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Distância física e confinamento só se o rabino autorizar

As comunidades ultraortodoxas são um entrave ao combate ao novo coronavírus em Israel, que esta segunda-feira levantou algumas restrições. Obedientes apenas e só às autoridades rabínicas, ignoram as recomendações do governo. E como a maioria é avessa a tecnologias, não tem ideia do impacto da pandemia em todo o mundo

Israel está, como quase todo o mundo, a braços com a pandemia de coronavírus, mas sendo o único país onde a população é esmagadoramente judaica, o problema debate-se com uma realidade particular: pelo menos 40% dos infetados são judeus ultraortodoxos (haredi).

“Os líderes espirituais da comunidade ignoraram os avisos relativos à ameaça, especialmente quando as recomendações estavam relacionadas com práticas religiosas, como o estudo da Torá nas ‘yeshivas’ [escolas religiosas] e as orações nas sinagogas”, diz Gilad Malach, diretor do programa Ultraortodoxos em Israel do Instituto para a Democracia de Israel, num “briefing” à imprensa através da plataforma Zoom a que o Expresso assistiu.

Profundamente conservadoras, estas comunidades — que representam 12% da população do país — privilegiam a obediência às autoridades rabínicas em detrimento das autoridades seculares do Estado. Por isso, quando surgiram as primeiras recomendações governamentais apelando ao distanciamento social, foi para os rabinos que a população ultraortodoxa se voltou para pedir instruções.

“Os ultraortodoxos recusaram obedecer às autoridades acreditando que Deus os iria ajudar”, diz Malach. Eles acreditam piamente que rezar e estudar os textos sagrados providenciam proteção física ao povo judeu.

Esta forma de estar tornou as cidades ultraortodoxas — as mais densamente povoadas — os principais centros de contágio, em especial Bnei Brak, nos arredores de Telavive, com 200 mil habitantes. Esta segunda-feira, as autoridades de Saúde confirmaram que essa cidade continua a registar o maior número de casos (1202) por 100 mil habitantes, apesar do confinamento decretado no início de abril, com mais de 1000 polícias a controlarem entradas e saídas.

“As autoridades demoraram algumas semanas a identificar as cidades ultraortodoxas como zonas perigosas. Esse erro é atribuído, em especial, ao ministro da Saúde, Ya’akov Litzman, que é membro dessa comunidade”, diz Malach. E também ao ministério do Interior, Aryeh Machluf Deri, outro ultraortodoxo.

Ambos não pressionaram os líderes religiosos o suficiente para que promovessem alterações de comportamento nas comunidades. Foi somente a 29 de março, mais de um mês após ter sido detetado o primeiro caso em Israel (21 de fevereiro), que o rabino Chaim Kanievsky — o verdadeiro primeiro-ministro, para muitos religiosos — emitiu um decreto obrigando à obediência às ordens do governo.

Três dias depois do decreto, o ministro da Saúde, Ya’akov Litzman, de 71 anos, testou positivo à covid-19, levando um conjunto de personalidades com quem tinha contactado a ficar em quarentena preventiva, incluindo o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, e Yossi Cohen, o chefe da Mossad (serviços secretos), agência que tem sido crucial para a obtenção de equipamento médico no estrangeiro.

Na imprensa, logo surgiram testemunhos acusando o ministro de, ao arrepio das recomendações do seu próprio governo, ter continuado a frequentar a sinagoga Beit Yisrael, em Jerusalém. Dias depois, a polícia haveria de fechar o templo.

Uma razão para a alta taxa de incidência da covid-19 entre os ultraortodoxos prende-se com o seu estilo de vida, que inclui “muitos rituais e práticas comunitários”, diz Malach. “Rezam em conjunto, estudam em conjunto.”

Com as sinagogas e as “yeshivas” encerradas, este domingo o Governo flexibilizou algumas restrições, passando a ser permitido: orações ao ar livre em grupos até 19 pessoas, com máscaras, separadas por dois metros e a uma distância máxima de 500 metros de casa ou do local de trabalho; casamentos e circuncisões ao ar livre participadas por dez pessoas no máximo; banhos rituais para os homens, desde que não haja mais de três no local.

“Em geral, os ultraortodoxos vivem numa cultura de enclave”, explica o especialista. “Quase ninguém tem televisão e apenas cerca de 50% usa a Internet, alguns apenas no trabalho.” Sem “smartphones” no bolso não estão minimamente expostos a alertas noticiosos, tweets, posts no Facebook e vídeos no WhatsApp. “Por isso, não viram imagens da China e da Itália. Não perceberam a situação.”

Após lhe ter sido diagnosticada covid-19, o ministro Litzman foi colocado de quarentena na sua casa, em Jerusalém. Para poder estar em teletrabalho, foi-lhe instalado… um computador e Internet, que o ministro não tinha.

Passada a tormenta, Gilad Malach acredita que a situação vivida e os erros cometidos poderão contribuir para alterações no seio da comunidade, desde logo ao nível do uso de tecnologia. “Em apenas um mês, a percentagem de ultraortodoxos com acesso à Internet aumentou de 50 para 60%. Nas cidades ultraortodoxas, em março o número de novas ligações à Internet aumentou entre os 200 e os 600%, comparativamente a fevereiro.” Estar “online” vai permitir que consumam informação de outras fontes.

“Uma segunda mudança possível tem a ver com a obediência aos rabinos. Esse respeito continuará a ser central, mas cada vez mais pessoas tenderão a tomar decisões por si próprias em questões pessoais, como o uso da Internet ou a frequência do ensino superior.”

São previsíveis também mudanças a nível económico. Os ultraortodoxos são dedicados à religião e “mais de 40% vive abaixo do limiar de pobreza. As crises económicas limitam a capacidade do Estado apoiar essas comunidades e, nos Estados Unidos [onde vivem quase tantos judeus como em Israel], provocarão uma diminuição do apoio filantrópico a algumas ‘yeshivas’. Por isso, muitos homens haredi não terão alternativa a integrarem-se no mercado de trabalho.”

(FOTO No interior de uma “yeshiva”, na cidade de Bnei Brak, um ultraortodoxo, entregue ao estudo, ignora o polícia equipado com fato protetor JACK GUEZ / AFP / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 20 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui

Religiões são alvos fáceis para semear o medo

O terrorismo matou e feriu, em tempos recentes, judeus, muçulmanos e cristãos. Guerra de religiões à vista?

Em apenas seis meses, as três religiões monoteístas foram atacadas em locais de culto. A 21 de abril, no Sri Lanka, suicidas visaram três igrejas católicas. A 15 de março, em Christchurch (Nova Zelândia), um atirador investiu contra uma mesquita. E a 27 de outubro de 2018, o terror atingira uma sinagoga de Pittsburgh (EUA).

Em todos os casos, a religião não foi a única motivação para atacar. No Sri Lanka foram também visados três hotéis. Na Nova Zelândia (50 mortos), o terrorista atuou norteado por crenças islamofóbicas, supremacistas e extremistas. Nos EUA (11 mortos), o ódio do assassino transcendia os judeus, que considerava “inimigos do povo branco”. Nas redes sociais defendia que os imigrantes são “invasores”.

Resulta daqui a sensação de que atacar crentes em oração é atalho eficaz para atingir governos e opções políticas. “O radicalismo parece ter percebido que os alvos religiosos são mais eficazes na construção das narrativas de medo”, explica ao Expresso Paulo Mendes Pinto, coordenador da área de Ciências das Religiões na Universidade Lusófona.

“Se há alguns anos os atentados eram quase sempre em espaços civis, hoje há um crescimento dos ataques a espaços religiosos. É uma radicalização que mais facilmente semeia o medo e cria dinâmicas de vingança.” Outro padrão comum aos três atentados prende-se com o dia em que aconteceram: Pittsburgh aconteceu durante o shabbath judaico (sábado), Christchurch a uma sexta-feira (dia santo para os muçulmanos) e Colombo no domingo de Páscoa.

“Um ataque num dia festivo tem dupla intencionalidade”, diz Mendes Pinto. “Por um lado, usa a vulnerabilidade de quem é atacado e que, reunido em oração, está frágil. Mas, acima de tudo, é feito num momento simbólica ou teologicamente importante.”

Um ataque na Páscoa, que assinala a ressurreição de Jesus, desfere “um golpe simbólico muito forte”

Se, para os cristãos, a Páscoa é a festa da vitória da vida sobre a morte, simbolizada na ressurreição de Jesus, um atentado nesse dia “coloca a morte acima da vida, desferindo um golpe simbólico muito forte”, explica o professor. No Médio Oriente não faltam exemplos de atentados contra muçulmanos durante o Ramadão (jejum), em que estão vulneráveis a vários níveis.

Talvez por ainda não ter provocado mortes, o fenómeno dos ataques contra igrejas em França não tem merecido alarme mediático. Em 2018 houve 875 atos de vandalismo só em igrejas católicas. “Devem ser relacionados com o crescimento de movimentos nacionalistas de inspiração anticristã, sejam neopagãos ou não”, explica Mendes Pinto. “Há vertentes nacionalistas que reivindicam Um ataque na Páscoa, que assinala a ressurreição de Jesus, desfere “um golpe simbólico muito forte” uma visão anterior ao nascimento do cristianismo como base das identidades europeias, vendo nesta religião a destruição das verdadeiras identidades, não só porque o cristianismo se sobrepôs às religiões anteriores, mas por ser a imagem de uma primeira supranacionalidade, uma primeira ‘União Europeia’. Este fenómeno começou há mais de uma década, nos países nórdicos.”

Em março sete igrejas francesas foram saqueadas, profanadas e vandalizadas em apenas sete dias. Em Paris, a 17, a Igreja de Saint-Sulpice foi incendiada após a missa dominical do meio-dia. Num outro ataque, foi pintada na Igreja de Notre-Dame des Enfants, em Nîmes, uma cruz com excrementos.

(IMAGEM VISION)

Artigo publicado no “Expresso”, a 27 de abril de 2019. Pode ser consultado aqui