De passagem por Lisboa, Bernard Cassen, presidente da ATTAC, realça a actualidade do movimento antiglobalização. Entrevista

Os trágicos acontecimentos de 11 de Setembro nos Estados Unidos só vieram reforçar as reivindicações do movimento antiglobalização. Quem o diz é o francês Bernard Cassen, presidente da ATTAC (Associação para a Tributação das Transacções financeiras para Ajuda aos Cidadãos), para quem a pobreza não cria monstros como Bin Laden — antes, os torna populares.
EXPRESSO — Quais as consequências do 11 de Setembro para o movimento antiglobalização?
BERNARD CASSEN — A primeira foi uma mudança na agenda mediática. A prioridade passou da luta contra a mundialização liberal para as próprias consequências do 11 de Setembro. Em segundo lugar, houve uma tentativa de criminalização do movimento: quem é contra a globalização é antiamericano, logo cúmplice de Bin Laden. Há uma manipulação enorme. Em Seattle não eram nem Bin Laden nem os “mullah”, eram americanos. Esses americanos eram antiamericanos? E eu, quando critico o meu Governo, sou antifrancês? Se antes tínhamos razão, hoje temos mais. Aliás, a maior parte dos temas que nós desenvolvemos estão a ser retomados pelo próprio Presidente George W. Bush.
EXP. — Tais como?
B.C. — Os paraísos fiscais, por exemplo. Lutámos sempre contra os paraísos fiscais, enquanto Bush fingia lutar, adoptando medidas extremamente limitadas. Acreditamos que os paraísos fiscais são os “bairros dourados” da criminalidade e as fontes de financiamento do terrorismo. Outro exemplo é a anulação da dívida pública do Terceiro Mundo. Dizem-nos que não é possível, mas reduziram a dívida ao Paquistão…
EXP. — Os cidadãos não estão menos tolerantes com um movimento que, por vezes, se torna violento?
B.C. — Não somos nós que organizamos a confrontação, não somos nós que fazemos os planos de ajustamento estrutural, é o Banco Mundial e o FMI. Há violência quando a Polícia o decide. Em Génova, quando o “Black Bloc” destruiu ruas inteiras, a Polícia nada fez para lhes imputar as culpas.
EXP. — O Fórum Mundial de Beirute foi muito menos mediático que o Fórum Social de Génova e a maioria das organizações eram árabes. O Fórum não é uma vítima do 11 de Setembro?
B.C. — De forma alguma. O movimento antiglobalização parte sobretudo dos EUA e da Europa. No Fórum Social de Porto Alegre, por razões geográficas, incorporamos a América Latina. Há dois pontos fracos do movimento: o mundo árabe e a Ásia. Organizámos o Fórum de Beirute unicamente para incorporar organizações e movimentos árabes, da mesma forma que vamos fazer um próximo Fórum na Ásia. Em Beirute, não tínhamos a ambição de fazer um Fórum Social.
EXP. — Os participantes do Fórum de Beirute visitaram os campos de Shabra e Chatila. Isso não indicia uma certa politização do movimento que lhe pode ser fatal?
B.C. — Mas o movimento é político. Quando se é contra a globalizacão ou se luta pela anulação da dívida do Terceiro Mundo está-se a fazer política. Quando se está no Líbano, é impensável não se falar no conflito israelo-palestino. Sem resolver o problema jamais haverá paz.
EXP. — Estas questões particulares não enfraquecem o movimento?
B.C. — De forma alguma. Neste caso, há um consenso mundial. A solução deste problema é a condição da luta contra o terrorismo.
EXP. — O que espera da cimeira da Organização Mundial do Comércio no Qatar?
B.C. — Nada de bom. Vai iniciar um novo ciclo de liberalização comercial, sem que se tenha feito o balanço de seis anos de liberalização desde a criação da OMC. E porquê? O resultado seria mau. Somos contrários a que sectores como a educação, saúde, cultura e mesmo a agricultura sejam transformados em mercados. Há um lugar legítimo para o mercado, mas tudo o que acentua a liberalização é mau. É preciso combater a ideia de que o crescimento depende do comércio.
EXP. — A França apoiou a proposta belga de solicitar à Comissão Europeia um estudo sobre a exequibilidade da Taxa Tobin…
B.C. — O Governo francês aderiu à proposta após uma enorme pressão da nossa parte. O estudo está em curso e deverá sair em meados de Dezembro, mas vamos ver como é feito esse estudo e se eles ouvem os nossos peritos. Também trabalhamos junto dos deputados e a maioria é favorável à Taxa Tobin, tal como 75% dos franceses.
EXP. — Está pessimista em relação à atitude da União Europeia…
B.C. — É evidente, não confio nem na Comissão, que é ultraliberal, nem na espontaneidade dos Governos, que são os porta-voz dos financeiros. Sobretudo os ministros das Finanças que não prestam contas aos eleitores, mas aos economistas e ao Fundo Monetário. A Taxa Tobin nem sequer é uma medida de esquerda. O professor Tobin propôs essa medida para estabilizar o mercado financeiro. A liberdade de circulação total de capitais pode beneficiar o Sul. Mas eles não querem criar um precedente político, porque têm medo que nós exijamos mais. E têm razão, vamos exigir muito mais.
EXP. — A ATTAC está contra os bombardeamentos ao Afeganistão. Quais são as alternativas?
B.C. — Nós não temos uma proposta precisa. Não contestamos a legitimidade internacional da acção norte-americana, porque o Conselho de Segurança das Nações Unidas deu o seu acordo. Mas constatamos o quê? Primeiro, que o regime talibã permanece no poder; que as únicas vítimas são civis; e que a operação não tem sucesso. Constatamos ainda o grande risco de desestabilização do Paquistão. A resposta ao terrorismo não é dada por via das armas, é uma resposta política. É necessário destruir a aceitação do terrorismo junto de muitas pessoas que, verbalmente, condenam o terrorismo e depois acrescentam: “Mas foi muito bem feito para eles”.
EXP. — E que solução política?
B.C. — Começar pela questão prévia, o conflito israelo-palestino. Enquanto não houver uma solução justa para o problema palestino, as massas dos países árabes serão antiamericanas. Depois, é necessário uma outra ordem mundial, mais justa e equitativa em relação aos pobres, ao Sul. Não posso dizer que haja uma causalidade directa entre a pobreza e Bin Laden. O que é inquietante é a sua popularidade junto de muitos sectores de países árabes e, mais discretamente, de países do Terceiro Mundo.
DE SEATTLE A DOHA
Quem, na quinta-feira, foi assistir à conferência de Bernard Cassen, na expectativa de o ouvir enunciar as dificuldades por que passa o movimento antiglobalização, terá ficado desiludido. Perante o auditório do Instituto Franco-Português, em Lisboa, este destacado dirigente do movimento reafirmou os propósitos dos protestos antiglobalização perante os acontecimentos de 11 de Setembro nos EUA, afastando a necessidade de uma reinvenção do movimento. Não deixa de ser curiosa a perspectiva de Bernard Cassen em vésperas de uma importante reunião da OMC (Organização Mundial do Comércio), que ontem se iniciou, em Doha (Qatar).
Além da formalização da adesão da China à organização, a cimeira ficará marcada pelo início de um novo ciclo de liberalização comercial. Da última vez que a OMC tentou lançar uma nova ronda de conversações (Seattle, 1999), os distúrbios explodiram nas ruas, inviabilizando o acordo e instituindo o movimento antiglobalização como o conhecemos. Mas as semelhanças entre Seattle e Doha resumem-se aos destacamentos policiais nas ruas, numa cópia a papel-químico dos cânones praticados em Génova, quando da última grande manifestação antiglobalização, contra uma reunião do G8. Na quinta feira, a capital do Qatar assemelhava-se a uma cidade-fantasma com as ruas a serem percorridas por polícias armados, cães-polícias e camiões militares. A segurança é apertada, sobretudo para os jornalistas que, após serem revistados por oficiais qataris, têm de passar pela segurança norte-americana…
E se, em circunstâncias normais, seriam os protestos de rua a justificar o aparato policial, no Qatar é a ameaça de novos ataques terroristas que está na ordem do dia. Na quarta-feira, o alarme disparou quando um qatari, alegadamente com perturbações mentais, disparou contra uma base militar norte-americana.
No Qatar, apenas a organização ambientalista Greenpeace parece estar a preparar protestos, tendo o famoso navio Rainbow Warrior, na quinta-feira, atracado em águas do Qatar, com 15 activistas a bordo. Desta vez, a “tribo antiglobalização” — dados os custos da deslocação e as dificuldades em obter o visto — não sai de casa: em pelo menos 29 países vão decorrer sessões de trabalho, marchas e festas de rua. Quanto à tradicional contra-cimeira, não se realizou nos moldes habituais, resumindo-se a um modesto encontro de algumas dezenas de organizações não-governamentais (na maioria árabes), na sede da UNESCO em Beirute (Líbano).
Para Bernard Cassen, porém, o importante é “lutar, através da informação e da acção dos cidadãos, contra as múltiplas facetas da dominação da esfera financeira sobre todos os domínios da actividade humana”, escreveu no seu livro “Contra a Ditadura dos Mercados”.
Artigo publicado no “Expresso”, a 10 de novembro de 2001













