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Supremo Tribunal de Israel força Netanyahu a despedir ministro. Governo pode não se aguentar

A sombra da instabilidade política regressa a Israel depois de o Supremo Tribunal ter desqualificado um dos ministros e principais aliados de Benjamin Netanyahu. Aryeh Deri lidera um partido religioso e tem em mãos as pastas do Interior, da Saúde e, ao abrigo de um regime de rotação, terá também a das Finanças. Se não sair pelo próprio pé, o primeiro-ministro poderá ter de demiti-lo — e ver o seu Governo cair

Logotipo do Shas WIKIMEDIA COMMONS

Três semanas após tomar posse, o Governo de Israel levou o primeiro abanão. Quarta-feira, o Supremo Tribunal considerou que um dos principais ministros do mais recente Executivo liderado por Benjamin Netanyahu não tem condições para ser governante.

Segundo o órgão judicial, Aryeh Deri não é qualificado para uma posição ministerial, em virtude de condenações passadas na justiça: no ano passado, por fraude fiscal (ficou com pena suspensa após um acordo judicial); em 1999, a três anos de prisão por ter aceitado subornos.

Dos onze juízes do Supremo, dez consideraram a nomeação “extremamente irracional”, pelo que o ministro deve ser afastado. Deri é ministro do Interior e da Saúde. No âmbito de um acordo de rotação com outro partido da coligação, está previsto que, dentro de dois anos, se torne ministro das Finanças (pasta hoje nas mãos de Bezalel Smotrich, líder do partido Sionismo Religioso, de extrema-direita).

Se Deri sair, “não haverá Governo”

Aryeh Deri lidera desde 2013 o Shas, um dos partidos religiosos ultraortodoxos que têm sido leais a Netanyahu e presença regular nos seus governos. O partido considerou a decisão do Supremo política. “O tribunal decidiu hoje que as eleições não fazem sentido”, declarou o Shas, quarta-feira.

Na véspera de o Supremo se pronunciar, outro ministro do Shas, Yaakov Margi, que detém a pasta dos Assuntos Sociais, preveniu para as consequências que o possível afastamento do líder pode ter. Netanyahu “sabe que não haverá Governo”, se Deri for desqualificado do cargo ministerial.

A deliberação judicial foi já criticada pelo ministro… da Justiça, Yariv Levin, que pertence ao Likud (direita), partido do chefe de governo. “Farei o que for necessário para reparar por completo esta flagrante injustiça feita ao rabino Aryeh Deri, ao movimento Shas e à democracia israelita”, disse, em comunicado.

Reforma polémica da justiça

O ministro da Justiça é peça central num plano de reforma do sistema judicial, que está em elaboração e visa conferir ao Governo maior influência sobre as nomeações judiciais e limitar o poder do Supremo para travar legislação.

O Executivo israelita assegura que o plano é necessário para conter juízes elitistas tendenciosos. Para quem se lhe opõe, é uma machadada na independência judicial e no sistema de freios e contrapesos que sustentam o Estado de Direito.

Qualquer reforma judicial promovida pelo Governo de Netanyahu será necessariamente analisada à lupa, dado ele próprio estar a contas com a justiça, acusado de corrupção em três processos.

Netanyahu encostado à parede

O desafio que o primeiro-ministro tem em mãos, a curto prazo, passa por arranjar um papel para Deri no Governo que agrade ao rabino e convença o Supremo. Se Deri não sair pelo próprio pé, Netanyahu poderá ser forçado a demiti-lo.

Num cenário extremo, o fim do apoio do Shas a Netanyahu poderá abrir uma brecha fatal na coligação e, possivelmente, determinará o regresso de Israel à maratona eleitoral que caracterizou os últimos quatro anos no país.

Nas últimas eleições, a 1 de novembro de 2022, o Shas obteve 8,24% dos votos e elegeu 11 deputados (num total de 120), uma bancada essencial à maioria de 64 parlamentares que sustenta o Executivo mais à direita da história de Israel.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de janeiro de 2023. Pode ser consultado aqui

Há cinco réus encarcerados há 20 anos sem julgamento e vítimas de tortura: “Nem sei se justiça é a palavra certa”

Os sucessivos adiamentos do julgamento dos suspeitos do 11 de Setembro tornaram-se um grande embaraço para os Estados Unidos. Se, por um lado, condenar os acusados levaria algum conforto às famílias de quase 3000 vítimas, por outro o facto de os réus serem vítimas de tortura por parte da CIA agrava a complexidade do caso. Em entrevista ao Expresso, um perito em terrorismo tem reservas em considerar como “justiça” o processo que decorre em Guantánamo

ais de duas décadas depois, o 11 de Setembro é uma tragédia cada vez mais esbatida na memória coletiva dos norte-americanos. A cada novo ano letivo, o professor Tom Mockaitis testemunha-o quando recebe novas turmas na Universidade DePaul, uma instituição privada em Chicago. Os novos estudantes não eram nascidos à época ou eram muito jovens para guardarem lembranças que, hoje, os mobilizem minimamente a cada novo aniversário.

“A maioria dos norte-americanos seguiu em frente. Neste momento, o país está muito mais preocupado com o extremismo interno, a recente decisão relativa ao aborto, o 6 de janeiro [invasão do Capitólio] e, se algo a nível internacional, com a guerra na Ucrânia. É como Pearl Harbor para a geração dos meus pais. As pessoas seguiram em frente”, diz este perito em terrorismo, em entrevista ao Expresso.

A exceção a esta tendência de esquecimento são os familiares e amigos das 2977 vítimas mortais que esperam e desesperam pelo julgamento dos acusados. O processo está em fase de pré-julgamento e tem sofrido sucessivos adiamentos.

Defesa sem acesso a provas

Um dos principais obstáculos prende-se com um braço de ferro entre acusação e defesa relativamente à informação que pode ser usada como prova.

“Muitas das provas foram provavelmente obtidas no âmbito do trabalho classificado dos serviços secretos. Eles não vão revelar muito acerca de onde ou como obtiveram a informação”, explica Mockaitis. “Também não está claro o que é que a defesa pode ver. Num julgamento normal, a defesa tem direito a ver de antemão qualquer coisa que a acusação use como prova e tem a oportunidade de revê-la e refutá-la.”

VÍTIMAS: 2977 mortos

  • 2753 no World Trade Center, em Nova Iorque
  • 184 no Pentágono, em Washington D.C.
  • 40 num campo de Shanksville, na Pensilvânia

O processo decorre numa comissão militar, uma forma híbrida entre um tribunal criminal federal e um tribunal marcial militar, criada em 2006 pelo Congresso dos EUA.

Juiz e júri são assegurados por membros das forças armadas norte-americanas. Já as equipas de acusação e de defesa têm de ter obrigatoriamente advogados militares, mas também civis.

Guantánamo, território incógnito

A comissão militar para os suspeitos do 11 de Setembro está sediada na base naval que os Estados Unidos mantêm na Baía de Guantánamo (arrendada em 1903 às autoridades de Cuba).

“Tudo o que se fez foi colocá-los numa instalação que é, essencialmente, um território controlado pelos Estados Unidos, mas que não faz parte dos Estados Unidos”, explica o professor da Universidade DePaul. “Talvez seja porque os réus não poderiam ser responsabilizados de igual forma perante a lei dos EUA. Esta é uma área muito cinzenta.”

As audiências decorrem sem captação de imagens. São permitidas ilustrações, com algumas restrições. “Temos de cavar para obter informações sobre este julgamento. Há muito pouca informação pública.”

Ilustração sobre a sala de audiências, em Guantánamo, divulgada pelo Departamento de Defesa dos EUA. À esquerda, de branco, os cinco réus DEPARTAMENTO DE DEFESA DOS ESTADOS UNIDOS

Matthew N. McCall, um tenente-coronel da Força Aérea, é o juiz do processo desde 20 de agosto de 2021. À época dos atentados, concluía a formação em Direito, na Universidade do Hawai. A sua nomeação foi envolta em polémica por não possuir a experiência requerida de dois anos como juiz militar.

O procurador-chefe é o contra-almirante Aaron Rugh, da Marinha. E o principal advogado de defesa é o brigadeiro-general Jackie L. Thompson Jr., do Exército. Os 12 militares que irão compor o júri ainda não foram selecionados.

Juízes em causa própria

Tom Mockaitis inquieta-se perante o facto de que quem julga serem “membros de uma organização que tem liderado a luta contra o terrorismo”. “Como é possível”, interroga-se.

“Fiquei muito preocupado com a ideia de um tribunal militar. Se os homens e mulheres no tribunal trabalham para uma instituição militar, sob uma cadeia de comando, e sabendo que há um forte desejo por parte daquele órgão de atribuir um veredicto de ‘culpados’, como pode o júri ser livre?”

“Estão a usar um sistema muito estranho”, continua. “Este não é um tribunal que resistiria a um escrutínio minucioso em qualquer país. Não há muita simpatia pelos réus, mas é difícil de defender que este seja um processo justo.”

A base naval dos EUA na baía de Guantánamo ocupa cerca de 117 km² da República de Cuba SHANE T. MCCOY / US NAVY / WIKIMEDIA COMMONS

Cinco homens estão no banco dos réus, acusados de cumplicidade com os 19 terroristas que sequestraram os quatro aviões.

Os cinco detidos

Khalid Sheikh Mohammad consta no Relatório da Comissão do 11 de Setembro como “o principal arquiteto dos ataques”. Nascido no Paquistão, é acusado de ter gizado a ideia de um ataque com aviões e de tê-la proposto a Osama bin Laden, o líder da Al-Qaeda. Foi apanhado em Rawalpindi, no Paquistão, em 2003, numa operação conjunta dos serviços secretos norte-americanos (CIA) e paquistaneses (ISI). Foi sujeito a “técnicas aprimoradas de interrogatório” da CIA, denunciadas em relatórios oficiais dos EUA, incluindo waterboarding, uma forma de tortura que simula uma situação de afogamento.

Walid bin Attash é acusado de treinar dois pilotos sobre como lutar em espaços apertados, como aconteceu para controlar os aviões. Nasceu na Arábia Saudita, juntou-se à jihad no Afeganistão, onde perdeu parte da perna direita, e foi detido em Karachi, no Paquistão, em 2003.

Ali Abdul Aziz Ali nasceu no Kuwait e tem cidadania paquistanesa. Também identificado como Ammar al-Baluchi, é acusado de transferir dinheiro desde os Emirados Árabes Unidos, onde trabalhava na área das tecnologias, para os piratas dos aviões. Foi intercetado em Karachi, no Paquistão, em 2003. A defesa acredita que o filme “Zero Dark Thirty” — designadamente as sessões de tortura aplicadas a uma personagem chamada Ammar — é inspirado na sua experiência.

Ramzi bin al-Shibh é acusado de recrutar e organizar a célula de Hamburgo, na Alemanha, e de agir como intermediário entre a liderança da Al-Qaeda e o egípcio Mohammed Atta, um dos piratas do primeiro avião a embater contra as torres gémeas, apontado como o líder operacional do atentado. Nascido no Iémen, Al-Shibh foi preso em 2002, na cidade paquistanesa de Karachi.

Mustafa al-Hawsawi é responsabilizado por prestar assistência logística e burocrática aos sequestradores. Este saudita é o réu que enfrenta menor número de acusações. Nas audiências em Guantánamo, senta-se numa almofada em forma de rosca para vencer as dores decorrentes de ferimentos no reto sofridos quando esteve cativo pela CIA. A defesa diz que foi violado.

“Uma coisa a ter em mente, e é assim que as organizações terroristas funcionam, é que muitas das pessoas que apoiam a célula e a operação não sabem realmente o que vai acontecer”, diz Mockaitis. “Não temos a certeza que todos os sequestradores estavam totalmente cientes de que participavam numa missão suicida.”

Os fatos cor de laranja dos detidos tornaram-se símbolo da infâmia que Guantánamo se tornou SHANE T. MCCOY / US NAVY / WIKIMEDIA COMMONS

Após serem apanhados, os cinco suspeitos foram encarcerados em prisões secretas da CIA fora dos Estados Unidos. Em 2006, foram transferidos para o centro de detenção de Guantánamo para serem julgados. Foram formalmente acusados de:

  • conspiração;
  • ataque contra civis;
  • assassínio em violação da lei da guerra;
  • ferimentos graves intencionais;
  • sequestro de avião;
  • terrorismo.

“Não é fácil ter simpatia por estes indivíduos. Mas dado o calendário do nosso sistema legal, segundo o qual o julgamento deve decorrer num período de tempo razoável e os réus são inocentes até prova em contrário e têm direitos, este sistema não corresponde a nenhum desses padrões. E não importa que haja provas muito boas. A defesa argumenta de forma bastante convincente que as confissões foram obtidas sob coação. Essas provas nunca seriam admitidas num tribunal dos EUA.”

Estas acusações expõem um conflito difícil de conciliar. Por um lado, o objetivo das autoridades norte-americanas é condenar os acusados como forma de fazer justiça à morte de quase 3000 pessoas. Mas essa pretensão acaba por ficar frustrada pelo facto de os réus também serem vítimas de tortura por parte da CIA.

Os réus do 11 de Setembro são cinco dos 36 prisioneiros que, segundo o site “Close Guantanamo”, subsistem naquele centro de detenção, 21 dos quais foram ilibados de acusações e estão aptos a sair em liberdade.

Desde que foi inaugurado, a 11 de janeiro de 2002, passaram pelos calabouços de Guantánamo 779 homens, a maioria de nacionalidade afegã, seguidos de sauditas e iemenitas. Com Joe Biden na Casa Branca, os portões daquela prisão já se abriram por quatro vezes.

Obama tentou, mas não conseguiu

A 22 de janeiro de 2009, escassos dois dias após tomar posse como Presidente dos EUA, Barack Obama assinou a Ordem Executiva 13492 determinando o encerramento de Guantánamo. Mas não conseguiu cumprir a promessa.

Mockaitis explica a complexidade do processo: “Eles não sabem o que fazer com estas pessoas. Se a opção for colocá-las em prisões nos EUA, isso criará uma tempestade de publicidade adversa. Ainda que não haja grande risco se ficarem presos, todos os políticos vão cair imediatamente em cima do assunto.” Outra possibilidade é devolver os detidos aos países de origem, “mas nalguns casos os países não os querem”.

Para o professor norte-americano, Guantánamo é “um embaraço” para os Estados Unidos. “Estes indivíduos foram detidos e mantidos sem julgamento por um longo período de tempo. Não tenho muitas dúvidas de que são culpados dos crimes de que são acusados. Mas por mais que tenham feito coisas horríveis, esse tratamento viola os nossos padrões do que é a justiça.”

“Quando dou aulas de contraterrorismo, uma das coisas que enfatizo é que a lei e a legitimidade são ferramentas muito poderosas do lado daqueles que lutam contra os extremistas. É isso o que nos diferencia deles”, conclui Mockaitis. “Tenho muitas reservas em relação à forma como isto está a ser feito. Nem sei se justiça é a palavra certa.”

(FOTO PRINCIPAL Dois feixes de luz, no local onde se erguiam as Torres Gémeas, iluminam os céus de Nova Iorque, numa homenagem às vítimas do 11 de Setembro KIM CARPENTER / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de Setembro de 2022. Pode ser consultado aqui

O “conflito mais documentado de sempre” tem cada vez mais países unidos na investigação de potenciais crimes de guerra

São já seis os países que aderiram à Equipa de Investigação Conjunta, um mecanismo internacional de cooperação judicial criado para investigar crimes de guerra na Ucrânia. “Temos de construir parcerias”, apelou o procurador-geral do Tribunal Penal Internacional (TPI). “Cooperação não quer dizer competição. Temos de dar as mãos em nome dos interesses comuns da humanidade”

Dor sem fim na cidade ucraniana de Bucha, após a descoberta de uma vala comum junto a uma igreja WOLFGANG SCHWAN / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES

A guerra na Ucrânia está para durar, dizem cada vez mais observadores, mas a justiça internacional não espera pelo fim para responsabilizar quem violou as suas regras. Esta terça-feira, Estónia, Letónia e Eslováquia juntaram-se à Equipa de Investigação Conjunta (JIT, na sigla inglesa) criada a 25 de março por Polónia, Lituânia e Ucrânia, para investigar alegados crimes internacionais cometidos na Ucrânia.

“Hoje é um dia importante”, congratulou-se o procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI). “A JIT tem três novos membros. É algo necessário para abordar crimes com a magnitude daqueles que muitas vezes temos visto no TPI. Temos de construir parcerias. E o que isto mostra é que não há uma dicotomia entre cooperação e independência. Cooperação não quer dizer competição. Temos de dar as mãos em nome dos interesses comuns da humanidade.”

Karim A. A. Khan expressou-se nestes termos numa conferência de imprensa realizada esta terça-feira, em Haia, a que o Expresso assistiu de forma remota. De forma inédita, também o Gabinete do Procurador do TPI — que a 2 de março tinha aberto uma investigação aos crimes ocorridos na Ucrânia com base em relatos apresentados por 39 Estados membros — é membro participante desta JIT, em circunstâncias que o próprio detalhou.

O TPI (cujo estatuto é subscrito por 123 Estados membros) tem total acesso a toda a informação partilhada na JIT, mas não está obrigado a partilhar a informação que recolher com os outros membros. O TPI é um tribunal independente, com um mandato específico, explicou o seu procurador. “Não são valores europeus que estamos a proteger. O TPI não é um braço da União Europeia. Tratam-se de valores humanos”, esclareceu Karim A. A. Khan.

Cooperar para evitar sobreposições

Paralelamente às investigações desenvolvidas pelos seis Estados membros da JIT, outros treze países estão a conduzir processos próprios. Organizações não governamentais e associações da sociedade civil estão também no terreno a recolher informação sobre alegados crimes internacionais cometidos na Ucrânia.

“Isto não se trata de um mega caso. Não significa que estamos a copiar-nos uns aos outros e a fazer a mesma coisa em países diferentes. A JIT centraliza as áreas em que necessitamos de cooperar e ajuda a resolver situações de sobreposição. Todos temos processos diferentes”, explicou Andres Parmas, procurador geral da Estónia.

Provas recolhidas por vários países e guardadas em diferentes jurisdições podem ser contraproducentes. “Temos uma grande necessidade de coordenação. E é aqui que o Eurojust entra. Temos mais de 20 anos de experiência de operações de grande escala”, disse Ladislav Hamran, presidente da Agência da União Europeia para a Cooperação Judiciária Penal (Eurojust), que é parceira deste mecanismo internacional de cooperação judicial desde a primeira hora.

A contribuição desta agência da UE passa por dar apoio legal, financeiro e também logístico, como o fornecimento de telefones satélite, computadores portáteis, impressoras, scanners 3D, coletes à prova de bala, capacetes, veículos todo o terreno, drones e outros equipamentos importantes para a recolha de provas.

“Podemos concluir com certeza que a guerra na Ucrânia será o conflito armado mais documentado que testemunhamos até ao momento”, comentou Ladislav Hamran.

Tradutores, para que todos se entendam

O Eurojust, que acolheu a conferência de imprensa desta terça-feira, colmata ainda as necessidades de tradução para que os relatórios forenses possam ser lidos por todos, independentemente da sua nacionalidade, e para que procuradores, investigadores e agentes da polícia, quando reunidos, se possam expressar nas suas línguas maternas e serem entendidos por todos.

“Nunca antes na história dos conflitos armados, a comunidade legal respondeu com esta determinação. A decisão de formar esta JIT foi tomada aqui mesmo, no edifício do Eurojust, apenas seis dias após começar este conflito”, acrescentou o presidente da agência.

Dariusz Barski, procurador nacional da Polónia, explicou que no seu país, que já acolheu mais de 3,5 milhões de refugiados ucranianos, muito deste trabalho passa por entrevistar pessoas para recolher informação que possa ser útil a qualquer investigação.

“Estes processos também se referem às atividades levadas a cabo pelas autoridades e responsáveis da Bielorrússia que disponibilizaram o seu território para esta guerra de agressão iniciada pela Rússia contra o território independente da Ucrânia”, disse Barski. “Encorajo outros países a juntarem-se à JIT.”

A Lituânia, outro país fundador da Equipa, invoca a sua experiência de mais de 30 anos de investigação de crimes atribuídos ao Exército Vermelho por alturas da desagregação da União Soviética (1991), de que o país báltico fazia parte: “Queremos partilhar esta experiência com os nossos colegas na Ucrânia”, disse Nida Grunskiene, procuradora geral lituana. “Tomamos a decisão [de participar na JIT] depois de avaliarmos a informação pública que nos chegou nos primeiros dias da guerra na Ucrânia.”

Justiça ucraniana é rápida e lenta

Presente na conferência de imprensa, Iryna Venediktova, a procuradora-geral da Ucrânia, foi confrontada por um jornalista com a rapidez com que o país julgou o primeiro militar russo: um cidadão de 21 anos, condenado a prisão perpétua pela morte de um homem de 62 anos que seguia de bicicleta, na região de Sumy (nordeste).

“Na Ucrânia, os jornalistas perguntam-me porque é que os julgamentos demoram tanto. ‘Três meses, tanto tempo, o que andaram vocês a fazer até agora?’ Já os jornalistas internacionais perguntam-me: ‘Porquê tão rápido?’”, disse. “Nós vamos a tribunal quando estamos prontos.”

A procuradora disse que, atualmente, há cerca de 15 mil casos relativos a crimes de guerra no país e que a Ucrânia vai acusar cerca de 80 suspeitos por essas atrocidades. Admitiu também que as investigações tornam-se difíceis porque as autoridades de Kiev não têm acesso a partes do território, como a região do Donbas (leste), por exemplo. “Mas temos acesso a pessoas.”

Em abril passado, quando visitou a cidade ucraniana de Bucha, onde foram executados civis, o procurador do TPI proferiu uma frase que ficou a soar: “A Ucrânia parece uma cena de crime”.

Esta terça-feira, Karim A. A. Khan mostrou-se um homem confiante no papel da justiça. “Os custos com a justiça são irrisórios quando comparados com os milhares de milhões de dólares que são gastos num conflito. É mais barato financiar um mecanismo judicial como este do que comprar tanques e mísseis”, disse.

“Sou um grande fã da jurisdição universal. Cabe aos Estados decidirem se se juntam ou não à JIT. O que devemos fazer é aplaudir qualquer autoridade, qualquer procurador independente que tente chegar à verdade e reivindicar os direitos dos sobreviventes. Não estamos em competição. Esta é uma obrigação partilhada.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 31 de maio de 2022. Pode ser consultado aqui. Tradução do artigo em língua russa neste link

Descodificador. Que pode fazer a justiça na ‘guerra de Putin’?

Imagens de cadáveres de civis espalhados nas ruas de Bucha e de edifícios completamente destruídos e sem vida na cidade sitiada de Mariupol levantaram um coro de denúncias sobre crimes de guerra na Ucrânia. Como pode intervir o direito internacional?

Morte e destruição sem fim, em Bucha, nos arredores de Kiev CHRIS MCGRATH / GETTY IMAGES

1. A guerra desencadeada pela Rússia é legal?

Não, desde o seu primeiro minuto. A Carta das Nações Unidas — uma das pedras angulares do direito internacional, assinada a 26 de junho de 1945, no término da II Guerra Mundial — proíbe expressamente, no seu artigo 2º, “o recurso à ameaça ou ao uso da força [o chamado jus ad bellum], quer seja contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado”. A única exceção em que um país pode, por sua iniciativa, recorrer à força é em situações de legítima defesa (artigo 51º). Ora, no caso da invasão russa da Ucrânia, nem a Rússia foi atacada nem havia uma iminência de ataque armado contra o país liderado por Vladimir Putin.

2. Que legislação é importante?

Além da Carta da ONU, a regulação do uso da força faz-se também através do direito internacional humanitário, que procura limitar o sofrimento provocado pela guerra. Surgiu no século XIX, com o intuito de humanizar a guerra, e assenta em quatro Convenções de Genebra. A primeira (1864) confere proteção aos soldados feridos e enfermos durante uma guerra terrestre. A segunda (1906) estende as obrigações do primeiro tratado às forças navais. A terceira (1929) define o tratamento dos prisioneiros de guerra. E a quarta (1949) outorga proteção aos civis, inclusive em território ocupado. A Rússia ratificou os quatro tratados.

3. Que tribunais são competentes?

Qualquer violação por Estados que tenham ratificado as Convenções de Genebra pode conduzir a um processo diante do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) ou do Tribunal Penal Internacional (TPI). O TIJ aprecia litígios entre Estados e é o órgão jurisdicional das Nações Unidas, composto por 15 juízes independentes eleitos pelo Conselho de Segurança, por recomendação da Assembleia-Geral. Quanto ao TPI, que tem sede em Haia, só julga indivíduos.

4. Vladimir Putin pode ser julgado?

Teoricamente, sim, no TPI. Mas, na prática, há uma infinidade de obstáculos até que isso se torne possível. Desde logo, há que recolher, no terreno, indícios e provas das atrocidades imputadas às forças russas, suscetíveis de implicar toda a cadeia de comando até chegar ao Presidente da Rússia. Esta fase pode demorar anos. Se a investigação do TPI resultar na formulação de uma acusação, é então emitido um mandado de captura internacional, dado que o tribunal apenas julga na presença do arguido, e não à revelia. Além disso, o TPI não dispõe de uma força policial que possa atravessar fronteiras nacionais para executar o mandado de detenção. A questão coloca-se: quem apanha Putin?

5. Há algum processo a decorrer no TPI?

Sim. A 28 de fevereiro passado, o procurador do TPI, o britânico Karim A. A. Khan, anunciou a abertura de uma investigação aos alegados crimes de guerra russos, com base em denúncias de atrocidades apresentadas por cerca de 40 países. Atualmente, no terreno, instituições como o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, ONG como Amnistia Internacional e Human Rights Watch e ainda jornalistas, ativistas e cidadãos estão numa corrida contra o tempo na procura de registar e documentar o maior número de indícios de crimes de guerra possível. Nem a Rússia nem a Ucrânia assinaram o Estatuto de Roma (que instituiu o TPI), mas tal não constitui entrave a uma ação nesse tribunal.

6. A Ucrânia já acorreu à justiça?

Sim, de forma bastante inteligente. Dois dias após a Rússia ter iniciado a invasão da Ucrânia, argumentando com a urgência em proteger as populações ucranianas russófilas do leste do crime de genocídio, a Ucrânia instaurou um processo no TIJ, acusando a Rússia de manipular o conceito de genocídio para justificar a sua invasão ilegal. A Rússia tentou boicotar o caso faltando a algumas sessões. A 16 de março, ouviu o TIJ dar razão a Kiev e a instar Moscovo a parar imediatamente com as operações militares. A favor votaram 13 juízes e contra apenas dois: o magistrado chinês e o russo. Os veredictos do TIJ são vinculativos, mas o tribunal não tem forma de obrigar ao seu cumprimento.

7. O massacre de Bucha é genocídio?

A violência das imagens captadas naquela cidade dos arredores de Kiev ergueu muitas vozes, incluindo a do Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, num coro de denúncias de uma situação de genocídio, o mais grave dos crimes contra a Humanidade. Mas, à luz do direito internacional, a tragédia de Bucha dificilmente configura um crime desse tipo. Segundo a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948), genocídio consubstancia um conjunto de atos “cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Esta especificidade, aparentemente, não é o caso de Bucha.

Artigo publicado no “Expresso”, a 8 de abril de 2022. Pode ser consultado aqui ou aqui

O direito internacional tem forma de julgar os responsáveis pelo massacre de Bucha. “Mas quem apanha Putin?”

Há genocídio em Bucha? E ilegalidades nos ataques russos, em plena guerra? Que tribunais podem julgar os russos? E haverá vontade? O difícil processo de levar os crimes de guerra russos à justiça

Na emoção de um encontro com refugiados ucranianos, durante a sua recente visita à Polónia, Joe Biden não se conteve nas palavras e chamou “carniceiro” a Vladimir Putin. O comentário gerou um efeito de bumerangue e o Presidente dos Estados Unidos foi duramente criticado, inclusive por alguns pares, como o homólogo francês. “Eu não usaria esse tipo de linguagem porque continuo a falar com o Presidente Putin”, disse.

Se o objetivo do diálogo é a obtenção de um cessar-fogo e a retirada das tropas russas da Ucrânia, acrescentou Macron, “não podemos escalar nem em palavras nem em ações”. Este discurso mudou após a divulgação das imagens do massacre de Bucha, nos arredores de Kiev. “Hoje, há sinais muito claros de crimes de guerra”, admitiu agora o presidente francês.

Entre os observadores, a atribuição de responsabilidade a Moscovo é cada vez mais hegemónica. “A Rússia manifesta um completo desprezo pelas normas do direito internacional humanitário a que está obrigada. As Convenções de Genebra de 1949 obrigam a que se faça sempre a distinção entre civis e combatentes”, diz ao Expresso Maria Assunção Vale Pereira, professora de direito internacional. “Por outro lado, é preciso distinguir os objetivos militares dos bens de caráter civil, e os russos têm-no ignorado completamente, têm usado armas proibidas, como minas e munições de dispersão”. Porém, acrescenta, se “o direito tem as respostas, o problema é saber se a Rússia está disposta a aplicar o direito a que se comprometeu.”

Houve genocídio em Bucha?

Na Universidade do Minho, esta especialista leciona também direito internacional humanitário, prevenção de conflitos e manutenção da paz e tribunais internacionais. Na sua ótica, o caso de Bucha dificilmente configura um crime de genocídio, conforme o reclama o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, e muitas outras vozes chocadas pela violência das imagens captadas na cidade. “O crime de genocídio tem como aspeto específico o facto de os crimes em causa serem praticados com a intenção de destruir no todo, ou em parte, um grupo étnico, racial, religioso ou nacional. Não estou a ver que haja em Bucha um grupo específico com estas características.”

Mas nada diminui as acusações de que o Kremlin é alvo. Ainda que Moscovo alegue que as imagens de Bucha sejam produto de uma encenação profissional, a “simples” decisão de invadir um Estado soberano faz com que a Rússia venha acumulando ilegalidades desde o primeiro dia da guerra. “Toda esta intervenção é ilícita, porque o direito internacional proíbe o recurso à força”, continua a professora. “A única exceção em que um Estado, por sua iniciativa, pode recorrer à força é em legítima defesa. Ora a Rússia não foi atacada nem havia uma iminência de um ataque armado. Tudo isto é ilícito.”

À luz do direito internacional, a regulação do uso da força faz-se através da Carta das Nações Unidas, que prevê quando é lícito o recurso à força (o chamado jus ad bellum), e através do direito internacional humanitário, que surgiu no século XIX “com o intuito de humanizar a guerra”, explica a professora Maria Assunção Pereira. “Visa sobretudo preservar quem não participa diretamente nas hostilidades e, por outro lado, limitar meios e métodos de combate, atenuando o sofrimento de quem participa e não participa.”

Hoje, a aplicação de todo este ordenamento jurídico faz-se em especial em duas instâncias internacionais, de quem se espera, neste caso concreto, a responsabilização dos mandantes da agressão a um Estado soberano.

Tribunal Internacional de Justiça (TIJ)

É o órgão jurisdicional das Nações Unidas, composto por 15 juízes independentes. São eleitos para mandatos de nove anos pela Assembleia Geral das Nações Unidas e pelo Conselho de Segurança, em votações simultâneas, mas separadas. Para ser eleito, um candidato tem de receber a maioria absoluta dos votos nos dois órgãos.

O TIJ apenas julga litígios entre Estados, ou seja, processos em que um Estado está contra outro Estado. “Neste momento, o TIJ aprecia um caso interposto pela Ucrânia que, inteligentemente, aproveitou a acusação que a Rússia lhe fez de estar a perseguir um crime de genocídio [no leste do país] e, a partir daí, encontrou bases de jurisdição para que o Tribunal pudesse julgar. À partida, o TIJ só julga se houver aceitação da sua jurisdição”, explica a professora. Boicotar as diligências do TIJ passa, por exemplo, por faltar às sessões. A Rússia fê-lo recentemente.

A 16 de março passado, os trabalhos em Haia — onde fica a sede do TIJ — foram uma demonstração de como não decorrem de forma totalmente imune às sensibilidades políticas em redor deste caso. Nesse dia, o TIJ aprovou uma posição exortando a Federação Russa a parar com a guerra e com todas as atividades militares na Ucrânia. A decisão foi aprovada por 13 juízes. Os dois que votaram contra foram os magistrados russo e chinês.

Tribunal Penal Internacional (TPI)

Ao contrário do TIJ, que aprecia casos entre Estados, o TPI só julga indivíduos. Nem a Rússia nem a Ucrânia são signatárias do Estatuto de Roma, que instituiu este tribunal, mas isso não constitui um entrave perante a vontade de ser desencadeada uma ação no TPI.

Isso pode ser feito através de uma remissão do Conselho de Segurança da ONU, o que neste caso não acontecerá em virtude do poder de veto de que a Rússia dispõe. Pode haver também Estados a denunciar a prática de crimes ou pode ser o procurador do TPI, por sua própria iniciativa e em posse de indícios que caibam no âmbito da competência do tribunal, a levar a cabo essa investigação. Se da investigação decorrer a formulação de uma acusação e se esta dor confirmada pelo Juízo de Instrução, é então emitido um mandado de captura internacional.

“Mas quem é que apanha o Putin?”, questiona Maria Assunção Pereira. “O TPI não julga à revelia, é preciso a presença do arguido. Além disso, é um tribunal, não tem forças de polícia. Putin está enfiado num bunker, ninguém sabe bem onde, e nunca mais vai sair da Rússia. É difícil que seja capturado para ser levado a tribunal. Os instrumentos existem, assim pudessem funcionar.”

Da mesma forma que o TPI está dependente das polícias nacionais (que não podem cruzar fronteiras) para executar mandados de detenção, também não tem prisões onde os condenados possam cumprir a sentença. “Mas há acordos celebrados com Estados, como por exemplo com a Holanda”, explica a docente. “Através desses acordos, a Holanda disponibiliza-se a receber um determinado número de pessoas para cumprir pena nas suas prisões.”

Recolher provas para levar a tribunal

Da recolha de provas até à emissão de um mandado de captura podem passar anos. Mas ceder à morosidade da justiça teria o mesmo efeito de uma rendição voluntária ao agressor.

A 28 de fevereiro passado, o procurador do TPI, o britânico Karim A. A. Khan QC, anunciou a abertura de uma investigação oficial aos alegados crimes de guerra russos, com base em denúncias de atrocidades apresentadas por um conjunto de países, atualmente 41. Para que o processo avance, “é preciso que o Estado da nacionalidade dos alegados responsáveis pelos crimes aceitem a jurisdição, o que não é possível, porque são russos e a Rússia não aceita, ou então que o Estado em cujo território tiveram lugar os crimes, a Ucrânia, aceite a jurisdição”, explica Maria Assunção Pereira.

Paralelamente, também a Procuradoria-Geral da Ucrânia está a recolher dados sobre crimes de guerra. Há um site no qual qualquer cidadão pode registar os seus achados. “Desde o início da guerra, registamos mais de 4000 crimes militares, crimes de guerra”, disse esta segunda-feira a procuradora-geral do país. O objetivo da iniciativa é documentar factos para poder apresentar provas diante dos tribunais ucranianos e também do TPI.

A procuradora Iryna Venediktova esclareceu que ainda não foram verificadas as denúncias referentes a Bucha (execuções sumárias e valas comuns) e Mariupol. Nesta cidade do sudeste da Ucrânia, onde se estima que 90% dos edifícios tenham sido destruídos, foi bombardeado um teatro onde estava instalado o maior abrigo antiaéreo da cidade e onde estavam refugiadas centenas de pessoas. No seu exterior, uma palavra escrita em russo, visível a partir do céu, alertava para a presença de civis no local: dizia “crianças”, mas não deteve o fogo russo.

Apesar de não ser signatária do TPI, a Ucrânia reagiu à ameaça russa à sua soberania e adaptou a sua posição em relação ao TPI. Através de uma declaração emitida em 2015, a Ucrânia passou a reconhecer a jurisdição do TPI em matéria de “alegados crimes” praticados pela Rússia no seu território desde 20 de fevereiro de 2014.

Neste dia, mais de 50 manifestantes antigoverno foram mortos na Praça Maidan, em Kiev, tomada pelo movimento Euromaidan, que defendia a aproximação da Ucrânia à União Europeia. Este massacre atribuído à polícia ucraniana precipitou a queda do governo pró-russo, a invasão e posterior anexação russa da Península da Crimeia e constituiu o tiro inicial para a guerra separatista no leste da Ucrânia.

As memórias (e o exemplo) de Nuremberga

A forma como, após a II Guerra Mundial, oficiais nazis e guardas dos campos de concentração conseguiram escapar aos julgamentos de Nuremberga e esconderem-se em múltiplos países é hoje apontado como uma vulnerabilidade que se pode repetir.

Recorda Maria Assunção Pereira: “Depois de Nuremberga, foram apontadas várias deficiências a esse tribunal. Logo em 1948, a Assembleia Geral [da ONU] convidou a Comissão de Direito Internacional, que era um órgão subsidiário, a ponderar o interesse da criação de um tribunal de natureza penal e de caráter permanente. Mas, apesar de tudo o que tinha sido reconhecido em Nuremberga, houve, por um lado, a Guerra Fria (que levou a que não houvesse entendimento) e, por outro lado, a ideia (enfatizada no princípio da proibição do uso da força, na Carta das Nações Unidas) de que qualquer tribunal que fosse criado tinha que ter competência para julgar o crime de agressão. Mas como isso tocava com as competências do Conselho de Segurança também não se conseguiu fazer nada. Foi preciso esperar pelo fim da Guerra Fria”.

A trágica década de 1990 daria motivos suficientes para a reorganização da justiça internacional. Em 1993, foi estabelecido, através de uma resolução do Conselho de Segurança, o Tribunal Penal Internacional para a Ex-Jugoslávia, com competência para julgar os crimes mais graves aí ocorridos. Com o mesmo espírito, foi criado, no ano seguinte, o Tribunal Penal Internacional para o Ruanda. Só em 1998 é que foi adotado o Estatuto de Roma que instituiu o Tribunal Penal Internacional com os contornos hoje em vigor.

Existe o direito, existem instituições, mas pode faltar vontade política em que se faça justiça. Para além da Rússia, até países como os Estados Unidos, a China e Israel não assinaram ainda o Estatuto de Roma. “O TPI só pode julgar se considerar que não há vontade ou capacidade dos Estados para julgarem”, conclui Maria Assunção Pereira.

“Parece que alguém está a dizer: ‘Os meus não podem ser julgados porque mesmo no meu país não há garantias de que sejam julgados devidamente’. Nos Estados Unidos, por exemplo, há várias situações de indivíduos acusados de crimes de guerra a serem julgados em comissões administrativas. Isso não é um tribunal. Então no mandato de Donald Trump, foi uma hostilidade absolutamente paranóica contra o TPI.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de abril de 2022. Pode ser consultado aqui