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O rastilho voltou a acender-se no barril de pólvora chamado Kosovo

No norte do território, confrontos entre populações sérvias e polícias albaneses feriram 30 membros da força militar internacional. A NATO vai enviar mais 700 efetivos

Mapa do Kosovo pintado com a bandeira da Sérvia WIKIMEDIA COMMONS

Aos quinze anos de vida, o Kosovo faz jus à problemática região dos Balcãs, onde se insere, e acumula tensão atrás de tensão. Subsistem feridas abertas desde que esta antiga província sérvia de maioria albanesa (muçulmana) cortou amarras com a Sérvia (cristã), de forma unilateral, a 17 de fevereiro de 2008. Os problemas sentem-se com particular intensidade no norte do Kosovo, onde populações de origem sérvia resistem a obedecer às autoridades de Pristina. Esta semana, a violência voltou-se contra a missão da NATO, no território há 24 anos.

1. O que está na origem da mais recente tensão?

Um imbróglio político saído das eleições locais de 23 de abril, em quatro municípios do norte do Kosovo, onde a maioria da população é de origem sérvia: Leposavic, Mitrovica Norte, Zubin Potok e Zvecan. Estes sérvios, que não reconhecem o Governo de Pristina (capital do Kosovo) e são informalmente apoiados pelo de Belgrado (Sérvia), boicotaram o escrutínio, reduzindo a taxa de afluência às urnas para míseros 3,47%. Dos 45.095 eleitores, votaram 1566 albaneses e 13 sérvios. Todos os autarcas eleitos são albaneses e têm a legitimidade ferida. “Foram eleitos por apenas 3,5% dos eleitores. Não têm credibilidade alguma”, diz ao Expresso o major-general Raul Cunha, que foi conselheiro militar do representante especial no Kosovo do secretário-geral das Nações Unidas, entre 2005 e 2009.

2. O que levou à erupção de violência esta semana?

Na segunda-feira, os autarcas eleitos tentaram assumir funções. “O primeiro-ministro do Kosovo, de forma abusiva, resolveu levar avante a tomada de posse desses autarcas, com a proteção da polícia do Kosovo”, continua o militar. No exterior dos edifícios concentraram-se populações sérvias em protesto. A violência entre a polícia albanesa e populações sérvias eclodiu com maior intensidade em Zvecan, cerca de 45 quilómetros a norte de Pristina, onde o autarca eleito obteve 114 votos num universo de 6998 eleitores. “No meio da manifestação, houve disparos feitos pela polícia do Kosovo, foram feridos sérvios e a partir daí a situação ficou descontrolada”, diz Cunha. Além de 52 manifestantes, ficaram feridos 30 militares da Força do Kosovo (KFOR) — 19 húngaros e 11 italianos —, uma missão militar internacional de manutenção da paz liderada pela NATO e presente no território desde 1999.

3. Entre as eleições e os confrontos, nada foi feito?

No mês passado, a União Europeia chamou a si a tarefa de mediar o estabelecimento da Associação de Municípios de Maioria Sérvia, um órgão aceite por Belgrado e Pristina no Acordo de Normalização assinado a 19 de abril de 2019 (que não contempla o reconhecimento do Kosovo independente pela Sérvia), mas que nunca foi avante. “Discordo fundamentalmente da proposta”, atirou o primeiro-ministro kosovar, Albin Kurti, nas negociações em Bruxelas, em que participaram o Presidente sérvio, Aleksandar Vucic, e o alto-representante da UE para Relações Exteriores, Josep Borrell. “A proposta representa o desejo de uma República Srpska no Kosovo.” A República Srpska é a entidade política sérvia na Bósnia-Herzegovina, que desafia repetidamente a legitimidade do Estado.

4. Por que razão a violência se voltou contra a NATO?

“A força internacional protegeu a ocupação dos edifícios pelos autarcas albaneses e os sérvios entenderam que essa atuação da KFOR foi contra eles”, explica Raul Cunha. No papel, a KFOR tem por missão “manter um ambiente seguro e protegido”. Porém, neste episódio, “a sua atuação perturbou até a segurança. A KFOR, em vez de dizer ao primeiro-ministro do Kosovo para retirar de lá os autarcas, protegeu os edifícios, onde também já estava a polícia do Kosovo”. O militar português recorda que, na época em que o Kosovo estava ainda sob a tutela das Nações Unidas (1999-2008), “havia o cuidado de colocar polícias sérvios nos municípios onde os sérvios eram maioria, mas agora não. Se mandam para lá as forças de intervenção da polícia kosovar, está visto que vai haver problemas. Se a seguir vai a KFOR proteger as forças de intervenção da polícia do Kosovo, pior ainda”.

5. A NATO vai enviar mais 700 soldados. O que muda?

Esse contingente significa um reforço substancial dos cerca de 4000 efetivos (de 28 países) atualmente em missão. Mas, alerta Raul Cunha, “não resolve nada”. Além da polícia, no território há as Forças de Segurança do Kosovo, uma espécie de exército. “Estou convencido de que as forças da NATO não terão capacidade para as enfrentar. Se colocarmos na equação o exército da Sérvia, então os 700 homens da NATO vão resolver zero. É um sinal de força, mas para quê? O que tem de acontecer é a desmobilização de toda a tensão, o que só será possível se houver pressão por parte de quem tem essa capacidade, que são os Estados Unidos, sobre o Governo do Kosovo, levando-o a cumprir aquilo que está acordado.”

6. Como reagiram os EUA, sólido aliado do Kosovo?

Entre o coro de condenações à violência e apelos à inversão na escalada, foi surpreendente a posição dos Estados Unidos, que foram dos primeiros países a reconhecerem a independência do Kosovo e que têm estado ao seu lado desde então. “A decisão do Governo do Kosovo de forçar o acesso aos prédios municipais aumentou as tensões de forma drástica e desnecessária”, reagiu o secretário de Estado, Antony Blinken. O Kosovo “deve garantir que os autarcas eleitos cumpram as suas funções de transição em locais alternativos fora dos prédios municipais e deve retirar as forças policiais das imediações”. Em paralelo, Washington cancelou a participação do Kosovo em exercícios militares da NATO. Pristina acusou a “reação exagerada” do amigo americano.

7. Porque é o Kosovo tão importante para a Sérvia?

A pergunta poderia ser endereçada ao tenista sérvio Novak Djokovic, que esta semana, após vencer a primeira partida no torneio de Roland-Garros, escreveu na lente da câmara que transmitia em direto: “O Kosovo é o coração da Sérvia. Parem com a violência.” Ao mesmo tempo que apelou à trégua, o nº 1 do mundo deitou combustível na fogueira ‘anexando’ o Kosovo. Para qualquer sérvio, o Kosovo é a terra de origem da sua nacionalidade. “Há território no Kosovo que devia continuar na Sérvia. É como se nós ficássemos sem Guimarães para ficar integrado na Galiza”, compara Cunha, que aponta o dedo ao Ocidente. “Aquando do cessar-fogo após os 78 dias de bombardeamentos da NATO à ex-Jugoslávia, em 1999, em defesa dos albaneses do Kosovo, celebrou-se o Acordo de Kumanovo, que previa que militares da Sérvia garantissem a segurança de populações sérvias no Kosovo e, sobretudo, de lugares de culto: mosteiros ortodoxos, igrejas, o patriarcado. A KFOR nunca deixou que regressassem.”

8. Que solução para o Kosovo?

“O Kosovo não faz sentido como país, faz sentido se a maioria do território do Kosovo se juntar à Albânia”, defende Cunha, autor do livro “Kosovo, a Incoerência de uma Independência Inédita”. Enquanto esta ou outra fórmula não convencerem as partes, a questão continuará a minar a afirmação internacional dos dois países: sem pleno reconhecimento internacional, o Kosovo não consegue aderir à ONU; sem reconhecer o Kosovo, a Sérvia não entra na UE.

Artigo publicado no “Expresso”, a 2 de junho de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Pequenos territórios, grandes problemas: conheça cinco pedaços de terra que podem ser rastilhos de grandes guerras

Os países não se medem aos palmos e estes cinco territórios, em particular, são prova disso. Mais pequenos do que Portugal, Kosovo — que esta sexta-feira assinala 15 anos de independência unilateralmente declarada —, Taiwan, Caxemira, Nagorno-Karabakh e Faixa de Gaza têm potencial para originar grandes conflitos e contagiar outros países para guerras de consequências imprevisíveis

Se a dimensão de um país é um ativo que pode ser usado para projetar poder e influência, não se pode aferir com igual imediatismo o impacto que isso tem ao nível da conflitualidade. No atual mapa geopolítico do mundo, algumas das disputas com maior potencial explosivo estão localizadas em territórios pequenos. São exemplos disso o Kosovo, Taiwan, Caxemira, Nagorno-Karabakh e a Faixa de Gaza.

Somada, a área de todos corresponde sensivelmente ao tamanho de Portugal. Mas se, ano após ano, o retângulo luso tem posição garantida nos primeiros lugares do Índice Global de Paz, estes cinco territórios têm capacidade para deixar o mundo à beira de um ataque de nervos.

KOSOVO

Ferida aberta nos Balcãs

O segundo país mais jovem do mundo — só mais velho do que o Sudão do Sul — faz esta sexta-feira 15 anos. O Kosovo nasceu de parto difícil, na sequência do desmembramento da Jugoslávia, em 1991, que originou várias guerras e bombardeamentos da NATO durante 78 dias, justificados com a urgência em estancar a repressão das forças sérvias à população do Kosovo.

Antiga província da Sérvia (cristã ortodoxa) de maioria albanesa (muçulmana), o Kosovo é para os sérvios a terra de origem da sua nacionalidade. Essa circunstância está na origem da tensão que ainda hoje se vive neste território com menos de dois milhões de habitantes.

Concentrada sobretudo no norte, uma minoria sérvia de cerca de 50 mil pessoas é um desafio à estabilidade do país. Declara-se leal às autoridades de Belgrado e não acata ordens do Governo de Pristina.

No mais recente braço de ferro, os sérvios kosovares recusaram-se a alterar as placas de matrícula dos seus carros — que têm letras correspondentes às cidades onde vivem (KM para Kosovska Mitrovica, por exemplo) — para as letras RKS (República do Kosovo). A tensão levou a Sérvia a colocar as suas forças em alerta máximo de prontidão para combate, em dezembro passado.

Presente no território desde 1999, uma missão da NATO (KFOR) é garantia de segurança, ainda que transforme o Kosovo numa espécie de protetorado, limitado na sua afirmação internacional.

A nível diplomático, o reconhecimento enquanto Estado soberano marca passo. Entre outros, Rússia e China (membros permanentes do Conselho de Segurança) e também cinco países da União Europeia, um deles Espanha, negam-lhe esse estatuto. Por essa razão, o Kosovo ainda não conseguiu aderir às Nações Unidas.

TAIWAN

Barril de pólvora no Pacífico

Também chamada China Nacionalista, Taipé ou Formosa, a República da China (nome formal de Taiwan) é garante de águas agitadas no Oceano Pacífico. Situada a uma distância média de 180 quilómetros da costa da República Popular da China, é um Estado soberano reconhecido por 12 países e pela Santa Sé (Vaticano).

Esta ilha — onde vivem cerca de 24 milhões de pessoas — está no epicentro da disputa entre China e Estados Unidos pelo domínio da região da Ásia-Pacífico.

Para Pequim, a pretensão independentista da sua província rebelde — como lhe chama desde que os nacionalistas se retiraram para a ilha, em 1949, após serem derrotados na guerra civil contra os comunistas — representa uma alternativa ao projeto político da China Única. É também um entrave à implantação da revolução maoísta em todo o território chinês, na lógica que já se estendeu a Hong Kong (com contestação visível nas ruas) e Macau.

Para os Estados Unidos, o outro gigante geopolítico da região do Pacífico, apoiar Taiwan é forma fragilizar o grande rival. Outrora um dos quatro “tigres asiáticos”, esta democracia é hoje a 21ª economia mais desenvolvida do mundo, numa classificação em que Portugal ocupa o 50º lugar.

De tempos a tempos, as incursões aéreas de caças chineses na área de defesa de Taiwan, bem como a visita de altos responsáveis políticos norte-americanos à ilha — caso da então presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, em agosto passado — soam a provocação e fazem disparar alertas.

A perspetiva de conflito aberto levou as autoridades de Taiwan a aumentarem o tempo de serviço militar obrigatório de quatro meses para um ano, a partir de 2024. Uma guerra em torno da ilha que lidera a produção mundial de chips para tecnologia civil e militar implicaria duas potências militares e nucleares, numa grande ameaça à paz mundial.

CAXEMIRA

Cobiçada por potências nucleares

Índia, Paquistão e China partilham entre si partes do território da Caxemira, nos Himalaias. No respeito pela Linha de Controlo, que funciona como fronteira, a Índia controla 45% da região, o Paquistão 35% e a China 20%.

Os problemas que fazem soar alarmes em todo o mundo estão localizados na área administrada pela Índia. Este é um país de maioria hindu e Caxemira, a sua região mais setentrional e uma barreira natural a infiltrações exteriores, é a única de maioria muçulmana.

A origem da disputa remonta a 1947, ano da partição da Índia Britânica. A Índia alega que a Caxemira lhe pertence por ter sido parte integrante dos estados governados por marajás. O Paquistão diz que é a população que deve decidir em referendo. Estima-se que estejam ativos no território cerca de 300 militantes armados, num desafio à autoridade de Nova Deli sobre a região.

A dinâmica separatista da região, bem como o facto de ser um depósito de água dos glaciares e principal fonte de abastecimento hídrico de Índia e Paquistão, já originou três guerras (1947, 1965, 1999) entre o país do Mahatma Gandhi (1400 milhões de habitantes) e o de Malala Yousafzai (230 milhões). Direta ou indiretamente, tiveram origem na disputa pela Caxemira.

Frente a frente estão duas potências nucleares, não signatárias do Tratado de Não Proliferação Nuclear, em vigor desde 1970. Para indianos e paquistaneses, a disputa por Caxemira é um jogo de soma zero: quem a controlar representa uma ameaça existencial ao inimigo. Se é verdade que o Paquistão está muito exposto a tudo o que acontece no Afeganistão, é a rivalidade com a Índia que mais consome a república islâmica.

NAGORNO-KARABAKH

O calcanhar do Cáucaso

É uma disputa que se trava no interior do antigo território da União Soviética e que já era foco de conflito antes da desintegração da mesma. Na zona do Cáucaso, Azerbaijão e Arménia já se envolveram em duas guerras pelo controlo do enclave montanhoso de Nagorno-Karabakh, a última das quais em 2020 (a primeira em 1988 e durou mais de seis anos).

Com população de maioria arménia, este pedaço de terra é reconhecido internacionalmente como parte integrante do Azerbaijão, ainda que na prática seja governado, em parte, por uma entidade apoiada pela Arménia.

A República Artsaque declarou a independência em 1992, sendo reconhecida enquanto tal por três outras repúblicas separatistas, elas próprias com deficiente reconhecimento internacional: as georgianas Abecásia e Ossétia do Sul e a moldava Transnístria, todas elas criadas a partir de declarações de secessão auspiciadas por Moscovo (consulte aqui informação sobre os símbolos nacionais deste “país”.)

Na ausência de um tratado de paz permanente, as tréguas são violadas regularmente. Sempre que as hostilidades se reacendem, dois grandes países entram em cena, em apoio de cada uma das partes: a Rússia ao lado da Arménia (ambas cristãs ortodoxas) e a muçulmana sunita Turquia em apoio do Azerbaijão xiita.

Em 1992, a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) — a mais abrangente das associações europeias, com 57 países — formou o Grupo de Minsk, para discutir uma solução para o problema. Presidido por França, Rússia e Estados Unidos, não são de esperar progressos enquanto durar a guerra da Ucrânia.

FAIXA DE GAZA

Prisão a céu aberto

Quem vive neste território palestiniano junto ao Mediterrâneo — conquistado por Israel na Guerra dos Seis Dias, em 1967, e devolvido à Autoridade Palestiniana em 2005 — não tem muito por onde fugir. Desde 2007 que as fronteiras da Faixa de Gaza, terrestres, aéreas e marítimas, são objeto de controlo absoluto por parte de Israel e do Egito.

Essa camisa de forças, em que vivem cerca de dois milhões de palestinianos, num retângulo de 40 quilómetros de comprimento por 12 de largura, foi a resposta de Israel a dois anos de grande agitação no território, que se explica em três datas:

  • a 22 de agosto de 2005, Israel retirou-se definitivamente de Gaza após desmantelar os colonatos judeus;
  • a 25 de janeiro de 2006, o movimento islamita Hamas venceu as eleições legislativas palestinianas (as últimas que se realizaram);
  • a 15 de junho de 2007, o Hamas tomou o poder em Gaza pela força.

A liderança bicéfala palestiniana — com a Autoridade Palestiniana a controlar a Cisjordânia e o Hamas na Faixa de Gaza — e a falta de diálogo entre ambos, a que acrescem gerontocracia e corrupção, contribuem mais para o problema do que para a solução.

Em paralelo, as frequentes incursões militares israelitas em Gaza condenam quem lá vive a um quotidiano de frustração, pobreza e violência. Nos últimos 15 anos, foram quatro de grande impacto (2008, 2012, 2014 e 2021).

No seu livro “The Ethnic Cleansing of Palestine” (A limpeza étnica da Palestina), o historiador israelita llan Pappé qualificou a “guetização” de Gaza de forma de “apartheid”. O termo é forte, remontando ao regime racista e segregacionista da África do Sul (1948-91), mas não parece mobilizar. A disputa em torno da Palestina é das mais antigas do mundo mas, não obstante, das que mais têm caído no caixote da indiferença e do esquecimento.

(INFOGRAFIAS JAIME FIGUEIREDO)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de fevereiro de 2023. Pode ser consultado aqui

Ruas bloqueadas no Kosovo, forças em prontidão na Sérvia: as razões de fundo da mais recente tensão numa relação turbulenta

Catorze anos após o Kosovo declarar unilateralmente a sua independência da Sérvia, a minoria sérvia do país continua a desafiar as autoridades de Pristina. O recurso a camiões para bloquear estradas do território, em protesto contra decisões das autoridades kosovares, mais não é do que uma forma de afirmação da soberania de Belgrado sobre partes do país

Mapa do Kosovo com as comunidades sérvias assinaladas a azul e as albanesas a amarelo, integrante do Acordo de Bruxelas de 2013, que foi o primeiro acordo de princípios relativo à normalização das relações entre a Sérvia e o Kosovo WIKIMEDIA COMMONS

Antes da invasão russa da Ucrânia, a última grande guerra na Europa foi travada no território da antiga Jugoslávia. O desmembramento deste Estado originou sete novos países, processos de independência sangrentos e feridas que não cicatrizam — a mais grave das quais chama-se Kosovo.

Esta antiga província sérvia de maioria albanesa (muçulmana) declarou a sua independência da Sérvia (cristã ortodoxa) de forma unilateral em 2008. Desde então, o reconhecimento internacional tem sido a grande prioridade da diplomacia kosovar.

O país já solicitou adesão à União Europeia (mas não é reconhecido pela totalidade dos 27 membros) e sonha com o estatuto de primus inter pares na comunidade internacional (mas ainda não faz parte das Nações Unidas).

Quanto à sua segurança, está dependente da presença militar internacional no território (como a KFOR, a missão da NATO que está no Kosovo desde 1999).

No terreno, o Kosovo é um território envolto em tensão permanente. Esta terça-feira, a temperatura subiu uns graus após populações da minoria sérvia do país erguerem novas barricadas nas ruas da região de Mitrovica (norte), numa ação de protesto que dura há semanas.

Horas antes, a Sérvia havia colocado exército e polícia em “completo estado de prontidão de combate”, temendo que as autoridades do Kosovo pudessem recorrer à força para retirar as barricadas e desobstruir as ruas que ligam as zonas sérvia e albanesa da cidade.

“Todas as medidas serão tomadas para proteção do povo sérvio no Kosovo”

Bratislav Gasic, ministro do Interior da Sérvia

O recurso a grandes camiões atravessados nas ruas e outras formas de barricadas é uma forma de protesto recorrente, em especial na parte norte do Kosovo, onde vive uma minoria de cerca de 50 mil sérvios.

Estes não reconhecem o Estado do Kosovo e declaram lealdade à Sérvia. No dia a dia, sentem-se motivados a cumprir as leis ditadas por Belgrado e rejeitam com orgulho as ordens que emanam de Pristina.

Distribuição das populações sérvias no Kosovo, em 1948 WIKIMEDIA COMMONS

A origem da atual tensão entre Sérvia e Kosovo reside num procedimento burocrático decidido, em agosto, pelo Governo do Kosovo que determinou que os carros dos sérvios kosovares passariam a ter matrículas com as letras RKS (uma sigla decorrente do nome do país: República do Kosovo).

Esta nova lei contraria a prática em vigor desde 1999, segundo a qual as viaturas da minoria sérvia circulam com placas licenciadas pela Sérvia, com acrónimos de cidades do Kosovo, como KM para residentes em Kosovska Mitrovica ou PR para moradores em Pristina.

Apesar de as considerar ilegais, o Kosovo tem-nas tolerado — até agora. No mês passado, autarcas sérvios de municípios do norte, juízes e centenas de polícias demitiram-se em protesto contra esta lei das matrículas.

“O Kosovo não pode dialogar com gangues criminosos e a liberdade de movimento deve ser restabelecida. Não deve haver barricadas em nenhuma estrada”, defendeu o Governo kosovar, num comunicado divulgado na segunda-feira.

O documento acrescenta que a polícia do Kosovo está em condições de remover as barricadas, aguardando apenas autorização da força de manutenção de paz da NATO no território (KFOR).

A pensar na neutralidade a que a KFOR está obrigada, a Sérvia, por seu lado, solicitou à NATO a deslocação de mais de 1000 efetivos para o norte do Kosovo para proteger os sérvios kosovares de eventuais situações de assédio por parte dos albaneses.

Para acentuar a tensão, tudo acontece numa época festiva e especialmente sagrada para os sérvios. Em jeito de prenúncio de uma possível escalada, na segunda-feira, o Kosovo recusou a entrada no país ao Patriarca Porfírio da Sérvia.

A dias de os sérvios (tal como os russos) celebrarem o seu Natal, a 7 de janeiro, o líder da Igreja Ortodoxa Sérvia tencionava levar aos sérvios kosovares uma mensagem de paz. No atual contexto, qualquer intenção de paz bem pode transformar-se num rastilho para a guerra.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de dezembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Kosovo assinou os papéis para entrar na UE, mas cinco dos 27 não o reconhecem como país independente

Quase 15 anos após a declaração unilateral de independência do Kosovo, cinco Estados-membros da União Europeia negam-se a reconhecer o mais jovem país do Velho Continente. A braços com pretensões separatistas a nível interno, Espanha, Grécia, Chipre, Eslováquia e Roménia querem evitar que o reconhecimento da soberania kosovar faça ricochete nos seus territórios

Mapa do Kosovo pintado com a bandeira da União Europeia WIKIMEDIA COMMONS

Dos sete países que se formaram após o desmembramento da antiga Jugoslávia, apenas um não tinha ainda solicitado adesão à União Europeia (UE). Eslovénia e Croácia já fazem parte da União, três outros têm estatuto de candidato (Sérvia, Macedónia do Norte e Montenegro) e a Bósnia-Herzegovina também já formalizou o pedido de adesão. Faltava o Kosovo.

Na semana passada, as autoridades de Pristina deram esse passo, numa cerimónia em Praga, capital da Chéquia, que este semestre preside ao Conselho da UE. “A UE é um destino a que almejamos e é o destino que abraçamos”, afirmou então o primeiro-ministro kosovar Albin Kurti. “Este é um dia histórico para o povo do Kosovo, e um grande dia para a democracia na Europa”, acrescentaria, numa mensagem na rede social Twitter.

Para se tornar elegível para a adesão à UE, o Kosovo terá de cumprir os Critérios de Copenhaga — metas políticas, económicas — e demonstrar capacidade para assumir as obrigações decorrentes do acervo comunitário. Mas não só.

Quase 15 anos após ter declarado unilateralmente a independência em relação à Sérvia (de maioria cristã ortodoxa), o Kosovo (de maioria muçulmana) ainda não é reconhecido por cinco Estados-membros da UE: Espanha, Grécia, Chipre, Eslováquia e Roménia.

Essa resistência deve-se não tanto aos contornos da questão kosovar em si, mas a razões de política interna. “Os cinco têm problemas internos com minorias nacionais ou nacionalidades com potencial secessionista”, explica ao Expresso o professor Pascoal Pereira, da Universidade Portucalense.

“Reconhecendo a independência do Kosovo, estariam a relativizar a interpretação do princípio da integridade territorial, um princípio do direito internacional estruturador do sistema internacional e da relativa estabilidade das fronteiras internacionais. O Kosovo, ao declarar a sua independência, compromete a integridade territorial da Sérvia (o Estado ‘de origem’), que se recusa a reconhecer essa secessão, por considerar precisamente que seria uma violação da sua integridade territorial”, acrescenta.

Para a Sérvia, o Kosovo é, como sempre foi, província sua. Mas que argumentos usam os cinco membros da UE para não estabelecerem relações diplomáticas, de igual para igual, com o Kosovo?

ESPANHA
Um precedente chamado Catalunha

Se há tema que, nos últimos anos, colocou Espanha nas notícias em todo o mundo foi o esforço separatista de parte da região autonómica da Catalunha. O diferendo entre Madrid e Barcelona atingiu o pico a 1 de outubro de 2017 quando o governo regional catalão (Generalitat) realizou um referendo — ilegal face à Constituição espanhola — com vista à proclamação da República da Catalunha. Os implicados no 1-O, como ficou conhecido o referendo, foram condenados a pesadas penas de prisão e inabilitação política.

“Se Espanha reconhecesse a independência do Kosovo — relativizando o princípio da integridade territorial —, estaria a dar argumentos legais e políticos aos movimentos separatistas internos (Catalunha, País Basco) para reivindicarem a independência dos seus territórios, pelo precedente criado por esse reconhecimento”, explica Pascoal Pereira.

Num desenvolvimento recente, o Governo de Pedro Sánchez promoveu uma revisão do enquadramento legal do delito de sedição no Código Penal, ao abrigo do qual o Tribunal Supremo condenou os organizadores do 1-O. Esta alteração, que vai ao encontro das exigências independentistas catalãs, é vista como cedência de Madrid, visando um apoio estável da Esquerda Republicana da Catalunha — que ocupa 13 assentos no Congresso dos Deputados (câmara baixa do Parlamento espanhol) —, o que permitirá a Sánchez enfrentar com alguma confiança as legislativas previstas para finais de 2023. A oposição teme pelo Estado de Direito.

CHIPRE
A culpa é da Turquia

A objeção ao reconhecimento da independência do Kosovo por parte da República de Chipre — os dois terços de território no sul da ilha cipriota, etnicamente grega — decorre da ocupação do terço norte por parte da Turquia (que aí reconheceu a República Turca de Chipre do Norte).

“Reconhecer o Kosovo seria um reconhecimento implícito da relativização do princípio da integridade territorial, fragilizando a sua posição em relação à sua região separatista”, explica o professor da Universidade Portucalense. À semelhança de Espanha, Chipre admite alterar a sua posição se o Kosovo chegar a um acordo formal com a Sérvia, o que, atendendo aos últimos desenvolvimentos, parece longe de acontecer.

Presentemente, Pristina e Belgrado travam um braço de ferro relativo às matrículas dos carros da comunidade sérvia kosovar. Esta recusa-se a alterar as placas para a sigla RKS (República do Kosovo), como exigem as autoridades do Kosovo, e quer manter os códigos que já vêm desde 1999, o que lhes possibilita circular com placas licenciadas pela Sérvia, com acrónimos de cidades do Kosovo, como, por exemplo, PR para Pristina.

GRÉCIA
Solidária com o Chipre grego

A posição da Grécia sobre o estatuto político do Kosovo decorre da questão de Chipre — a divisão desta ilha mediterrânica entre um país (reconhecido internacionalmente) de maioria grega e outro (só reconhecido pela Turquia) de maioria turca. A Grécia é uma sólida aliada do Chipre grego e, como este, exige a retirada militar da Turquia do norte da ilha.

Paralelamente, Grécia e Chipre têm grande proximidade com a Sérvia, já que os três países têm populações maioritariamente cristãs ortodoxas.

A relação entre Grécia e Kosovo não é, porém, inexistente. Atenas tem um Gabinete de Ligação aberto em Pristina, uma espécie de embaixada não oficial que viabiliza contactos entre as partes. É, a este nível, um exemplo diferenciador para outros países que não reconhecem o Kosovo, designadamente Espanha.

ESLOVÁQUIA
O impacto na minoria húngara

A posição oficial da Eslováquia em relação ao reconhecimento do Kosovo é fortemente condicionada pela existência, no país, de uma minoria húngara e por receios secessionistas manifestados ao longo da história.

“Nos casos específicos da Eslováquia e da Roménia, também se coloca a questão do precedente político”, explica Pascoal Pereira. “Um reconhecimento da independência do Kosovo conferiria argumentos a movimentos separatistas das minorias húngaras que residem nos dois territórios.”

As raízes da posição eslovaca remontam à desintegração do Império Austro-Húngaro, após a Grande Guerra de 1914-18. Pela primeira vez, a Eslováquia surgiu no mapa político com território, englobando regiões étnicas, no sul, na fronteira com a Hungria.

Quatro décadas de domínio comunista estabilizaram essa fronteira, mas as sensibilidades não morreram e reanimaram-se após a queda do muro de Berlim quando, na Hungria, alguns partidos políticos começaram a exigir a reunificação das populações húngaras da Bacia dos Cárpatos.

“O reconhecimento do separatismo étnico-nacional (que está na base da independência do Kosovo) enfraqueceria a defesa do princípio da integridade territorial que, legalmente até agora, tem protegido a Roménia e a Eslováquia contra ambições territoriais (reais e/ou apenas retóricas) por parte da Hungria”, alerta o académico.

À semelhança dos gregos, os eslovacos mantêm presença política oficial em Pristina, reveladora da vontade de uma relação diferente. Simbolicamente, um ex-ministro dos Negócios Estrangeiros eslovaco, Miroslav Lajcak, é o atual representante especial da UE para o Diálogo Belgrado-Pristina e outros assuntos regionais dos Balcãs Ocidentais. O seu mandato inclui a normalização da relação entre a Sérvia e o Kosovo.

ROMÉNIA
As garras da Hungria

A Roménia partilha os receios eslovacos quanto à sua própria minoria húngara, que reivindica a autonomia de uma área no leste da Transilvânia. Ao rejeitar o reconhecimento de direitos coletivos de minorias nacionais, receando o precedente que isso poderia significar no seu território e em países vizinhos como a Moldávia — esta a braços com separatismo na região pró-russa da Transnístria —, Bucareste não pode ter outra posição que não rejeitar a independência unilateral do Kosovo.

Apesar desta linha geral, a Roménia tem sido pragmática ao contribuir para missões internacionais no Kosovo, nomeadamente a Força do Kosovo (KFOR, liderada pela NATO), a Missão da UE para o Estado de Direito no Kosovo (EULEX) e a Missão de Administração Interina das Nações Unidas no Kosovo (UNMIK).

“As relações de Roménia e Eslováquia são tradicionalmente tensas com as suas minorias húngaras, algo que é agravado ainda pela persistência de um discurso revisionista húngaro em relação ao Tratado de Trianon (1920), assinado após a I Guerra Mundial. Ao abrigo dele, a Hungria perdeu parte significativa do seu território, incluindo as atuais Eslováquia e Transilvânia (na Roménia, onde reside essa população húngara)”, explica o docente.

“Esse discurso nacionalista tem sido alimentado por sectores políticos húngaros ao longo dos anos, destacando-se o primeiro-ministro Viktor Orbán. Mais de uma vez proclamou-se defensor dos interesses dessas minorias, alimentando a retórica revisionista que, em última análise, contesta o statu quo fronteiriço de toda a região.”

Para aderir à UE o Kosovo necessita do “sim” de todos os 27 Estados-membros: 22 estão garantidos, faltam cinco, mais problemáticos.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 21 de dezembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Esta quinta-feira há reunião em Bruxelas, mas a tensão segue dentro de momentos

Os líderes da Sérvia e do Kosovo reúnem-se, esta quinta-feira, em Bruxelas. O encontro acontece três semanas após medidas decretadas pelo Governo de Pristina terem sido mal recebidas pela minoria sérvia do território, levando-a a bloquear estradas e colocando a missão da NATO em alerta. A tensão pode repetir-se no final do mês, se a conversa entre Aleksandar Vucic e Albin Kurti se transformar num diálogo de surdos

O Kosovo é uma ferida aberta na Europa que ameaça não cicatrizar. Esta quinta-feira, as principais partes em contenda terão uma nova oportunidade para suturar alguns golpes recentes, num encontro ao mais alto nível, entre o Presidente da Sérvia, Aleksandar Vucic, e o primeiro-ministro do Kosovo, Albin Kurti, que decorrerá em Bruxelas.

Este diálogo segue-se a uma recente escalada da tensão entre Belgrado e Pristina que levou a minoria sérvia do Kosovo — um território de maioria albanesa — a atravessar camiões nas ruas e a bloquear pontos de passagem na fronteira entre a Sérvia e o Kosovo. Estas barricadas ergueram-se em protesto contra duas medidas que o Governo de Pristina queria aplicar à minoria sérvia.

A tensão esfumou-se momentaneamente, após as autoridades kosovares aceitarem adiar um mês a entrada em vigor das novas regras, reagendada para 1 de setembro. A cedência foi tornada pública após interferência de Jeffrey Hovenier, o embaixador norte-americano no país.

Os Estados Unidos, que têm sido um parceiro do Kosovo desde a primeira hora, foram dos primeiros países a reconhecer a independência do território — até então uma província da Sérvia de maioria albanesa —, declarada de forma unilateral a 17 de fevereiro de 2008.

Se as autoridades do Kosovo insistirem na aplicação das medidas, “provavelmente, volta a acontecer o mesmo. Esta tensão é recorrente, não foi a primeira vez que aconteceu”, diz ao Expresso o major-general Raul Cunha, que esteve em missão no Kosovo por duas vezes (em 2000 com a NATO e de 2005 a 2009, com a ONU). “Quando as Nações Unidas foram para o Kosovo, tiveram de substituir as placas de matrícula das suas viaturas. Mas os sérvios, sobretudo da região norte, recusaram sempre fazê-lo.”

Os resistentes do norte

No centro da mais recente revolta dos sérvios kosovares — que se estima correspondam a 5% da população total de 1,8 milhões —, estão dois novos regulamentos. Um deles obrigava os cidadãos sérvios que entrassem no Kosovo, por via terrestre ou aérea, a terem de andar com um documento de identificação emitido pelas autoridades de Pristina, em substituição do comprovativo passado por Belgrado. Esta seria uma medida de reciprocidade já que é o que acontece com os kosovares que visitam a Sérvia.

A outra nova lei decretava a obrigatoriedade dos carros dos sérvios kosovares passarem a ter matrículas com as letras RKS. Desde 1999 que as viaturas desta minoria circulam com placas licenciadas pela Sérvia, com acrónimos de cidades do Kosovo, como KM para residentes em Kosovska Mitrovica ou PR para moradores em Pristina. Apesar de as considerar ilegais, o Kosovo tem-nas tolerado nos quatro municípios do norte onde vive parte importante da minoria sérvia.

“As autoridades do Kosovo têm soberania nominal sobre a totalidade do território, no que são militarmente apoiadas pelas forças da KFOR/NATO”, explica ao Expresso Pascoal Pereira, professor na Universidade Portucalense. “Contudo, existe uma minoria sérvia, especialmente concentrada nas zonas à volta de Mitrovica (norte), que resiste em reconhecer as autoridades de Pristina e que é informalmente apoiada por Belgrado.”

Não foi a primeira vez que os sérvios kosovares bateram o pé nas ruas a novas propostas legislativas. “Tivemos uma situação semelhante em setembro de 2021. As barricadas duraram quase duas semanas. Seguiu-se um acordo de desescalada que falhou”, recorda ao Expresso Milica Andrić-Rakić, analista na ONG New Social Initiative, com sede em Mitrovica. “Um destes regulamentos foi aplicado duas vezes no passado sem quaisquer tensões. Uma terceira tentativa de aplicar a mesma coisa sem um acordo resultará no mesmo cenário. Mas sinto que a pressão da comunidade internacional para que ambos os lados negoceiem é agora maior.”

As medidas da polémica têm caráter burocrático, mas mexem com o nacionalismo das comunidades a que se destinam. Catorze anos após a separação do Kosovo em relação à Sérvia, está amplamente demonstrado que o sentimento de pertença não se impõe por decreto.

Milica Andrić-Rakić é sérvia kosovar e não hesita quando o Expresso lhe pergunta se se sente mais sérvia ou kosovar. “Eu não desenvolvi uma identidade cívica kosovar. Isso é algo bastante difícil para mim porque a minha comunidade tem tido graves problemas com diferentes Governos do Kosovo”, admite.

“Este tipo de tensões são comuns. Já aconteceram com governos anteriores e relativamente a diferentes questões. Mas tornaram-se mais frequentes com o [atual] Governo de Albin Kurti, que adotou uma abordagem mais rígida no que diz respeito àquilo que deseja negociar com a Sérvia.” Tido como um político da linha radical, Kurti foi em tempos designado de “Che Guevara do Kosovo”.

A falta de identificação da comunidade sérvia é apenas uma parte da complexidade desta questão. No livro “Kosovo, a Incoerência de uma Independência Inédita” (Edições Colibri, 2019), Raul Cunha vai às origens da relação umbilical entre o povo sérvio e o Kosovo: “O território do Kosovo foi o berço do Estado Medieval Sérvio. Esta região é considerada pelos sérvios como sendo a terra de origem da sua nacionalidade (o Kosovo e Metohija). (…) Na altura da formação do denominado Estado Medieval Sérvio, o território foi povoado na sua quase totalidade por uma população cristã ortodoxa. Torna-se natural assinalar o Kosovo como um território sérvio através da simples análise dos seus topónimos — todas as localidades têm nomes sérvios, inclusive a palavra Kosovo que provém da palavra sérvia kos, que significa melro ou pássaro negro”.

Ao Expresso, o militar destaca ainda a dimensão religiosa do problema, recordando que “a sede do patriarcado da igreja sérvia é em Peć, no Kosovo”, cuja população é esmagadoramente muçulmana. “Para mim, não faz sentido haver dois territórios com o mesmo povo, a mesma língua, mas que correspondem a países diferentes: o Kosovo e a Albânia. O Kosovo faz sentido como parte da Albânia”, diz Raul Cunha, admitindo a necessidade de haver uma divisão do território para contentar (e acalmar) as populações que não aceitem essa integração.

Um protetorado da ONU e da NATO

Hoje, o Kosovo goza de um estatuto invulgar face ao direito internacional. Dezenas de países reconhecem-no como um Estado soberano, mas dezenas de outros — com a Sérvia à cabeça — insistem que a resolução 1244 do Conselho de Segurança da ONU ainda está em vigor e que é esse o quadro legal que vincula as partes. “Teoricamente, pelo direito internacional, o Kosovo ainda é um território sob administração das Nações Unidas”, explica Raul Cunha.

Aprovada em 1999, na sequência de 78 dias de bombardeamentos aéreos da NATO à Jugoslávia, em socorro da população albanesa do Kosovo reprimida pelo regime de Slobodan Milosevic — de que era porta-voz o atual Presidente sérvio, Aleksandar Vucic —, esta resolução estabeleceu as condições para que o Kosovo se tornasse de facto num protetorado da ONU. O território foi colocado sob administração da Missão de Administração Interina das Nações Unidas no Kosovo (UNMIK, ainda hoje em funções), com o objetivo de assegurar a administração civil. No terreno, era apoiada por uma missão da NATO (KFOR), que tinha a incumbência de garantir um ambiente seguro no território.

Esta solução seria transitória, até que as partes acordassem um estatuto final para o Kosovo, que ainda não aconteceu. Aos 14 anos de vida, a paz continua frágil e o país — reconhecido por Portugal — parece continuar necessitado dessas âncoras internacionais. Aquando da recente tensão, a KFOR — que tem atualmente 3770 tropas no terreno — emitiu um comunicado reconhecendo a gravidade da situação e afirmando-se preparada para intervir “se a estabilidade estiver comprometida”.

Uma questão coloca-se, pois, com legitimidade: estará a estabilidade do Kosovo refém da presença militar internacional? “Sim”, responde Raul Cunha. “A estabilidade do Kosovo depende sempre da decisão da NATO em continuar a defendê-lo. O Kosovo não teria qualquer hipótese contra as forças sérvias. Penso que a presença militar da NATO no território sentencia uma solução militar por parte da Sérvia. Seria um passeio para os sérvios.”

(IMAGEM Bandeiras da Sérvia e do Kosovo EURACTIV)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 18 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui