não aguentaria mais uma edição dos Jogos: em Melbourne-1956, a URSS destronaria os EUA, conquistando 98 medalhas, contra 74.

Desde então, não mais esta rivalidade bipolar se ausentou dos Jogos, com um dos episódios mais tensos a acontecer em Munique-1972, durante a final de basquetebol. Desde que a modalidade fora introduzida no programa olímpico que os EUA não tinham rival: em oito Olimpíadas, não tinham perdido um único jogo. Em Munique, com um cesto marcado em cima do apito final, a URSS venceu por 51-50. Os EUA não compareceram na cerimónia de entrega de medalhas.

A década de 80 haveria de ditar um pingue-pongue político — sob a forma de boicotes —, entre as duas superpotências e respectivas áreas de influência: os EUA faltaram a Moscovo, a URSS não compareceu em Los Angeles. A Guerra Fria apropriava-se, assim, de uma dinâmica de boicotes colectivos que tinha começado em Montreal-1976. Então, 23 países, sobretudo africanos, retiraram-se em protesto contra a participação da Nova Zelândia. Uma equipa de rugby neo-zelandesa efectuara uma digressão à África do Sul, a pátria do “apartheid”.

A acalmia só chegaria com Seul-1988, quando, pela primeira vez desde Montreal, não se registou qualquer boicote organizado, mas apenas de um pequeno grupo de países, entre os quais Cuba, Coreia do Norte e, pela quarta vez consecutiva — um recorde olímpico —, a Albânia. EUA e URSS voltaram a competir lado a lado e, no medalheiro final, como que contrariando o que estava na iminência de acontecer — a queda do Muro de Berlim e a desintegração da URSS —, os soviéticos assumiram-se como o maior colosso desportivo do mundo: ganharam 132 medalhas, contra 102 da antiga República Democrática Alemã e 94 dos EUA.

Depois da bonança de Seul, Barcelona-1992 acolheu uma espécie de Jogos da concórdia, com a integração de Cuba e da Coreia do Norte, 12 anos após a última participação, e também da África do Sul, afastada havia 32 anos. Não há um único boicote: 169 países participaram sem exibir incompatibilidades que colocassem os Jogos em causa.

Chegados a Pequim, paira no ar a ameaça de um boicote motivado pela questão do Tibete. Na contagem decrescente para os XXIX Jogos, o espírito olímpico sofreu já um revés histórico quando, à passagem por Londres, a tocha foi apagada por manifestantes pró-Tibete. Trata-se de vicissitudes próprias de um evento que, apesar do lema “O importante não é vencer, mas participar”, é mais político do que parece: nos Jogos participam mais países do que os que têm assento na ONU e entidades como a Formosa ou a Palestina competem em iguais circunstâncias com os demais.

BERLIM-1936
O negro que humilhou o Führer
Em nome da superioridade da raça ariana e da demonstração ao mundo da Alemanha enquanto potência em ascensão, Adolf Hitler ordenara o investimento de milhões em infra-estruturas de qualidade e a limpeza de todo e qualquer vestígio de propaganda anti-judaica das ruas, para que os Jogos de Berlim fossem verdadeiramente inesquecíveis. Mas um velocista negro norte-americano deu-lhe um golpe no sonho. Ao conquistar quatro medalhas de ouro (100 m, 200 m, salto em comprimento e estafeta 4×100 m), Jesse Owens — que um ano antes tinha batido cinco recordes mundiais num único dia — deitou por terra a teoria nazi da superioridade ariana. Vergado à humilhação. o Führer abandonou a tribuna e delegou a tarefa da condecoração do atleta. Já o público alemão ovacionou Jesse Owens estrondosamente.

MELBOURNE-1956
Confrontos subaquáticos
Pela primeira vez realizados no hemisfério Sul, os Jogos australianos sofreram o desgaste de dois conflitos acabados de deflagrar: por um lado, a ocupação britânica e francesa do Canal do Suez, que originou uma debandada árabe dos Jogos. Por outro, a invasão soviética da Hungria, que ocasionou um episódio memorável, em dia de semifinais de pólo aquático, uma delas disputada entre a URSS e a Hungria. Dentro da água, e sem que das bancadas fosse perceptível, os atletas iam trocando cotoveladas, pontapés e joelhadas. A dada altura, tudo fica claro quando o atleta húngaro Ervin Zador sai da piscina sangrando abundantemente do rosto. Tradicionalmente superior, a Hungria venceu a partida, sem surpresa, por 4-0. Mas cerca de 40% da delegação húngara recusou regressar ao seu país, ocupado, e desertou.

CIDADE DO MÉXICO-1968
Protestos anti-racistas no pódio
Organizados num contexto de grande agitação política, os Jogos motivaram manifestações de protesto em virtude dos seus elevados custos. Na Praça dos Três Poderes, os estudantes protestavam contra a marginalização da cidade universitária, por falta de verbas. A repressão policial fez-se sentir e provocou 80 mortos — no que ficaria conhecido como a Matança de Tlatelolco. Mas a imagem que, nesses Jogos, entraria para a história seria captada durante a cerimónia de consagração dos 200 metros masculinos: os velocistas negros Tommie Smith e John Carlos sobem descalços para o pódio e, assim que soa o hino dos Estados Unidos, baixam a cabeça e levantam o punho calçado com uma luva negra — a saudação “Black Power (Poder Negro), em protesto contra a segregação racial. Foram, de seguida, expulsos da equipa.

MUNIQUE-1972
Chacina no dormitório israelita
Os alemães eram os grandes interessados em apagar as más impressões deixadas por Berlim-1936, mas não conseguiram impedir o maior ataque terrorista da história dos Jogos. Às 4h30 de 5 de Setembro, um comando da organização Setembro Negro composto por oito palestinianos infiltrou-se na aldeia olímpica e surpreendeu os atletas israelitas de luta greco-romana. A operação de resgate dos reféns, no aeroporto militar de Furstenfeldbruck, acabou num banho de sangue, com 11 israelitas, cinco palestinianos e dois alemães mortos. Só então os Jogos, que decorriam paralelamente às negociações, foram suspensos, para a realização de uma cerimónia fúnebre, no estádio olímpico, participada por 80 mil pessoas. Com sete medalhas de ouro na natação, a estrela dos Jogos viria a ser um judeu norte-americano, Mark Spitz.

MOSCOVO-1980
Boicote à primeira edição socialista
Em protesto contra a invasão soviética do Afeganistão, em 1979, um grupo de países ocidentais, liderado pelos Estados Unidos, boicota os primeiros Jogos organizados por um país socialista. O Presidente Jimmy Carter queria arrastar com os EUA a maioria do bloco Ocidental, mas viu os seus planos furados: se países como a Alemanha, o Canadá e o Japão faltaram à chamada em Moscovo — mais de 60 países aderiram ao boicote —, já aliados como o Reino Unido e a França marcaram presença no Estádio Lenine. O Governo português alinhou com os EUA, mas o Comité Olímpico luso decidiu participar, com 11 portugueses em seis modalidades. Num gesto de resposta ao boicote, na cerimónia de encerramento os soviéticos içaram ao lado da sua bandeira não a dos EUA (organizador dos Jogos seguintes) mas a de Los Angeles.

LOS ANGELES-1984
Lucros soberbos na edição capitalista
A retaliação do Bloco de Leste ao boicote promovido pelos EUA em Moscovo era mais do que esperada. Alegando não ter garantias de segurança para os seus atletas e denunciando uma comercialização descarada do espírito olímpico — estes Jogos foram os primeiros totalmente financiados pelos privados e a gerar lucros substanciais —, a URSS de Leonid Brejnev pagou na mesma moeda a atitude norte-americana e não compareceu. Mas a dimensão do boicote socialista não foi comparável ao que tinha acontecido quatro anos antes: em Moscovo onde tinham estado 81 países, em Los Angeles estiveram 140. Membro fundador do Pacto de Varsóvia, a Roménia deslocou-se aos EUA e foi o segundo país mais medalhado (53). Outro regresso foi o da China, que não competia há décadas por causa da participação da Formosa.

Artigo publicado na revista Única do Expresso, a 10 de maio de 2008. Pode ser consultado aqui