Arquivo de etiquetas: Líbano

Golpe de 2750 toneladas

O porto de Beirute desfez-se num cogumelo atómico. Negligência e descontentamento vão fazer rolar cabeças

Marta demorou quase 24 horas para procurar um hospital. “Aquele que existe mais próximo da minha casa ficou muito destruído pelo impacto da explosão. E apercebi-me de que nenhum dos meus ferimentos era grave. Por isso, não quis contribuir para agravar a situação dos hospitais”, diz ao Expresso. “Estavam a receber tantos feridos…”

Foi para casa de amigos, um deles médico, que lhe prestou os primeiros socorros, e só no dia seguinte, com mais calma, dirigiu-se a um hospital. Levou pontos, mas não sabe quantos, porque perdeu-se à conversa com o médico que a atendeu — oriundo de Gaza, nascido no Kuwait e residente no Líbano. Esta diversidade, muito frequente nos cidadãos do Médio Oriente, contribuiu para que esta portuguesa se apaixonasse pela região, onde trabalha desde 2013, grande parte do tempo para o Comité Internacional da Cruz Vermelha.

Marta Abrantes Mendes, de 41 anos, nascida na Costa da Caparica, foi um dos mais de 5000 feridos e 300 mil desalojados de duas grandes explosões, na terça-feira, com epicentro no porto de Beirute. A existência de 2750 toneladas de nitrato de amónio no local — confiscadas a um cargueiro russo abandonado em Beirute e ali armazenadas de forma negligente desde 2013 — conferiu ao rebentamento um efeito de cogumelo atómico. As explosões, que foram sentidas na ilha de Chipre, a 200 quilómetros de distância, provocaram pelo menos 157 mortos.

Era final de tarde, e Marta tinha acabado de entrar em casa, na zona de Geitawi, perto do porto. “Tem havido muitos cortes de luz, devido à situação económica, e eu tinha passado a tarde a trabalhar, sentada num café com ar condicionado. Ao chegar a casa, vi que havia eletricidade e aproveitei para ligar o ar condicionado. Tinha acabado de fechar as janelas quando ocorreu a explosão.” Foi ferida na cara e nos braços pelos estilhaços de um dos janelões da sala.

Resiliência libanesa

Num país habituado a potentes atentados de cariz político, este rebentamento em Beirute foi superior a qualquer outro. Muitos edifícios perderam a fachada e muitos mais ficaram inabitáveis. Marta mudou-se para casa de uns amigos, já a sua senhoria deu guarida a três casais. Foi assim um pouco por toda a cidade, entre famílias, amigos, vizinhos.

Com Beirute arrasada, a população arregaçou as mangas, pegou em vassouras e começou a arejar as casas e a limpar vidros e sangue das ruas. Na quinta-feira de manhã, após uma volta pela cidade, Marta dizia ao Expresso: “É outra cidade. Há muito mais movimento nas ruas, há mais lojas abertas.”

Aos poucos, a resiliência libanesa vai-se impondo. Nas últimas décadas, o povo enfrentou uma sangrenta guerra civil (1975-1990), a ocupação síria (1976-2005), conflitos entre Israel e o Hezbollah (movimento xiita libanês) e a exposição à guerra da Síria, que levou o Líbano (com uma população de 6,8 milhões) a abrir as portas a 1,5 milhões de refugiados. Sempre o país se soube reerguer.

Num país habituado a potentes atentados de cariz político, este rebentamento em beirute acabou por ser superior a qualquer outro

“O Líbano fica nesse pêndulo entre a tragédia e a magia”, diz ao Expresso Guga Chacra, analista de assuntos internacionais e colunista do jornal “O Globo”. Nascido na cidade brasileira de São Paulo e neto de libaneses, vive com o coração tudo quanto se passa no “país dos cedros”, onde tenta ir todos os anos. “O Líbano já superou outros momentos ruins, mas dessa vez será complicado. Em primeiro pelo colapso económico, igual ao que vimos acontecer na Argentina e na Grécia. Some-se a isso uma crise política e a covid-19. O Líbano não está muito afetado pela pandemia, mas como todo o planeta está, e praticamente todos os países estarão em recessão este ano, isso vai dificultar a ajuda ao país.”

Na véspera das explosões, a deterioração da situação económica e financeira do Líbano servia de justificação aos punhos erguidos e aos gritos de dezenas de pessoas que se juntaram à porta do Ministério da Energia em Beirute. Os protestos visavam os cortes de energia diários, o facto de se terem tornado “normais” e de a degradação dos serviços públicos básicos parecer não ser da responsabilidade de ninguém.

Desde junho que o racionamento apertou ainda mais, agudizado pelas restrições da pandemia, passando a haver apenas duas horas de energia elétrica por dia nalgumas zonas. As famílias recorrem a velas e querosene e os hospitais avisam que o combustível para fazer os geradores de eletricidade funcionar está a esgotar-se.

“Viemos e ficamos”, declarava o manifestante Ali Daher, citado pela agência AP, que prometia com os outros libertar o ministério “da corrupção… e da gestão que mergulhou este país na escuridão”.

Pior do que a crise só a guerra

A maior ameaça desde a guerra civil é a crise. Melhor, o conjunto de crises, que parecia ter atingido o cúmulo com a pandemia do coronavírus.

“Emmanuel Macron a visitar zonas onde nenhum líder libanês ousaria ir”, comentava Maha Yahya na sua conta de Twitter a visita que o Presidente francês fez a Beirute na quinta-feira. A economista, diretora do Carnegie Middle East Center, destacava no Twitter o facto de as pessoas abraçarem Macron repetindo em simultâneo o slogan “O povo quer a queda do regime!”.

O Líbano é um Estado altamente endividado e com uma inflação galopante. O poder de compra dos cidadãos reduz-se de dia para dia, o desemprego e a pobreza aumentam. Em 23 de julho, Yahya publicou um artigo no Carnegie em que expunha o colapso dos pilares de sustentação do país. Um dos que desaparece velozmente é a classe média, que costumava ser historicamente uma das mais abastadas, profissionais e com mais recursos da região.

Denunciando a responsabilidade dos líderes políticos pela desvalorização (80% em oito meses) da libra libanesa, pela fuga de jovens para o estrangeiro e por uma inflação que atingiu 90% no mês de junho, a economista congratulava-se, na quinta-feira, pelo apoio de Macron, que prometeu regressar com uma proposta de “um novo pacto político” ao Governo.

A zanga é transversal. Uma futura reconciliação nacional terá de passar por medidas que o povo reconheça como capazes de inverter o caminho que se tornou aceitável. E o diagnóstico parece simples: “Isto não foi um acidente, isto não foi negligência. Isto foi um ataque dos rufias em cargos públicos contra o seu próprio povo”, lia-se na terça-feira num tweet de Jad Chaaban, professor de Economia na Universidade Americana de Beirute.

Na quinta-feira, 16 funcionários do porto foram colocados em prisão domiciliária. Ao mesmo tempo, o Governo deu quatro dias a um comité de investigação para apurar responsabilidades. As autoridades apressam-se a arranjar culpados, mas nas ruas a confiança está tão arrasada quanto a própria Beirute.

Texto escrito com Cristina Peres.

(FOTO Destruição provocada pela forte explosão, no porto de Beirute, a 4 de agosto de 2020 BERNARD KHALIL / FLICKR DA PROTEÇÃO CIVIL E AJUDA HUMANITÁRIA DA UE)

Artigo publicado no “Expresso”, a 8 de agosto de 2020. Pode ser consultado aqui

Condicionar a fé para fazer face ao medo

As restrições à liberdade religiosa estão em crescendo por todo o mundo. Nuns casos para os Estados blindarem a sua identidade, noutros para se defenderem de medos exteriores

Símbolos religiosos do Judaismo, Islão, Taoismo e Cristianismo WIKIMEDIA COMMONS

César o que é de César, a Deus o que é de Deus. A máxima atribuída a Jesus Cristo — em resposta a um grupo de fariseus que o tentou apanhar em falso, perguntando se era lícito um judeu pagar impostos a César (Mateus 22:21) — tornou-se, com o tempo, um chavão utilizado para enfatizar a separação entre os poderes político e religioso. Passados 2000 anos, contudo, a realidade política global aponta para uma evolução no sentido inverso à sentença bíblica. Hoje, mais de 80 países têm uma religião oficial ou conferem um tratamento preferencial a uma determinada confissão sobre todas as outras. A maioria deles privilegia o Islão, mas a realidade não é estranha à velha Europa cristã.

A Grécia, por exemplo, é um Estado confessional. Os salários dos padres da Igreja Ortodoxa Grega — que a Constituição reconhece como a “religião prevalecente” — são pagos pelo erário público. Nas escolas, só em setembro de 2016 (sob o Governo do Syriza) deixaram de ser obrigatórias as orações de alunos e professores no início de cada dia de aulas. No palco da política, a religião não fica arredada do protocolo: há três semanas o novo primeiro-ministro, Kyriakos Mitsotakis, tomou posse diante do arcebispo Jerónimo, a máxima autoridade religiosa.

No Reino Unido, o monarca é membro da Igreja de Inglaterra (anglicana) e seu governador supremo. Na Finlândia, a Igreja Ortodoxa Finlandesa e a Igreja Evangélica Luterana da Finlândia são reconhecidas como “igrejas nacionais”. Já na Islândia, a Constituição reconhece a Igreja da Islândia como a “igreja do Estado”.

“Desde a mais distante pré-história, encontramos pontos de contacto muito fortes entre as estruturas religiosas e as políticas”, explica ao Expresso Paulo Mendes Pinto, coordenador da Área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona. “Esses contactos foram muitas vezes de ajuda, mas também de afronta. Sempre houve contacto porque ambas são estruturas de organização da sociedade.”

Na Rússia, jeovás têm rótulo “extremista”

Um relatório recente publicado pelo Pew Research Center, um think tank com sede em Washington D.C., conclui que “ao longo da década 2007-2017, as restrições governamentais à religião — leis, políticas e ações de funcionários do Estado restritivas de crenças e práticas religiosas — aumentaram acentuadamente em todo o mundo”.

Em 2007 estavam identificados 40 países com níveis “altos” ou “muito altos” de restrições à liberdade religiosa. Dez anos depois, eram já 52. Um deles é a Rússia, onde, recorda o académico, “toda uma narrativa de fausto e glória, marcada por uma visão etnocentrada, encontra na Igreja Ortodoxa a ligação a uma legitimação história e, assim, fortemente identitária”. O relatório refere o assédio das autoridades russas a minorias religiosas através de ‘visitas’ da polícia a propriedades, em especial das Testemunhas de Jeová, rotuladas como grupo “extremista” desde 2017.

“Por parte do que hoje designamos por Estados, a religião surge como forma de criar uniformidades, discursos e narrativas de identidade”, comenta o professor. “Hoje, a relação que vemos cada vez mais forte entre muitos Estados e algumas religiões vem no seguimento da criação de narrativas de instabilidade, onde o fator religioso é instrumental na solução.”

Fobias várias num quadro de medo

Na Hungria, em 2012, uma nova lei introduziu alterações ao processo de registo de grupos religiosos, as quais afetaram o estatuto de mais de 350, com consequências ao nível do seu financiamento e da prestação de serviços de caridade. Na chefia do Governo desde 2010, Viktor Orbán tem-se destacado, na Europa e no mundo, com um discurso populista, xenófobo e anti-imigração.

“Parte do movimento geral de limitação da liberdade religiosa advém de um quadro de medo, relacionado diretamente com o pós-11 de Setembro de 2001 e, mais recentemente, com o fenómeno do radicalismo islâmico do Daesh”, explica Mendes Pinto. “Esta onda de perceção e representação de insegurança, de medo, condicionou os cidadãos a aceitarem limitação às suas mais variadas liberdades como um sacrifício necessário para a sua segurança.”

Em dez anos, o número de países europeus que levantam obstáculos à liberdade religiosa aumentou de cinco para 20. Este processo vem sendo fortalecido “através de fobias várias”, conclui Paulo Mendes Pinto. “Fobias que levam, por exemplo, a que França seja hoje tida como um Estado que ergue grandes restrições à liberdade religiosa, fruto de um extremar das suas posições laicistas que advogam a proibição, muitas vezes, do uso de vestes religiosas.”

UMA TENDÊNCIA GLOBAL

ANGOLA — A 23 de janeiro deste ano, a Assembleia Nacional aprovou a nova Lei sobre a Liberdade de Religião, Crença e Culto para organizar a proliferação de grupos. Há mais de 2000 ilegais

TAILÂNDIA — A Constituição de 2017 elevou o estatuto do budismo Theravada, quase que dotando o reino de uma religião oficial

SAMOA — Este país da Polinésia passou a ser uma “nação cristã” após a revisão constitucional de 2017

ERITREIA — O Governo reconhece apenas a Igreja Ortodoxa Eritreia, o Islão sunita, a Igreja Católica e a Igreja Evangélica Luterana da Eritreia. Desde 2002 não são autorizadas cerimónias de nenhum outro culto

CHINA — Apenas são autorizados a realizar cultos grupos que pertençam às religiões reconhecidas por Pequim: Budismo, Taoismo, Islão, Catolicismo e Protestantismo. Mas há milhares de muçulmanos (uigures) em “campos de reeducação”

CABO VERDE — A concordata de 2013 garante ao Vaticano privilégios inacessíveis a outro credo

COMOROS — Aprovado em referendo, em 2009, o Islão passou a ser a religião do Estado

MALDIVAS — Promover uma religião que não o Islão é crime punido com até cinco anos de prisão

ALEMANHA — Em 2012, um tribunal de Colónia criminalizou a circuncisão por razões não-médicas. Pressionado por judeus e muçulmanos, Berlim legalizou essa prática religiosa

BIRMÂNIA — A minoria muçulmana (rohingya) não tem direito à cidadania. Tem sido perseguida e alvo de grande violência

HÁ UMA ILHA DE TOLERÂNCIA NO MÉDIO ORIENTE

Arábia Saudita, Irão e Israel são dos países com leis mais restritivas em matéria de liberdade religiosa. Na região, só um país não favorece uma fé

Em todo o mundo, a maioria dos Estados que submetem a vida dos seus cidadãos à vontade de Deus (de forma mais ou menos formal) é muçulmana. No Médio Oriente e Norte de África, há apenas um país que não tem uma única religião oficial ou favorece declaradamente um só credo — o Líbano. Independente desde 1943, o “País do Cedro” é um xadrez étnico-religioso complexo, organizado politicamente com base num Pacto Nacional celebrado entre as principais confissões religiosas. Este acordo não escrito determina que o Presidente da República é sempre um cristão maronita, o Parlamento é presidido por um muçulmano xiita e o primeiro-ministro é um muçulmano sunita.

Este entendimento sobreviveu a uma sangrenta guerra civil (1975-1990). Depois do conflito a proporção entre cristãos e muçulmanos no Parlamento passou de 6/5 para a paridade (5/5). E resistiu também à evolução demográfica do Líbano: se em 1943 havia uma curta maioria de cristãos no país, hoje estima-se que a larga maioria dos quase sete milhões de libaneses seja muçulmana.

Na classificação do Pew Research Center, o Líbano não consta do grupo mais preocupante de países com leis mais restritivas à liberdade religiosa, que é liderado pela Eritreia. Não é o caso, porém, da Arábia Saudita (8º lugar), do Irão (12º) e de Israel (13º).

Israel não tem uma Constituição escrita mas sempre se definiu — e assim foi concebido — como um Estado judaico onde a religião está omnipresente na vida quotidiana. Casamentos, divórcios e funerais, por exemplo, competem à jurisdição do Rabinato Chefe de Israel, uma instituição ortodoxa. E, na maioria das cidades, o respeito pelo Shabat (sábado) implica que não haja transportes públicos a circular.

Na Jordânia, o Governo vigiou as prédicas nas mesquitas e exigiu aos pregadores que não falassem de política

A relação entre o Estado e o judaísmo definiu-se mais claramente a 19 de julho de 2018, com a aprovação de uma nova Lei da Nacionalidade: Israel passou a ser “a nação do povo judeu” e o hebraico a única língua oficial. A aprovação do diploma fez disparar acusações de discriminação e lançou o ceticismo sobre o futuro das minorias, nomeadamente os israelitas árabes (muçulmanos e cristãos), que são 20% da população. Representados no Parlamento, são muitas vezes impedidos de aceder a lugares sagrados como o Monte do Templo, em Jerusalém.

Pátria de uma das comunidades de judeus mais antigas do Médio Oriente — os judeus da Pérsia, anteriores ao advento do Islão —, o Irão tem um histórico de perseguição da comunidade bahai (não-muçulmana). Outrora a maior minoria no Irão, as autoridades consideram-na hoje “herética” e “imunda”.

Teocracia muçulmana xiita desde 1979, o Irão tem no topo da sua hierarquia política um ayatollah. Oficialmente, a República Islâmica reconhece três minorias — zoroastras, judeus e cristãos — e reserva-lhes assentos parlamentares. Uma diferença substancial em relação à rival sunita Arábia Saudita, onde não existem igrejas nem sinagogas. Guardião das mesquitas sagradas de Meca e Medina, o reino considera ilegal a prática de outras religiões, bem como o uso de símbolos religiosos. Os sauditas estão proibidos de se converterem a outras fés e os que professam o ramo xiita são olhados com grande desconfiança.

Em novembro de 2017, Riade fez aprovar uma nova lei de combate ao terrorismo que criminaliza “qualquer pessoa que desafie, direta ou indiretamente, a religião ou a justiça do rei ou do príncipe herdeiro” e proíbe “qualquer tentativa de lançar dúvidas sobre os fundamentos do Islão”. No mesmo ano, alegando preocupações com o terrorismo, as autoridades ordenaram a demolição de um bairro antigo de maioria xiita.

No Médio Oriente, com maior ou menor formalidade, todos os países árabes são condescendentes em relação ao Islão. No Egito, em caso de disputa familiar, por exemplo, se um dos cônjuges for muçulmano e o outro cristão copta, a lei que se aplica é a islâmica (Sharia).

Mas casos há também em que o alvo das restrições governamentais é o próprio Islão. Na Jordânia, o Governo vigiou as prédicas nas mesquitas e exigiu aos pregadores que se abstivessem de falar de política, para não contribuírem para agitação social e visões extremistas. Sugeriu temas e recomendou textos para orientar os imãs. Quem não acatar é multado ou proibido de voltar ao púlpito.

Artigo publicado no “Expresso”, a 27 de julho de 2019. Pode ser consultado aqui

Cercado por inimigos

Habituado a viver sob tensão, Israel reconhece passar, atualmente, por uma situação de incerteza junto às suas fronteiras. O “Expresso” visitou três e constatou que, apesar de o Daesh estar às portas, é o Irão que mais causa preocupação. Reportagem em Israel 

Quando olham para o mapa do país, as autoridades de Israel, em vez de Estados, tendem a analisar a vizinhança mais na perspetiva das ameaças. E são muitas. Estamos em Jerusalém, no edifício do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e Ariel Shafransky, diretor do departamento para o Médio Oriente, distribui um mapa de Israel pelos cinco jornalistas portugueses que o visitam. “Quando Israel acorda de manhã e olha pela janela, o que vê em termos estratégicos?”

A noroeste, no Líbano, está o Hezbollah. No território palestiniano da Faixa de Gaza, estão o Governo do Hamas, a Jihad Islâmica Palestiniana (“apoiada e financiada pelo Irão [xiita], apesar de ser uma organização sunita”) e “elementos da jihad global reunidos em pequenos grupos”. A ocidente, o Sinai egípcio é um porto de abrigo de grupos jiadistas. Quanto à fronteira com a Síria, é controlada, a norte, pelo Governo de Bashar al-Assad, ao centro pela oposição armada e a sul por um pequeno grupo local associado ao autoproclamado Estado Islâmico (Daesh). “E temos uma longa fronteira com a Jordânia que está… sossegada. Graças a Deus!”

Com o Daesh a apenas 100 km para leste do território israelita, pode causar estranheza o facto de esta organização extremista ou as suas sucursais — que atacou em Paris a 13 de novembro (129 mortos), afrontou a Rússia abatendo um avião comercial sobre o Sinai (224 mortos) e, inclusive, já visou o Hezbollah no atentado do Líbano de 12 de novembro (43 mortos) — nunca tenha virado as armas diretamente para Israel.

Tudo cai aos bocados

A verdade é que, para vários diplomatas do Ministério dos Negócios Estrangeiros e investigadores do Instituto de Estudos de Segurança Nacional (INSS), de Telavive, a maior ameaça a Israel está a mais de 1500 km de distância. “Por muito grande que uma ameaça como o Daesh seja, contígua à nossa fronteira”, diz Ariel Shafransky, “se tivesse de elaborar uma lista, em primeiro colocaria o Irão, depois o Hezbollah, o Hamas e, só depois, o Daesh e a jihad global.”

Ainda Abu Bakr al-Baghdadi não tinha declarado o ‘califado’ (o que viria a acontecer a 30 de junho de 2014) e já interesses de judeus eram visados pelo terrorismo internacional. São exemplos o ataque ao supermercado kosher em Paris (dois dias após o atentado contra o “Charlie Hebdo” em janeiro de 2014), contra o Museu Judaico de Bruxelas, a 24 de maio de 2014, ou contra uma escola judaica em Toulouse, a 19 de março de 2012.

“A situação em Israel é extremamente complexa, não tanto por razões internas, mas pelo que se está a passar na região”, diz Emanuel Nahshon, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros. “Vivemos numa agitação e incerteza como nunca antes, uma situação desconhecida e imprevisível, com mudanças dramáticas a um ritmo diário. Parece o fim da I Guerra Mundial: o Império Otomano acabou e há o caos. Os Estados estão a desintegrar-se. Já não há Iraque, Síria nem Líbia. Está tudo a cair aos bocados, com consequências dramáticas para todos. Mas Israel está a tentar manter-se de fora.”

GAZA  Ao alcance dos rockets do Hamas

Na localidade israelita mais próxima da Faixa de Gaza, Netiv HaAsara, 800 pessoas vivem com o coração nas mãos

Na aldeia de Netiv HaAsara, há uma parede que funciona como exposição permanente. Fragmentos de mísseis lançados pelo Hamas da Faixa de Gaza revelam ao visitante o perigo a que está exposta aquela localidade israelita, a mais próxima do território palestiniano.

Um dos foguetes parece ser mais sofisticado. “Foi lançado por Israel… Fazia parte do sistema antimíssil [Cúpula de Ferro]”, explica Hila Fenlon, uma agricultora de 38 anos. Netiv Ha’asara está na encruzilhada: apanha com mísseis do Hamas e, involuntariamente, com foguetes de interceção lançados por Israel para defender a população mas que explodem sobre a aldeia.

Nesta aldeia, que funciona como cooperativa agrícola (moshav), vivem 800 pessoas. Muitas, como Hila, que produz sementes que exporta para todo o mundo, tinham sido colonos na Península do Sinai — território egípcio ocupado por Israel em 1967 e devolvido em 1982 na sequência do tratado de 1979.

O primeiro rocket caiu em Netiv HaAsara em 2000, ainda Israel tinha tropas e colonos em Gaza. Até ao momento, foram mortos três habitantes. A possibilidade de haver mortos é maior em cidades grandes como Sderot ou Ashkelon, ainda que mais afastadas do território controlado pelo Hamas e onde Israel, nos últimos sete anos, realizou três grandes operações militares.

“Nominalmente, o Hamas governa a Faixa de Gaza, mas ao mesmo tempo está disposto a permitir a existência de grupos mais extremistas desde que não desafiem a sua autoridade em termos religiosos”, explica o diplomata Ariel Shafransky.

Moradores têm APP no telemóvel que apita quando um rocket vem

Além do Hamas, estão presentes a Jihad Islâmica Palestiniana (PIJ) e pequenos grupos com uma agenda jiadista global, à semelhança da Al-Qaeda e do Daesh. “O Hamas foi, originalmente, estabelecido como um ramo da Irmandade Muçulmana”, explica Shafransky. “A PIJ é um movimento jiadista e as outras organizações mais pequenas servem a jihad global. Todos se comportam-se segundo o lema ‘vive e deixa viver’. Não é uma convivência fácil, há fricções que podem transbordar para Israel.”

Muitos habitantes de Netiv HaAsara têm instalada no telemóvel uma aplicação que alerta, em tempo real, para o disparo de foguetes vindos de Gaza. A app também disponibiliza um chat para saberem notícias de familiares e amigos que vivam ao alcance dos mísseis do Hamas. Junto à Faixa de Gaza, vive-se com o coração nas mãos.

LÍBANO   Uma ameaça contínua chamada Hezbollah

O perigo que a milícia xiita significa não se fica pelo Líbano. O Hezbollah ameaça também a partir da Síria

Espraiada ao longo de 79 km, a fronteira entre Israel e Líbano é chamada “linha azul”. Mas atendendo à conflitualidade frequente teria sido mais lógico um tom mais negro. “O Hezbollah está espalhado ao longo de toda a fronteira norte de Israel”, diz Ariel Shafransky, diretor do Departamento para o Médio Oriente do MNE. “Tem um arsenal de milhares de foguetes de diferentes tamanhos, alcances e precisões, capazes de atingir quase todo o território israelita.”

Na guerra de 2006, mísseis disparados pelo Hezbollah chegaram a Haifa. “Foi terrível. Mas agora têm mísseis mais precisos e destruidores. É um grande problema de segurança para Israel”, diz Samuel Ravel, vice-diretor da Divisão para a Europa do MNE.

A preocupação israelita em relação ao Hezbollah não se confina à fronteira com o Líbano. Israel estima que a milícia xiita tenha à volta de 5000 homens na Síria, em forte cooperação com o Irão em defesa do regime de Assad. Nos últimos três anos e meio sofreram mais de 1200 baixas.

“O interesse de Israel está mais relacionado com o Hezbollah do que com a Síria, que é um pântano que tentamos manter à distância, até agora com sucesso”, diz Shafransky. “É importante para Israel que nenhum equipamento russo vá parar às mãos do Hezbollah no Líbano. E também que a Rússia não permita que Irão e Hezbollah reforcem a sua presença nas áreas junto à nossa fronteira, para que o conflito não transborde para o nosso lado.”

100.000 mísseis é a estimativa que Israel faz em relação ao arsenal do Hezbollah. O número é aproximado, mas a origem é exata: o Irão, que fornece treino, dinheiro e material

Israel já revelou tolerância zero em relação a presenças suspeitas nos Golã. A 18 de janeiro de 2015, bombardeou a parte síria do planalto, matando um general iraniano e seis membros do Hezbollah.

Igualmente, por várias vezes, já atingiu veículos suspeitos de transportarem armas para o Hezbollah, dentro de território sírio. “Ao bombardear armamento sofisticado que está a ser transportado para o Hezbollah não quer dizer que Israel se queira envolver na guerra”, explica Benedetta Berti, do INSS. “Israel atua no pressuposto de que tanto o Hezbollah como os sírios estão demasiado ocupados para responderem à altura. Para mim, é um cálculo perigoso. Israel e Hezbollah estão muito contidos, mas é brincar com o fogo e arriscar uma escalada involuntária.”

Paramos num miradouro sobranceiro à aldeia israelita de Metula para observar o Líbano. Na paisagem verdejante, nada distingue as terras israelitas das libanesas. Ainda assim, um grupo de turistas brasileiros, previsivelmente judeus, insiste com o guia: “O que é nosso e o que é deles?”

GOLà Balcão com vista para a guerra na Síria

Desde o estratégico planalto dos Golã, Israel tem vista privilegiada para o conflito sírio. Mas não quer ser beligerante

“Se tivermos sorte, ainda poderemos ver um caça russo a entrar em Israel, mas não a ser abatido…” Estamos nos Montes Golã, e Oren Rozenblat, quadro do Ministério dos Negócios Estrangeiros israelita, usa a ironia para, por um lado, aludir à proximidade geográfica com a guerra na Síria e, por outro, afirmar que Israel é um aliado fiável. (A Turquia tinha abatido um Su-24 russo dias após outro aparelho russo ter violado espaço aéreo israelita, sem consequências.)

Estamos a 3 ou 4 km da guerra, mas não há sinais de combates — nem de tropas de Bashar al-Assad, forças rebeldes, grupos jiadistas ou mesmo caças russos. Neste território ocupado por Israel em 1967, e reclamado pela Síria, Israel tem destacada a segunda maior concentração de tropas (a maioria para participar em manobras), a seguir ao deserto do Neguev. Mas à vista desarmada, há ali mais turistas do que militares. O mais famoso é o ator Sean Penn para quem, no kibbutz Merom Golan, se prepara um almoço.

À vista desarmada, há mais turistas nos Golã do que militares

A tranquilidade que se observa nos Montes Golã — onde vivem cerca de 15 mil colonos judeus em 15 aldeias — surpreende quem tenha presente a tensão que se atribui àquela fronteira desde há décadas. Em 1974 (após a guerra do Yom Kippur), a ONU estabeleceu ali uma missão de manutenção de paz (UNDOF), com o objetivo de manter o cessar-fogo entre sírios e israelitas.

É assim no papel, mas não no terreno. Em março de 2013, 21 capacetes azuis filipinos foram raptados na zona desmilitarizada por forças rebeldes, levando ao recuo da força da ONU para dentro de território israelita… Num posto de vigia próximo do Café Annan (que, diz-se por ali, Kofi Annan, apreciou particularmente quando o visitou), dois militares ao serviço da ONU consultam um portátil e olham pelos binóculos na direção da Síria. “Deviam estar no meio, não do nosso lado”, diz Oren. Para Israel, é uma prova de como, em matéria de segurança, o país tem poucos parceiros em quem confiar.

Desde que a Rússia começou a bombardear na Síria, a 30 de setembro, o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, já se encontrou com o Presidente russo, Vladimir Putin, pelo menos duas vezes. Em Israel, tem-se a perceção de que a intervenção russa, em socorro de Assad, mudou as regras do jogo. “Ainda não sabemos se para melhor ou para pior em termos de duração do conflito”, diz Benedetta Berti, investigadora no INSS. “Sabemos sim que há um interesse estratégico de Israel no sentido de não ser beligerante.”

AUTORIDADE PALESTINIANA  O crepúsculo de Abbas

A liderança palestiniana está gasta, mas tarda em escolher sucessores. Em Israel, já se discute o que fazer se a AP ruir

Há duas semanas, uma citação atribuída ao primeiro-ministro de Israel fez correr rios de tinta na imprensa. “Temos de impedir o colapso da Autoridade Palestiniana (AP), se possível. Mas ao mesmo tempo, temos de nos preparar para a eventualidade de isso acontecer”, terá dito Benjamin Netanyahu a um grupo restrito de ministros e responsáveis pela segurança do país. A dissolução da AP acarretaria para Israel pesados encargos ao nível da segurança e da administração civil das áreas controladas pela AP — ou seja, parte da Cisjordânia, já que 60% do território é controlado por Israel e em Gaza quem governa é o Hamas.

“A Fatah [partido que lidera a AP] está decadente há anos”, refere o diplomata Ariel Shafransky. “O sentimento geral, dentro e fora do movimento, é que estamos a assistir ao crepúsculo de Mahmoud Abbas [Presidente palestiniano]. Há uma luta pelo poder e uma divisão profunda sobre a direcção a seguir, não em relação a Israel mas internamente.” Em setembro, a primeira reunião em 20 anos do Conselho Nacional Palestiniano foi adiada indefinidamente.

Enquanto isso, o processo de paz não avança e a estratégia palestiniana de reconhecimento internacional é questionada. “Se eu perguntar que tipo de Estado palestiniano reconheceu o Parlamento português não será possível detalhar, porque simplesmente não existe”, diz o porta-voz do MNE, Emanuel Nahshon. “Existirá como consequência de negociações com Israel. Preocupa-nos que os palestinianos se apaixonem por este processo de reconhecimento e pensem que vai substituir a realidade. Mas, concretamente, o que significa? Nada.”

TEXTOS DE APOIO AO MAPA

HEZBOLLAH — Organização xiita, criada em 1982, o “Partido de Deus” nasceu durante a invasão israelita do Líbano, no vale de Beqaa. Financiado e armado pelo Irão, partilha com a República Islâmica a interpretação xiita do Islão. Em 2006, combateu Israel durante 34 dias. Atualmente tem 13 deputados e dois ministros (Agricultura e Reforma Administrativa) nas instituições de Beirute. É muitas vezes descrito como “um Estado dentro do Estado”

HAMAS — Despontou em 1987, na Faixa de Gaza, com a primeira “Intifada” (insurreição) contra a ocupação israelita. O “Movimento de Resistência Islâmica” (de inspiração sunita) derrotou a secular Fatah nas legislativas palestinianas de 2006, resultado que não foi reconhecido. Em 2007, tomou o poder pela força na Faixa de Gaza. Nos últimos sete anos, travou três guerras contra Israel

DAESH — Acrónimo árabe de “Estado Islâmico do Iraque e do Levante”. Corresponde ao “califado” (governo islâmico) mundial proclamado pelo iraquiano Abu Bakr al-Baghdadi, a 30 de junho de 2014. De inspiração waabita (fundamentalismo sunita), a sua afirmação beneficiou da violência sectária que se seguiu à queda de Saddam Hussein (2003), no Iraque, e da guerra civil na Síria, iniciada em 2011

AUTORIDADE PALESTINIANA — Saída dos Acordos de Oslo de 1993 — os últimos assinados entre israelitas e palestinianos —, funciona como “governo interino” até à declaração da independência do Estado da Palestina. Presidida por Mahmoud Abbas, controla uma parte da Cisjordânia: a maioria do território é controlada por Israel (colonatos e vale do Jordão) e a Faixa de Gaza está nas mãos do Hamas

ACORDO NUCLEAR SÓ É BOM PARA O IRÃO

Investigadora israelita realça fragilidades do acordo nuclear e alerta: “O Irão vai testar a comunidade internacional”

É início da tarde de uma terça-feira e, no Instituto de Estudos de Segurança Nacional (INSS), em Telavive, uma sala lotada impressiona quem passe no corredor. “É uma conferência sobre o Irão”, explica Oren Rozenblat, do gabinete do porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Israel. “Os europeus acham que os israelitas dizem que estão preocupados com o Irão, mas na verdade não estão. Basta olhar para esta sala e tirar conclusões…”

Traumatizado por Mahmoud Ahmadinejad — o Presidente iraniano que, em 2005, disse que Israel devia ser “varrido do mapa” —, Israel é dos países que mais brama contra o acordo nuclear, assinado em Genebra, a 14 de julho passado. “É um acordo problemático, pelas suas fraquezas e falhas”, diz Emily Landau, que dirige o Programa de Segurança Regional e Controlo de Armas do INSS. “Não assegura a contenção do Irão.”

O sistema de verificação é uma das fraquezas. As instalações nucleares iranianas estão a ser inspecionadas, mas há sítios militares sob suspeita que Teerão não deixa que sejam vistoriados — como o complexo de Parchin, no norte.

“Há informações de serviços secretos nas mãos da Agência Internacional de Energia Atómica sobre atividades ali desenvolvidas”, diz a investigadora. A Agência tem um mandato para ir ao local, mas o Irão não colabora. “No verão, houve uma inspeção a Parchin. Enquanto os iranianos recolhiam amostras do solo, os inspetores estavam do lado de fora do complexo a vigiar com câmaras…”

Violações “insignificantes”

Emily Landau defende que, em nome de um processo de intenções ocidental de que dentro de 10 ou 15 anos (a validade do acordo) talvez o Irão seja mais moderado, a comunidade internacional vai fechar os olhos às ilegalidades de Teerão. “Não vai haver vontade política para denunciar violações ao acordo. O impulso vai ser dizer que não são significativas.”

Foi o que aconteceu em outubro após o Irão testar um míssil balístico (que pode transportar ogivas nucleares). “Os americanos disseram: ‘sim, viola a resolução do Conselho de Segurança, mas não o acordo nuclear’. É ridículo.” Para Telavive, a não inclusão do programa de mísseis balísticos do Irão é uma falha grave do acordo.

Este fim de semana, está previsto o levantamento formal de sanções ao Irão por parte de EUA e da União Europeia. “Este foi um bom acordo para o Irão”, conclui a israelita. “Sente-se forte e, por isso, sem razões para ser mais moderado para com os EUA. A inimizade com os EUA e Israel é uma forte componente deste regime. O Irão vai testar a comunidade internacional.”

O “Expresso” viajou a convite da Embaixada de Israel em Portugal

(Foto: Jovens militares israelitas, nos Montes Golã MARGARIDA MOTA)

Artigo publicado no Expresso, a 16 de janeiro de 2016