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Nas ruas do Irão há dois meses, protestos soam cada vez mais a revolução

Não é a primeira vez que os iranianos contestam o regime em público. Mas um conjunto de características distingue os protestos atuais de jornadas anteriores. Emmanuel Macron já defendeu estar em curso uma “revolução”. E com futebolistas iranianos solidários com os protestos, o Mundial do Catar pode provocar ondas no país, com os jogos da Team Melli a darem pretexto para ajuntamentos populares, que é tudo o que o regime dos ayatollas quer evitar

Há exatamente dois meses, o Irão começava a revelar sintomas do desconforto que as regras apertadas da teocracia em vigor desde 1979 provocam numa fatia da população cada vez mais sonora. Em dezenas de cidades, milhares de pessoas começaram a sair às ruas em protesto contra a violência do regime, que acabara de ceifar mais uma vida — Mahsa Amini, curda de 22 anos, morreu a 16 de setembro, num hospital de Teerão, na sequência de ferimentos infligidos pela polícia da moralidade.

No Irão, protestar em público implica riscos acrescidos, dada a omnipresença nas ruas de forças zelosas da Revolução Islâmica, que investem sobre os transeuntes ao mínimo indício de desobediência — no caso de Mahsa, por não ter colocado corretamente o véu islâmico (hijab), de uso obrigatório para as mulheres.

Em 43 anos de vida que leva o regime dos ayatollahs, não é a primeira vez que os iranianos o questionam frontalmente. Quem observou jornadas de contestação anteriores — nomeadamente em 2009 (de cariz político) e 2019 (com reivindicações económicas) diz, porém, que os protestos atuais diferem de todos os outros.

Encabeçados por mulheres

“São os protestos contínuos mais amplos e duradouros do período pós-revolucionário”, diz ao Expresso Ali Vaez, diretor do programa do Irão do International Crisis Group. “Também são únicos em dois outros aspetos: são liderados por mulheres e têm o objetivo unificado de exigir o fim da República Islâmica”, não apenas de pedir reformas.

O protagonismo das mulheres decorre do caso concreto que incendiou as ruas e da forma como as iranianas se põem no lugar de Mahsa Amini. Na sequência da divulgação do caso, duas outras mulheres — jornalistas — foram levadas pelas forças do regime: Nilufar Hamedi, que investigou o caso no hospital onde Mahsa foi internada; e Elahe Mohammadi, que cobriu o seu funeral, na cidade de Saqqez, no Curdistão iraniano.

Estima-se que cerca de 15 mil pessoas já tenham sido presas nos últimos dois meses de protestos. Segundo a organização Iran Human Rights, com sede em Oslo, na Noruega, a repressão aos protestos provocou pelo menos 326 mortos, incluindo 25 mulheres e 43 menores.

Moharebeh, um crime polivalente

Para muitos detidos, acusados de moharebeh, o futuro é sombrio. Ao Expresso, o iraniano Mohammed Eslami, investigador na Universidade do Minho, explica o significado da palavra: “Moharebeh quer dizer ‘lutar contra Deus’ ou contra valores divinos. Diferentes países islâmicos interpretaram moharebeh de forma diferente. Mas no Irão, todos os ataques terroristas, danos causados ao património público, atividades armadas e roubos à mão armada, tráfico de estupefacientes e violação são classificados moharebeh. Todos esses crimes são punidos com pena de morte”.

Domingo passado, as autoridades emitiram a primeira sentença de morte, no contexto dos protestos — que Teerão rotula de “motins” —, contra um indivíduo não identificado, acusado de “incendiar um edifício do Governo, perturbar a ordem pública e conluio para realizar crimes contra a segurança nacional”, além de moharebeh e “corrupção na Terra”.

Deputados pedem execuções em massa

A sentença seguiu-se a uma posição, no Parlamento iraniano (Majlis), de 227 dos 290 deputados. A 6 de novembro, apelaram ao sistema judiciário para acelerar processos em que estejam implicados “inimigos de Deus” (como qualificam os manifestantes) e equacionem a possibilidade de execuções em massa, como forma de punir, intimidar e silenciar a oposição.

“O regime ainda é capaz de muito mais brutalidade e repressão”, alerta Ali Vaez. “No entanto, preocupa-se com o opróbrio internacional. Portanto, é importante que a comunidade internacional deixe claro às autoridades iranianas que pagarão um preço alto se recorrerem à execução em massa de manifestantes como meio de acabar com o movimento.”

Um dos iranianos acusados de moharebeh é o rapper curdo Saman Yasin, intérprete de temas sobre a pobreza, a desigualdade, a injustiça e, implicitamente, a negligência das autoridades que governam o país.

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Acordo nuclear estagnado

Sem que a repressão aos protestos tenha atingido essa barbárie, o Irão enfrenta já a frontal oposição de países que, ainda há meses, se esforçavam para entabular um diálogo e alcançar um entendimento com Teerão. É o caso da França e da Alemanha, signatários do tratado internacional sobre o programa nuclear iraniano (JCPOA, na sigla inglesa).

Sábado, o chanceler da Alemanha enfureceu Teerão ao divulgar um vídeo na rede social Twitter. “Só posso dizer isto à liderança em Teerão: que tipo de governo são vocês se disparam contra os próprios cidadãos?”, questionou Olaf Scholz. “Queremos continuar a aumentar a pressão sobre os Guardas da Revolução e a liderança política.”

Dois dias depois, foi a vez do Presidente francês fazer análise política. “Algo sem precedentes está a acontecer. Os netos da Revolução [Islâmica, de 1979] estão a fazer uma revolução, e estão a devorá-la”, afirmou Emmanuel Macron. “Esta revolução muda muitas coisas. Não creio que haja novas propostas que possam ser feitas agora [para salvar o acordo nuclear].”

Os protestos no Irão irromperam numa altura em que a diplomacia internacional investia no sentido de dar uma nova vida ao JCPOA — assinado em 2015 e ferido três anos depois quando Donald Trump desvinculou os Estados Unidos desse compromisso.

“A questão dos protestos no Irão e as suas amplas dimensões internacionais fizeram com que os países ocidentais tomassem uma posição. A pressão da opinião pública, por um lado, e uma oportunidade para marcar pontos, por outro, fizeram com que os países ocidentais que são partes do JCPOA levantassem questões sobre os direitos humanos no Irão”, diz ao Expresso Javad Heirannia, investigador no Centro do Médio Oriente, da Universidade Shahid Beheshti, de Teerão.

“Com base nisso, os Estados Unidos anunciaram que a questão dos protestos e o apoio aos manifestantes iranianos é prioritária sobre o renascimento do JCPOA.”

Eleição israelita complica cenário

O espaço para negociações tornou-se ainda mais exíguo depois de as legislativas de 1 de novembro em Israel ditarem o regresso ao poder de Benjamin Netanyahu.

No início de 2018, o então primeiro-ministro revelou estar em posse de “meia tonelada” de documentos sobre o programa nuclear iraniano, usurpados de forma clandestina por agentes da Mossad. Segundo Netanyahu, o material recolhido prova que a liderança iraniana mentiu durante o processo negocial que levou à assinatura do acordo internacional.

Hoje, os países ocidentais que assinaram o JCPOA “tentam retomar a questão nuclear relacionando-a com os documentos de Netanyahu e encontrar apoio para levar a questão nuclear do Irão ao Conselho de Segurança das Nações Unidas”, opina Heirannia. “Os Estados Unidos não estão muito preocupados em reativar o JCPOA. E o Irão tenta impedir que o assunto chegue ao Conselho de Segurança com base nos documentos de Netanyahu.”

Festa da bola pode ser amarga

Dentro de quatro dias, o Mundial de futebol no Catar pode transformar-se em mais uma dor de cabeça para o regime de Teerão. A seleção iraniana — conhecida como Team Melli e treinada pelo português Carlos Queiroz — está apurada e tem vindo a dar mostras de solidariedade em relação aos manifestantes.

Recentemente, num jogo amigável, em Viena, contra o Senegal, Mehdi Taremi e companhia escutaram o hino nacional sem o cantar, de cara fechada e com um casaco preto desprovido de símbolos por cima do equipamento.

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Entre os jogadores iranianos mais inconformados com a violência com que o regime reprime os protestos está Sardar Azmoun, atleta do Bayer Leverkusen. A 25 de setembro, escreveu no Instagram: “Por causa das leis restritivas que nos foram impostas, na seleção, não devo falar… corro o risco de ser mandado para casa, mas não aguento mais! Vocês nunca serão capazes de apagar isto da vossa consciência. Que vergonha! Vocês matam tão facilmente. Viva as mulheres do Irão!”

A publicação foi apagada pouco depois e a sua conta eliminada. Quando voltou às redes, Azmoun pediu desculpa. “Tenho de me desculpar com os jogadores da seleção, porque a minha ação precipitada deixou os meus queridos amigos irritados, e alguns jogadores da seleção foram insultados pelos seguidores, o que não é justo de forma alguma. O erro foi meu.”

Boicotar ou incitar à rebelião?

Entre a pressão do regime para que os atletas obedeçam às regras e a consciência que os leva a defender os conterrâneos em luta por liberdade, exemplos como o de Azmoun diante da grande montra que é o Mundial, esvaziam o argumento de quem defende que o Irão devia ser impedido de competir como forma de penalizar o regime.

“Privar a nação de uma fonte de potencial alegria nestes tempos sombrios não serviria à causa do movimento [de contestação] e, na verdade, facilitaria a vida do regime, que está preocupado com a possibilidade de os jogos se transformarem em oportunidades para mais ajuntamentos que, por sua vez, possam ser combustível para provocar mais incêndios no país”, conclui Ali Vaez.

“Mas a equipa, que já está sob enorme pressão do regime, certamente encontrará uma maneira de demonstrar que está do lado certo da história.”

(CARTOON Mahsa Amini, a curda iraniana cuja morte está na origem dos protestos OSAMA HAJJAJ / CAGLE)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de novembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Protestos no Irão: regime responde com repressão no país e bombardeamentos no Iraque

A resposta do regime de Teerão à mais recente vaga de contestação popular não se circunscreve às fronteiras do país. Desde há quase uma semana que o Irão está a bombardear bases de militantes curdos iranianos no norte do Iraque. Teerão acusa esta minoria de mais de dez milhões de pessoas de estar ativamente envolvida nos protestos

Os protestos no Irão levam quinze dias nas ruas e, a atentar nas palavras do Presidente da República Islâmica, o pior pode estar para vir. “Estamos todos tristes com este trágico incidente”, disse Ebrahim Raisi, referindo-se à morte de Mahsa Amini, a iraniana de 22 anos que perdeu a vida na sequência de ferimentos infligidos quando estava sob custódia da polícia. Porém, “o caos é inaceitável”.

Em entrevista a uma televisão pública, quarta-feira, o Raisi procurou equilibrar sentimento e firmeza. “A linha vermelha do Governo é a segurança do nosso povo. Não se pode permitir que haja pessoas a perturbar a paz da sociedade provocando tumultos.”

As palavras de Raisi podem servir de aviso a qualquer cidadão que saia à rua para contestar o regime, mas também podem ter um alvo particular. “Existem provas que demonstram que partidos separatistas curdos (mais especificamente o Komala), que têm várias atividades terroristas contra o Irão no currículo, estão envolvidos ativamente nos protestos”, especialmente nas províncias ocidentais, desvenda ao Expresso o iraniano Mohammad Eslami, investigador na Universidade do Minho.

“Até ao momento, membros desses grupos que planeavam realizar ataques terroristas foram presos no Irão transportando bombas e armas.” No Irão, o Partido Komala do Curdistão Iraniano, fundado em 1969, tem o rótulo de “organização terrorista”.

Mahsa era curda

A especial participação dos curdos nos protestos pode ter explicação. Mahsa Amini, a mulher cuja morte está na origem das manifestações, pertencia à minoria curda do país, estimada em mais de dez milhões de pessoas. Apesar de ter morrido em Teerão — onde foi detida pela “polícia da moralidade” por usar o hijab (lenço) de “forma imprópria” —, a jovem vivia na sua cidade natal, Saqqez, na província do Curdistão (noroeste), encostada ao Iraque.

Os protestos em curso, que já contagiaram mais de 160 cidades iranianas, têm mobilizado os curdos em particular, mesmo fora do país. O vídeo abaixo mostra uma manifestação em Rojava, o Curdistão sírio.

A participação dos curdos e os receios de uma escalada dos protestos para um registo mais violento levaram o regime iraniano a visar o coração da “ameaça”. Desde há quase uma semana, o Irão tem em curso uma campanha de bombardeamentos a bases de militantes curdos iranianos localizadas no Iraque. A operação tem como nome de código “Profeta de Deus”.

Quarta-feira, a agência iraniana IRNA noticiava que ”alegadamente, os Guardas da Revolução usaram 360 mísseis guiados de precisão, bem como drones suicidas”. No mesmo dia, a agência Reuters noticiava que os ataques atingiram pelo menos dez bases perto de Erbil e Sulaimaniya e que havia notícia de 13 mortos e 58 feridos.

https://twitter.com/Tasnimnews_Fa/status/1575173859233259520

“Não permitiremos a formação de nenhuma ameaça à nossa volta”, afirmou Abbas Nilforoushan, vice-comandante de operações dos Guardas da Revolução, unidade de elite das forças armadas iranianas, citado pelo órgão de informação curdo “Rudaw”.

“Onde quer que os contrarrevolucionários estabeleçam bases e se tornem fonte de operações contra a segurança da República Islâmica e do povo iraniano e tentem coordenar ou liderar movimentos terroristas, serão alvejados. As bases que atingimos recentemente tiveram o papel principal nos motins dos últimos dias.”

“As autoridades iranianas estão a tentar fingir que todas as revoltas foram lideradas pelas forças Komala e que as exigências do povo iraniano estão limitadas aos seus direitos civis”, conclui o professor Eslami. “Na verdade, a associação [aos protestos] de tropas Komala que assumiram a liderança dos distúrbios na maioria das cidades, especialmente nas províncias ocidentais, tornou o controlo dos protestos mais difícil para as autoridades iranianas. Esta é a razão para os ataques dos Guardas da Revolução às bases Komala no Curdistão iraquiano.”

(FOTO Manifestação em Melbourne, na Austrália, em solidariedade com os protestos no Irão, a 29 de setembro de 2022 MATT HRKAC / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de setembro de 2022. Pode ser consultado aqui