A viver na Mauritânia há quase 16 anos, Isabel Fiadeiro criou desenhos para sensibilizar a população para os cuidados a ter face à pandemia. Um pedaço de sabão amarelo, uma chaleira e um vírus “simpático” ajudam a passar as mensagens

No coração da Mauritânia, há uma pintora e desenhadora portuguesa na primeira linha do combate ao novo coronavírus. Isabel Fiadeiro, de 57 anos — 16 dos quais vividos em Nouakchott —, recorreu à sua arte para aconselhar boas práticas sanitárias em tempos de pandemia e criou “As Aventuras do Saboun no Reino do Corona”. Com estes desenhos explica, de forma lúdica, cuidados a ter no dia a dia, nomeadamente a importância da lavagem das mãos.
A saga tem três protagonistas: Saboun (o sabão amarelo mauritano) e o seu amigo Mak Grech (uma chaleira com um chuveiro de água a sair pelo bico, com nome parecido à designação do objeto no dialeto árabe mauritano, o hassania). E ainda o corona “que embora esteja sempre com cara de zangado é um vírus simpático, com botas de cowboy. E porquê? Porque os vírus fazem parte da vida na terra”, explica a autora ao Expresso.
“O sabão amarelo é feito na Mauritânia e é vendido por todo o país, em pequenas mercearias que existem a cada esquina. Custa muito pouco dinheiro e faz muita espuma. Realcei este sabão que toda a gente pode comprar, que é desprezado por muitos e visto como o sabão dos pobres, mas que é o ideal para lavar as mãos devido à quantidade de espuma que faz.”
Outra vantagem deste produto é que não prejudica o ambiente, realça a portuguesa. “Pode-se deitar a água com sabão na areia ou na terra sem causar danos ambientais.”

“As Aventuras do Saboun” resultaram do autoconfinamento em que Isabel se colocou mal foi confirmado o primeiro caso de covid-19 no país, a 13 de março — até esta sexta-feira, havia um total de 1439, e 74 mortos. Por precaução, antecipou-se às medidas restritivas que o Governo haveria de adotar, fechou a galeria de que é proprietária em Nouakchott e ficou em casa.
Com mais tempo disponível, deu vida às “Aventuras do Saboun”, que foi publicando na sua página no Facebook. O sucesso dos desenhos chamou a atenção e acabaram por ser publicados num jornal oficial mauritano, chegando assim a muito mais gente.

Numa segunda frente do combate à pandemia, a portuguesa dinamiza também um projeto de produção de máscaras de algodão, laváveis e reutilizáveis, inspirado num movimento que nasceu no vizinho Senegal. “A ideia era criar máscaras a baixo custo para todos. Contactei uma cooperativa feminina que costuma participar nos mercados organizados pela minha galeria e propus-lhes que produzissem máscaras, uma vez que estavam sem trabalho.”
Isabel garantiu que as costureiras seriam pagas e procurou que as máscaras fossem vendidas a um preço acessível, para chegarem ao maior número de pessoas possível. “Tivemos muita sorte, porque de imediato a Alliance Française e a Agrisahel, uma associação agrária, fizeram-nos encomendas que permitiram fazer face às primeira despesas.”
As encomendas chegam através do Facebook ou do WhatsApp e, depois de prontas, as máscaras são levantadas na ZeinArt, a galeria de Isabel, uma das três existentes na capital mauritana.

A ZeinArt existe desde 2012 e, em tempos normais, funciona como ponto de encontro entre locais e estrangeiros. Ali são realizadas exposições de pintura e artesanato, feitas formações, organizados ateliês com artistas estrangeiros de visita ao país, promovido o intercâmbio de conhecimento.
No jardim da galeria é realizado um mercado onde artesãos dispõem de bancas individuais para vender os seus produtos — é o caso da cooperativa feminina que agora fabrica máscaras e que costuma ali vender sacos e lenços. A cada terça-feira, os artistas deixam na galeria os seus novos trabalhos e recebem o dinheiro das suas obras que foram vendidas na semana anterior.
Na seu espaço, Isabel não se limita a dar visibilidade aos trabalhos de artistas e artesãos. Ela recebe-os, discute os trabalhos, acompanha a fase dos acabamentos e ajuda na comercialização. Leva ao limite quem tem capacidade, vontade e trabalha bem. “O objetivo é mostrar o que se pode fazer localmente de boa qualidade e puxar pelos artistas e artesãos da Mauritânia”, diz a portuguesa.
“E como na Mauritânia estamos um pouco limitados ao nível do design, convido pessoas do Senegal, Mali, Togo para exporem as suas criações. A galeria serve como uma vitrina que a população e os artesãos podem visitar e ver coisas diferentes.”

Filha de uma espanhola e de um português, Isabel Fiadeiro nasceu em Londres e cresceu entre Lisboa e Portimão. Voltou à capital britânica já depois dos 30 anos para estudar Belas Artes, na Wimbledon School of Arts, estudos que concluiu no ano 2000. A descoberta da Mauritânia — para onde se mudou em definitivo em setembro de 2004 — pôs um ponto final à sua vida nómada.
Diz ter descoberto o país “por acaso”, durante uma viagem, em finais de 2003, que tinha como destino final a Guiné-Bissau. À passagem pelo Parque Nacional do Banco de Arguim, na costa atlântica, a Renault 4L avariou-se e ela ficou com tempo para apreciar o deserto e se apaixonar pelo país.
“Quando cheguei à Mauritânia fiquei tão fascinada que tive vontade de registar tudo o que estava a ver. Era tudo tão diferente e tão novo em relação àquilo que eu conhecia. Comecei a desenhar em cadernos, algo que nunca tinha feito. Nunca tinha desenhado a partir da observação, sempre trabalhei com a imaginação, com a memória.”
Este tipo de arte haveria de a levar a descobrir e a aderir aos Urban Sketchers, uma comunidade global de artistas que desenham locais onde vivem ou que visitam.

Os desenhos serviram para que se aguentasse no país durante os primeiros tempos. “Nunca pensei viver na Mauritânia e menos ainda abrir uma galeria de arte. Isso aconteceu porque não conseguia viver com o meu próprio trabalho de pintura, a não ser que enveredasse por um trabalho muito comercial que eu não tinha vontade de fazer.”
Olhando para uma experiência de quase 16 anos em solo mauritano, a artista enumera os três fatores que mais a atraíram. “Desde logo a paisagem, o deserto, todo aquele vazio que me fazia pensar na escala humana diante daquela imensidão e na pouca importância que temos.”
Em segundo lugar, “a lentidão”. “Praticamente saí de Londres para me instalar aqui, passei de um ritmo super acelerado para outro muitíssimo lento que, acho, no fim é a solução para tudo. Muitas pessoas perguntam-me se não exportamos e eu digo: ‘Não, o trabalho é manual, eu peço aos artesãos que trabalhem lentamente e bem’. E felizmente a maior parte das coisas vendem-se localmente.”
Por último, os mauritanos. “Ao fim destes 16 anos, tenho muitos amigos mauritanos, pertenço a algumas associações mauritanas que trabalham com a cultura popular. Sinto-me bem integrada.”
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 12 de junho de 2020. Pode ser consultado aqui

