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O truque da garrafa e a mania dos mais novos

Em Camp Warehouse, há paletes de garrafas de água espalhadas com regularidade junto aos aposentos dos militares portugueses. A “culpa” é do enfermeiro Westermann… Reportagem em Cabul

Packs de garrafas de água, junto a alojamentos de militares portugueses, em Camp Warehouse MARGARIDA MOTA

Tinha acabado de me sentar no refeitório português de Camp Warehouse quando um rosto sério se plantou à minha frente: “Como é que abriu a garrafa de água que tem aí no seu tabuleiro?” Fiquei sem reação. Só me ocorria responder o óbvio: “Peguei na garrafa e desenrosquei a tampa! Fiz mal?”

Não obtive resposta imediata e ali fiquei a digerir — o bacalhau que os cozinheiros filipinos prepararam, naquela noite, para o contingente português e o mistério à volta de uma vulgar garrafa plástica com água. Uns dias depois, procurei esclarecer-me junto do militar que me interpelara e percebi que, na verdade, fizera mal!

Seringas tóxicas a meio caminho

Desde que em 2009, igualmente em missão no Afeganistão, ouvira nas notícias que entravam no país toneladas de inseticidas e fertilizantes para fins agrícolas, o enfermeiro Westermann tem vindo a tentar mudar alguns hábitos dos militares a quem presta assistência. “As garrafas de água são transportadas para Camp Warehouse em camiões de caixa aberta”, diz. “Durante o percurso, facilmente podem ser picadas com seringas com tóxicos…”

Para atestar a qualidade da água impõem-se, pois, um truque: pegar na garrafa, virá-la com a tampa para o chão e apertá-la. Se dela sair o mais pequeno esguicho de água, é de todo aconselhável a deitar a embalagem ao lixo. A preparação da cafeteira do café ou do gelo do bar português, por exemplo, obedecem a esta técnica.

Paletes de água ao dobrar da esquina

Num passeio pelo “bairro” português de Camp Warehouse saltam à vista várias paletes com garrafas de água dispersas pelos passeios e pelos corredores junto aos dormitórios. O sargento-ajudante Westermann aconselha os militares a lavar os dentes com água engarrafada e, depois do duche, a fazerem o mesmo na zona dos genitais.

Em final de missão, Westermann refere que pela sua enfermaria — onde trabalhou com dois socorristas — não passaram casos de saúde complicados: no verão assistiu sobretudo diarreias e sangramentos nasais e no inverno gripes, amigdalites e diarreias esporádicas.

“Os militares portugueses são conscienciosos”, diz. Ainda assim, há determinados hábitos, praticados sobretudo pelos mais jovens, que o incomodam. “Fazem do quarto uma dispensa! Levam sumos, bolachas… Deve ser para comerem durante a noite, mas é um mau hábito. Depois não se queixem se apareceram ratos.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 12 de abril de 2011. Pode ser consultado aqui

Nível elevado de ameaça em Cabul

A capital do Afeganistão vive dias tensos, com um nível de ameaça elevado. Dentro dos hummer do exército português, a concentração é total. Reportagem no Afeganistão

Em Camp Warehouse um soldado português limpa o vidro de um hummer MARGARIDA MOTA

No interior do hummer não há disposição para dizer piadas nem tão pouco para comentar as prestações das equipas portuguesas nas provas europeias. Circula-se nas ruas traiçoeiras de Cabul, onde, por estes dias, o nível da ameaça foi colocado num “estado alto, muito credível”.

Durante a tarde de ontem, uma reunião no quartel general da ISAF (forças da NATO) em que o comando português deveria ter participado foi mesmo cancelada por razões de segurança.

Às primeiras horas da manhã, à chegada ao aeroporto de Cabul, o Expresso tinha à sua espera uma escolta de dois hummer para o transporte até Camp Warehouse — onde está sedeada a Força Nacional Destacada, composta por 175 homens, e em fase de rotação.

Ainda Terry Jones…

A capital afegã vive dias de grande tensão, desde que, em Mazar-e-Sharif, no norte — que integra o primeiro lote de províncias e cidades a transitarem para a responsabilidade afegã, em julho —, três funcionários da ONU e quatro gurkas, que faziam segurança, foram assassinados por uma multidão enfurecida, em protesto contra a queima do Alcorão por seguidores do pastor evangélico norte-americano Terry Jones.

No hummer português, o condutor, o chefe de viatura e o apontador da metralhadora (com o corpo fora da viatura, dirigindo a metralhadora paralelamente ao seu olhar) seguem silenciosos passando a estrada a pente fino, à procura do mais pequeno indício estranho.

“Buracos com estrada dentro”

Para evitarem a Autoestrada 7, onde, ainda esta semana, três insurgentes tentaram atacar a base norte-americana de Phoenix, seguem por um percurso alternativo, muito acidentado, onde em vez de estrada “há buracos com estrada dentro”, graceja o chefe de viatura.

Na berma da estrada, há crianças que acenam à passagem das viaturas na esperança de serem correspondidas. Os militares portugueses não se deixam distrair. No tablier da viatura, há uma lista colada com algumas dezenas de marcas, tipos, cores e matrículas de carros — a maior parte Toyotas e Land Cruiser — procurados por serem suspeitos.

Explica o chefe de viatura: “Carros com crianças dentro dificilmente representam perigo. Já carros com muitas pessoas vestidas com burca são de desconfiar. Alguns podem ser homens. Eu, muitas vezes, olho para as pessoas e fixo-me na sua mão esquerda, para ver o que transportam. Os muçulmanos fazem tudo com a mão direita. Cumprimentam, comem, acenam. Com a mão esquerda fazem coisas menos dignas.” Limpam-se com a mão esquerda após fazer as necessidades, por exemplo. É a mão amaldiçoada que, quem sabe um dia, bem pode matar.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de abril de 2011. Pode ser consultado aqui

Mão de vaca, camisolas do Benfica e o que mais houvesse

À boleia do Expresso, chegou a Cabul material desportivo para decorar os espaços de convívio dos militares portugueses e as escolas onde prestam assistência. E nem faltou um autógrafo do CR7. Reportagem no Afeganistão

Confesso que nunca tinha sentido tantas dificuldades em fazer uma mala como na véspera da minha partida para o Afeganistão. Não que o destino fosse especialmente exigente em termos de vestuário. Não era a primeira vez que viajava para um país muçulmano e, sempre que o faço, por norma, levo sobretudo calças e túnicas largas e compridas para disfarçar os contornos do corpo.

E, claro, lenços para cobrir a cabeça, na eventualidade de querer visitar uma mesquita ou fazer uma incursão num ambiente mais conservador. Apesar de nunca ter estado no Afeganistão, a preparação da mala, aparentemente, não requeria cuidados especiais.

Cantinho tuga na ISAF

O meu drama começou assim que recebi “luz verde” do Expresso e do Estado-Maior General das Forças Armadas para fazer a viagem. Contactei um amigo em missão no teatro de operações afegão e, após dizer-lhe que iria, perguntei-lhe se precisava que lhe levasse algo que estivesse a fazer falta.

Respondeu-me: “Podias tentar arranjar umas camisolas da seleção nacional ou dos clubes de futebol para nós afixarmos nas paredes. Estamos a preparar um espaço de convívio para os militares portugueses aqui no quartel-general da ISAF (força da NATO no Afeganistão) e para recebermos visitas, e gostávamos de o decorar. Se trouxeres, até podemos oferecer algumas camisolas às escolas onde estamos a prestar assistência. Que dizes?”

Dar ânimo às tropas

Não esperava este tipo de solicitação, mas concordei que chegar a Cabul com motivos alusivos ao futebol seriam sempre do agrado das tropas. Numa tarde, disparei pedidos para os três grandes do futebol, Federação Portuguesa de Futebol e a Gestifute, de Jorge Mendes, o empresário de Cristiano Ronaldo. E reincidi junto do meu amigo: “E para ti, não estás a precisar de nada mesmo?”

Afinal precisava. “Se não te custar muito, traz-me umas caixas de Biolimão 3 em 1, por favor. É um regulador gastro-intestinal. Não vou a casa tão cedo e os que trouxe já estão a acabar. Olha, e já que falamos nisto, podias tentar arranjar uns posteres do Turismo com imagens de Portugal para pendurarmos nas paredes e matarmos saudades. Que dizes?”

Não fosse por isso. Contactei o Turismo de Portugal e, como em todos os outros contactos anteriores, recebi promessas entusiastas de colaboração.

Tem de ser da Nobre, está bem?

Porém, continuava frustrada por não aproveitar a minha deslocação a Cabul para apoiar mais o meu amigo. “Tens a certeza que não precisas de mais nada?” Parecia uma conversa de surdos… Diz ele: “Olha, sabes o que é que o pessoal ia adorar? Umas latinhas de mão de vaca com grão. Da Nobre! Em Portugal, é banal, mas aqui é ouro!”.

Comecei a ver no que me tinha metido quando resolvi tirar o peso à mão de vaca: meio quilo cada lata. Como o contingente português no quartel-general da ISAF se resume a oito pessoas, achei que ficaria mal não levar pelo menos uma lata para cada um. A minha mala tinha já garantidos quatro kg só à custa da mão de vaca.

E eis que começam a chegar as respostas das instituições desportivas. FCPorto: “Quando quiser pode vir levantar três bandeiras e três camisolas autografadas pelos jogadores.” Boa!, pensei. Gestifute: “Infelizmente, não temos um armazém com material, mas temos aqui uma camisola do Cristiano Ronaldo e outra do Nani, ambas autografadas, que podemos oferecer.” Que luxo!

Benfica e Sporting, uns mãos largas

Do Estádio da Luz, saí com um caixote de camisolas autografadas, bandeiras, cachecóis, pins e porta-chaves. No Alvalade XXI, deram-me um grande saco com material escolar, uma camisola e uma bola autografadas. Só pensava onde ia levar a bola!… Da Federação, recebi bandeiras e posters. E da Nike, onde procurei, à última da hora, algum merchandising do Cristiano Ronaldo, trouxe três camisolas da seleção nacional.

Não queria deixar nada para trás, mas como iria transportar tudo aquilo? Quase arranquei cabelos quando do Turismo de Portugal me garantiram duas coleções de posters promocionais de Portugal. “São mais ou menos de que tamanho? A3?”, perguntei. “Não, não, são bem maiores!”, responderam-me, para meu desespero.

Nas mãos do comandante

Faltavam meia dúzia de horas para o meu voo e ainda andava às voltas com a mala, fazendo e refazendo a divisão dos artigos por vários e pesados volumes. Em Camp Warehouse, entreguei os bens ao Coronel Salgueiro, comandante do contingente nacional no Afeganistão, para que distribuía segundo os critérios que achar mais adequados. Separei as latas de mão de vaca e o Biolimão para entregar ao meu amigo. “Olha, a inauguração do nosso espaço vai ser durante a tua estadia aqui. Estás convidada, ok?”, disse-me ele. Lá estarei, sim! E se necessário for, até ajudo a pendurar camisolas e bandeiras na parede!

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de abril de 2011. Pode ser consultado aqui

Coluna portuguesa atacada por milícia talibã

Dois militares portugueses ficaram ontem feridos após a viatura em que seguiam, em direcção a Cabul, ter sido atacada por rebeldes afegãos

Insígnia do contingente militar português em missão no quartel-general da ISAF, a força da NATO no Afeganistão MARGARIDA MOTA

Dois soldados portugueses em missão no Afeganistão foram feridos domingo à noite quando a coluna em que seguiam foi atacada por rebeldes talibã. “Os ferimentos foram muito ligeiros. Os dois militares não necessitaram de ser evacuados por helicóptero”, informou ao Expresso o general Carlos Branco, porta-voz da Força Internacional de Assistência à Segurança (ISAF) da NATO.

O ataque aconteceu na província de Wardak, a cerca de 80 quilómetros de Cabul. Os militares portugueses regressavam da área de operações de Kandahar (Sul), onde tinham estado em missão no último mês e meio. A coluna militar portuguesa era constituída por 92 militares e 22 viaturas. Uma viatura ficou danificada.

Desde Março, o contingente português desempenha funções de Força de Reacção Rápida do comando da ISAF, designadamente em apoio ao esforço de expansão das posições da NATO e do exército afegão (ANA). A província de Kandahar é um dos principais focos da actividade rebelde.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de junho de 2008. Pode ser consultado aqui

Nassíria longe do paraíso

A cidade que vai acolher os 128 agentes da Guarda Nacional Republicana — Nassíria — era, desde o fim da guerra (1 de Maio) e até quarta-feira, das mais pacíficas do Iraque. «Apenas» um sargento norte-americano tinha lá morrido, em Julho, na sequência de um acidente de viação.

Mas após o atentado suicida contra o quartel-general das tropas italianas, de que resultaram pelo menos 26 mortos (entre os quais 12 «carabinieri» e cinco soldados), Nassíria tornou-se mais uma cidade «infectada» pela resistência terrorista e mais um ponto no mapa de preocupações da coligação.

O ataque contra os «carabinieri» — o maior e mais mortífero contra as forças da coligação estacionadas na região sob comando britânico (que superintende a força italiana e, no futuro, a portuguesa) — veio demonstrar que a reacção terrorista à presença militar estrangeira está a conquistar todo o Iraque. O sul do país, de maioria xiita, vinha sendo poupado aos ataques perpetrados pela guerrilha, mais frequentes no chamado «triângulo sunita» (Bagdade, Tikrit, Falujah).

A instabilidade no terreno é cada vez mais visível e o ataque em Nassíria culminou essa degradação. A Casa Branca demonstrou ter compreendido o aviso e empreendeu já uma viragem na sua estratégia político-militar, com George W. Bush a anunciar estar em curso a aceleração da transferência do poder para os iraquianos.

Mas até que tal se efective, Washington terá de iludir a crescente degradação da situação no terreno, através de demonstrações de força. Na sequência do atentado em Nassíria, foi lançada a operação «Martelo de Ferro», uma contra-ofensiva em larga escala que representa um retrocesso na decisão dos Estados Unidos de limitar ao máximo as acções ofensivas.

Países revêem decisões

A calma aparente que se vivia em Nassíria no pós-guerra faz definitivamente parte do passado e os países chamados a servir com homens no processo de reconstrução reequacionam os seus planos, cada vez mais desajustados à situação no terreno. O Japão adiou o envio de um contingente, a Coreia do Sul vai mandar menos homens do que o previsto e a Dinamarca congelou o envio suplementar de tropas.

Nassíria parece estar de volta aos dias da guerra, quando foi das cidades que maior resistência ofereceu à passagem das forças anglo-americanas a caminho de Bagdade. Situada na margem norte do rio Eufrates, Nassíria, com mais de meio milhão de habitantes, tinha uma grande importância estratégica para o abastecimento, em homens e equipamento, da capital, 375 quilómetros a noroeste.

Ainda durante a guerra, Nassíria foi palco de um dos episódios mais mediáticos e também mais controversos: o aparatoso resgate da soldado norte-americana Jessica Lynch, de 19 anos, feita prisioneira na sequência de uma emboscada, a 23 de Março, de que resultaram nove soldados mortos. Lynch acusa agora o Pentágono de ter encenado a sua libertação com fins propagandísticos.

É, pois, numa cidade confrontada com a ameaça terrorista que os GNR portugueses irão servir. Por enquanto, e até terem condições para se instalarem em Nassíria, ficarão aquartelados em Bassorá, a maior cidade do sul do Iraque, onde está sediado o comando britânico. Setenta quilómetros para norte, situa-se Qurna, onde se unem os rios Tigre e Eufrates e onde, conta a lenda, terá florido o bíblico Jardim do Éden. Hoje, porém, a região está muito longe de ser um paraíso.

Artigo publicado no “Expresso”, a 15 de novembro de 2003