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Um aparente e implausível caso de sucesso no combate à covid-19

Na região meridional do continente africano, o Lesoto ainda não comunicou qualquer infeção pelo novo coronavírus. Uma responsável das Nações Unidas explica ao Expresso o que pode estar na origem deste estranho registo limpo num dos países mais pobres do mundo

Bandeira do Lesoto, sobre o mapa do país FREE*SVG

Em todo o mundo, são já poucos os países sem casos de covid-19 confirmados. Cerca de dez são ilhas no Oceano Pacífico — como Tuvalu, Samoa ou Kiribati — e dois são estados com regimes autoritários, como a Coreia do Norte e também o Turquemenistão, onde os cidadãos estão proibidos de usar máscara e de falar sobre a pandemia, sob pena de serem detidos.

Mas se em todos estes países a inexistência de covid-19 pode ser fácil de justificar — uns pela sua insularidade longínqua, outros pela falta de credibilidade das suas estatísticas —, há outro país oficialmente limpo mais difícil de compreender: o Lesoto.

Tanto os números oficiais da Organização Mundial de Saúde como a base de dados da Universidade Johns Hopkins (de Baltimore, Estados Unidos) — uma das mais credíveis em matéria de atualização da evolução desta pandemia — não atribuem a este país africano qualquer caso positivo.

“É muito difícil acreditar que não haja casos no Lesoto, uma vez que o país está completamente rodeado pela África do Sul, onde há milhares de casos confirmados”, diz ao Expresso Kathleen McCarthy, representante do Programa Alimentar Mundial (PAM) das Nações Unidas no Lesoto. Com pouco mais de 10 mil casos, a África do Sul é mesmo o país africano mais afetado pela covid-19 até à data.

“As fronteiras com a África do Sul são conhecidas por serem muito porosas e é um facto bem conhecido que há pessoas que a atravessam ilegalmente e entram no país sem ficarem de quarentena ou sem serem testadas”, acrescenta.

A limitada capacidade do Lesoto ao nível do sector da saúde faz com que este pequeno reino esteja totalmente dependente do país vizinho para analisar os testes à covid-19 em laboratório, por exemplo. “Até ao momento, o país apenas enviou umas 30 amostras para a África do Sul para serem sujeitas a testes, e todas terão dado negativo”, acrescenta Kathleen McCarthy.

Duas emergências simultâneas

Com um território que é um terço do português, o Lesoto tem 2,2 milhões de habitantes, 57% dos quais, segundo as Nações Unidas, vivem abaixo do limiar de pobreza.

“No PAM estamos particularmente preocupados com as consequências humanitárias que a covid-19 já está a ter num dos países mais pobres do mundo”, alerta a responsável da ONU. “O Lesoto tem a segunda taxa mais alta de HIV do mundo [o primeiro é a Suazilândia] e está agora a lidar com duas emergências nacionais” — uma que resulta do novo coronavírus e a outra declarada em outubro de 2019, decorrente de uma seca muito grave.

A 6 de maio passado, as autoridades do Lesoto puseram fim a cinco semanas de confinamento no país. “Os impactos socioeconómicos da covid-19 são devastadores e estima-se que o número de pessoas em situação de insegurança alimentar aumente de cerca de 500 mil para perto de 900 mil até setembro deste ano”, projeta Kathleen McCarthy. É o receio de que à pandemia da covid-19 se siga uma pandemia da fome.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 12 de maio de 2020. Pode ser consultado aqui