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“Não podemos ter mais um Estado falhado naquela região”

O Líbano está em diálogo com o Fundo Monetário Internacional para elaborar um plano que resgate o país daquela que é considerada uma das crises económicas mais graves dos últimos 150 anos, em todo o mundo. A União Europeia está disposta a ajudar, mas não a qualquer preço. Ao Expresso, a eurodeputada Isabel Santos, regressada de uma visita ao país, traça linhas vermelhas que os 27 não querem ver ultrapassadas para continuar a ajudar o Líbano

Os números não deixam margem para dúvidas. A União Europeia (UE) tem sido uma parceira de todas as horas do Líbano, muito em especial nos maus momentos. Nos últimos 10 anos, a UE desembolsou mais de 1500 milhões de euros para ajudar o Líbano em contextos não humanitários e em situações de emergência, como o acolhimento de refugiados, a pandemia de covid-19 ou a grande explosão no porto de Beirute, a 4 de agosto de 2020, considerada um dos maiores rebentamentos não nucleares da História.

Todo este apoio económico não estancou, porém, a vertiginosa queda do Líbano no abismo de uma crise tal que levou o Banco Mundial, no início de junho, a posicionar a situação libanesa “possivelmente no top-3 das crises mais graves em todo o mundo desde meados do século XIX”.

Esta crise, bem como alguns aspetos políticos que estão na sua origem, está a forçar a uma redefinição da relação entre o Líbano e a União Europeia — que têm um Acordo de Associação em vigor desde 2006.

“A UE não pode continuar a apoiar sem que se encontre um plano de recuperação para o país”, afirmou ao Expresso a eurodeputada Isabel Santos, acabada de regressar de uma visita de dois dias ao Líbano, onde chefiou uma delegação do Parlamento Europeu. “É importante que se chegue a acordo com o Fundo Monetário Internacional [FMI] e que, com base nesse apoio, a UE também possa participar.”

“Os atores políticos libaneses têm de entender, de uma vez por todas, que não há mais espaço para falhanços. Tem de haver um compromisso muito sério de todos na reconstrução do país. Não podemos estar sempre à espera de que haja algo ou alguém que nos salve. A solução para o Líbano tem de vir de dentro.”

O Líbano está, há cerca de um mês, em conversações com o FMI na busca de um plano de resgate para o país. No início desta semana, o primeiro-ministro libanês, o empresário milionário Najib Mikati, assegurou que as negociações preliminares estão a avançar. “Não sei qual vai ser o acordo, mas parece-me claro que o FMI exigirá transparência, regras de boa governação e de combate à corrupção”, comentou a eurodeputada do PS.

“Claro que a ajuda humanitária continua a ser disponibilizada através de organizações no terreno, que fazem chegar esse apoio às pessoas necessitadas”, continuou Isabel Santos. “Mas há todo um processo de assistência macrofinanceira que só pode ser desenvolvido depois desse acordo com o FMI.”

Salário de $3000 passou a valer $200

Em especial nos últimos dois anos, a crise irrompeu de forma impiedosa pelas casas dos libaneses. “A maioria da população só tem acesso a eletricidade duas horas por dia”, exemplificou Isabel Santos. “A libra libanesa desvalorizou 90%”, o que atirou “74% da população para uma situação de pobreza”.

“E este é um país que acolhe 1,5 milhões de refugiados… Garantir condições mínimas para estas pessoas também pesa na sociedade libanesa. Algumas delas já estão no país há 60 anos, como os refugiados palestinianos”, acrescenta a eurodeputada.

Uma reportagem publicada esta semana pela agência Reuters ilustra de forma particular a dramática perda do poder de compra no país. Os salários dos cerca de 100 músicos da Orquestra Sinfónica Nacional passaram de 3000 dólares para cerca de 200. Os instrumentistas estrangeiros foram embora, mas, escreve a Reuters no título do artigo, “como no Titanic, a orquestra do Líbano continua a tocar enquanto o país afunda”.

“É dramático vermos um país que foi considerado a Suíça do Médio Oriente num estado absolutamente deplorável”, comentou Isabel Santos.

Um sistema que só bloqueia

Em pano de fundo desta esta crise, há um estado de ingovernabilidade permanente que decorre da especificidade do sistema político. “Se houve algo comum nas conversas que a delegação do Parlamento Europeu teve com os diversos atores é que este sistema assente no modelo confessional não funciona e cria constantes bloqueios ao funcionamento do país”, disse a deputada.

“É preciso que se encontre a fórmula para uma reforma de todo o sistema e que se abandone, de uma vez por todas, um sistema baseado em quotas que tem por base a confessionalidade de diferentes grupos presentes na sociedade.”

Esse apelo foi repetido por representantes da sociedade civil, mas também por membros da classe política. “Mas há que colocar uma grande questão: se a classe política expressa essa vontade, porque não empreende as reformas?”, questiona Isabel Santos.

“Há uma classe política que está instalada, que faz um discurso que sabe que vai ao encontro daquilo que é a opinião da sociedade civil, no sentido de que é preciso mudar, mas que não se mexe para mudar. É uma classe política instalada num esquema muito próprio de equilíbrios que tem por base a pertença a grupos religiosos. E todos ganham com isso.”

Grupos confessionais

  • Oficialmente, a lei libanesa reconhece 18 grupos religiosos.
  • O poder político é distribuído de forma proporcional pelas várias comunidades, consoante o seu peso demográfico.
  • O Presidente libanês é sempre um cristão maronita, o primeiro-ministro um sunita e o presidente do Parlamento um xiita.
  • As 18 confissões reconhecidas são: xiitas, sunitas, alauitas, ismaelitas, maronitas, ortodoxos gregos, católicos gregos, ortodoxos arménios, católicos arménios, ortodoxos siríacos, católicos siríacos, assírios nestorianos, caldeus, coptas, católicos romanos, protestantes, drusos e judeus.

“É um sistema que só bloqueia”, comenta a eurodeputada portuguesa. “Quando se fala na necessidade de substituir um ministro que faz parte de determinada fação religiosa, logo essa fação proclama a saída de outro ministro de outro grupo político. Isto não é aceitável. As pessoas têm de governar por competência e não por pertença a um ou outro grupo identitário.”

Na prática, esta complexa teia político-religiosa contribui, muitas vezes, para períodos de paralisia. As últimas eleições gerais, por exemplo, realizadas a 6 de maio de 2018, estavam originalmente marcadas para… 2013 (foram adiadas em 2013, 2014 e 2017). As próximas eleições deverão realizar-se a 27 de março de 2022.

O Governo atual, em funções desde 10 de setembro, surgiu após um impasse político de 13 meses. Mas tinha apenas um mês de vida quando foi desafiado por poderosos interesses sectários. A meio de outubro, em Beirute, uma manifestação convocada pelos movimentos xiitas Hezbollah e Amal originou tiroteios de que resultaram seis mortos — e o receio do regresso à guerra civil (1975-1990).

O protesto teve como objetivo exigir o afastamento do juiz Tarek Bitar, que lidera a investigação à explosão no porto da capital libanesa — provocada pelo armazenamento, sem condições de segurança, de 2750 toneladas de nitrato de amónio, que provocou 214 mortos, mais de 6500 feridos e a destruição de vários bairros da cidade. O magistrado quer interrogar políticos de todos os quadrantes, o que se tem revelado desafiante.

Protestos deste tipo indiciam uma tentativa de boicote à investigação, para que não avance, “ou pelo menos não avance num certo sentido”, afirmou Isabel Santos ao Expresso.

“Há políticos que se negam a comparecer diante do juiz e a prestar declarações, o que não é de todo aceitável. Ninguém está acima da lei e a impunidade não pode ser lei em lado nenhum”, acrescentou. “Os acontecimentos em torno da investigação à explosão têm sinais muito preocupantes de ingerência no poder judicial, o que não pode ser de todo aceite pela UE. A justiça não pode ser condicionada no seu funcionamento. Essa é uma linha vermelha que não pode ser ultrapassada.”

O poder das milícias

Insanáveis diferenças identitárias aliadas à degradação económica contribuem para um quotidiano altamente explosivo. “As forças de segurança vivem numa situação muito má, estão com restrições nos vencimentos, com condições de vida absolutamente precárias. Tudo isto acrescenta muita preocupação”, desde logo em relação à segurança do país, disse Isabel Santos. “O Líbano não pode ficar na mão de milícias, sejam elas de que grupo forem.”

Em Beirute, a delegação da UE encontrou-se com o Presidente Michel Aoun, com o presidente do Parlamento, com o vice-primeiro-ministro (que tutela a negociação com o FMI) e com o ministro da Administração Interna (que tem a seu cargo as questões de segurança e a gestão do processo eleitoral).

Os quatro eurodeputados reuniram-se com membros da sociedade civil, que expressaram “um grau enorme de desconfiança em relação a todo o sistema político”, e familiares das vítimas da explosão no porto. “Foi um encontro muito marcante, pela carga emocional que comporta e pelo sentimento de injustiça que estas pessoas trazem dentro de si, e que ultrapassa a explosão e a perda dos seus familiares”, concluiu Isabel Santos.

“O sucedido no porto de Beirute é só o acontecimento mais visível do acumular de muitas coisas num Estado canibalizado pela corrupção, pela impunidade, pela desordem total. É preciso encontrar uma saída. Não podemos ter mais um Estado falhado naquela região.”

(FOTO A missão do Parlamento Europeu, na companhia do Presidente libanês, Michel Aoun (ao centro), no Palácio Baabda, em Beirute. Isabel Santos está de vestido GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 12 de novembro de 2021. Pode ser consultado aqui

Um mês depois das explosões no porto, Beirute reergue-se “com muita dor”

Uma portuguesa que ficou ferida e desalojada descreve ao Expresso como recupera a capital libanesa. “Eu e muita gente estamos um bocado sem poiso, dormimos numa casa, depois vamos a outra, andamos sempre de um lado para o outro porque ainda há muito por reconstruir”

Um mês após a grande explosão no porto de Beirute, a capital do Líbano está transformada num enorme estaleiro. Ao som dos vidros partidos, característico dos dias que se seguiram ao rebentamento, que não deixou janela intacta na cidade, sucede-se o barulho das máquinas de construção.

“Neste momento há muito barulho na cidade, por causa das obras”, descreve ao Expresso Marta Abrantes Mendes, portuguesa de 41 anos que ficou ferida na explosão. “Quanto mais perto do porto, mais estruturais são as obras. Na zona onde estou agora, os estragos são sobretudo ao nível de portas e janelas.”

A casa onde Marta vivia, no bairro de Ashrafiyah, ficou inabitável. Nos dias seguintes à explosão, com ferimentos no corpo, foi acolhida por um casal amigo, na zona de Hamra. Há quase três semanas, mudou-se para casa de outra amiga, que também sofreu estragos.

“A minha amiga decidiu viajar. Estou em regime de house-sitting, a abrir a porta, a acompanhar as obras, a trazer flores, a dar um jeitinho à casa”, diz. “Eu e muita gente estamos sem poiso, dormimos numa casa, depois vamos a outra, andamos sempre de um lado para o outro porque ainda há muito por reconstruir.” Estima-se que 300 mil pessoas tenham ficado desalojadas por causa da explosão de 4 de agosto.

Um grande nível de destruição

Com a vida de muitos habitantes virada do avesso, aos poucos, Beirute reergue-se. “Com muita dor”, acrescenta Marta. “Nos dias seguintes à explosão, houve uma mobilização enorme da sociedade civil, muitos voluntários, as pessoas uniram-se muito, sobretudo jovens, que se dirigiram às zonas mais afetadas e ajudaram na recolha do lixo, dos detritos.”

“Isso é fantástico”, continua, “mas, por outro lado, expôs as pessoas a um grande nível de destruição. Estes jovens já nasceram depois da guerra civil, ou têm pouca memória dela. Em muitas destas zonas havia restos mortais. Foi uma constatação muito dura da realidade.”

A 24 de agosto, no Twitter, a jornalista Rania Abouzeid, que vive em Beirute, denunciou um entrave à tarefa da reconstrução e, implicitamente, do funcionamento do país. “A arquidiocese maronita de Beirute está a substituir janelas de graça — mas apenas para maronitas em áreas afetadas pela explosão, e outros grupos religiosos estão a fazer a mesma coisa. E então as pessoas que simplesmente se identificam como libaneses e rejeitam rótulos sectários? Temos de pagar. O Líbano não é um país para laicos.”

Marta diz não ter reparado neste tipo de ajuda sectária. “Para ser honesta não. É óbvio que vai sempre haver a história da ajuda que é canalizada por um cristão para outro cristão. Mas acho que houve muitos mais exemplos de uma solidariedade que aconteceu com base no sofrimento da pessoa e não com base religiosa. Vi de tudo, estrangeiros, emigrantes, refugiados, toda a gente a ajudar. Até as senhoras da Etiópia…”

As mulheres a que se refere são centenas de etíopes que emigraram para o Líbano para trabalharem como empregadas domésticas e que, neste contexto de crise e pandemia, foram abandonadas pelos seus empregadores e ficaram sem meios para regressarem ao seu país de origem. Um drama paralelo a muitos que o Líbano enfrenta.

Esta sexta-feira, num artigo de balanço sobre um mês após a tragédia, o jornal libanês “L’Orient-Le Jour” escreve: “Um mês após o cataclismo, reina o caos na gestão da ajuda. Muitos moradores e comerciantes da capital estão a lutar para fazerem reparações e lamentam a ausência do Estado no local”.

Fortemente pressionadas, pelas ruas e por parceiros internacionais para realizarem reformas e se credibilizarem, dentro e fora de portas, as autoridades libanesas nomearam, segunda-feira, um novo primeiro-ministro. Mustapha Adib, de 48 anos, era até agora embaixador libanês na Alemanha. No próprio dia em que assumiu o cargo, visitou a zona de Gemmayzeh, fortemente devastada pela explosão.

“A situação política é o assunto mais explosivo — enfim, a comparação é má, mas é verdade —, é o mais preocupante”, diz a portuguesa, natural da Costa de Caparica. Licenciada em Relações Internacionais, já trabalhou durante anos para o Comité Internacional da Cruz Vermelha.

“Neste momento, preocupam-me muito mais as tensões internas e a falta de gestão delas. A situação pode derrapar muito rapidamente, não diria para uma guerra civil, mas uma guerra civil também não acontece de um momento para o outro, um fator leva ao outro e assim sucessivamente. Já vivi na Síria, onde toda a gente viu isso acontecer.” No rosto dos locais, a portuguesa diz sentir nervosismo.

Que alternativa ao sistema confessional?

O sistema confessional que tem governado o Líbano desde 1943, assente numa divisão do poder por confissões religiosas segundo um critério de representatividade demográfica, está sob fogo. “Qual é a alternativa?”, questiona-se Marta. “Não há resposta para esta questão. As pessoas querem um fim, mas a alternativa não foi ainda articulada. Faltam debates e discussões para averiguar que outras possibilidades existem.”

Marta foi um dos quase 6000 feridos das explosões — morreram pelo menos 191 pessoas. “Os meus ferimentos estão praticamente todos sarados, já não preciso de ir ao hospital. Fui sempre muito bem atendida, acho que houve uma espécie de pudor em relação aos feridos estrangeiros, foram extra delicados”, recorda. “Fico com algumas cicatrizes, mas isso é o menos.”

(FOTO Destruição provocada pela explosão no porto de Beirute MEHDI SHOJAEIAN / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 4 de setembro de 2020. Pode ser consultado aqui

No Líbano, o sectarismo político também entra nos campos de futebol

Num país pequeno e tão fragmentado em termos religiosos como é o Líbano, o futebol não escapa à rivalidade entre fações. Nos últimos anos, o clube dominante é apoiado pela comunidade xiita e pelo Hezbollah

Futebol de rua em Beirute por entre a destruição causada pelas explosões no porto, que devastaram parte da capital do Líbano, a 4 de agosto AFP / GETTY IMAGES

Num dos raros textos que dedicou ao desporto, George Orwell não foi brando nas palavras. “O desporto à séria não tem nada que ver com jogo limpo. Está ligado ao ódio, ao ciúme, à arrogância, ao desrespeito por todas as regras e ao prazer sádico de testemunhar a violência: por outras palavras, é a guerra sem o tiroteio”, escreveu o escritor inglês num artigo intitulado “O espírito desportivo”.

Publicado no semanário “Tribune” em dezembro de 1945, o texto foi escrito na sequência de uma digressão a Inglaterra da equipa de futebol do Dínamo de Moscovo. A Segunda Guerra Mundial terminara, havia feridas abertas e amizades por consolidar. Dentro das quatro linhas, o périplo saldou-se por ‘um passeio’ dos soviéticos, que saíram invictos da ‘pátria do futebol’. “Se uma visita como esta teve algum efeito nas relações anglo-soviéticas, só pode ter sido torná-las um pouco piores do que já eram”, concluiu Orwell.

Num artigo de 2011, Danyel Reiche, estudioso do desporto em contexto político, recuperou a tese de Orwell para descrever o panorama desportivo libanês. “Os clubes desportivos profissionais desempenham um papel único no sistema sectário libanês. Não há outro sector com tanta competição, não só dentro das fações, como acontece na política, mas também entre fações. Não há outro campo com tanto confronto direto entre os diferentes grupos sectários e políticos como o desporto. No Líbano, o desporto pode ser descrito usando uma citação de George Orwell: é ‘a guerra sem o tiroteio’.”

A tese central deste professor da Universidade Americana de Beirute é a de que no Líbano o desporto é usado para dividir (ainda mais) a sociedade. O Expresso perguntou-lhe se no atual contexto de crise generalizada, em que o sectarismo é apontado como estando na origem da fragilidade do país, o desporto — e o futebol em particular — pode contribuir para a unidade nacional.

“A situação no Líbano é dramática: a crise económica, a covid-19 e a recente explosão [no porto de Beirute, a 4 de agosto]. Acredito fortemente que o futebol (e também o basquetebol, que é muito popular no país) tem potencial para contribuir para a união. Se o Líbano se qualificar pela primeira vez para um Campeonato do Mundo, em 2022, isso pode dar alguma esperança às pessoas nestes tempos difíceis”, diz o coautor do livro “Sport, Politics, and Society in the Middle East”, de 2019.

Orgulho na seleção

“A seleção nacional é fonte de orgulho para os libaneses e até um sinal do potencial para uma comunidade libanesa unida”, acrescenta ao Expresso Yehuda Blanga, professor na Universidade Bar-Ilan (Israel).

Em novembro passado, em plena Revolução de Outubro, como os libaneses chamam aos grandes protestos antigovernamentais só interrompidos pela pandemia, a seleção libanesa recebeu a Coreia do Sul, de Paulo Bento (dia 14), e a Coreia do Norte (19) em jogos à porta fechada por receio de contágio dos protestos às bancadas do Estádio Camille Chamoun.

Ao estilo de uma trégua, a Praça dos Mártires, principal centro das manifestações, fez uma pausa nas reivindicações para assistir às partidas.

Expectativa e sofrimento na Praça dos Mártires, em Beirute, durante o jogo de futebol entre as seleções do Líbano e da Coreia do Norte, a 19 de novembro ANDRES MARTINEZ CASARES / REUTERS

Com 18 fações religiosas oficialmente reconhecidas, o Líbano é o protótipo de um Estado confessional, onde o poder político é distribuído de forma proporcional pelas várias comunidades consoante o seu peso demográfico. “A maioria dos clubes de futebol está associada a diferentes grupos sectários. Há clubes sunitas, xiitas, drusos e cristãos. Poucos são neutros, só encontrei dois”, diz Yehuda Blanga.

O principal campeonato é disputado por 12 equipas. Todas já sentiram o sabor de ser campeão mas, como em Portugal, há “três grandes” que se destacam. O Ansar, o mais vitorioso (13 campeonatos) e dominador entre o fim da guerra civil e o início do século XXI, é popular entre os sunitas.

O Nejmeh é o clube com mais adeptos, entre sunitas, xiitas, drusos e arménios. Fundado em 1945, foi o primeiro clube não-cristão. Em 2003, foi comprado pela família Hariri (muçulmana sunita) que nos últimos 20 anos já contribuiu com dois primeiros-ministros: Saad, que se demitiu em janeiro na sequência das manifestações, e o seu pai, Rafiq, assassinado em 2005, que dá nome ao estádio do Nejmeh.

Grande rival do Nejmeh, o Ahed é o campeão em título. Preferido dos xiitas, foi fundado pelo movimento islamita Hezbollah no início deste século. É o clube dominador da última década. Em 2019, tornou-se a primeira equipa libanesa a vencer uma competição internacional, a Taça da Confederação Asiática de Futebol.

A ascensão do Ahed tirou do pódio o Homenetmen, fundado por arménios, comunidade que dominou o futebol libanês nas décadas de 1940 a 1960.

Euforia entre jogadores e “staff” da equipa libanesa do Ahed, após a conquista da Taça da Confederação Asiática de Futebol, a 4 de novembro passado, em Kuala Lumpur. O amarelo e verde dos equipamentos é o mesmo da bandeira do Hezbollah MOHD RASFAN / AFP / GETTY IMAGES

Falta de profissionalismo

“O problema não é tanto uma subordinação sectária, como é política. A maioria das equipas está relacionada com partidos políticos por vários motivos”, explica ao Expresso o jornalista desportivo libanês Rawad Mezher. “Uma das razões mais importantes prende-se com a falta de profissionalismo ao nível da gestão desportiva, o que se traduz num problema para garantir orçamentos.”

Num país com sensivelmente o dobro do tamanho do Algarve e cerca de quatro milhões de habitantes (excetuando os refugiados), as receitas provenientes da bilheteira, merchandising, publicidade e direitos televisivos são insuficientes para assegurar o concurso de jogadores talentosos. A isto acresce a instabilidade que, de tempos a tempos, paralisa o país. Entre 2006 e 2010, a presença de adeptos nos estádios foi interdita após episódios de violência sectária entre apoiantes de vários clubes dentro e fora dos estádios.

Este panorama torna os clubes permeáveis a quem está disposto a injetar dinheiro em nome de interesses próprios e na expectativa de total lealdade. Não raras vezes, as cores do clube são as de partidos, nos estádios há grandes fotografias de políticos e os seus nomes são invocados nos cânticos das claques. Nos seus primeiros anos de vida, o patrocinador das camisolas do Ahed era a Al-Manar, televisão por satélite do Hezbollah.

A pandemia de covid-19 não para o futebol de rua, em Beirute, junto ao Estádio Camille Chamoun. E as máscaras não atrapalham GETTY IMAGES

Estas especificidades tornam o mercado libanês pouco atrativo para os investidores estrangeiros. Danyel Reiche recorda que, há uns anos, a Coca-Cola demonstrou interesse em financiar um clube libanês. Para evitar associações sectárias e ser acusada de favoritismo, acabou por patrocinar… três equipas: uma sunita, outra xiita e uma terceira cristã.

A 6 de abril de 1975, quando o Líbano estava prestes a implodir numa guerra civil que duraria 15 anos, a chegada a Beirute de Pelé parou o país e apartou as tensões. “Pelé veio jogar pelo Nejmeh um amigável com uma equipa de estrelas do campeonato libanês. O estádio encheu-se com 40 mil pessoas”, diz Yehuda Blanga.

“Os anos de 1974 e 1975 são considerados os mais importantes do futebol libanês, por dois acontecimentos importantes: a vitória do Nejmah sobre o campeão soviético, o Ararat Yerevan, e a visita da estrela brasileira.” Há mesmo quem defenda que a presença de Pelé no Líbano adiou o início da guerra civil, que começaria uma semana depois.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 2 de setembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Um país fragmentado

Líbano é um país que se espraia sensivelmente pelo território de dois Algarves. Ali vivem apertadas múltiplas confissões religiosas que, desde a independência do país (1943), convivem em função de uma fórmula original de partilha de poder: o Presidente do país é sempre um cristão maronita, o primeiro-ministro um sunita e o presidente do Parlamento um xiita.

Este sistema, definido quando a maioria da população era cristã (já não é o caso), foi reafirmado após a guerra civil, pelo Acordo de Taif. Poupou o país a mais disputas sangrentas, mas criou uma elite de clãs poderosos que se perpetuam no poder, no governo ou na oposição, aliados ou de costas voltadas e, não raras vezes, se anula com recurso a atentados. São exemplos os Gemayel (maronitas), os Hariri (sunitas), os Jumblatt (drusos)… E também o movimento xiita Hezbollah, considerado um Estado dentro do Estado.

Esta classe política sectária, apoiada no clientelismo e na corrupção, age em função dos interesses de quem a apoia e não do povo como um todo. Para uma população com média de idades abaixo dos 30 anos, esta é uma realidade intolerável. Mais ainda quando dela resulta uma governação negligente, desmascarada por casos como a explosão no porto de Beirute.

NÚMEROS

128

deputados compõem o Parlamento, 64 cristãos e 64 muçulmanos. Cada bancada religiosa subdivide-se em diferentes fações

6,8

milhões de pessoas vivem no Líbano: 1,5 milhões são refugiados sírios e quase 500 mil palestinianos. Na diáspora vivem mais de 15 milhões

45 ANOS SEM PAZ E VULNERÁVEL AOS VIZINHOS

1975-1990
Guerra civil Opõe diferentes fações político-religiosas e arrasta Síria, Israel e a OLP. Morrem 120 mil pessoas

1976-2005
Ocupação síria Após a guerra civil, forças sírias ficam no Líbano. A retirada é precipitada pela morte do primeiro–ministro, Rafiq Hariri, num atentado com 1000 kg de TNT e pelos protestos populares que se lhe seguem (Revolução dos Cedros)

1982-2000
Ocupação israelita No mesmo ano em que Israel invade o Líbano (que abrigava a liderança palestiniana), o Hezbollah emerge como movimento de resistência no sul do país. Após anos de escaramuças fronteiriças, em 2006 ambos travam uma guerra de 34 dias. A tensão continua até aos dias de hoje

2012- (…)
Guerra na Síria O Líbano está exposto pela participação do Hezbollah em defesa do regime de Assad e pelos refugiados que acolhe

(IMAGEM Bandeira do Líbano em erosão RAWPIXEL)

Artigo publicado no “Expresso”, a 15 de agosto de 2020. Pode ser consultado aqui

Vaga de demissões no Governo e no Parlamento

Três ministros e pelo menos nove deputados libaneses formalizaram a sua demissão, após a violenta explosão no porto de Beirute. A debandada pode não ficar por aqui, perante a relutância do Governo em demitir-se, como se pede nas manifestações populares em Beirute

A violenta explosão no porto de Beirute e os protestos populares que se lhe seguiram exigindo a demissão do Governo está a ter ondas de choque na política libanesa.

Esta segunda-feira, a ministra da Justiça, Marie Claude Najm, apresentou a sua demissão, justificando a decisão não só com a explosão que devastou grande parte da capital do Líbano como também com os protestos antigovernamentais que saíram às ruas de Beirute.

Num momento imediato à explosão, a ministra tinha defendido que demitir-se era “fugir à responsabilidade”. A sua posição mudou após ter tentado juntar-se aos voluntários que limpavam as ruas de Beirute e ter sido atingida com garrafas de água.

Esta foi a terceira demissão no Governo liderado por Hassan Diab. A primeira porta bateu no domingo, no Ministério da Informação. “Peço desculpas aos libaneses, não correspondemos às vossas expectativas”, disse a titular do cargo, Manal Abdel Samad.

Seguiu-se-lhe o ministro do Ambiente, Damianos Kattar. “Amigos dos meus filhos morreram na explosão. Não posso mais continuar com estas responsabilidades no ministério”, disse.

Segundo a Constituição do Líbano, o Governo pode cair em quatro situações: se o primeiro-ministro morrer ou se se demitir (possibilidade extremamente baixa já que Hassan Diab disse que tenciona propor eleições antecipadas, o que pode demorar meses); se o Governo perder um terço dos seus atuais 20 membros; ou no início de um mandato presidencial (o que não se aplica já que Michel Aoun iniciou funções a 31 de outubro de 2016).

Governo descredibilizado

Também no Parlamento libanês, pelo menos nove deputados já formalizaram a sua demissão, enquanto vários outros afirmaram intenção em fazê-lo.

Fortemente descredibilizado e acusado de ser corrupto, o Governo libanês — que rejeitou uma investigação internacional ao caso — está sob forte pressão para se demitir. Para além dos protestos antigovernamentais em Beirute, há vozes internacionais que condicionam assistência ao Líbano à sua entrega à sociedade civil, e não às entidades políticas.

No domingo, uma vídeoconferência de doadores organizada pelo Presidente francês, Emmanuel Macron, e em que participaram vários líderes internacionais, angariou 300 milhões de dólares (254 milhões de euros) em assistência humanitária, que serão “diretamente entregues à população libanesa”.

(FOTO Bandeira do Líbano projetada na Torre Azadi, em Teerão, em solidariedade com os libaneses MAHDI MARIZAD / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 10 de agosto de 2020. Pode ser consultado aqui