Makan, exausto, momentos após ter saltado a vedação de Melilla ANA BAIÃO
Makan nasceu no Mali. Na quinta-feira, depois de ter percorrido milhares de quilómetros, iludiu as autoridades espanholas e entrou clandestinamente em Melilla. Do seu grupo, de cerca de 500 indivíduos, apenas ele escapou. Desorientado, cruzou-se com a equipa do “Expresso”, que o acompanhou às urgências do hospital. Coberto de chagas, provocadas pelo arame farpado da vedação que trepara, Makan confessou estar só no mundo.
Drama de um refugiado em Melilla
Cerca de 500 clandestinos tentaram, na madrugada de ontem, passar a fronteira entre Marrocos e Melilla, mas apenas Makan conseguiu. O “Expresso” encontrou-o, minutos depois de entrar na cidade, nas imediações do bairro chinês. Coxeava e esboçava, frequentemente, esgares de dor.
As luvas de metalúrgico que trazia nas mãos, e que todos os clandestinos usam para se desembaraçarem do arame farpado no cimo da vedação, estavam rasgadas. Nos pés, já sem sapatos, os dedos escapavam através das meias rotas. Vestia dois pares de calças e uma “T-shirt” por baixo de uma camisa estampada com fotografias de David Beckham.
As jornalistas do “Expresso” solicitaram ao seu taxista que transportasse o homem até ao hospital local. Mas Jossein não quis arriscar. Se as autoridades o apanhassem com um ilegal dentro do veículo teria problemas pela certa.
Enquanto se espera por um carro que o transporte, o clandestino senta-se, com dificuldade, numa pedra na berma da estrada. Em silêncio fixa o asfalto. Entregue aos seus pensamentos, o seu olhar está cada vez mais assustado.
Não se furta à conversa, mas a comunicação é difícil. Fica-se a saber que saltou a vedação sozinho e não encontrou polícias espanhóis. Do lado marroquino, sim, havia espancamentos.
Um autocarro pára e o motorista estende uma garrafa de água. O clandestino tem alguma dificuldade em pegar nela, mas lá consegue molhar os lábios. Queixa-se muito da mão direita e não pára de tremer. Aceita tudo o que lhe é sugerido. Entra nas urgências do Hospital Comarcal pelo próprio pé e desaparece por uma porta. Na recepção, fica um curto registo: “Makan, do Mali”.
Reportagem em Melilla realizada com a fotógrafa Ana Baião. Artigo publicado no “Expresso”, a 7 de outubro de 2005
Os candidatos a imigrantes continuam a saltar todas as barreiras para chegar à Europa, que em Melilla fica um bocadinho mais próxima. Fazem milhares de quilómetros a pé e sujeitam-se a tudo. Reportagem em Melilla, com fotos de Ana Baião
Na sequência das vagas de imigração clandestina que irrompem diariamente em Ceuta e Melilla, o Governo espanhol pediu à União Europeia para acelerar as medidas de controlo previstas em relação a Marrocos. Em causa, um acordo de readmissão de clandestinos e o desbloqueamento de uma verba já decidida de 40 milhões de euros. Nos próximos dias, uma missão da Comissão deslocar-se-á aos dois enclaves, para examinar “in loco” a situação.
O presidente do Governo da cidade autónoma de Melilla pediu entretanto autorização para poder expulsar os clandestinos sem necessidade de tramitação, contrariando a lei dos estrangeiros, que obriga a que os imigrantes sejam identificados e recebam uma ordem de expulsão que deve passar pela delegação do Governo. Na ausência de acordos de repatriação com os países de origem, os clandestinos recebem um salvo-conduto para serem transferidos para a península, que deverão abandonar em 40 dias.
De visita aos dois territórios, a vice-presidente do Governo Teresa de la Vega garantiu que vão começar de imediato as repatriações para Marrocos, em conformidade com um convénio subscrito em 1992, no âmbito do qual Rabat se compromete a readmitir todos os que entrem ilegalmente em Espanha a partir do seu território. Em Ceuta, uma manifestação de naturais reivindicou a “hispanidade” da cidade, conquistada pelos portugueses em 1415 e cedida aos espanhóis na sequência do domínio dos Filipes, em 1640.
O despertar dos clandestinos no campo da Cruz Vermelha é estremunhado e silencioso. De seu, têm apenas a roupa do corpo e os cobertores que lhes cederam para dormir ANA BAIÃO
VIDA NOVA NA GRANDE ESPANHA
Eram seis, perdidos no centro de Melilla, passava pouco das seis da manhã de quarta-feira. Davam nas vistas porque caminhavam depressa e em grupo. No corpo, as roupas rotas denunciavam uma jornada complicada. Dois deles tinham as pernas ensanguentadas, um outro seguia descalço. Sem abrandar o passo, quebraram o silêncio para dizer que tinham saído do Mali “há muito tempo” e que estavam “muito cansados”. Em mente, um único objectivo: chegar o mais rápido possível ao posto da Polícia de Melilla.
É para aí que correm todos os clandestinos que conseguem saltar a dupla vedação metálica que funciona como fronteira entre Marrocos e aquela cidade autónoma espanhola. É aí que obtêm o tão desejado documento que atesta a sua entrada ilegal em Espanha e requer o seu repatriamento. Como não trazem documentos de identificação, as autoridades não conseguem provar a sua origem, logo, não os conseguem repatriar. São então mandados para o Centro de Estadia Temporária de Imigrantes (CETI), onde passam a usufruir de um mínimo de assistência médica e alimentar e de um sítio para dormir.
O truque é chegar sem documentação para não ser repatriado
Na madrugada de quarta-feira, foram 65 os ilegais que conseguiram saltar a fronteira, na zona de Pinares de Rostrogordo. Cerca de 500 tentaram-no, recorrendo a escadas feitas de paus amarrados com pedaços de roupa, que já se tornaram a imagem de marca das investidas clandestinas sobre Melilla.
O assalto de quarta-feira ocorreu numa zona onde a vedação só tem três metros de altura. A maioria dos seus 10,2 quilómetros tem seis metros. Na terça, um dia após a investida mais violenta em Melilla (350 ilegais entraram e quatro guardas civis e três soldados ficaram feridos), as autoridades espanholas anunciaram a construção de uma terceira vedação à volta da cidade. “Não vai adiantar nada”, comenta Alberti, um fotógrafo de Melilla. “Eles saltam uma, saltam duas e saltarão a terceira”.
Com a roupa do corpo
À hora a que os seis malianos chegavam ao posto da Polícia, onde cerca de 40 outros ilegais esperavam no exterior do edifício e já tinham colado no peito o respectivo número de atendimento, cerca de 1600 imigrantes acolhidos no CETI acordavam para um novo dia. O CETI há muito que atingiu o ponto de saturação: há 1200 subsarianos num espaço pensado para 450, e tendas militares e da Cruz Vermelha espanhola dão guarida a mais uns 500. Ainda assim, cerca de 100 dormiram ao relento, nos terrenos adjacentes à entrada do centro.
O despertar desses clandestinos é estremunhado e silencioso. Vagarosamente, sacodem e dobram os cobertores em que se envolveram. São os únicos trapos de que dispõem para além da roupa no corpo. Pegam em garrafas de água, lavam a cara, esfregam os dentes. Pode observar-se tudo da berma da estrada.
Em frente ao centro, do outro lado da rua, a dupla rede metálica recorda-lhes as privações que, acreditam, já ficaram para trás. Sentado junto ao gradeamento que delimita o CETI, Famori, de 29 anos, concentra-se na leitura de uma folha de papel. Alguém lhe escreveu umas quantas palavras e expressões em castelhano, e Famori empenha-se em memorizá-las. No Mali, ele “era pintor… artista”, mas a vida não lhe sorria. Um dia decidiu-se e fez-se à estrada. Passou sete dias a andar de carro, entre o Mali e a Argélia, e outros sete a andar a pé, entre a Argélia e Marrocos. “É difícil, corre-se muito”, diz.
Ronaldo é o maior!
Seguiram-se dois anos na floresta de Maliuari, “à espera, à espera… a tentar a sorte, a tentar a sorte…” Lá, aprendeu a construir as escadas de paus e, por dez vezes, lançou-se rede acima. No dia 27, caiu finalmente em Melilla. Agora, quer começar uma vida nova na “grande Espanha”, como ele diz, como “pintor… artista”.
Brulle, de 20 anos, e Hausseman, de 25, seguiram um percurso semelhante ao de Famori. Tal como ele, nasceram no Mali — a maioria dos clandestinos acreditados no CETI são oriundos da África francófona (Camarões, Mali, Gana, Benim, Togo e Costa do Marfim). Tal como ele, lançaram-se na aventura clandestina. Passaram para Melilla dois dias depois de Famori. Agora, no CETI, até parecem jovens despreocupados quando, confrontados com a camisola da selecção nacional portuguesa de futebol que Brulle tem vestida, comentam: “Cristiano Ronaldo! É o maior!”
A PÉ, DESDE OS CAMARÕES
“Mãe, estou num campo chamado Melilla. Acredita, não te estou a enganar. Uma jornalista portuguesa emprestou-me o telefone. Não, mamã, não te estou a enganar”. A mãe de Jules mal conseguia acreditar que o filho tinha entrado em Espanha. O rapaz saíra de casa, nos Camarões, há dois anos, tinha então 18 anos. Partiu com um amigo da mesma idade, Romiald, fiel companheiro das horas difíceis. Juntos lançaram a escada à vedação, treparam-na como gatos discretos, desenvencilharam-se das hélices de arame farpado, saltaram para a “terra de ninguém” (a zona neutra no meio das duas vedações) e repetiram o procedimento para saltar a segunda vedação. Jules e Romiald estão em Melilla fez na quarta-feira uma semana.
A viagem desde os Camarões foi atribulada. Começou por seguir em direcção à Nigéria, Benin, Togo, Burkina Faso, Mali e Mauritânia. Daí voltou ao Mali e corrigiu a rota na direcção da Argélia. Por fim, abrigou-se na noite para atravessar a pé a fronteira argelo-marroquina, que está encerrada em virtude dos dois países não terem relações diplomáticas. Depois, foram mais 300 quilómetros a pé.
Sobrevivia como podia, arranjando trabalho nos sítios por onde passava ou pedindo à berma da estrada. Mas de todos os países por onde passou, Jules não consegue eleger um particularmente complicado. Verdadeiramente dramático foram alguns momentos: “…quando não tinha comida, nem roupa…”
Jules (ao telefone) e Romiald, amigos inseparáveis ANA BAIÃO
Em Marrocos, Jules e Romiald passaram oito meses na floresta, com a fronteira no horizonte. De vez em quando, a polícia marroquina aparecia para dispersar quem lá estava abrigado. Lembra-se de uma madrugada, eram três da manhã, em que começaram a fugir dos marroquinos e só pararam 15 quilómetros adiante.
Jules fez a “escola” da floresta. Aprendeu a fazer escadas e, todos os dias, tirava as medidas à vedação, estudando a melhor forma de a superar. Para quem atravessa um terço do continente africano, não há medo nem receio que impeçam o salto final, pelo que um dia, juntamente com Romiald, lançou-se à rede. Havia polícia por perto, mas seria um erro olhar para trás: “Corremos, caímos, levantámo-nos, voltámos a correr…”
Agora que se sente na Europa, permite-se sonhar alto. Jules quer ir para Barcelona… porque adora futebol e gostava de tentar uma carreira no desporto. Romiald vai com ele, claro.
A VOLUNTÁRIA ESPANHOLA
No pátio de gravilha onde se erguem as tendas de campanha do Exército e da Cruz Vermelha, várias reuniões de clandestinos, à volta de umas pequenas mesas metálicas, geram curiosidade. Numa delas, uma jovem capta a atenção de 12 deles. Todos a fixam e escutam atentamente, e só por breves segundos se distraem com o que se passa à volta.
A rapariga chama-se Mari Paz, tem 32 anos, é natural de Madrid, mas trabalha como assistente social em Melilla. Na terça-feira, começou a trabalhar como voluntária no CETI. “Vou procurar desenvolver um trabalho de sensibilização e de tranquilização. Eles estão nervosos, perdidos e desorientados. Não sabem o que os espera”, diz.
Mari Paz (de amarelo) ensina os rudimentos de espanhol aos candidatos à imigração ANA BAIÃO
Kimosani, um guineense de 23 anos, é um desses casos. Partiu de Bissau em 1998 e chegou ao CETI na terça-feira. Não sabe para onde quer ir; em contrapartida, enumera, sem gaguejar, todas as etapas da sua longa caminhada: Gâmbia, Senegal, Mauritânia, Mali, Burkina Faso, Níger, Líbia, Tunísia, Argélia e Marrocos.
A pedido dos subsarianos, Mari Paz começou a ensinar-lhes palavras em castelhano, que eles repetem em coro, sílaba por sílaba. “Perguntam-me qual é a melhor região de Espanha para trabalhar na agricultura. Querem saber o que se faz em cada região do país”. Numa mesa ao lado, outra rapariga distribui fotocópias com o mapa da Europa. Os africanos que se lançam na aventura da clandestinidade sonham em chegar à Europa, mas poucos estarão conscientes de que, ali chegados, não pisaram ainda solo europeu. “Temos de lhes explicar que Melilla é ainda África e não Europa”, diz Mari Paz.
Artigo publicado no “Expresso”, a 7 de outubro de 2005
Vedação metálica que serve de fronteira entre Marrocos e Espanha, no território espanhol de Melilla ONGAYO / WIKIMEDIA COMMONS
O exército espanhol está desde quinta-feira a apoiar a Guarda Civil em acções de vigilância nas fronteiras de Ceuta e Melilla — duas cidades espanholas autónomas encravadas na costa mediterrânica de Marrocos. A ordem de destacamento de 480 soldados foi dada na sequência de várias tentativas de infiltração ilegal, esta semana, por parte de cidadãos africanos.
Na terça-feira, 500 pessoas tentaram escalar a vedação metálica que funciona como fronteira entre Marrocos e Melilla — com a ajuda de escadas feitas de paus que eles próprios improvisam — e assim vencer a distância entre a vida de miséria que têm e o mundo da abundância com que sonham. Na madrugada de quarta para quinta-feira, outras 600 arriscaram a vida para entrar ilegalmente em Ceuta.
Cinco pessoas morreram — duas caíram em solo espanhol e três para o lado marroquino — e várias dezenas ficaram feridas. De imediato, Espanha e Marrocos anunciaram a abertura de uma “investigação conjunta”, designadamente para averiguar a origem dos tiros disparados.
Na manhã de quinta-feira, as autoridades marroquinas abortavam nova tentativa de assalto por parte de cerca de 300 pessoas, desta feita em Melilla. Estava dado o sinal de que a fonte de pessoas desejosas por tentar a sua sorte — muro acima — parece inesgotável.
Tradicionalmente, Melilla tem sido o território mais problemático no que ao tráfico ilegal de imigrantes diz respeito. Mas o facto do cenário dos trágicos acontecimentos desta semana ter sido Ceuta revela a crescente adaptação das máfias às novas realidades e a sua sobrevivência ao cerco cada vez mais apertado às “pateras” — os barcos carregados de gente que atravessam Gibraltar e tentam desembarcar clandestinamente na costa espanhola.
Qualquer pessoa em situação ilegal não pode ser expulsa de Espanha sem que seja atestada a sua identidade e origem
Em Espanha, há quem denuncie que estas avalanchas de “ilegais” são consentidas pelas autoridades de Rabat, ao serviço de uma estratégia política de recuperação de Ceuta e Melilla, que Marrocos reivindica como parte integrante do território.
Para a vice-presidente do Governo espanhol, María Teresa Fernández de la Vega, estes assaltos não resultam de qualquer “efeito sedutor” exercido pela legislação espanhola sobre os candidatos a imigrantes. Porém, qualquer pessoa em situação ilegal não pode ser expulsa de Espanha sem que seja atestada a sua identidade e origem.
A “vantagem” de não ter BI
Assim sendo, quando um “indocumentado” é detido ao tentar entrar em território espanhol, é internado durante 40 dias num centro “ad hoc” e só depois apresentado a um juiz, que, dada a impossibilidade de provar a identidade e origem, não tem outro remédio senão deixá-lo em liberdade.
Com os acontecimentos de Ceuta a quente, o presidente daquela cidade, Juan Jesús Vivas, apelou a alterações legislativas no sentido de tornar possível que “os imigrantes que violem a fronteira possam ser repatriados imediatamente para Marrocos”.
No mesmo dia em que Ceuta era notícia, os chefes de Governo de Espanha e de Marrocos, José Luis Rodriguez Zapatero e Driss Jettu, reuniam-se em Sevilha para uma cimeira bilateral. Tal como acontece em relação à questão do Sara Ocidental, a imigração ilegal é um tema recorrente na agenda de trabalhos entre os dois países.
Os marroquinos dizem que não são suficientemente ajudados por Espanha e pela União Europeia e apelam à conclusão de acordos de repatriamento directo com os países de origem dos “ilegais”.
Por seu turno, os espanhóis querem rever um acordo bilateral sobre os menores marroquinos que entram clandestinamente em Espanha, datado de 2003 e que se tem revelado um verdadeiro filão para as máfias: se não for localizada a família dos menores, o seu repatriamento é interdito.
Enquanto Espanha e Marrocos não afinam a legislação, o combate ao flagelo vai-se fazendo através de medidas cirúrgicas de consequências a curto prazo. Rabat anunciou o envio de mais mil agentes para Melilla e outros 600 para Ceuta para tentar conter novas investidas, enquanto Madrid, para além dos militares já enviados, anunciou melhorias nos centros temporários de internamento dos imigrantes e medidas de carácter social.
Artigo escrito com o contributo de Ángel Luis de la Calle, correspondente do “Expresso” em Madrid e publicado no “Expresso”, a 1 de outubro de 2015
Herdeiros dos tronos da Jordânia e de Marrocos, cresceram e formaram -se no Ocidente. Regressaram como soberanos, e desde o início marcaram uma nova forma de reinar: querem estar próximos dos seus povos
À porta do terceiro milénio, o mundo árabe revela indícios de querer liderar uma espécie de “revolução silenciosa”. Jordânia e Marrocos têm, desde o ano passado, soberanos jovens que, com aparente naturalidade, imprimiram um estilo novo de reinar — porventura mais moderno e menos “imortal” — e afastaram a tentação de serem permanentemente comparados aos seus carismáticos pais. Abdallah II e Mohammed VI ainda estão a escrever o primeiro capítulo dos seus reinados, mas talvez seja já suficiente para afugentar o perigo de passarem à história como “o filho de Hussein” e “o filho de Hassan II”.
Com alguns dias de reinado, Abdallah da Jordânia abriu o seu “livro de aventuras” e assinou uma forma original de governar. De tempos a tempos, inspira-se no maior dos mestres do disfarce, encarna o mais anónimo dos cidadãos e sai à rua disposto a avaliar, com os seus próprios olhos, o empenho dos funcionários governamentais e a auscultar as queixas do seu povo.
“Trajado a rigor”, já fez de repórter de televisão, de taxista, de mendigo e de doente. Num centro de assistência social, fez tantas perguntas aos idosos que esperavam por atendimento que teve mesmo de enfrentar a ira dos responsáveis pelo estabelecimento.
Já o seu pai era um perito nestas artimanhas. Da última vez que o fizera, há pouco menos de dez anos, numa altura em que a Polícia andava a testar um novo equipamento de radar, saiu do palácio montado numa moto, conduziu-a a alta velocidade, pelo centro de Amã, e só foi apanhado 90 minutos depois.
Abdallah assinou uma forma original de governar. Já fez de repórter de televisão, de taxista, de mendigo e de doente
O método de Abdallah pode, pois, não ser inédito, mas é altamente mediático e popular. Quando, no “local do crime”, se vê obrigado a revelar a sua identidade, é frequentemente brindado com aplausos. E as consequências destas missões incógnitas não podiam ser mais satisfatórias: “Eles começaram a tratar toda a gente como um rei, porque nunca sabiam se a próxima pessoa da fila a ser atendida era o rei”, afirmou Abdallah.
Segundo o monarca, a ideia inicial era usar os disfarces para contornar algumas situações mais incómodas e passar despercebido. Em Maio do ano passado, por exemplo, durante uma visita a Washington, Abdallah resolveu ir ao cinema. “Acabei no meio de um desfile de dez automóveis, com carros da polícia, sirenes e 26 agentes dos serviços secretos. Eu nunca me tinha sentido tão embaraçado na minha vida”.
Em Marrocos, Mohammed ainda não tentou a arte do disfarce, mas, tal como o seu colega jordano, faz do contacto directo com as populações ponto de honra. E quando se refugia num dos seus maiores prazeres — a condução de potentes automóveis —, pára sempre que alguém o reconhece e lhe pede para falar. Ele “tem uma personalidade afectuosa e um interesse pessoal nas pessoas que encontra, a quem gosta de perguntar pelas famílias e empregos. Parece não gostar de protocolos e cerimoniais e prefere uma abordagem mais modesta”, assim o caracterizou um alto funcionário marroquino.
Para quem não convive com Mohammed, a sua personalidade vai-se compondo à custa de pequenos episódios. O monarca alauita surpreende ao não fazer uso das “benesses” inerentes à sua condição real. Quando lhe apetece jogar golfe, não ordena o encerramento do campo, para que dele usufrua em exclusividade, e quando conduz.., obedece aos semáforos.
Em Marrocos, Mohammed, tal como o seu colega jordano, faz ponto de honra do contacto directo com as populações
Quando, há pouco menos de meio ano, uma avaria geral deixou o palácio real às escuras, três empresas apresentaram orçamento para a reparação, um dos quais bastante inferior aos restantes. Intrigado, Mohammed quis saber qual a razão da diferença. “Não há necessidade de arranjar toda a instalação, como os outros preconizam. Basta reparar duas ou três coisitas”, justificou o electricista. Sensibilizado, o rei não só lhe adjudicou a obra como ainda arredondou muito por alto o seu preço. “Em sinal de encorajamento”, precisou Mohammed.
Consta que, num festival de música, ficou furioso quando reparou que tinha sido montada uma estrutura para o proteger da chuva e que nada tinha sido feito para abrigar os artistas. Cioso da sua vida privada, Mohammed reage mal à publicação de fotografias suas disparadas em momentos de descontracção, seja aos comandos de um “jet-ski” ou durante um passeio em “jeans”. Inseparável dos seus óculos de sol, não se livra da fama de “playboy”, assente no facto de, aos 36 anos, continuar solteiro.
De facto, na cultura árabe, não é frequente um herdeiro ascender ao trono sem ter, previamente, constituído família. No caso de Mohammed, porém, tal não dificultou a sua aceitação por parte dos súbditos, embora no caso jordano o casamento tenha engrandecido a popularidade do soberano. A 10 de Junho de 1993, o príncipe Abdallah tinha casado com Rania al-Yassin, uma palestiniana formada em gestão, nascida no Kuwait, em 1970. Esposa dedicada e mãe extremosa de dois pequenos filhos, Rania é uma digna herdeira da beleza e “charme” da rainha Noor — a última esposa do rei Hussein —, bem como do seu espírito solidário e voluntarista. A sua coroação aos 28 anos tornou-a a mais jovem rainha do mundo e catapultou-a para o exíguo firmamento das estrelas da realeza.
Hoje, o casal real hachemita é assunto obrigatório da imprensa “cor-de-rosa”, ameaçando seriamente o protagonismo que a família real monegasca assumiu após o desaparecimento da princesa Diana. Fora dos compromissos oficiais, o casal procura levar uma vida tão normal quanto possível. Uma vez por semana, fazem questão de sair com os amigos para uma noitada de convívio. “É bom as pessoas verem o rei e a rainha a comer um hamburguer no Planet Hollywood. Passa a mensagem certa: ‘Ali estão eles, fazem parte da nossa sociedade’”, exemplificou Abdallah.
Mas o simbolismo da rainha Rania transcende, em muito, o “glamour” social. Desde que Abdallah foi nomeado príncipe herdeiro, a 25 de Janeiro de 1999, ela tem representado um papel importante na afirmação do marido junto do seu povo.
Abdallah cresceu sem a pressão de vir a ser o futuro rei, apesar de ser o varão do soberano
Nascido a 30 de Janeiro de 1962, Abdallah cresceu sem a pressão de vir a ser o futuro rei, apesar de ser o primeiro varão do soberano. Em 1965, uma emenda constitucional tinha-o afastado da linha de sucessão, devido à sua tenra idade e ao facto de ser filho de uma inglesa — Antoinette (Toni) Gardiner —, o que motivara o “veto” da influente mãe de Hussein. O mesmo diploma nomeara Hassan, um irmão mais novo do rei, seu herdeiro, mas os “abusos” por ele cometidos, enquanto regente, durante a longa ausência do malogrado rei, em 1998 — quando esteve em tratamentos, nos EUA — desgostaram Hussein. Por isso, embora lógica, a entronização de Abdallah foi inesperada. E não deixou de causar alguma surpresa, até porque era sabido que o favorito de Hussein era Hamza, o filho mais velho do seu matrimónio com Noor, nascido em 1980.
A escolha de Abdallah causou surpresa e insegurança num povo que temia pelo seu futuro, agora nas mãos de um “desconhecido”. “Eu fui de repente atirado para uma posição à qual nunca tinha aspirado, nem tão-pouco desejado, mas tal foi a directiva de Sua Majestade”, confessou Abdallah. “Não tenho nenhuma preparação como príncipe herdeiro, mas também não acho que alguém esteja preparado para ser rei até calçar os sapatos”, era esta a sua filosofia.
E é precisamente perante as dificuldades em suceder ao pai no coração dos súbditos que a palestiniana Rania constitui um “trunfo” para Abdallah. Num país onde 60% da população é originária da Cisjordânia, a presença de um dos seus na corte tranquiliza, mesmo que ao lado de uma pessoa que passou metade da vida além- fronteiras. “Afinal de contas, ele é casado com uma palestiniana”, resignou-se Abu Adnan, um comerciante de verduras de Amã. Abdallah efectuou todos os seus estudos entre a Inglaterra e os EUA, facto que o faz dominar na perfeição a língua inglesa e ter algumas deficiências na pronúncia de certos sons do árabe.
Contrariamente, Mohammed, o primeiro filho varão de Hassan, fora preparado para reinar, desde o dia em que nasceu, a 21 de Agosto de 1963, pelo que fala fluentemente árabe, francês, espanhol e inglês. Sob a severa e exigente orientação do pai — a quem passou a tratar por “Majestade”, aos 13 anos —, Mohammed estudou em Marrocos. Depois de se licenciar em Direito, em 1985, rumou para Bruxelas — onde estagiou junto de Jacques Delors, na Comissão Europeia — e para a sede das Nações Unidas, em Nova Iorque. Em 1993, doutorou-se na Universidade de Nice. “Quero que os meus filhos tenham horror da mediocridade”, era uma das máximas de Hassan.
Contrariamente ao pai, Mohammed inscreveu os assuntos internos como tarefa prioritária
Por causa do carácter crucial que atribuía à formação, os receios de Estado sobrepuseram-se à afectividade quando, em Setembro de 1985, o Mercedes que o filho guiava caiu numa ravina. “A inquietude do rei foi superior à do pai. Eu apercebi-me que o príncipe herdeiro tinha passado ao lado de uma catástrofe. Eu vi 20 anos de educação, de formação, completamente destruídos”, declarou Hassan II.
Durante dois longos reinados — 46 anos de Hussein e 38 de Hassan —, os príncipes viveram na sombra de dois líderes míticos que asseguraram a unidade nacional com punhos-de-ferro. A entronização dos dois jovens, horas após a morte dos pais — a de Abdallah II a 7 de Fevereiro de 1999 e a de Mohammed VI a 23 de Julho seguinte —, correspondia à coroação de dois verdadeiros enigmas, mas, ao mesmo tempo, à injecção de sangue novo em reinos politicamente estagnados, economicamente débeis e socialmente fracturados. Afirmou então Abdallah: “Eu tenho 37 anos e 70% do meu país é mais novo do que eu, portanto eu penso que os líderes da minha geração talvez reflictam melhor as atitudes das gerações mais novas”.
Quando subiu ao trono, a juventude de Mohammed foi celebrada de forma eufórica. Em Marrocos, 80% da população nasceu após a independência (1956). “Eu não posso saber, com certeza, que tipo de rei será Mohammed, mas já era altura de um homem mais jovem assumir o comando”, confessou um comerciante de Casablanca. “O rei da mudança chegou. Muitas cabeças vão rolar. Sua Majestade vai ser uma boa surpresa. Ele viu os erros do seu pai e vai fazer o contrário! Todo o mundo procura a justiça, o fim da corrupção, a liberdade. Graças à sua mentalidade de jovem, nós vamos consegui-lo”, escreveu um jornalista marroquino.
Contrariamente ao pai, cuja reconhecida visão histórica e inteligência lhe tinham granjeado um papel de destaque na aproximação israelo-árabe, Mohammed inscreveu os assuntos domésticos como tarefa prioritária da sua ordem de trabalhos. “Hassan II era um génio da política externa, não da interna! Como compensação, o que interessa ao novo rei somos nós, as nossas necessidades”, escreveu o mesmo jornalista. “Hassan II evocava, facilmente, a propósito da dureza da vida quotidiana dos seus súbditos, a coragem do seu ‘querido povo’. Enquanto a reacção de Sidi Mohammed consiste, antes, em interrogar-se o que pode ser feito para melhorar a situação. Ele vê os indivíduos onde o seu pai não via mais do que o povo”, analisou um observador ocidental.
Na Jordânia, Abdallah é um modelo no que toca à combinação da modernidade com a tradição. Com a mesma facilidade com que leva a família para umas férias na Côte d’Azur, ele senta-se nas tendas das tribos beduínas e escuta os sábios conselhos dos anciãos. “Cada monarca tem o seu próprio estilo. Hussein era Deus, o pai. Abdallah é mais humano, é antes um irmão mais velho”, disse um jornalista.
Na Jordânia como em Marrocos, os velhos soberanos deixaram de herança uma monarquia incontestada. E mesmo aqueles que não morrem de amores pela instituição monárquica não ficam indiferentes ao permanente “estado de graça” em que os jovens monarcas parecem viver. “Vamos acabar sendo todos monárquicos!”, afirmou um jornalista marroquino. “Hoje, com o nosso rei Mohammed, sentimo-nos como os espanhóis que não são monárquicos mas antes juancarlistas”, disse um outro.
Mohammed e Abdallah são amigos próximos. Juntamente com o Sheik Hamad, do Bahrain, eles são as faces visíveis de uma nova geração de líderes num mundo árabe onde ainda predominam as personalidades que fizeram a transição do período colonial para a independência. Em sentido figurado, são uma espécie de crianças desprotegidas rodeadas de gerontes experientes. “Nós fomos todos educados no Ocidente e somos muito amigos. Estamos sempre a falar e comparamos notas, comparamos problemas — que são todos muito parecidos — e partilhamos as nossas experiências e como resolvemos os problemas. É, na verdade, fascinante. Eu não tenho esta intimidade com a geração mais velha”, afirmou Abdallah.
Com percursos ainda curtos, estas almas gémeas dão o mote para a era das sucessões que se aproxima e onde os casos sírio, saudita, iraquiano e palestiniano serão, com toda a certeza, alvo de muita curiosidade.
Artigo publicado na Revista do “Expresso”, a 11 de março de 2000
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.