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“Instabilidade no Norte de África já tem impacto nos fluxos migratórios para a Europa”, e para a costa algarvia

A instabilidade na Tunísia, a ausência de Estado na Líbia e a tensão militar entre Marrocos e Argélia podem alimentar fluxos migratórios na direção da Península Ibérica. Ao Expresso, o diretor do programa para o Norte de África do International Crisis Group diz que “um aumento vertiginoso da imigração ilegal para Portugal não é provável para já”, mas… esta terça-feira o tema será discutido numa conferência organizada pelo Observatório do Mundo islâmico, em Lisboa

Nos últimos anos, o Mediterrâneo tornou-se um cemitério para migrantes desesperados que arriscam a vida (e em muitos casos perdem-na) em frágeis embarcações para tentar chegar às costas da Europa. Um fluxo migratório tem-se feito sentir com maior intensidade junto às fronteiras da Europa de Leste, com milhares de pessoas escondidas em florestas (onde já existem campas de migrantes que morreram ao frio) à espera de oportunidade para pôr o pé em território da União Europeia.

De forma mais discreta e menos numerosa, há cada vez mais embarcações provenientes do continente africano a lançarem-se na direção da Península Ibérica e a chegarem à costa algarvia.

“Por enquanto, o número de tentativas para chegar ao Algarve é limitado. Não é possível falar numa verdadeira rota de imigração ilegal a partir de Marrocos. Portugal já recebeu cerca de 100 migrantes provenientes de Marrocos dessa forma e parece haver um ligeiro aumento este ano comparado com 2020”, diz ao Expresso Riccardo Fabiani, diretor do programa para o Norte de África do International Crisis Group.

“Ao longo deste ano, já foi possível observar um aumento (comparativamente a 2020) de embarcações provenientes de Marrocos para Espanha. Vale a pena lembrar também que a rota do Mediterrâneo Ocidental é a segunda mais importante, depois da rota entre Líbia/Tunisia e Itália.”

Maioria dos migrantes é magrebina

Uma constatação importante para se perceber e conseguir prever a evolução deste fenómeno prende-se com o facto de a maioria dos migrantes que usam a rota do Mediterrâneo Ocidental ser magrebina. “Isso revela que a situação política e económica no Norte de África está a piorar e que esta instabilidade já tem impacto na população e nos fluxos migratórios para a Europa”, explica Fabiani, que esta terça-feira irá desenvolver o tema na conferência “Norte de África: tensões e conflitos”, organizada pelo Observatório do Mundo Islâmico e realizada na Biblioteca Arquiteto Cosmelli Sant´Anna, em Lisboa (18h30), com transmissão online aqui.

“Há várias explicações para este fenómeno. Em primeiro, a situação económica no Norte de África é cada dia mais difícil, especialmente por causa da covid-19 mas também porque a esses países falta um modelo de desenvolvimento capaz de oferecer um número suficiente de empregos, sobretudo para os jovens”, desenvolve o investigador do International Crisis Group. “Em segundo, nos últimos anos, a promessa de abertura política e democracia desapareceu.”

  • TUNÍSIA: Dez anos após o movimento da Primavera Árabe, o país onde tudo começou continua sem consolidar a sua democracia e sem conseguir estabilidade. Invocando a urgência em combater a corrupção, em julho passado, o Presidente Kaïs Saïed dissolveu o Parlamento e concentrou em si os principais poderes do Estado. “A maioria da população está desiludida com a democracia, que não produziu os efeitos esperados de desenvolvimento económico e de combate à corrupção”, comenta Fabiani.
  • LÍBIA: É outro país que ainda não encontrou o seu rumo após a queda do ditador Muammar Kadhafi, há dez anos. Duas autoridades políticas disputam o poder, condenando a sociedade a uma ausência de perspetivas que se arrasta. “Assistimos a um impasse político devido às divisões crescentes entre as fações líbias relativamente às eleições [legislativas e presidenciais] previstas para 24 de dezembro”, neste país rico em petróleo.
  • MARROCOS: Em novembro de 2020, a Frente Polisário pôs termo a um cessar-fogo que durava há dez anos e retomou a luta armada contra Marrocos em nome da autodeterminação do território do Sara Ocidental. Este conflito contamina a relação entre Marrocos e a vizinha Argélia (que abriga milhares de refugiados sarauís). “Estas tensões militares entre Marrocos e a Frente Polisário e um risco cada dia maior de uma guerra entre Argélia e Marrocos podem alimentar nova vaga migratória”, alerta Fabiani.

“Embora um aumento vertiginoso da imigração ilegal para Portugal não seja provável para já, há uma hipótese de a desestabilização do Norte de África poder levar mais pessoas a tentar chegar a Espanha e a Portugal, e tornar a gestão da imigração ilegal nessa região muito mais complicada do ponto de vista político e logístico”, alerta Fabiani.

A estratégia de Portugal

A chegada ao Algarve de embarcações com migrantes marroquinos levou Portugal, em agosto do ano passado, a encetar conversações com Marrocos com vista à criação de uma rede de migração legal, dada a necessidade de Portugal relativamente a mão de obra estrangeira para determinadas atividades.

“O Governo português parece apostar numa estratégia preventiva face ao risco de um aumento da imigração ilegal e negocia com Marrocos um acordo para permitir a imigração legal deste país para Portugal. Parece-me uma estratégia inteligente mas também um sinal de que o problema da imigração clandestina poderia se tornar mais perigoso nos próximos anos.”

Com os migrantes a procurarem rotas alternativas para tentarem para chegar à Europa, a abordagem da União Europeia mantém-se a mesma de sempre: desembolsar milhões para conter o problema na margem sul do Mar Mediterrâneo. “A estratégia nunca mudou: a UE continua a apoiar os Estados ‘tampão’ do Norte de África para gerir os fluxos provenientes da África subsariana e para monitorizar o litoral e assim impedir tentativas de travessia para a Europa”, conclui Fabiani.

“Trata-se de uma estratégia focada na segurança e no controlo das fronteiras e que não presta muita atenção aos outros fatores por detrás deste fenómeno, como o desemprego, a instabilidade, as alterações climáticas e a falta de desenvolvimento económico.”

(FOTO Refugiados tentam atravessar o Mediterrâneo num insuflável, desde a costa da Turquia até à ilha grega de Lesbos MSTYSLAV CHERNOV / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de novembro de 2021. Pode ser consultado aqui

Primavera árabe faz 10 anos

A esperança na mudança não se concretizou. E a ocorrência de uma segunda vaga de protestos revela que na rua árabe subsiste a insatisfação

Plantar a democracia na Praça Tahrir, no Cairo CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

A pandemia acabou com os protestos nas ruas da Argélia mas, na rede social Twitter, Said não se cala. Este argelino, que se notabilizou como ativista digital durante as manifestações pacíficas de 2019-2020, motivadas pela vontade de Abdelaziz Bouteflika de se recandidatar a um quinto mandato presidencial, continua a disparar vídeos, fotos e informação de todo o tipo, demonstrativos de tudo quanto o leva a rejeitar o regime — seja o atraso da vacinação contra a covid-19 seja o tratamento dado a manifestantes que estão presos. “Seguramente que os protestos recomeçarão em força a seguir à pandemia”, garante ao Expresso. “Haverá marchas gigantescas.”

Até aparecer o novo coronavírus, a Argélia era um dos países que protagonizavam uma espécie de segunda vida da primavera árabe — o movimento de contestação popular que explodiu em 2011 e derrubou quatro ditadores: Zine El Abidine Ben Ali, na Tunísia, Hosni Mubarak, no Egito, Muammar Kadhafi, na Líbia, e Ali Abdullah Saleh, no Iémen.

Contrato social falido

“As revoltas de 2011 puseram em marcha exigências populares, no sentido da responsabilização de governos, que continuam a colocar os regimes autocráticos sob pressão, por todo o Médio Oriente. Quanto às manifestações populares da segunda vaga — na Argélia, Sudão, Líbano e Iraque —, têm raízes diferentes e seguem trajetórias particulares. Mas partilham com os protestos de 2011 a rejeição generalizada de um contrato social falido e conseguiram desafiar governantes autocráticos e até confrontar os militares”, diz ao Expresso Eugene Rogan, professor de História Contemporânea do Médio Oriente na Universidade de Oxford (Reino Unido).

Na Argélia os protestos visaram um regime caduco. No Líbano começaram depois de o Governo taxar serviços de comunicação como o WhatsApp e cedo atingiram o sistema confessional que define a organização política. No Iraque os alvos foram a corrupção e o peso das milícias. E no Sudão, onde há uma transição política em curso, a revolta começou após a triplicação do preço do pão.

Aprender com os erros

Se em 2011, estes quatro países — traumatizados por guerras civis não muito longínquas — não reagiram à primavera árabe, hoje são a prova de que a insatisfação se mantém nas ruas. Segundo o historiador norte-americano, há espaço para os árabes continuarem a sonhar. “Resta ver se estes novos movimentos aprenderam as lições de 2011 sobre como conter o poder dos militares, organizar grupos de ação política capazes de assumir o poder após a queda dos governantes autocráticos, institucionalizar a mudança política através de uma reforma constitucional, evitar soluções armadas para problemas civis. Resta ver se terão mais êxito ou mostrarão mais resistência a forças contrarrevolucionárias do que os movimentos de 2011.”

Hisham pagou caro o envolvimento nos protestos no seu Egito natal. Simpatizante da Irmandade Muçulmana, foi preso após a formação islamita — que venceu as primeiras eleições livres, a seguir à revolução — ter sido arredada do poder por um golpe militar liderado pelo atual Presidente, Abdul Fatah Al-Sisi. “Estive preso 366 dias”, conta ao Expresso. Saiu do Egito e viveu uns anos na Turquia. Hoje mora no Reino Unido. “Pedi asilo aqui e concederam-mo. Em 2025, terei cidadania britânica. Depois poderei viajar até ao Egito com passaporte do Reino Unido. Ninguém me poderá tocar.”

O peso dos mais jovens

Engenheiro de formação, Hisham está a oito meses de terminar um mestrado em Inteligência Artificial, na Universidade de Plymouth. “Depois talvez consiga lecionar em universidades, aqui.” Aos 38 anos, traça na sua mente todo um futuro que lhe está vedado no seu país. “Neste momento, nada no Egito é aconselhável enquanto a democracia não regressar.”

A odisseia de Hisham evidencia feridas abertas durante a primavera árabe: a perseguição a vozes da oposição e a falta de perspetivas dos jovens. “Nas sociedades árabes o verdadeiro desafio é o crescimento demográfico, o peso político dos que têm menos de 30 anos”, diz Eugene Rogan. “Governos autocráticos incapazes de proporcionar aos jovens um bom futuro, dependentes da repressão para permanecer no poder, ver-se-ão desafiados por revoltas populares demasiado grandes para serem controladas.”

Dez anos passados, a esperança de um novo Médio Oriente, mais livre e democrático, não se materializou. Líbia, Síria e Iémen foram engolidos por guerras intermináveis. Dos quatro países que viram ditadores depostos, apenas a Tunísia concretizou um processo de transição democrática.

“A Tunísia, sem dúvida, lançou as bases da democracia há dez anos. O progresso político é uma realidade. Nesse aspeto, a revolução cumpriu a sua promessa. O problema é que esta abertura política, que se deu de forma brutal, não foi acompanhada de progresso social e económico”, comenta ao Expresso a politóloga marroquina Khadija Mohsen-Finan, autora do livro “Tunisie, l’Apprentissage de la Démocratie — 2011-2021” (Tunísia, a aprendizagem da democracia, sem edição portuguesa). “A vida das pessoas não melhorou, pelo contrário. Para os tunisinos a democracia tornou-se obstáculo à mudança e não é essencial, tendo em conta as suas dificuldades quotidianas.”

O peso dos mais jovens ??????????????

Um dos aspetos que tornam o processo tunisino único decorre da atuação do partido islamita Ennahda, vencedor das primeiras eleições livres, que optou por fazer pontes com as demais forças — o que a Irmandade Muçulmana não fez no Egito —, chegando ao ponto de abdicar da sua agenda religiosa.

Se em 2011, os partidos islamitas emergiram como sucessores naturais das ditaduras, hoje não é certo que isso se repita. “No Líbano e no Iraque, os manifestantes apelaram a uma política não-sectária. Além disso, a Irmandade Muçulmana foi fortemente reprimida na maioria do mundo árabe, a seguir à contrarrevolução de 2013 no Egito. Na Argélia e no Sudão, os protestos permaneceram essencialmente seculares, em termos de liderança e orientação”, conclui Rogan. “Já não parece que uma onda islâmica vá seguir-se aos protestos contra os governos autocráticos.” Aos dez anos, a chamada primavera árabe reinventa-se.

O QUE ACONTECEU

TUNÍSIA — A 14 de janeiro de 2011 Ben Ali fugiu do país, após 28 dias de protestos e 23 anos de poder. Iniciou-se uma transição democrática na qual têm prevalecido o diálogo e a propensão para o consenso. Os militares nunca interferiram.

EGITO — Hosni Mubarak não resistiu à contestação na Praça Tahrir e a Irmandade Muçulmana emergiu da clandestinidade para vencer as primeiras eleições livres. Em 2013, um golpe militar sentenciou os islamitas e devolveu o poder a um homem-forte, o general Sisi.

LÍBIA — Ao fim de 42 anos no poder, Muammar Kadhafi foi morto numa rua de Sirte, quando o país levava meses de protestos. Seguiu-se a guerra civil (que continua, com interferência externa), alimentada pelo carácter tribal da sociedade.

IÉMEN — Acossado pelas ruas, Ali Abdullah Saleh negociou a saída do poder. A rivalidade entre tribos, a existência de grupos separatistas e de um braço da Al-Qaeda alimentaram uma guerra que subsiste, com consequências humanas catastróficas.

SÍRIA — Bashar al-Assad combateu a contestação popular com o fogo das armas, dando origem a uma guerra civil que arrastou vários países da região e não só.

BAHREIN — Os protestos populares foram esmagados com a ajuda dos tanques da vizinha Arábia Saudita, que entrou no país em socorro dos Al-Khalifa.

(FOTOS De cima para baixo e da esquerda para a direita: Protestos no Egito (Praça Tahrir), Tunísia, Líbia, Iémen, Síria e Bahrain (Praça da Pérola) WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 15 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui

Chipre, Síria, Líbia, Nagorno-Karabakh… a Turquia está em todas. Com que objetivo?

A Turquia participa atualmente em vários conflitos nas imediações do seu território. Desígnio nacional por parte de um país que há 100 anos era um império? Ou sonhos de um Presidente que pensa e age como um sultão?

No imenso território que nos dias de hoje corresponde ao antigo Império Otomano, o país que herdou esse legado civilizacional está envolvido em múltiplas disputas nas imediações do seu território. Umas contendas acenderam-se mais recentemente, outras são antigas, como o problema de Chipre, que decorre da invasão turca em 1974 e da criação da República Turca de Chipre do Norte no terço norte da ilha.

Este domingo os cipriotas turcos realizaram a segunda volta das eleições presidenciais e o grande vencedor foi… Recep Tayyip Erdogan, o Presidente turco. Nos boletins de voto, Ersin Tatar, de 60 anos, foi o mais votado, com 52% dos votos — era o candidato apoiado por Ancara. Primeiro-ministro há menos de ano e meio, é um nacionalista defensor do atual status quo da ilha: dois Estados separados.

Tatar derrotou o atual Presidente, Mustafa Akinci, de 72 anos, que prometera trabalhar no sentido da reuni cação com a República de Chipre — a parte grega da ilha, membro da União Europeia — sob o teto de uma federação. A concretizar-se, seria o fim da tutela turca sobre Chipre do Norte.

Oficialmente, a Turquia reconhece a República Turca de Chipre do Norte como país independente. É, aliás, o único Estado a reconhecê-lo. Na prática, trata-a quase como uma província. A 6 de outubro, a reabertura da praia de Varosha — ‘terra de ninguém’ na linha verde que separa os dois Chipres — foi uma demonstração turca de ‘quero, posso e mando’, que mina a mais pequena perspetiva de negociações entre cipriotas turcos e cipriotas gregos.

A reabertura de Varosha acontece numa altura em que a Turquia mantém outra contenda com a Grécia nas águas do Mediterrâneo Oriental: os dois países — membros da NATO — disputam o acesso a reservas de gás e reivindicam áreas marítimas que se sobrepõem.

No mês passado, a Turquia apresentou o que designou por doutrina Pátria Azul (Mavi Vatan, em turco), que visa assegurar o controlo das áreas marítimas em redor das suas costas. Este imperativo tem originado momentos de grande tensão no Mediterrâneo Oriental e, frequentemente, as atividades de perfuração realizadas pelos turcos colocam em estado de alerta os militares gregos.

Foi o que aconteceu em julho passado, quando Ancara despachou o navio de exploração sísmica ‘Oruc Reis’ para uma área que a Turquia reclama ser sua, entre Chipre e a ilha grega de Creta, mas que cipriotas e gregos dizem sobrepor-se às suas Zonas Económicas Exclusivas. O ‘Oruc Reis’ foi escoltado por navios de guerra turcos.

A questão de Chipre e as tensões no Mediterrâneo Oriental são apenas dois de vários teatros onde a Turquia está ativa. Num ano atípico, em que a esmagadora maioria dos países está tomada pela batalha contra a covid-19, a Turquia mostra as garras e multiplica-se em intervenções fora de portas.

Há tropas turcas a operar na Síria, com quem a Turquia partilha mais de 800 quilómetros de fronteira. Têm um olho nas movimentações da minoria curda síria (que Ancara acusa de conluio com os curdos turcos, que aspiram à secessão) e o outro na contenção de eventuais novas vagas de refugiados a caminho do seu território. A nível político, a Turquia é, juntamente com Rússia e Irão, um dos promotores do Processo de Astana, a maratona de negociações que tenta pôr fim ao conflito sírio.

Ao lado do Qatar, contra a Arábia Saudita e Emirados

Há também militares turcos na Líbia, um dos palcos da rivalidade entre Turquia e Qatar por um lado (em apoio do Governo sedeado em Trípoli, reconhecido pelas Nações Unidas) e Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos (ao lado do general Khalifa Haftar, que lidera uma ofensiva a partir do leste do país).

O interesse da Turquia pela Líbia redobrou a partir do momento em que foram descobertas novas jazidas de gás no Mediterrâneo Oriental. A 28 de novembro de 2019, o próprio Erdogan e o primeiro-ministro líbio, Fayez Sarraj, assinaram dois acordos que foram mal recebidos em capitais da região: um sobre segurança e cooperação militar e o outro relativo à delimitação da fronteira marítima.

“A política externa da Turquia baseia-se numa abordagem anti-status quo. A liderança turca acredita que o status quo atual em todas essas regiões é contrário aos interesses da Turquia”, afirma ao Expresso Emre Kursat Kaya, investigador do EDAM, think tank com sede em Istambul. “Mas isso não é novo. Erdogan partilha essa crença com a tradicional elite militar secular kemalista [apoiante do laicismo instaurado pelo fundador da Turquia moderna, Mustafa Kemal Atatürk], que está de regresso desde 2016”, quando Erdogan foi alvo de uma tentativa de golpe de Estado.

“Portanto, é importante olhar para as políticas de Ancara através de uma abordagem mais homogénea do que focar apenas o Presidente. O que mudou nos últimos anos é o facto de haver mais espaço na região, decorrente da ausência dos Estados Unidos e da relutância da União Europeia, e do aumento da capacidade económica, cultural e militar da Turquia.”

Ao lado do Azerbaijão em Nagorno-Karabakh

Mais recentemente, a Turquia tem ganho protagonismo na região do Cáucaso, onde um dos seus grandes aliados — Azerbaijão — disputa há décadas com a Arménia o controlo do enclave de Nagorno-Karabakh, de maioria arménia mas integrado em território azeri. Ancara tem sido acusada de contribuir para reacender o conflito, sobretudo após estatísticas revelarem que este ano já exportou seis vezes mais equipamento militar para o Azerbaijão, designadamente drones, lançadores e munições.

Em tempos, o ex-Presidente azeri Heydar Aliyev descreveu a relação entre o Azerbaijão e a Turquia como “uma nação, dois Estados”. Hoje, além dessa proximidade histórica e cultural, Ancara quer diversificar as suas fontes de fornecimento energético: este ano o Azerbaijão tornou-se o principal fornecedor de gás da Turquia.

Muito deste protagonismo turco decorre da retirada dos Estados Unidos de algumas regiões. “Não só a Turquia, mas outros atores regionais, como os Emirados Árabes Unidos e o Irão, beneficiaram claramente do não-envolvimento dos EUA”, diz Emre Kursat Kaya. “Há um vácuo de poder na região e, uma vez que nenhuma grande potência quer preenchê-lo, estamos a testemunhar uma luta pelo poder regional.”

Superar o fundador

Esta agenda combativa consagra a Turquia como potência regional atenta que aproveita cada foco que se acende para reclamar influência. O investigador do EDAM admite que o Presidente turco tenha objetivos pessoais a perseguir.

“Em primeiro lugar, há um aspeto político interno óbvio em qualquer envolvimento turco. Erdogan é conhecido por ser capaz de reconhecer o estado de espírito do público e de agir em conformidade. Nenhuma iniciativa de política externa turca dos últimos cinco anos foi feita ao arrepio da opinião pública”, diz. “Em segundo lugar, após quase duas décadas na liderança do país, a base eleitoral do Presidente compara-o a Atatürk, o fundador da República Turca. Há uma rivalidade indireta entre eles, e o Presidente Erdogan beneficiaria com a imagem de defensor dos interesses turcos no exterior.”

Erdogan ocupa a presidência da Turquia desde 2014 — antes, foi primeiro-ministro entre 2003 e 2014. Cumpre o segundo mandato, que, ao abrigo da Constituição, será o último. Mas Erdogan é um líder com fama de sonhar — e agir — como um sultão, pelo que as próximas eleições presidenciais, marcadas para 2023, estão no seu horizonte.

“As eleições presidenciais agora estão vinculadas às eleições parlamentares. Portanto, teoricamente, Erdogan ou o Parlamento poderiam convocar eleições antecipadas a qualquer momento, o que obrigaria Erdogan a candidatar-se de novo”, explica ao Expresso Nicholas Danforth, especialista das relações entre a Turquia e os EUA no think tank German Marshall Fund.

“Erdogan já apresentou a sua teoria sobre porque deveria ter permissão para voltar a concorrer em 2023. Suspeito que um tribunal constitucional composto por juízes nomeados por ele estaria inclinado a endossar essa posição.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de outubro de 2020. Pode ser consultado aqui

Mubarak morreu em paz. O que aconteceu aos outros líderes que combateram a “Primavera Árabe”?

Dos seis líderes que enfrentaram os principais palcos de contestação da chamada Primavera Árabe, apenas dois continuam vivos, e ambos no poder. Um graças ao apoio de um dos pesos pesados do Médio Oriente, outro após um banho de sangue que dura há quase nove anos

Hosni Mubarak, Presidente do Egito entre 1981 e 2011 THIERRY EHRMANN / CREATIVE COMMONS

A morte do antigo líder egípcio Hosni Mubarak, conhecida na terça-feira, foi o culminar da lenta agonia de um homem que chegou a ser tratado, ainda que em sentido figurado, pelo título de “faraó”. No poder entre 1981 e 2011, foi o Presidente que mais tempo governou o Egito, até os ventos da mudança que varreram o Médio Oriente — o movimento da “Primavera Árabe” — chegarem também ao Cairo. Durante 18 dias, ignorou os apelos à demissão que saíam da Praça Tahrir, mas acabou deposto, a 11 de fevereiro de 2011.

Diante da Justiça, teve de responder por crimes relacionados com corrupção, abuso de poder e o assassínio de manifestantes, mas raramente abriu a boca. A fragilidade com que aparecia em tribunal — deitado numa cama de hospital, dentro de uma gaiola e de óculos escuros — foi a suprema humilhação para quem se julgara intocável à frente de um país que fora outrora uma das grandes civilizações universais. Foi condenado a prisão perpétua, depois absolvido e libertado a 24 de março de 2017, mas a saúde não deu trégua. Morreu aos 91 anos, com a imagem de um homem irredutível em sair do poder quando não era mais desejado, mas também de um grande comandante da Força Aérea na guerra israelo-árabe de 1973 e da nostalgia de um país estável e cheio de turistas.

TUNÍSIA: ZINE EL ABIDINE BEN ALI

Foi na Tunísia que a “Primavera Árabe” começou e foi o seu líder também o primeiro a cair, ao 28º dia de protestos. A 14 de janeiro de 2011, numa corrida contra o relógio, Ben Ali passou o poder “temporariamente” para o seu primeiro-ministro e fugiu do país, com a mulher, Leila, e os três filhos. Após a França negar autorização de aterragem ao seu avião, rumou à cidade saudita de Jeddah, onde um outro ditador, o ugandês Idi Amin, viveu os últimos dias.

No seu exílio saudita, Ben Ali escapou ao mandado internacional de prisão, mas não à justiça tunisina. A 20 de junho de 2011, o ex-casal presidencial foi condenado “in absentia” a 35 anos de prisão por roubo e posse ilegal de dinheiro e joias. Ben Ali morreu a 19 de setembro de 2019, de cancro na próstata, num hospital de Jeddah e foi enterrado na cidade de Medina. Tinha 83 anos.

LÍBIA: MUAMMAR KADHAFI

A revolução na Líbia levava oito meses nas ruas quando, a 20 de outubro de 2011, Muammar Kadhafi tombou às mãos dos seus — tinha 69 anos de idade. Linchado numa rua de Sirte, o último reduto das forças que lhe eram leais, terminava de forma inglória 42 anos de poder absoluto. Ruía também o sonho de um país único, cuja estrutura política e forma de governo ele próprio idealizara no famoso “Livro Verde”, uma espécie de Constituição, publicado em 1975 e distribuído pelas embaixadas líbias nos quatro cantos do mundo. Hoje, apesar da estabilidade continuar a ser uma miragem no país — e as milícias armadas um grande desafio à paz —, o Livro não passa de uma peça de coleção e Kadhafi um líder que desperta sentimentos contrários na Líbia.

IÉMEN: ALI ABDULLAH SALEH

Abandonou o poder pelo próprio pé ainda que pressionado por dez meses de manifestações populares no Iémen. A 23 de novembro de 2011, em Riade, Ali Abdullah Saleh assinou um acordo de transferência de poder para o seu vice-presidente. Em troca, obteve imunidade para si e para a família, suspeita de enriquecimento à custa do erário de um dos países mais pobres do mundo.

Com a justiça dos tribunais de mãos atadas, vingou a justiça das ruas. A 4 de dezembro de 2017, Saleh foi assassinado nos arredores de Sana quando, após uma emboscada, tentava chegar de carro a território controlado pelos sauditas. Não chegou ao seu destino, atingido mortalmente por um “sniper” dos rebeldes houthis. Estes — que controlavam e ainda controlam a capital — são antigos aliados contra quem Saleh apelara à revolta dois dias antes de ser morto, aos 70 anos.

SÍRIA: BASHAR AL-ASSAD

Aos 54 anos, Bashar al-Assad faz jus ao seu nome de família e resiste no poder, em Damasco, como um leão (“assad”, em árabe). Dos quase 20 anos que o líder sírio leva no poder, metade foram vividos a defender-se, no contexto de uma guerra civil iniciada em março de 2011 e alimentada por uma componente jiadista (Daesh e Al-Qaeda) e por muitos interesses geopolíticos.

O conflito resultou da repressão com que Bashar respondeu aos protestos da “Primavera Árabe” a que os sírios achavam que também teriam direito e que em Tunis e no Cairo já tinham resultado em revoluções. O sírio sobreviveu politicamente mas hoje, no estrangeiro, poucas capitais estão dispostas a estender-lhe a passadeira, para além dos aliados Rússia e Irão. Entre milhares de mortos e milhões de refugiados, “a Síria é a grande tragédia deste século”, disse António Guterres, quando ainda era Alto Comissário da ONU para os Refugiados. Bashar al-Assad é o rosto dessa grande catástrofe.

BAHRAIN: HAMAD BIN ISA AL-KHALIFA

Era uma revolução condenada à nascença, ainda assim uma fatia importante da população do Bahrain não quis deixar de ir à luta. Maioritariamente xiitas, os habitantes deste pequeno reino ribeirinho ao Golfo Pérsico são governados por uma monarquia sunita. Por essa razão quando, em fevereiro de 2011, se viu acossado por manifestações antirregime em Manama, o rei Hamad bin Isa al-Khalifa apressou-se a pedir ajuda à vizinha Arábia Saudita (o gigante sunita da região), que ajudou a conter a rebelião enviando tropas e tanques. O eventual sucesso de uma revolta xiita na Península Arábica causava calafrios aos sauditas pelo significado que teria para o rival Irão (o gigante xiita), do outro lado do Golfo.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 26 de fevereiro de 2020. Pode ser consultado aqui

A segunda vaga da Primavera Árabe

Na Argélia, no Sudão e na Líbia, os povos estão nas ruas em ações de protesto, numa espécie de reedição da Primavera Árabe que, há oito anos, varreu vários países do Norte de África e do Médio Oriente. Argelinos e sudaneses manifestam-se contra regimes que levam décadas de poder. Já os líbios, alertam para o fantasma da guerra que volta a assustar um país que, após a queda do ditador, ainda não encontrou o seu rumo

Em menos de duas semanas, os dois líderes árabes há mais tempo no poder — se retirarmos da equação os monarcas — foram empurrados para fora de cena.

Na Argélia, Abdelaziz Bouteflika renunciou à presidência a 2 de abril, a menos de um mês de completar 20 anos no cargo (tomou posse pela primeira vez a 27 de abril de 1999) e a menos tempo ainda de tentar ser reeleito para um quinto mandato nas presidenciais inicialmente agendadas para 18 de abril — e agora previstas para 4 de julho.

Fisicamente muito debilitado, confinado ao conforto privado e quase sem aparecer em público, Bouteflika não resistiu a quase cinco semanas de oposição popular nas ruas. Afastado da presidência, o poder transitou para as mãos de um triunvirato a que os argelinos apelidam de “3B”: Abdelkader Bensalah (presidente interino), Tayeb Belaiz (ministro do Interior) e Noureddine Bedoui (primeiro-ministro).

São eles agora o rosto do odiado regime que o povo continua a contestar, em especial às sextas-feiras, quando gozam o fim de semana e algumas prédicas nas mesquitas têm grande poder mobilizador. No vídeo abaixo, captado em Argel na última sexta-feira, milhares de pessoas entoam o hino nacional.

No Sudão, Omar al-Bashir também saiu de cena a pouco mais de dois meses de completar 30 anos na liderança do país. Entronizado a 30 de junho de 1989, foi deposto a 11 de abril, após protestos populares contra o custo de vida, iniciados em várias cidades em meados de dezembro, se terem transformado em contestação política.

Indiciado no Tribunal Penal Internacional por genocídio e crimes contra a humanidade praticados na região do Darfur, Al-Bashir ficou sob custódia dos militares. Nas ruas, os sudaneses temem que os generais tomem também as rédeas do país e não desarmam, exigindo um governo liderado por civis.

Alaa Salah, uma estudante de arquitetura na Universidade Internacional de Cartum, de 22 anos, tornou-se um símbolo destes protestos, após ser fotografada em cima de um carro a discursar para uma multidão. Em declarações à alemã Deutsche Welle, aquela a quem chamam “Kendaka” (que na cultura núbia significa uma mulher forte e revolucionária) ignorou as ameaças de morte que recebeu após o mediático momento e afirmou-se feliz por ver acontecer uma “revolução” no seu país.

Os protestos na Argélia e no Sudão surgem oito anos após o movimento da Primavera Árabe ter varrido vários países do Norte de África e do Médio Oriente e originado a queda de vários autocratas. Na Tunísia, Zine El Abidine Ben Ali fugiu para a Arábia Saudita; no Egito, Hosni Mubarak foi deposto pelos militares; e na Líbia, Muammar Kadhafi foi executado numa rua da cidade de Sirte, a 20 de outubro de 2011.

Desde o desaparecimento do coronel líbio, o país mergulhou no caos, dividido em dois poderes que não se entendem: um governo instalado na capital, Trípoli (ocidente), liderado pelo primeiro-ministro Fayiz Al-Sarraaj e reconhecido pela comunidade internacional; um outro com sede na cidade de Tobruk (leste), alinhado com Khalifa Haftar, um general que controla a região e que tem atualmente em curso uma ofensiva militar para tomar a capital.

Na semana passada, por pressão da França, a União Europeia falhou a adoção de uma posição condenatória das movimentações do general líbio. Numa posição que contraria a sensibilidade maioritária na comunidade internacional, Paris colocou-se ao lado de Haftar, que beneficia também de equipamento militar fornecido por Egito, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.

Este posicionamento francês não será alheio ao facto de a Líbia ser um grande produtor de petróleo e de ter as maiores reservas localizadas precisamente nos “domínios” do general Haftar, no leste do país. Até agora, é a petrolífera italiana ENI que tem tido um acesso privilegiado às jazidas líbias, mas a francesa Total já deu mostras de não querer ficar atrás.

(IMAGEM AK ROCKEFELLER)

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 17 de abril de 2019. Pode ser consultado aqui

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