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A escalada que (quase) todos tentam evitar

Teerão desferiu o primeiro ataque assumido contra o território do Estado judaico. Telavive já decidiu que vai retaliar

O aparatoso ataque da República Islâmica do Irão contra o Estado de Israel, na noite de sábado, fez lembrar os dias da Guerra do Golfo de 1991, a primeira a ser transmitido em direto pela televisão. Fundada 10 anos antes, a emissora americana CNN apostou numa cobertura inédita dessa guerra.

Sábado passado, após ter sido noticiado que o Irão lançara um enxame de 330 drones e mísseis balísticos e de cruzeiro na direção de Israel, o mundo colou-se à televisão ‘à espera de os ver chegar’. “Assistimos a isso na Guerra do Golfo, quando os mísseis caíam em Bagdade. Agora estávamos à espera que chegassem. Quase que havia notícias sobre os países que atravessavam…”, ilustra, em conversa com o Expresso, José Palmeira, professor de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade do Minho.

A investida do Irão — que Teerão afirma ter sido “limitada”, visando apenas alvos militares e realizada em retaliação pelo ataque de 1 de abril contra o seu consulado em Damasco, atribuído a Israel — abriu porta a novo conflito. O gabinete de guerra israelita já decidiu retaliar, não havendo pistas sobre em que moldes. Teerão promete reagir de imediato. Estados Unidos e União Europeia tentam dissuadir Israel, para que a situação não se agrave ainda mais. Em paralelo, procuram isolar a República Islâmica, adotando novas sanções.

IRÃO 
Que motivação para atacar?

É percetível uma componente interna. “O Governo dos ayatollahs está muito desacreditado, há uma crise económica, a população vive mal e a polícia dos costumes tem tido atitudes radicais”, explica Palmeira. “Uma das formas de o regime se credibilizar e ter união interna é criar inimigos externos.” Em paralelo, há objetivos regionais. O gigante xiita do Médio Oriente quer ser uma potência hegemónica e “ser temido por todos os outros”. Isso justifica o apoio ao “eixo da resistência”, que passa por aliados regionais xiitas (como o libanês Hezbollah e os iemenitas hutis) e sunitas (como o palestiniano Hamas).

Teerão quis demonstrar poder. “O Irão mostra força quando vende drones à Federação Russa, os quais têm tido papel relevante na guerra na Ucrânia. Revela capacidade tecnológica e ganha dinheiro de que precisa, porque os vende a bom preço.” Até à guerra na Ucrânia, o Irão era o país mais sancionado do mundo.

O ataque foi de grande espetacularidade, mas não provocou grandes danos em Israel, que diz ter intercetado 99% dos projéteis. “O Irão não atacou com mais força porque temia uma retaliação. Quer ter capacidade nuclear, se é que já não tem. Sabe-se onde o urânio está a ser enriquecido e essas localizações seriam o primeiro alvo de Israel, tal como as fábricas de drones”, acrescenta o docente da Universidade do Minho. “O Irão não quis provocar ao ponto de Israel — se tivesse sofrido mortos e feridos — ter de responder obrigatoriamente para não ficar numa situação de fraqueza.”

ISRAEL 
E agora, Estados Unidos?

O ataque aconteceu numa altura em que a aliança histórica entre Israel e os Estados Unidos revelava desgaste por causa da operação militar na Faixa de Gaza. Mas cedo ficou claro que as forças americanas estacionadas no Médio Oriente estariam ao lado do Estado judaico. “Israel é a única democracia da zona, o que é, para os Estados Unidos e o Ocidente, um elemento relevante a preservar”, comenta Palmeira, “assim como a sobrevivência do Estado de Israel depende, em grande medida, do apoio ocidental e dos Estados Unidos.”

Por outro lado, um conflito entre Israel e o Irão arrisca-se a ter consequências económicas globais, como revela a reunião dos líderes do G7, no próprio dia, de onde saiu um alerta de uma “escalada regional incontrolável”. Mas, realça o académico, “uma coisa é o interesse de Israel, outra é o de Benjamin Netanyahu, acossado internamente”, por causa do 7 de outubro e dos reféns, “e externamente, porque a intervenção em Gaza provocou uma catástrofe humanitária”, diz. “Está a lutar pela sua sobrevivência política e acha que quanto mais duro for, mais isso o favorece.”

“O Irão não atacou Israel com mais força porque temia uma retaliação, pois quer ter capacidade nuclear”, diz o perito José Palmeira

JORDÂNIA 
Porquê ajudar Israel?

O reino hachemita está exposto à conflitualidade no Médio Oriente, desde logo pela grande quantidade de palestinianos que vive no país. Amã tem sido palco de manifestações contra a guerra em Gaza e, já no pós-7 de outubro, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Ayman Safadi, afirmou que “o acordo de paz entre Israel e a Jordânia [de 1994] está na prateleira e a acumular poeira”.

Durante o ataque do Irão a Israel, o reino não hesitou. Caças da Força Aérea jordana abateram drones iranianos em apoio de Israel. Segundo o Presidente francês, Emmanuel Macron, França — que tem tropas na Jordânia — neutralizou projéteis iranianos a pedido de Amã. “A Jordânia tem tido uma atitude construtiva, que começa a mudar a partir do momento em que o Irão surge como ameaça e apoia o Hezbollah no Líbano e grupos jiadistas que estão na Síria e no Iraque. Isto também ameaça a Jordânia. Há receio de um Irão hegemónico, sobretudo a partir do momento em que tenha armas nucleares.”

Recentemente, o comandante do grupo Kataib Hezbollah, uma das maiores milícias pró-iranianas no Iraque, afirmou-se pronto para armar e treinar 12 mil jordanos para se juntarem à frente de resistência anti-Israel.

ARÁBIA SAUDITA 
Equidistante?

Ataques como o do Irão a Israel têm o potencial de deixar o Médio Oriente “à beira do abismo”, como disse o secretário-geral da ONU, António Guterres. Isso é um grande revés nos planos de modernização da Arábia Saudita e de outras monarquias do Golfo que se aproximavam de Israel. “O Irão tende a ficar isolado, porque os vizinhos querem paz. Vivem em grande medida do turismo, da atração de figuras como Cristiano Ronaldo. Procuram estabilidade e querem ser vistos do exterior como países onde há qualidade de vida”, comenta Palmeira.

“Ao contrário de outros países, como o Irão, que têm capacidade militar, a Arábia Saudita quer ser forte no plano económico.” Vários países do Golfo “estão a fazer a transição de uma economia assente no petróleo para energias limpas e têm consciência de que esse é o futuro. Não lhes interessa crises económicas nem a desestabilização da zona. Daí um conjunto de países sunitas ter boas relações com Israel, o que isola o Irão, que consideram um perturbador regional.”

Após o ataque do Irão, o Ministério dos Negócios Estrangeiros saudita emitiu um comunicado lacónico, expressando preocupação perante a “escalada militar” e pedindo a “todas as partes que exerçam a máxima contenção”. Se é verdade que Riade desbravava um caminho de aproximação a Israel, a 10 de março de 2023 fez as pazes com o Irão, após sete anos de relações congeladas.

O contexto força Riade a jogar “um papel quase dúbio”, conclui Palmeira. “Interessa-lhe que a relação com o Irão seja pacificada, mas também, caso o Irão revele apetência para maior escalada, alargar o âmbito das suas alianças, incluindo com Israel. A Arábia Saudita procura não alienar a relação com o Irão e equilibrar a ascensão do Irão com alianças com outros países da região.”

(MAPA MIDDLE EAST POLICY COUNCIL)

RELACIONADO: As pistas deixadas por um ataque arriscado (mas contido) sobre a relação de forças no Médio Oriente

Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

Israel atacou o Irão, mas a resposta à chuva de mísseis e drones que sofreu “virá mais tarde”

A aguardada retaliação de Israel ao ataque direto do Irão ao seu território aconteceu esta sexta-feira através de um ataque desferido a partir de território iraniano. Sem provocar grandes danos, Telavive mostrou que consegue obter informações e ter capacidade operacional para atacar infraestruturas sensíveis iranianas. Especialistas ouvidos pelo Expresso ajudam a perceber como foi possível, vaticinam o que se segue e explicam por que razão enquanto Benjamin Netanyahu continuar no poder em Israel, Telavive e Teerão estarão mais próximo de uma confrontação direta

Seis dias. Foi quanto demorou Israel a responder à chuva de 300 drones e mísseis lançados desde o Irão contra o seu território. Esta sexta-feira, o mundo acordou com a notícia de um ataque a território iraniano prontamente atribuído a Israel e temeu o início de uma nova guerra.

À semelhança do ataque iraniano de sábado passado, a ofensiva israelita foi contida ao nível dos danos que procurou infligir. Mas a dinâmica de ataque e contra-ataque que toma Telavive e Teerão pode não ficar por aqui.

“Devemos assumir que esta está longe de ser a resposta definitiva de Israel ao ataque militar direto por parte do Irão, no fim de semana passado”, diz ao Expresso Luís Tomé, professor de Relações Internacionais na Universidade Autónoma de Lisboa.

“Esta ação faz parte de uma resposta que foi concebida para, por um lado, respeitar os compromissos que Israel terá assumido perante os Estados Unidos e outros países europeus e vizinhos, nomeadamente países árabes de não retaliar de forma militar direta contra o Irão.”

Por outro lado, “há um aviso ao Irão no sentido de Israel mostrar não só que teve capacidade para se defender daquelas centenas de mísseis e drones lançados, mas também que é capaz, a partir de dentro do Irão, de obter informações e ter capacidade operacional para atacar infraestruturas sensíveis bem no centro do país.”

Teerão tentou minimizar o ataque admitindo ter sido realizado por “mini-drones”. Ao Expresso, o iraniano Mohammad Eslami, especialista em tecnologias militares emergentes, revela que os aparelhos usados em ataques às cidades iranianas de Isfahan e de Tabriz foram drones quadricópteros. Neutralizados pelo sistema de defesa iraniano, “foram lançados a partir de dentro do Irão”, acrescenta.

Estes drones “têm um alcance entre cinco e dez quilómetros” e “uma ogiva explosiva muito pequena, o suficiente para fazer explodir um carro ou um veículo blindado”. Transportam “pequenas granadas” e, se forem um pouco maiores, “podem carregar um número maior de granadas e, às vezes, uma arma para atirar em alvos humanos”, detalha Eslami, professor de Relações Internacionais na Universidade do Minho.

Sem que Telavive e Teerão falem abertamente dos contornos da operação, há notícias que dão conta que Israel terá também disparado mísseis desde o exterior do Irão a partir de caças.

“Não é claro se a intenção de Israel foi fazer uma operação real ou apenas identificar o tipo de defesa aérea e as suas localizações”, acrescenta. “Na verdade, esta não foi uma resposta de Israel, foi um ato subversivo. Confirma a ideia de que agentes israelitas estão a trabalhar ativamente no Irão.”

As autoridades iranianas reconheceram que Isfahan foi atacada por três drones. Não foi a primeira vez que esta localidade, no centro do Irão, foi um alvo de Israel. A cidade abriga património mundial da humanidade reconhecido pela Unesco mas também estruturas onde o Irão desenvolve o seu programa nuclear, uma grande base da força aérea e fábricas associadas nomeadamente à produção de drones.

“Até que ponto este tipo de operações pode causar danos?”, questiona Eslami. “Muito baixo. Há alguns anos, Israel também atacou um local de enriquecimento de urânio em Isfahan usando estes quadricópteros. O dano foi muito pequeno”, diz.

“A nível tático, Israel tem vantagem devido à forte capacidade de obter informações e às tecnologias de ponta. Mas a nível estratégico, é muito frágil e vulnerável contra o Irão. Por isso, uma guerra é algo a que Israel não se pode permitir.”

Sabotagem, ciberataques e assassínios de cientistas

Israel tem um longo histórico de ataques clandestinos dentro do Irão. Luís Tomé recorda que “há muito tempo que Israel vem desenvolvendo uma guerra indireta, híbrida contra o Irão”, que passa por atos de sabotagem, ciberataques e assassinatos de cientistas da área do nuclear.

Com este ataque, Israel passa a mensagem que “conhece as instalações nucleares, sabe onde elas se localizam e que pode fazer ataques a partir de dentro do Irão contra infraestruturas sensíveis”, continua o professor da Universidade Autónoma.

“A resposta de Israel àquilo que aconteceu no dia 13 de abril [ataque do Irão] virá mais tarde. Israel está a tentar congregar uma coligação de vontades dos Estados Unidos e de países vizinhos para fazer uma retaliação mais massiva contra infraestruturas nucleares, que são uma ameaça não apenas para Israel, mas também para países árabes da região, designadamente a Arábia Saudita.”

Luís Tomé acredita que a resposta de Israel ao mega ataque iraniano de 13 de abril vai acontecer mesmo sem uma nova provocação do Irão. “Benjamin Netanyahu tem esse interesse pessoal, porque a continuação do conflito na Faixa de Gaza, mas sobretudo a escalada, até certo ponto controlada, do conflito com o Irão, é uma forma do primeiro-ministro de Israel sobreviver politicamente e escapar a algum tipo de pressão que se estava a acentuar muito, interna e externamente”, diz.

Por outro lado, “Israel não pode deixar de assumir uma resposta de facto ao que sofreu. É verdade que o Irão, há décadas, vem fazendo ataques contra Israel, mas ataques indiretos, no campo da guerra híbrida, através dos seus proxies e também de ciberataques. Sofrendo pela primeira vez um ataque militar direto a partir do Irão, Israel não pode deixar de responder e de uma forma assumida porque todos estes ataques que Israel vem fazendo em regra nunca são assumidos.”

No curto prazo, “o enfrentamento direto terá terminado aqui, mas o indireto vai continuar”, defende ao Expresso, José Palmeira, professor de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade do Minho.

“Os proxies iranianos que estão mais próximos do território israelita — seja o Hezbollah libanês, a Jihad Islâmica na Síria e no Iraque, sejam os hutis do Iémen — podem continuar a operar. O próprio Hamas [na Faixa de Gaza] — apesar de ser praticamente impossível, hoje, fazer-lhe chegar armamento — não deixará de seguir orientações iranianas nalguns aspetos”.

Como tem sido prática, Israel não reivindicou o ataque desta sexta-feira. A única indicação, a nível oficial, de que terá estado por trás desta ação — para além da declaração de Washington de que “foi informado” — foi feita pelo ministro da Segurança Nacional, o ultra-ortodoxo radical Itamar Ben-Gvir, que escreveu na rede social X (antigo Twitter): “Fraco”.

De pronto, Yair Lapid, o líder da oposição em Israel, reagiu. “Nunca antes um ministro tinha causado danos tão graves à segurança do país, à sua imagem e ao seu estatuto internacional. Num tweet imperdoável de uma só palavra, Ben-Gvir conseguiu escarnecer e envergonhar Israel.”

‘Não fomos nós’

José Palmeira explica porque razão Israel nunca assume os ataques que desfere, como aconteceu também com o bombardeamento ao consulado iraniano em Damasco, a 1 de abril. “Israel nunca assume para se defender ao nível do direito internacional. Fa-lo para se defender perante instâncias internacionais, como o Tribunal Internacional de Justiça e o Tribunal Penal Internacional. Se houver uma acusação nesses tribunais, pode dizer: ‘não fomos nós’.”

Para o Irão, o facto de Israel não ter reivindicado o ataque pode ser útil para alimentar uma narrativa interna. “Permite ao Irão dizer à sua opinião pública que não houve um ataque direto, logo não tem de retaliar”, continua Palmeira. “Mas ao mesmo tempo, para consumo interno, ter o inimigo dentro do próprio território, não o detetar e não evitar que isto aconteça não deixa de ser muito preocupante.”

Com uma área de cerca de 1.648.000 km², o Irão é 75 vezes maior do que Israel (22.145 km²). Igualmente, a República Islâmica faz fronteira (terrestre e naval) com 13 Estados soberanos: Iraque, Turquia, Azerbaijão, Arménia, Turquemenistão, Afeganistão, Paquistão, Kuwait, Arábia Saudita, Bahrain, Catar, Emirados Árabes Unidos e Omã. “Não é fácil, em termos de segurança, controlar um país tão grande. Através de alguma fronteira, pode entrar alguma coisa para dentro do território iraniano”, acrescenta Palmeira.

A identificação de quem, no Irão, foi cúmplice de Israel está, de momento, no domínio da especulação. No país, há vários tipos de oposição interna ao regime, desde logo membros de fações de uma linha democrática e secular que rejeitam a revolução islâmica e que, frequentemente, são detidos, reprimidos e mortos pelas forças do regime.

“Sabemos que os próprios ayatollahs têm oposição interna. Mas não faria muito sentido que essa oposição atuasse sobre o arsenal nuclear ou sobre uma base aérea”, comenta José Palmeira. “Não seria muito racional, mas fica sempre a dúvida.”

Inimigos e interesses comuns

Acrescenta Luís Tomé. “Há informações que indicam que agentes estrangeiros, designadamente pró-israelitas, operam juntamente com alguns grupos separatistas. Os iranianos gostam de vincar a tese, que me parece pouco credível, de que há uma relação e uma articulação de inimigos comuns, como israelitas e o Daesh. Mas obviamente que operacionais estrangeiros a atuar dentro do Irão têm de ter apoios diversos que não podem resultar apenas do pagamento a locais. Há interesses coincidentes desde logo na hostilidade ao regime iraniano.”

Num cenário de confronto direto entre Teerão e Telavive, “Israel tem a capacidade de atacar o Irão, mas não de vencer uma guerra contra o Irão”, diz Eslami. “As infraestruturas ofensivas do Irão estão distribuídas por todo o país, não é possível atingi-las a todas. Já Israel é um território pequeno, pelo que uma guerra longa e erosiva resultará na destruição de Israel. Israel pode, sem dúvida, atacar o Irão, mas não pode defender-se contra os ataques em massa iranianos durante muito tempo.”

Com Benjamin Netanyahu no poder em Israel, a eventualidade de uma confrontação direta entre os dois países é maior. “Há muito tempo que defendo que, no caso da Ucrânia, só iríamos começar a conhecer um desfecho próximo ou depois das eleições nos Estados Unidos”, conclui Luís Tomé.

“E a partir de 7 de outubro [ataque do Hamas] digo a mesma coisa” em relação à guerra em Gaza e à escalada da situação no Médio Oriente. “Netanyahu, como tem problemas com Joe Biden que não tinha com Donald Trump, vai fazer o possível para esticar a conflitualidade até que — sonha ele — Trump volte. Ele acha que se sobreviver no poder até ao regresso de Trump, terá outra margem de manobra para poder fazer algumas coisas, designadamente contra o Irão. Não me parece que isto vá acalmar nos próximos tempos.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui

As pistas deixadas por um ataque arriscado (mas contido) sobre a relação de forças no Médio Oriente

O Irão lançou um ataque a Israel sem a intenção de ferir. Israel quer responder, mas os Estados Unidos não garantem apoio. A Jordânia é o país que melhor acolhe os palestinianos e saiu em defesa do Estado hebraico. A Arábia Saudita, que estava em rota de aproximação a israelitas e iranianos, ficou praticamente em silêncio. A ofensiva de Israel contra o Irão expôs uma geografia variável na região e um desejo comum — ninguém quer a escalada, mesmo quem não se contém na hora de dar ordem de ataque

O aparatoso ataque da República Islâmica do Irão contra o Estado de Israel, na noite de sábado, fez lembrar os dias da guerra do Golfo de 1991. Desencadeada pela invasão iraquiana do Kuwait, a 2 de agosto de 1990, este foi o primeiro conflito da história a ser transmitido em direto pela televisão.

A emissora americana CNN, fundada dez anos antes, apostou numa cobertura inédita desta guerra e ganhou dimensão mundial. A linguagem dos mísseis — como os ofensivos scuds e os defensivos patriots — entrou na retórica quotidiana dos telespectadores.

Sábado passado, após rebentar a notícia de que o Irão lançara um enxame de drones da direção de Israel, o mundo colou-se à televisão ‘à espera de ver chegar’, dali a umas horas, os 330 drones e mísseis balísticos e de cruzeiro, após uma viagem de 2000 quilómetros.

“Assistimos a isso na guerra do Golfo, mas quando os mísseis já estavam a cair em Bagdade. Agora estávamos à espera que chegassem. Quase que havia notícias sobre os países que estavam a atravessar…”, ilustra, em conversa com o Expresso, José Palmeira, professor de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade do Minho.

Da mesma forma que, então, os céus da capital iraquiana eram iluminados pelos clarões das explosões, na noite de sábado a imagem do céu escuro sobre a emblemática Cúpula do Rochedo, em Jerusalém, atravessado por projéteis e ao som das sirenes de alerta “marca uma nova era e um novo momento na história de Jerusalém, da Terra Santa e do Médio Oriente”, comentou o historiador britânico Simon Sebag Montefiore na rede social X (antigo Twitter).

A investida do Irão sobre Israel, que Teerão afirma ter sido “limitada”, visando apenas alvos militares e realizada em retaliação pelo ataque de 1 de abril contra o seu consulado em Damasco, atribuído a Israel, abriu a porta de novo conflito. O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, avisou repetidas vezes que o seu país responderia a qualquer ataque iraniano. Teerão fez saber de pronto que reagirá a qualquer provocação israelita.

Esta segunda-feira, o gabinete de guerra de Israel reuniu-se para definir o tipo de resposta, em função não só dos seus objetivos, mas, sobretudo, do apoio com que poderá contar dos aliados. Muito dependerá das reações internacionais ao inédito ataque do Irão.

IRÃO. Que motivações teve para atingir Israel?

Desde logo, é percetível uma componente interna para justificar o ataque a Israel. “O Governo dos ayatollahs está muito desacreditado, há uma crise económica e a população vive mal, a polícia dos costumes tem tido atitudes radicais”, como no caso da jovem Mahsa Amini, explica Palmeira. “Uma das formas do regime se credibilizar e se unir internamente é criar inimigos externos”, como Israel e os Estados Unidos, que funcionam como “cimento de um Irão dividido”.

Em paralelo, sobram objetivos regionais. O gigante xiita do Médio Oriente, que faz fronteira com 12 países, quer ser potência hegemónica e “ser temido por todos os outros”. Isso justifica o seu apoio ao “eixo da resistência”, que passa por aliados regionais xiitas (como o libanês Hezbollah e os iemenitas hutis), mas também sunitas, como o palestiniano Hamas.

Com este ataque, Teerão quis demonstrar força e poder. “O Irão mostra força quando vende drones à Federação Russa, drones esses que têm tido papel relevante na guerra na Ucrânia. Revela capacidade tecnológica e ganha dinheiro, porque os vende a bom preço e o Irão precisa de dinheiro.” Até à guerra na Ucrânia, o Irão era o país mais sancionado do mundo, sendo depois ultrapassado pela Rússia.

O ataque foi de grande espetacularidade, mas não provocou grandes danos em Israel, que diz ter intercetado 99% dos projéteis. “O Irão não atacou Israel com mais força porque temia uma retaliação. O Irão quer ter capacidade nuclear, se é que já não tem. Sabe-se onde o urânio está a ser enriquecido e essas localizações seriam imediatamente o primeiro alvo de Israel, tal como as fábricas de drones”, acrescenta o docente da Universidade do Minho. “O Irão não quis provocar Israel ao ponto de Israel — se tivesse sofrido mortos e feridos — ter de responder obrigatoriamente para não ficar numa situação de fraqueza.”

ISRAEL. Como fica a relação com os Estados Unidos?

O ataque do Irão aconteceu numa altura em que a aliança histórica entre Israel e os Estados Unidos revelava desgaste por causa da operação militar israelita na Faixa de Gaza. O incómodo americano ficou mais visível quando, a 25 de março, Washington não exerceu o veto a uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que não era do interesse de Israel.

Mas mal o Irão iniciou o ataque a Israel, ficou claro que as forças dos Estados Unidos estacionadas no Médio Oriente estariam ao lado do Estado judeu. “Israel é a única democracia daquela zona, o que significa que para os Estados Unidos e para o Ocidente isso é um elemento relevante a preservar”, comenta Palmeira. “Por outro lado, a sobrevivência do Estado de Israel depende, em grande medida, do apoio ocidental e, fundamentalmente, dos Estados Unidos.”

Por outro lado ainda, um conflito entre Israel e o Irão arrisca-se a ter consequências económicas globais, como revela a pronta reunião dos líderes do G7, no próprio dia, de onde saiu um alerta de uma “escalada regional incontrolável”.

“Interessa, neste momento, que a guerra escale e que haja um conflito que ponha em causa os preços do petróleo, que já estão a subir, e de outras matérias-primas com reflexos na inflação? Interessa ao mundo outra crise económica? Não interessa.” Mais ainda em contexto pré-eleitoral nos Estados Unidos.

Mas, realça o académico, “uma coisa é o interesse de Israel, outra coisa é o interesse de Benjamin Netanyahu, acossado internamente”, ainda antes do ataque de 7 de outubro e, mais recentemente, por causa da questão dos reféns. “E também externamente, porque a intervenção militar israelita na Faixa de Gaza provocou uma catástrofe humanitária”, com impacto emocional nas opiniões públicas internacionais.

“Netanyahu está a lutar pela sua sobrevivência política e, nesse sentido, quanto mais duro for, a priori, acha que isso o favorece. Se atacasse o Irão de seguida, sairia vencedor.” O governante israelita saiu ileso deste confronto graças à eficácia demonstrada pelo sistema de defesa do país, que neutralizou o ataque com aparente facilidade, mas a falta de apoio militar dos Estados Unidos a uma contrarresposta contra o Irão pode condicioná-lo.

JORDÂNIA. Porque acorreu a defender Israel?

O reino hachemita está particularmente exposto à conflitualidade no Médio Oriente, desde logo pela grande quantidade de palestinianos que vivem no país (outrora a Transjordânia) e a quem é concedida cidadania jordana. No atual contexto de guerra em Gaza, Amã tem sido palco de grandes manifestações contra Israel e, já no pós-7 de outubro, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Ayman Safadi, afirmou que “o acordo de paz entre Israel e a Jordânia [celebrado em 1994] está na prateleira e a acumular poeira”.

Durante o ataque do Irão a Israel, contudo, o reino não hesitou. Caças da Força Aérea Jordana levantaram voo para abater drones iranianos, em defesa de Israel. Estima-se que os pilotos jordanos tenham intercetado cerca de 20% dos drones que entraram no seu espaço aéreo. E, segundo informou o Presidente francês, Emmanuel Macron, França — que tem tropas estacionadas na Jordânia — neutralizou projéteis iranianos a pedido das autoridades jordanas.

“A Jordânia tem tido uma atitude construtiva, que começa a mudar a partir do momento em que o Irão surge como ameaça e apoia o Hezbollah no Líbano, e grupos jiadistas que estão na Síria e no Iraque. Isto também é uma ameaça para a Jordânia. Há receio de um Irão hegemónico, sobretudo a partir do momento em que tenha armas nucleares.”

Recentemente, o comandante do grupo Kataib Hezbollah, uma das maiores milícias pró-iranianas que operam no Iraque, afirmou-se pronto para armar e treinar 12 mil jordanos para se juntarem à “frente de resistência” contra Israel.

ARÁBIA SAUDITA. Porque ficou equidistante o arqui-inimigo do Irão?

Ataques como o do Irão a Israel têm o potencial de deixar o Médio Oriente “à beira do abismo”, como disse, esta segunda-feira, o secretário-geral da ONU, António Guterres, no Conselho de Segurança. É também um grande revés nos planos de modernização da Arábia Saudita e de outras monarquias do Golfo que têm vindo a aproximar-se de Israel — algumas de forma formal, através dos Acordos de Abraão.

“O Irão tende a ficar isolado na região, porque os vizinhos querem sobretudo paz. Vivem em grande medida do turismo, da atração de figuras como Cristiano Ronaldo como medidas de soft power e querem estabilidade e ser vistos do exterior como países onde há qualidade de vida”, comenta o professor Palmeira.

“Ao contrário de outros países que são fortes no hard power, como o Irão, pela capacidade militar que têm, a Arábia Saudita quer ser forte no plano económico.” Vários países do Golfo “estão a fazer a transição de uma economia assente no petróleo para energias limpas e têm consciência de que esse é o futuro. Não lhes interessam crises económicas nem a desestabilização da zona. Daí que um conjunto de países sunitas tenha boas relações com Israel, o que isola o Irão, que consideram uma espécie de perturbador regional.”

Após o ataque do Irão, o Ministério dos Negócios Estrangeiros saudita emitiu um comunicado lacónico, expressando preocupação perante a “escalada militar” e apelando a “todas as partes que exerçam a máxima contenção e poupem a região e os seus povos dos perigos da guerra”. Se é verdade que Riade desbravava um caminho de aproximação a Israel, há pouco mais de um ano, a 10 de março de 2023, fez as pazes com o Irão, através de um acordo mediado pela China, após sete anos de relações congeladas.

Os dois principais polos de poder no Médio Oriente não deixam de ser rivais a vários níveis — a Arábia Saudita é uma monarquia árabe sunita e o Irão é uma república persa xiita —, mas o atual contexto força Riade a jogar “um papel quase dúbio”, conclui Palmeira.

“Por um lado, interessa-lhe que as relações com o Irão sejam pacificadas, mas interessa-lhe também, caso o Irão revele apetência para uma maior escalada, alargar o âmbito das suas alianças, incluindo com o Estado de Israel. No fundo, a Arábia Saudita procura jogar com essa geometria variável — não alienar a relação com o Irão e, em simultâneo, equilibrar a ascensão do Irão com alianças com outros países da região.”

(IMAGEM O mapa assinala os territórios do Irão (a verde) e de Israel (a laranja) WIKIMEDIA COMMONS)

RELACIONADO: A escalada que (quase) todos tentam evitar

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de abril de 2024, e no “Expresso”, a 19 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

Resposta do Irão ao ataque israelita ao consulado de Damasco “é inevitável”, avisa líder do Hezbollah

Hassan Nasrallah discursou esta sexta-feira, numa cerimónia alusiva ao Dia de Jerusalém, nos subúrbios de Beirute. O líder do Hezbollah defendeu que “a loucura cometida por Netanyahu ao atacar o consulado iraniano na Síria levará, esperançosamente, ao fim desta batalha e a uma saída vitoriosa”. Nasrallah disse que esta agressão marca um “antes” e um “depois” na região e que a frente libanesa está aberta a participar num ataque a Israel

Hassan Nasrallah, secretário-geral do Hezbollah WIKIMEDIA COMMONS

Um pouco por todo o mundo muçulmano, assinalou-se, esta sexta-feira, o Dia de Jerusalém (Al-Quds, em árabe), um evento anual que visa expressar solidariedade com o povo palestiniano. Foi instituído há 45 anos pelo então Líder Supremo do Irão e fundador da República Islâmica, ayatollah Ruhollah Khomeini.

Este ano, o dia — sempre agendado para a última sexta-feira antes do fim do Ramadão — celebrou-se com tensão acrescida já que teve lugar escassos quatro dias após um ataque que voltou a abalar o Médio Oriente: o bombardeamento ao consulado iraniano em Damasco, na Síria, atribuído a Israel.

“A resposta do Irão não respeitará um limite de tempo, os iranianos estão a pensar e a aprender, e certamente responderão”, alertou, esta sexta-feira o líder do grupo xiita libanês, Hassan Nasrallah, num discurso alusivo ao Dia de Jerusalém.

“Estai certos que a resposta do Irão ao bombardeamento do seu consulado em Damasco é inevitável”

Nasrallah disse que o ataque foi um “acontecimento significativo, que criou um ‘antes’ e um ‘depois’ em termos de consequências”.

“Em Israel, eles entraram em pânico e estão a abastecer-se de comida e água, não só no norte [próximo da fronteira com o Líbano], mas também no centro. O momento em que a resposta vai chegar depende da decisão do Líder Supremo [do Irão], e ela virá”, afirmou, numa intervenção transmitida por vídeo, numa cerimónia realizada no bairro de Dahiyeh, a sul de Beirute, capital do Líbano.

“A frente do Líbano não será fechada porque está altamente ligada a Gaza, esta é uma decisão firme”, ameaçou Nasrallah. “Estamos a travar uma batalha que escreverá a história da região.”

“Ainda não usamos as nossas principais armas”

No bombardeamento de Damasco, em que foram mortas onze pessoas, entre as quais sete membros dos Guardas da Revolução Iraniana, uma das vítimas foi o general iraniano Mohammad Reza Zahedi que “contribuiu para o desenvolvimento da resistência no Líbano”, realçou Nasrallah.

O líder do Hezbollah disse que a relação do Hezbollah com o Irão é “uma fonte de orgulho. Aqueles que devem sentir vergonha são os que procuram normalizar os laços com Israel”.

O Dia de Jerusalém aconteceu a dois dias de se assinalar meio ano da operação “Tempestade Al-Aqsa”, como o Hamas batizou o ataque a Israel, a 7 de outubro. Nasrallah considerou a investida “um acontecimento histórico que representou uma grande ameaça à sobrevivência da entidade sionista”.

“Alguns estão em negação em relação ao facto de Israel ter sido derrotado”, disse Nasrallah, acrescentando que, em meio ano de guerra, o Governo de Benjamin Netanyahu não foi capaz nem de destruir o Hamas nem de libertar os reféns.

“As atrocidades israelitas em Gaza são o resultado do fracasso e da falta de opções”

O líder do Hezbollah vaticinou que Netanyahu não tem opção que não seja acabar com a guerra, o que para ele será uma derrota. “A loucura cometida por Netanyahu ao atacar o consulado iraniano na Síria levará, esperançosamente, ao fim desta batalha e a uma saída vitoriosa.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui

Ataque a consulado iraniano na Síria é escalada significativa na conflitualidade do Médio Oriente

Mais uma linha vermelha foi ultrapassada na região do Médio Oriente. Teerão responsabilizou Israel pelo bombardeamento do seu consulado em Damasco, numa clara violação da sua soberania. O ataque vitimou mortalmente dois generais iranianos. “O nível do ataque é tal que a mensagem dissuasora do Irão terá de ser muito forte”, defende um investigador iraniano

A guerra na Faixa de Gaza e as disputas geopolíticas em seu redor assemelham a região do Médio Oriente a um movimento de ondas sísmicas libertadas após um forte tremor de terra, com epicentro no território palestiniano e réplicas por toda a região.

Na fronteira israelo-libanesa, há trocas de fogo diárias entre o Hezbollah e as forças de Israel. A leste, o Iraque é palco de atritos frequentes entre as tropas dos Estados Unidos e milícias apoiadas pelo Irão. No mar alto, os rebeldes iemenitas hutis, solidários com os palestinianos, lançam mísseis de longo alcance contra embarcações comerciais associadas a Israel.

Noutra frente, num registo não declarado, Israel e o Irão combatem-se de forma indireta. A Síria é o teatro de operações onde Telavive e Teerão mais ficam frente a frente — o país tem fronteira com Israel e dá guarida a forças iranianas. E foi precisamente nesta nação árabe que, esta segunda-feira, os dois países escalaram significativamente a tensão entre ambos.

Pelas 17 horas em Damasco (15h em Portugal Continental), um bombardeamento atingiu com precisão o consulado iraniano na capital síria, reduzindo-o a escombros. O Irão acusou Israel, que não refutou a acusação, remetendo-se ao silêncio.

Violação de duas soberanias

“Para Teerão, este ataque foi uma violação do espaço soberano sírio e, mais ainda, do seu próprio espaço soberano, porque o consulado, ao abrigo das convenções de Viena, que foram ratificadas pelos três Estados envolvidos, é território iraniano”, explica ao Expresso o professor Tiago André Lopes, da Universidade Portucalense.

“Há a perceção de que Israel está a violar direito soberano”, acrescenta o especialista em Relações Internacionais. “E as violações de soberania não podem contar só quando são a Rússia ou a China a fazê-las. Uma violação de soberania é sempre uma violação de soberania.”

Num telefonema para o seu homólogo sírio, o ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão, Hossein Amirabdollahian, responsabilizou Israel pelo que designou ser “uma violação de todas as convenções internacionais”.

Retaliação por ataque a base naval

O ataque em Damasco foi desencadeado horas depois de um drone ter alvejado uma base naval israelita em Eilat (sul), junto ao Mar Vermelho, numa ação reivindicada por uma milícia iraquiana apoiada pelo Irão (Resistência Islâmica no Iraque). O porta-voz das Forças de Defesa de Israel, Daniel Hagari, afirmou que o aparelho usado foi “fabricado no Irão” e que o ataque foi “dirigido pelo Irão”.

A retaliação a este incidente no sul de Israel fez-se sentir em Damasco. Segundo o embaixador iraniano na Síria, Hossein Akbari, o ataque “foi realizado por caças F-35” que dispararam seis mísseis contra o edifício. Só o portão ficou de pé, relatou à televisão pública iraniana.

No total, foram mortas 11 pessoas, incluindo sete membros dos Guardas da Revolução, dois deles com a patente de general. Mohammed Zahedi, veterano de 63 anos, liderou a Força Quds no Líbano e na Síria até 2016. Esta força, que adota o nome árabe da cidade de Jerusalém, é uma unidade de elite dentro dos Guardas da Revolução que coordena o apoio de Teerão a grupos armados no Médio Oriente.

O regime israelita “deveria saber que, com tais ações desumanas, nunca alcançará os seus objetivos sinistros”, reagiu o Presidente iraniano, Ebrahim Raisi. “E, dia após dia, testemunhará o fortalecimento da Frente de Resistência e a repulsa e o ódio das nações livres pela sua natureza ilegítima. Este crime covarde não ficará sem resposta.”

“O ataque de Israel ocorreu num local diplomático que é considerado território do Irão. O nível do ataque é tal que a mensagem dissuasora do Irão terá de ser muito forte”, disse ao Expresso Javad Heirannia, diretor do Centro de Investigação Científica e Estudos Estratégicos do Médio Oriente, de Teerão. “Mas não me parece que o Irão vá demonstrar essa reação de momento, porque faria com que a atenção à guerra em Gaza se voltasse para a guerra com o Irão. E traria a América para essa guerra, o que não é desejável para o Irão.”

O ataque ao consulado iraniano suscitou outra leitura nos bastidores do regime dos ayatollahs. “No Irão, há a ideia de que os Estados Unidos deram carta branca a Israel para fazer o que quiser. Há a perceção de que Israel é um proxy do braço armado dos Estados Unidos”, refere Tiago André Lopes.

Para esta perceção contribuíram declarações como as proferidas, sexta-feira passada, pelo ministro da Defesa de Israel. Yoav Gallant afirmou que “Israel está a fazer a transição da defesa para a perseguição ao Hezbollah; chegaremos onde quer que a organização opere, em Beirute, em Damasco e mais além”. E prometeu: “Onde quer que precisemos de agir, agiremos.”

“Para o Irão, Israel é sempre visto como uma espécie de instrumento”, acrescenta o investigador português. “O Irão não reconhece o Estado de Israel porque olha para Israel quase como uma espécie de colonato americano para os Estados Unidos terem um pé na região. O Irão olha para Israel do mesmo modo que a Rússia e a Sérvia olham para o Kosovo.”

Não foi a primeira vez que Israel atacou território sírio visando agentes com ligações ao Irão. Nos últimos dez anos, fê-lo com regularidade para abortar a entrega de armas enviadas por Teerão para aliados na região, seja o regime de Bashar al-Assad, na Síria, seja o grupo xiita Hezbollah, no Líbano.

Porém, “depois da guerra em Gaza, Israel atacou, sem precedentes, os principais comandantes da Força Quds. Normalmente, os alvos eram posições dos Guardas da Revolução e grupos aliados do Irão, mas recentemente Israel tem alvejado os altos comandantes dos Guardas da Revolução”, diz Heirannia.

“Israel está sob muita pressão interna e ao nível da opinião pública global”, diz o iraniano. “Uma guerra com o Irão reduzirá essa pressão e a atenção será direcionada para o Irão. Por outro lado, aproximará de Israel a América e os países ocidentais, que têm estado divididos como resultado da guerra de Gaza.” Em contrapartida, “a falta de reação por parte de Teerão levará Israel a tomar medidas mais severas contra o Irão.”

Tiago André Lopes defende que é provável que o Irão recorra aos seus proxies para retaliar o ataque que sofreu em Damasco. O contexto que envolve particularmente um deles — a Resistência Islâmica no Iraque, que visou Eilat esta semana — está atualmente efervescente.

“Os Estados Unidos estão a ser empurrados para fora do Iraque. O Governo de Bagdade está a negociar a saída das tropas americanas” — uns 2500 soldados que restam no país. “Este movimento, que também opera na Síria, poderá ser agora usado para dar uma espécie de contra resposta àquilo que aconteceu em Damasco.”

“A acontecer, o embate com Israel acontecerá sempre com uma capa, que será a proteção dos palestinianos”, conclui o professor da Portucalense. “A capa escolhida será sempre essa, porque o único outro grupo que poderia unir a região tem a oposição da Turquia que são os curdos. A questão dos curdos é mais difícil, a palestiniana é mais unificadora.”

(Bandeira do Irão junto aos escombros em que se transformou o consulado iraniano em Damasco, atingido por mísseis FIRAS MAKDESI / REUTERS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 3 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui