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O Papa está no Iraque depois de 15 meses sem viajar. Qual a pressa de Francisco?

O líder da Igreja Católica chegou esta sexta-feira ao Iraque para uma visita de quatro dias, a primeira que realiza nos últimos 15 meses. Francisco visitará comunidades cristãs que sobreviveram ao Daesh e terá um encontro com um dos líderes mais importantes do Islão xiita. A viagem realiza-se em contexto de pandemia, num país onde subsiste a insegurança. “Este Papa afirma-se como o pastor de todos os católicos”, diz ao Expresso o estudioso das religiões Paulo Mendes Pinto. “Se há católicos no Iraque, ele tem de lá ir”

O Papa retomou esta sexta-feira as suas viagens apostólicas ao estrangeiro. Francisco partiu para uma visita de quatro dias ao Iraque — a primeira em 15 meses.

Nunca um líder da Igreja Católica se deslocara a este importante país do Médio Oriente, de maioria muçulmana xiita. A insistência em realizar a visita, em contexto pandémico e de insegurança, confirma um padrão observado em deslocações anteriores.

“O Papa Francisco vai a sítios de grande prática católica — como Fátima, por exemplo. Mas vai também a sítios inesperados, onde não só a prática católica é reduzida, como até posta um pouco em causa pela prática religiosa dominante”, diz ao Expresso Paulo Mendes Pinto, coordenador da área de Ciência das Religiões na Universidade Lusófona em Lisboa.

Visitar locais incómodos

“Há uma dominante nas visitas do Papa, que é ir a sítios incómodos. Incómodos por serem associados a violência ou à negação da liberdade religiosa, sítios que não são tão importantes ao nível da quantidade de praticantes católicos.”

São exemplos as visitas à Albânia (2014), República Centro-Africana (2015), Myanmar (2017) ou Emirados Árabes Unidos (2019). É também o caso desta ida ao Iraque, país virado do avesso desde a invasão pelos Estados Unidos da América, em 2003, de que decorreria o surgimento do infame e autoproclamado “Estado Islâmico” (Daesh).

No início da guerra, estimava-se que a comunidade cristã no país andasse pelos 1,5 milhões de pessoas; hoje não serão mais de 250 mil.

“O Iraque é um país importantíssimo, não pela percentagem de católicos que lá existe, mas em termos simbólicos”, continua Paulo Mendes Pinto. “Até ao fim do regime de Saddam Hussein [2003], existia uma comunidade católica organizada, socialmente respeitada e integrada. Com frequência, víamos católicos na mais alta elite do país. Um dos ministros mais conhecidos de Saddam, Tariq Aziz [que ocupou entre 1979 e 2003 pastas como a dos Negócios Estrangeiros e a de vice-primeiro-ministro], era católico.”

A comunidade cristã do Iraque é das mais antigas do mundo. Integra crentes das igrejas Católica Caldeia (largamente maioritária), Assíria Oriental, Católica Siríaca, Ortodoxa Siríaca, Apostólica Arménia, Evangélica, Ortodoxa Grega, Católica Arménia e Católica Latina.

“Este país representa algo que se manteve durante muito tempo. Apesar de o Médio Oriente ser dominantemente islâmico, o Iraque manteve a existência de comunidades judaicas e cristãs. As últimas, em número mais significativo, com facilidade atingiam os 10 a 20% das populações. Essa realidade desapareceu rapidamente depois dos atentados do 11 de Setembro, à medida que a radicalização fez com que as comunidades cristãs na região passassem a ser perseguidas.”

A recente perseguição aos cristãos iraquianos às mãos do Daesh é uma preocupação do Papa, implícita no roteiro que vai percorrer, e que decorrerá em seis etapas. Esta sexta-feira, Francisco ficará pela capital, Bagdade, onde terá encontros políticos e religiosos. No sábado rumará a sul, primeiro até Najaf, cidade santa para os xiitas — onde se encontrará com o Grande Ayatollah Ali al-Sistani, um dos líderes muçulmanos mais influentes do mundo — e depois até à cidade de Ur.

Onde ainda se fala a língua de Cristo

No domingo, o Papa seguirá para norte, até ao Curdistão, com paragens em Erbil, Mosul e Qaraqosh, a maior cidade iraquiana de maioria cristã. As duas últimas ficam já na província de Nínive, onde há comunidades que ainda falam aramaico, a língua corrente na época de Jesus Cristo. Nos anos do Daesh, a presença cristã correu riscos de extinção, devido a conversões forçadas, execuções em massa, fuga à violência e destruição de património.

Quando, em novembro de 2017, Francisco foi presenteado, por um fabricante automóvel, com um Lamborghini personalizado, o argentino autografou-o e ofereceu-o para leilão. A verba angariada — 200 mil euros — foi alocada para apoiar as comunidades cristãs do planalto de Nínive, designadamente o regresso de quem fora obrigado a fugir dos jiadistas.

No périplo do Papa, duas etapas serão especialmente simbólicas para os cristãos: Ur e Mosul. Ur, no sul do país, é a cidade onde nasceu Abraão, patriarca que une as três religiões monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islão. “Há um peso muito grande dessa cidade no facto de criar pontes com as outras confissões religiosas — e o Papa Francisco tem-no feito”, garante Mendes Pinto.

Mosul, no norte, é a capital da província de Nínive. “Tem o peso de ter sido uma das principais cidades do ‘Estado Islâmico’, onde, supostamente, terá sido proferida a frase que indicava que um dos objetivos era conquistar Roma e decapitar o Papa”, recorda o professor.

Sentimento de abandono

Mosul (Iraque) e Raqqa (Síria) foram as capitais do ‘califado’ declarado pelo Daesh. Ali viveu-se sob o signo do terror durante mais de três anos.

“Há uma certa desilusão por parte de muitos cristãos porque ao longo dos anos foram sendo cometidas atrocidades contra essas comunidades, foram muitas vezes dizimadas, violentadas, no melhor dos casos obrigadas a migrações forçadas, e o ocidente, incluindo a própria Igreja cristã, nunca fez nada de significativo por elas”, recorda Paulo Mendes Pinto.

“A mensagem que o Papa leva é não apenas a de um certo saudosismo, porque ainda há pouco tempo existiam lá comunidades cristãs significativas, mas também de apoio a essas comunidades. Esta visita tem uma dimensão diplomática importantíssima.”

A 33ª deslocação do Papa Francisco ao estrangeiro — o Iraque é 51º país que visita — decorre numa altura em que a violência no país dá sinais de recrudescer. Em janeiro, um duplo ataque suicida num mercado de Bagdade provocou 32 mortos. Em fevereiro, um ataque com 14 rockets contra alvos militares em Erbil fez dois mortos. Já em março, outro ataque com foguetes atingiu uma base com presença norte-americana na província de Anbar.

Recolher obrigatório e confinamento

As condições da viagem agravam-se pelo contexto de pandemia. Com 84 anos, o Papa partiu para o Iraque vacinado, como toda a delegação que o acompanha. Mas chegou ao país num momento em que o número de casos de covid-19 disparou — um deles, na semana passada, foi o núncio apostólico no Iraque, arcebispo Mitja Leskovar  e as autoridades impuseram o recolher obrigatório noturno e confinamento total ao fim de semana.

A insistência em realizar a viagem nesta adversidade revela pressa. “É uma pressa que resulta muito do esboroar socioeconómico de toda a região. Aqueles países têm populações maioritariamente abaixo dos 35 anos, e muitas dessas pessoas estão desempregadas. Estas questões socioeconómicas fazem-se sentir com muita força e em especial junto das minorias. Para o Papa há uma urgência em acudir”, diz Paulo Mendes Pinto.

“Há também uma urgência para ele em fazer uma retoma. Com a pandemia, as reformas que estava a realizar na Igreja Católica ficaram suspensas. Haverá, no mínimo, uma certa impaciência pelo facto de o seu projeto ter perdido muito tempo, e também devido à sua própria saúde.”

Esta é a 11ª visita do Papa Francisco a países de maioria muçulmana, depois de Jordânia, Palestina, Albânia e Turquia (2014), Bósnia e Herzegovina (2015), Azerbaijão (2016), Egito e Bangladesh (2017), Emirados Árabes Unidos e Marrocos (2019).

“Anteriormente, os Papas iam aos grandes locais católicos. Este também vai a esses países, mas vai igualmente aos pequenos”, conclui Mendes Pinto. “No fundo, este Papa afirma-se como o pastor de todos os católicos. Se há católicos no Iraque, ele tem de lá ir. Esta visita revela uma dimensão missionária, de visitar locais novos e sítios onde há comunidades cristãs minoritárias, e também um pensamento de menosprezar o risco. Frequentemente, o Papa quebra o protocolo e deixa os seguranças à beira de um ataque de nervos, mas não é só isso: ele vai a sítios onde as coisas não são fáceis ao nível da segurança. Esta visita ao Iraque é o exemplo perfeito disso.”

(Papa Francisco, discursando no Palácio Presidencial em Bagdade, a 5 de março de 2021 WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de março de 2021. Pode ser consultado aqui

Marrocos normaliza relação com Israel e recebe presente de Donald Trump

Ao mesmo tempo que saudava a oficialização da relação diplomática entre marroquinos e israelitas, o Presidente dos Estados Unidos anunciou que vai reconhecer a soberania de Marrocos sobre o território do Sara Ocidental

E vão quatro. Depois de Emirados Árabes Unidos, Bahrain e Sudão, o reino de Marrocos tornou-se, esta quinta-feira, o quarto país árabe a aceitar a normalização da sua relação diplomática com Israel. Tudo isto em apenas quatro meses.

O anúncio foi feito na rede social Twitter pelo Presidente dos Estados Unidos, que mediou o processo. Na sua reta final em funções, a Administração Trump tem investido na aproximação entre Israel e o mundo árabe sunita, num quadro designado por Acordos de Abraão.

Donald Trump saudou “outro avanço histórico”. “Os nossos dois GRANDES amigos, Israel e o reino de Marrocos, concordaram em estabelecer relações diplomáticas plenas — um imenso avanço pela paz no Médio Oriente!”

https://twitter.com/realDonaldTrump/status/1337067073051238400

Este passo entre Rabat e Telavive é a consagração oficial de uma relação que já existia clandestinamente e que agora vai desenvolver-se sem constrangimentos. Segundo a imprensa israelita, a companhia aérea El Al está a equacionar pelo menos um voo diário entre os dois países e operadores turísticos estimam que 150 mil israelitas possam, em 2021, escolher Marrocos como destino de férias.

Para Israel, trata-se da confirmação de que é um país cada vez menos só entre os vizinhos árabes. Em comunicado, o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, agradeceu ao rei de Marrocos a sua “decisão histórica” e prometeu uma “paz muito calorosa” entre os dois países.

Uma palavra aos palestinianos

Já o monarca de Marrocos, Mohammed VI, falou ao telefone com o Presidente da Autoridade Palestiniana, Mahmud Abbas — que vê mais um “irmão” árabe afastar-se da solidariedade árabe em torno da causa palestiniana —, a quem reafirmou o compromisso de Marrocos em relação à solução de dois Estados para o conflito israelo-palestiniano.

Porém, para Marrocos, este acordo traz um bónus precioso oferecido por Washington: os Estados Unidos comprometem-se a reconhecer a soberania marroquina sobre o Sara Ocidental. O território está ocupado desde 1975 por Marrocos (que o encara como as suas províncias do sul), mas as Nações Unidas prometeram ao povo sarauí um referendo de autodeterminação.

No Twitter, Trump defendeu que “a proposta de autonomia séria, credível e realista de Marrocos é a ÚNICA base para uma solução justa e duradoura” para o conflito do Sara Ocidental. E acrescentou: “Marrocos reconheceu os Estados Unidos em 1777. É portanto adequado que reconheçamos a soberania deles sobre o Sara Ocidental”.

https://twitter.com/realDonaldTrump/status/1337067127455539201

Esta alteração da posição dos Estados Unidos já mereceu reação das autoridades da República Árabe Sarauí Democrática (RASD) — que é reconhecida por dezenas de países e membro de pleno direito da União Africa, em igualdade de condições com Marrocos.

Em comunicado, a RASD e a Frente Polisário (reconhecida pela comunidade internacional como legítima representante do povo sarauí) condenam a decisão de Trump “em fim de mandato” de reconhecer a Marrocos “aquilo que nunca foi seu, ou seja, a soberania sobre o Sara Ocidental”.

“A decisão do senhor Trump constitui uma flagrante violação da Carta das Nações Unidas e dos princípios que regem a legalidade internacional, governos e tribunais internacionais, ao mesmo tempo que constitui uma séria obstrução dos esforços da comunidade internacional na busca de uma solução justa e pacífica para o conflito entre a República Sarauí e o reino de Marrocos. Além disso, esta decisão acontece a poucos dias de Marrocos ter feito explodir o cessar-fogo com a agressão perpetrada a 13 de novembro.”

A aproximação entre Israel e o mundo árabe sunita tem sido prioridade da diplomacia norte-americana, e em especial, do conselheiro e genro de Trump, Jared Kushner. Visa não só criar erosão na parede árabe que isolava Israel na região, como sobretudo unir e fortalecer uma frente de oposição ao grande inimigo de todos na região — o Irão.

Egito foi pioneiro

Abdel Fattah al-Sisi, Presidente do Egito — outro dos pesos-pesados da geopolítica do Médio Oriente —, foi o primeiro dirigente árabe a reagir ao novo acordo. “Se esta etapa der frutos, criará mais estabilidade e cooperação na nossa região”, afirmou em comunicado.

O Egito foi o primeiro país árabe a estabelecer um tratado de paz com Israel, assinado em 1978, seguido pela Jordânia, em 1994. No total, são agora seis os membros da Liga Árabe (de um total de 22) com relações diplomáticas com o Estado judeu. Porém, uma coisa são acordos celebrados entre governos, outra a sua aceitação pelos povos árabes, no seio dos quais continua a prevalecer um forte sentimento anti-Israel.

Esta semana, a imprensa israelita deu conta de preparativos para uma visita oficial de Netanyahu ao Egito. A confirmar-se, será a primeira de um líder israelita desde 2010, ano em que Netanyahu se encontrou com o então Presidente egípcio, Hosni Mubarak, no Cairo. Poucas visitas para dois países que têm entre si um território problemático chamado Faixa de Gaza.

(IMAGEM Bandeiras de Israel e de Marrocos MOROCCO JEWISH TIMES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de dezembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Donald Trump aspira ao Nobel da Paz. Serão os Acordos de Abraão suficientes?

O dedo da Administração norte-americana no processo de normalização da relação diplomática entre Israel e dois países árabes é o grande trunfo de Donald Trump na disputa pelo Nobel da Paz, que será conhecido esta sexta-feira. Mas há um histórico que joga contra si: no passado, antecessores que mediaram negociações importantes no Médio Oriente foram ignorados pela Academia

O Prémio Nobel da Paz 2020 é anunciado esta sexta-feira e, segundo a organização, há 211 indivíduos e 107 organizações na corrida. A lista de candidatos não é pública, mas pelo menos um nome é conhecido.

Christian Tybring-Gjedde, deputado norueguês do Partido do Progresso (populista), fez saber que propôs a candidatura de Donald Trump. “Por seu mérito, acho que tem feito mais tentativas para criar a paz entre as nações do que a maioria dos outros indicados para o prémio da Paz”, justificou.

O Presidente dos Estados Unidos tem como forte trunfo os Acordos de Abraão, assinados na Casa Branca a 15 de setembro, que selaram a normalização da relação diplomática entre Israel e dois países árabes — os Emirados Árabes Unidos e o Bahrain, ambos na região do Golfo Pérsico.

Não se tratando de verdadeiros acordos de paz, uma vez que os signatários não estavam nem nunca se envolveram em guerra, são entendimentos importantes numa região tão conflituosa como o Médio Oriente, onde a diplomacia norte-americana leva décadas de investimentos.

“Goste-se ou não, os Estados Unidos continuam a ser o principal intermediário em negociações no Médio Oriente”, diz ao Expresso Henry R. Nau, professor no Departamento de Ciência Política da Universidade de George Washington (Washington D.C.). “Por imperfeita que seja a política do Médio Oriente, os acordos entre Israel e os Emirados Árabes Unidos e o Bahrain representam dois grandes passos em frente na direção de uma região mais estável.”

Nos últimos 50 anos, a diplomacia dos Estados Unidos participou com êxito na mediação de três importantes tratados de paz na região. Dois foram mesmo assinados na Casa Branca e valeram aos protagonistas diretos o Nobel da Paz — mas não ao mediador.

Dialogar às escondidas

O primeiro concretizou-se a 17 de setembro de 1978, era o Presidente dos EUA Jimmy Carter. O democrata foi anfitrião da cerimónia de assinatura dos Acordos de Camp David, que levaram à paz entre Israel e o Egito.

O tratado resultou de 13 dias de negociações secretas em Camp David, casa de campo presidencial, nas montanhas Catoctin, no estado de Maryland. Naquele recato, o diálogo fez-se entre três homens: Carter, que mediou, Menachem Begin (primeiro-ministro israelita) e Anwar al-Sadat (Presidente egípcio). Apenas os dois últimos foram então agraciados com o Nobel da Paz.

Quinze anos depois, o caminho da paz no Médio Oriente voltou a passar pelos Estados Unidos. A 13 de setembro de 1993, a Casa Branca abriu portas a novo acontecimento histórico: a assinatura dos Acordos de Oslo, pelos quais Israel e a Organização de Libertação da Palestina (OLP) se reconheceram mutuamente, dando início a um processo negocial que tinha a sua etapa final na declaração do Estado palestiniano.

Ainda que o trabalho de formiga tenha sido realizado pela diplomacia da Noruega, os Acordos de Oslo valeram o Nobel da Paz apenas aos protagonistas: os israelitas Yitzhak Rabin (primeiro-ministro) e Shimon Peres (ministro dos Negócios Estrangeiros) e o palestiniano Yasser Arafat (líder da OLP). Ganhariam o Nobel em 1994 e não em 1993, ano dos sul-africanos Nelson Mandela e Frederik de Klerk.

Bill Clinton seria ainda mediador no Tratado de Paz entre Israel e a Jordânia, assinado a 26 de outubro de 1994, em Arabah (Israel), junto à fronteira entre os dois países. Mas o Nobel nunca lhe chegaria às mãos, contrariamente a Jimmy Carter que haveria de ser galardoado em 2002 “por décadas de incansável esforço para encontrar soluções pacíficas para os conflitos internacionais, fazer avançar a democracia e os direitos humanos e promover o desenvolvimento económico e social”, justificou o Comité Nobel.

E Trump?

Donald Trump tem contra si este histórico, que colocou antecessores seus em plano secundário perante a Academia Nobel, mas tem também obra feita. Além dos Acordos de Abraão, contribuiu decisivamente para o desanuviamento da tensão na Península da Coreia (ainda que sem resultados políticos substanciais) e averbou um tratado de paz entre os EUA e os talibãs afegãos, assinado a 29 de fevereiro passado, em Doha (Qatar).

Além disso, ao ter eliminado o líder do Daesh, Abu Bakr al-Baghdadi, em outubro de 2019, sempre pode dizer que teve um papel principal no combate ao terrorismo internacional.

(FOTO RAWPIXEL)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de outubro de 2020. Pode ser consultado aqui

Partiu de Telavive e aterrou em Abu Dabi o primeiro voo comercial de sempre entre Israel e um país do Golfo

Israel e Emirados Árabes Unidos começaram, esta segunda-feira a construir uma nova relação bilateral, com a realização do primeiro voo comercial direto entre os dois países. A Arábia Saudita, que não reconhece o Estado judeu, ajudou à festa e, pela primeira vez, autorizou um avião israelita a sobrevoar o seu território

Aos poucos, o Acordo de Abraão anunciado a 13 de agosto por Israel e os Emirados Árabes Unidos começa a tornar-se realidade. Às 11h21 desta segunda-feira (menos duas horas em Portugal Continental), descolou do aeroporto Ben Gurion, em Telavive, um Boeing comercial com destino a Abu Dhabi — o primeiro voo de sempre entre os dois países.

Para reforçar o caráter histórico deste voo, a Arábia Saudita — que oficialmente não reconhece Israel — autorizou o voo 971, operado pela empresa israelita, a atravessar o espaço aéreo saudita.

“Pela primeira vez, uma aeronave israelita irá sobrevoar a Arábia Saudita e após um voo direto que partiu de Israel, irá aterrar nos Emirados Árabes Unidos”, anunciou o piloto Tal Becker, citado pela pubicação “The Times of Israel”. “Estamos todos entusiasmados e esperamos mais voos históricos que nos levarão a outras capitais da região, levando-nos a todos para um futuro mais próspero.

A bordo seguiu uma delegação conjunta de responsáveis políticos israelitas e norte-americanos. Em Abu Dabi, irão participar em reuniões de trabalho “sobre uma série de questões visando a assinatura de acordos de cooperação nas esferas civil e económica”, informou o gabinete do primeiro-ministro de Israel.

A delegação israelita é encabeçada pelo chefe do Conselho de Segurança Nacional, Meir Ben Shabbat, e a norte-americana pelo Conselheiro de Segurança Nacional Robert O’Brien e por Jared Kushner, genro de Donald Trump e o seu principal conselheiro para questões do Médio Oriente.

“O nosso objetivo é alcançar um programa de trabalho conjunto que leve ao avanço das relações num vasto leque de áreas: turismo, saúde, inovação, ciência, tecnologia, economia e muitos outros campos”, disse Meir Ben-Shabat, antes da partida. “Esta manhã, a tradicional benção ‘Vá em paz’, tem um significado especial para nós.”

Integram a delegação americana também Avi Berkowitz, representante especial da Casa Branca para Negociações Internacionais, e Brian Hook, representante especial para o Irão.

Fim da lei do boicote a Israel

“Ao mesmo tempo que este é um voo histórico, esperamos que esta viagem seja o início de uma viagem ainda mais histórica para o Médio Oriente e além. Ontem, rezei no Muro [das Lamentações] para que muçulmanos e árabes de todo o mundo assistam a este voo, reconhecendo que somos todos filhos de Deus e que o futuro não precisa de ser predeterminado pelo passado”, disse Kushner momentos antes embarcar. “Acredito que tanta paz e prosperidade são possíveis nesta região e em todo o mundo.”

Como que a abrir caminho a esta visita, no sábado o Presidente dos Emirados Árabes Unidos aboliu uma lei de 1972 que instituía um boicote a Israel. A decisão seguiu-se a um périplo do secretário de Estado norte-americano pela região, na semana passada, durante o qual Mike Pompeo tentou convencer outros países árabes a normalizarem relações com o Estado judeu.

Anunciado a 13 de agosto, o acordo de normalização das relações diplomáticas entre Israel e os Emirados — intermediado pela Administração Trump — tornou-se o terceiro reconhecimento do Estado judeu por parte de um país árabe, após Egito (1979) e Jordânia (1994).

Apesar de os signatários defenderem que este entendimento levou à suspensão dos planos israelitas de anexação de partes da Cisjordânia palestiniana ocupada, o Acordo de Abraão é sentido pelos palestinianos como “uma traição”.

(FOTO A 30 de janeiro de 2022, o Presidente de Israel, Isaac Herzog, realizou uma visita oficial aos Emirados Árabes Unidos. Em Abu Dabi, foi recebido pelo príncipe herdeiro Mohamed bin Zayed Al Nahyan WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 31 de agosto de 2020. Pode ser consultado aqui

Um périplo americano com agenda israelita e objetivos eleitorais

Mike Pompeo visitou cinco países em cinco dias. Objetivo: pressionar países árabes a normalizarem a sua relação com Israel

Duas semanas após o anúncio da normalização da relação entre Israel e os Emirados Árabes Unidos, o Estado judeu tem novos alvos árabes em mira. Esta semana, as autoridades de Sudão, Bahrain e Omã foram sondadas sobre o assunto. A abordagem foi feita não por um israelita mas por Mike Pompeo, secretário de Estado dos EUA, durante um périplo que o levou também a Israel e Emirados.

“A tempo das eleições, Donald Trump quer apresentar pelo menos um sucesso ao nível da política externa”, diz ao Expresso Ely Karmon, do Instituto de Política e Estratégia, de Herzliya (Israel). “Ele não foi bem sucedido com os europeus, com a China, Coreia do Norte, Irão. Esta é uma possibilidade que lhe permitirá dizer: ‘Eu trouxe a paz, não ao Médio Oriente, mas pelo menos entre Israel e alguns países árabes’.”

Entre 22, apenas três reconhecem o Estado judeu: Egito (1979), Jordânia (1994) e Emirados Árabes Unidos (2020). Para o cientista político, o Sudão pode ser o próximo. “Está muito interessado em normalizar a sua relação com os EUA, deixar de ser um Estado pária e sair da lista de países terroristas. Possivelmente, este é um incentivo americano para convencer o Sudão a iniciar a normalização com Israel.”

Segundo o “Sudan Tribune”, as autoridades de Cartum apelaram a que os EUA desvinculem os dois processos. E explicaram a Pompeo que estando o país em fase de transição, depois da deposição de Omar al-Bashir a 1 de abril de 2019, após 30 anos no poder, o Conselho Soberano que dirige o país tem por missão “completar a transição, alcançar a paz e a estabilidade e realizar eleições livres”.

“Apesar de o Sudão ter participado em guerras contra Israel, algo mudou no ano passado, após a revolução”, diz Ely Karmon. “O novo Governo mudou a política e está a tentar que o país seja membro de uma coligação sunita mais moderada.”

O peso do Irão

As abordagens de Pompeo que se seguiram, ao Bahrain e a Omã, esbarram num obstáculo comum: a influência do Irão. “Uma razão que leva o Bahrain a querer ter relações diretas com Israel é o facto de se sentir ameaçado pelo Irão”, diz o israelita. “Talvez seja o Estado mais ameaçado pelo Irão.” O país vive a singularidade de ter uma família real sunita e a maioria da população ser xiita (como o Irão). No Bahrain, “há muitos grupos xiitas contrários ao regime que são financiados e apoiados pelo Irão”.

No caso de Omã, a influência iraniana é de sinal contrário. Sob a liderança do Sultão Qaboos, que morreu a 10 de janeiro após mais de 50 anos no poder, vigorou uma política de coexistência pacífica com todos os países da região. Omã tem relações amigáveis com Israel desde os anos 1960, não tomou parte na guerra Irão-Iraque e foi um mensageiro dos EUA e Irão durante as negociações sobre o programa nuclear iraniano.

“Omã tem um novo líder [Haitham bin Tariq Al Said] que não tem o mesmo prestígio do anterior e que tem de levar em consideração a estabilidade do seu regime e do país. E tem relações sensíveis e economicamente importantes com Teerão. Poderá não querer colocar-se na mira do Irão.”

(FOTO: Bandeiras de Israel e dos Estados Unidos, no aeroporto Ben Gurion, em Telavive, para dar as boas-vindas ao Presidente dos EUA Barack Obama, a 20 de março de 2013 EMBAIXADA DOS EUA EM ISRAEL)

Artigo publicado no “Expresso”, a 29 de agosto de 2020. Pode ser consultado aqui