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John Lennon nasceu há 82 anos. O seu caráter inspira ‘telas de contestação’ por todo o mundo

A promoção da paz tornou-se a maior luta de John Lennon, sobretudo nos últimos anos de vida. Hoje, em territórios onde a paz social é uma miragem, como Hong Kong e Myanmar, cidadãos revoltados contra quem os governa expressam as suas frustrações e aspirações em pequenos papeis coloridos que afixam na via pública. Chamam-lhes ‘paredes Lennon’

Imagine there’s no countries
(Imagina que não há países)

It isn’t hard to do
(Não é difícil faze-lo)

Nothing to kill or die for
(Nada por que matar ou morrer)

And no religion, too
(E também nenhuma religião)

Imagine all the people
(Imagina todas as pessoas)

Livin’ life in peace
(A viver a vida em paz)

(Excerto de “Imagine”, de John Lennon)

Década após década, geração atrás de geração, “Imagine” é uma canção que não perde o seu caráter icónico. Mais de 50 anos depois de ter sido lançado, este tema imortalizado por John Lennon continua a mobilizar vozes dos cinco continentes em apelos uníssonos a um mundo de paz, sem materialismo, religiões ou fronteiras a separar os povos.

Quando este hino ao pacifismo foi lançado, em 1971, já após a separação dos Beatles, o seu autor e intérprete tinha apenas 31 anos. John Winston Lennon faria este domingo 82 anos.

Nascido em Liverpool, a 9 de outubro de 1940, o mais carismático dos fab four ‘sobreviveu’ à própria morte por força da sua música e também do seu espírito pacifista e rebelde, que continua a inspirar sucessivas gerações incomodadas com o curso do mundo. Nos últimos anos, as chamadas ‘paredes Lennon’ têm sido mostras dessa influência.

As ‘paredes Lennon’ mais não são do que paredes físicas, muros ou outras estruturas sólidas na via pública, onde transeuntes deixam post-its de todas as cores com mensagens de caráter político e social, exigências àqueles que os governam, apelos à democracia e ao respeito pelos direitos humanos ou slogans de incentivo à continuação dos protestos.

Foram uma ‘arma’, por exemplo, nos protestos pró-democracia em Hong Kong, a região administrativa especial chinesa em luta contra a erosão da democracia e a acelerada integração na República Popular da China.

Em Hong Kong, “a primeira ‘parede’ surgiu no local dos protestos que ocorreram na zona Central [o centro financeiro do território]. Uma delas recebeu esse nome e a imprensa difundiu-o”, recorda ao Expresso Evan Fowler, nascido no território há 42 anos.

O termo pegou e passou a ser usado de forma generalizada para identificar qualquer espaço usado pelos habitantes de Hong Kong — não só nos locais dos protestos, mas por todo o território — para expressarem, por escrito, a sua oposição à crescente influência do regime de Pequim sobre o território.

“Cada campus universitário tinha ‘paredes Lennon’ muito dinâmicas. Recordo-me também de ver muitas em passagens subterrâneas”, diz o cofundador da publicação digital Hong Kong Free Press.

Uma ‘parede Lennon’ no interior de um restaurante de Hong Kong ISAAC LAWRENCE / AFP / GETTY IMAGES

“As ‘paredes Lennon’ apareceram pela primeira vez em 2014, no início dos protestos Occupy”, continua Fowler, referindo-se à campanha de desobediência civil liderada por estudantes — também conhecida por Revolução dos Guarda-Chuvas — que deu origem a manifestações participadas por centenas de milhares de pessoas.

“A ideia de escrever mensagens em papel apareceu organicamente em locais de protestos estudantis. Ter sempre consigo e usar post-its coloridos para escrever lembretes ou apontamentos durante o estudo é uma prática muito comum entre os estudantes de Hong Kong, tanto no ensino secundário como universitário”, diz Fowler.

“No primeiro dia do protesto de 2014, lembro-me de vê-los a aparecer espontaneamente em locais de protesto, basicamente em qualquer lugar que pudesse ser usado como um quadro de mensagens. Nessa altura, os manifestantes estavam desesperados por transmitir as suas razões de queixa àqueles que consideravam estarem apáticos e também aos órgãos de informação internacionais que sentiam estar a ignorar os problemas que os cidadãos de Hong Kong enfrentavam.”

Os apelos tiveram especial eco na ilha vizinha de Taiwan, igualmente assediada por Pequim de forma crescente.

https://twitter.com/lnachman32/status/1367758109834244099

À medida que se iam multiplicando, as ‘paredes Lennon’ passaram também a ser um alvo da polícia de Hong Kong, orientada em fazer desaparecer das ruas toda e qualquer posição antigovernamental.

No Parque John Lennon, em Havana (Cuba), uma escultura do músico, do artista cubano José Villa Soberón, espera por companhia num banco de jardim CHRISTOPHER HUGHES / WIKIMEDIA COMMONS

Este tipo de espaços prolifera noutras zonas do mundo envoltas em convulsões populares, como Myanmar. Curtas mensagens em papel colorido surgem, muitas vezes, em paragens de autocarro e pontes.

É o caso das imagens abaixo, numa travessia sobre o rio Irrawaddy, no estado de Kachin (norte), com posições contra o golpe militar de 1 de fevereiro de 2021 que afastou a líder pró-democracia Aung San Suu Kyi do poder.

https://twitter.com/MayWongCNA/status/1366261558993559555

Mas Lennon porquê?

Na origem deste tipo de ‘telas de contestação’ está a ‘parede Lennon’ original, localizada em Praga, a capital da Chéquia, na pequena Praça do Grão Priorado, em frente à Embaixada de França. Nos anos 1960, este muro — propriedade da Ordem Militar Soberana de Malta — era decorado com poemas e mensagens de amor, escritas a giz e em contexto de passeios românticos.

As inscrições de cariz político não abundavam, naquele país comunista, exceção feita as épocas de agitação, como em agosto de 1968, quando cinco países do Pacto de Varsóvia, liderados pela União Soviética, invadiram a Checoslováquia.

Uma das primeiras pinturas sobre John Lennon, na parede que haveria de ficar batizada com o seu nome, em Praga (foto de 1981) DAVID SEDLECKY / WIKIMEDIA COMMONS

O primeiro desenho alusivo a John Lennon remonta a 1980 (o autor do graffiti é desconhecido). Nesse ano, a 8 de dezembro, o mundo chocou-se com a morte do carismático músico britânico, assassinado junto à entrada do luxuoso e centenário edifício Dakota, onde ele vivia com Yoko Ono, em Nova Iorque.

À época, vários países da Europa de Leste — como a então Checoslováquia —, satélites da União Soviética, lutavam para se libertarem dos tentáculos de Moscovo. Lennon e as suas músicas eram, neste contexto, símbolos da liberdade a que estes países estavam privados.

Escultura em bronze da cabeça de John Lennon com um olho coberto por uma flor, numa rua de Vilnius, capital da Lituânia GO VILNIUS

O espaço tornou-se uma tela ao ar livre, onde os visitantes podiam expressar preocupações, alertar para causas globais e os turistas podiam deliciar-se com uma galeria em permanente construção. A própria imagem de Lennon foi mudando de feições e mesmo sendo tapada por novas camadas de criatividade e contestação.

A aparência geral do muro já mudou muitas vezes. Na noite de 17 de novembro de 2014 — dia em que, 25 anos antes, começara a Revolução de Veludo, que levou ao fim do comunismo no país —, estudantes de arte pintaram o muro de branco, deixando visível uma curta mensagem no meio: “O muro acabou”. A Ordem de Malta apresentou queixa por vandalismo e os estudantes retrataram-se.

Quase cinco anos depois, a 22 de abril de 2019, no Dia da Terra, foi a vez do grupo ambientalista Extinction Rebellion branquear a parede, deixando à vista apenas porções da pintura que lá estava para formar a expressão “Klimatická nouze” (emergência climática, em checo).

Menos de um mês após a Rússia invadir a Ucrânia, surgiu no muro de Praga um retrato de Vladimir Putin com traços de Adolf Hitler MICHAEL HEITMANN / GETTY IMAGES

Já este ano, a presidência checa da União Europeia promoveu a iniciativa “The Freedom Wall” que levou artistas de países membros e também da Noruega e Ucrânia a redecorar o muro com pinturas alusivas ao tema “Liberdade e Energia”.

Um dos participantes, o artista plástico português Hugo Lami, licenciado em Pintura pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa, deixou no muro a imagem de um astronauta com o planeta Terra em forma de bola de cristal. “Para mim, o espaço é liberdade, já que não tem fronteiras e pertence a todos nós”, disse, em declarações à Rádio Prague International.

Sem critérios artísticos, muitas vezes a parede foi vandalizada com desenhos desrespeitosos. Em outubro de 2019, na sequência de queixas, a parede foi renovada e novas regras foram adotadas: não é mais permitido pintar a parede com spray, só são permitidas inscrições nas zonas brancas, a lápis ou giz, e está proibida a presença de artistas de rua.

Em julho de 2021, abriu portas, na capital checa, o museu The Lennon Wall Story, dedicado ao local e aos Beatles em geral. A parede física fica a dois minutos a pé — em constante mutação, mas com a mensagem de sempre na sua essência: ‘Façam o amor, não a guerra’. John Lennon não diria melhor.

(FOTO PRINCIPAL A imagem de John Lennon, no mítico muro que o homenageia, em Praga, vai-se adaptando aos desafios do mundo, como a pandemia MICHAL CIZEK / AFP / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de outubro de 2022. Pode ser consultado aqui