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“Do Qatar? Nada de bom”

De passagem por Lisboa, Bernard Cassen, presidente da ATTAC, realça a actualidade do movimento antiglobalização. Entrevista

Para a ATTAC (Associação pela Tributação das Transações financeiras para Ajuda aos Cidadãos), “um outro mundo é possível” WIKIMEDIA COMMONS

Os trágicos acontecimentos de 11 de Setembro nos Estados Unidos só vieram reforçar as reivindicações do movimento antiglobalização. Quem o diz é o francês Bernard Cassen, presidente da ATTAC (Associação para a Tributação das Transacções financeiras para Ajuda aos Cidadãos), para quem a pobreza não cria monstros como Bin Laden — antes, os torna populares.

EXPRESSO — Quais as consequências do 11 de Setembro para o movimento antiglobalização?
BERNARD CASSEN — A primeira foi uma mudança na agenda mediática. A prioridade passou da luta contra a mundialização liberal para as próprias consequências do 11 de Setembro. Em segundo lugar, houve uma tentativa de criminalização do movimento: quem é contra a globalização é antiamericano, logo cúmplice de Bin Laden. Há uma manipulação enorme. Em Seattle não eram nem Bin Laden nem os “mullah”, eram americanos. Esses americanos eram antiamericanos? E eu, quando critico o meu Governo, sou antifrancês? Se antes tínhamos razão, hoje temos mais. Aliás, a maior parte dos temas que nós desenvolvemos estão a ser retomados pelo próprio Presidente George W. Bush.

EXP. — Tais como?
B.C. — Os paraísos fiscais, por exemplo. Lutámos sempre contra os paraísos fiscais, enquanto Bush fingia lutar, adoptando medidas extremamente limitadas. Acreditamos que os paraísos fiscais são os bairros dourados” da criminalidade e as fontes de financiamento do terrorismo. Outro exemplo é a anulação da dívida pública do Terceiro Mundo. Dizem-nos que não é possível, mas reduziram a dívida ao Paquistão…

EXP. — Os cidadãos não estão menos tolerantes com um movimento que, por vezes, se torna violento?
B.C. — Não somos nós que organizamos a confrontação, não somos nós que fazemos os planos de ajustamento estrutural, é o Banco Mundial e o FMI. Há violência quando a Polícia o decide. Em Génova, quando o Black Bloc” destruiu ruas inteiras, a Polícia nada fez para lhes imputar as culpas.

EXP. — O Fórum Mundial de Beirute foi muito menos mediático que o Fórum Social de Génova e a maioria das organizações eram árabes. O Fórum não é uma vítima do 11 de Setembro?
B.C. — De forma alguma. O movimento antiglobalização parte sobretudo dos EUA e da Europa. No Fórum Social de Porto Alegre, por razões geográficas, incorporamos a América Latina. Há dois pontos fracos do movimento: o mundo árabe e a Ásia. Organizámos o Fórum de Beirute unicamente para incorporar organizações e movimentos árabes, da mesma forma que vamos fazer um próximo Fórum na Ásia. Em Beirute, não tínhamos a ambição de fazer um Fórum Social.

EXP. — Os participantes do Fórum de Beirute visitaram os campos de Shabra e Chatila. Isso não indicia uma certa politização do movimento que lhe pode ser fatal?
B.C. — Mas o movimento é político. Quando se é contra a globalizacão ou se luta pela anulação da dívida do Terceiro Mundo está-se a fazer política. Quando se está no Líbano, é impensável não se falar no conflito israelo-palestino. Sem resolver o problema jamais haverá paz.

EXP. — Estas questões particulares não enfraquecem o movimento?
B.C. — De forma alguma. Neste caso, há um consenso mundial. A solução deste problema é a condição da luta contra o terrorismo.

EXP. — O que espera da cimeira da Organização Mundial do Comércio no Qatar?
B.C. — Nada de bom. Vai iniciar um novo ciclo de liberalização comercial, sem que se tenha feito o balanço de seis anos de liberalização desde a criação da OMC. E porquê? O resultado seria mau. Somos contrários a que sectores como a educação, saúde, cultura e mesmo a agricultura sejam transformados em mercados. Há um lugar legítimo para o mercado, mas tudo o que acentua a liberalização é mau. É preciso combater a ideia de que o crescimento depende do comércio.

EXP. — A França apoiou a proposta belga de solicitar à Comissão Europeia um estudo sobre a exequibilidade da Taxa Tobin…
B.C. — O Governo francês aderiu à proposta após uma enorme pressão da nossa parte. O estudo está em curso e deverá sair em meados de Dezembro, mas vamos ver como é feito esse estudo e se eles ouvem os nossos peritos. Também trabalhamos junto dos deputados e a maioria é favorável à Taxa Tobin, tal como 75% dos franceses.

EXP. — Está pessimista em relação à atitude da União Europeia…
B.C. — É evidente, não confio nem na Comissão, que é ultraliberal, nem na espontaneidade dos Governos, que são os porta-voz dos financeiros. Sobretudo os ministros das Finanças que não prestam contas aos eleitores, mas aos economistas e ao Fundo Monetário. A Taxa Tobin nem sequer é uma medida de esquerda. O professor Tobin propôs essa medida para estabilizar o mercado financeiro. A liberdade de circulação total de capitais pode beneficiar o Sul. Mas eles não querem criar um precedente político, porque têm medo que nós exijamos mais. E têm razão, vamos exigir muito mais.

EXP. — A ATTAC está contra os bombardeamentos ao Afeganistão. Quais são as alternativas?
B.C. — Nós não temos uma proposta precisa. Não contestamos a legitimidade internacional da acção norte-americana, porque o Conselho de Segurança das Nações Unidas deu o seu acordo. Mas constatamos o quê? Primeiro, que o regime talibã permanece no poder; que as únicas vítimas são civis; e que a operação não tem sucesso. Constatamos ainda o grande risco de desestabilização do Paquistão. A resposta ao terrorismo não é dada por via das armas, é uma resposta política. É necessário destruir a aceitação do terrorismo junto de muitas pessoas que, verbalmente, condenam o terrorismo e depois acrescentam: Mas foi muito bem feito para eles”.

EXP. — E que solução política?
B.C. — Começar pela questão prévia, o conflito israelo-palestino. Enquanto não houver uma solução justa para o problema palestino, as massas dos países árabes serão antiamericanas. Depois, é necessário uma outra ordem mundial, mais justa e equitativa em relação aos pobres, ao Sul. Não posso dizer que haja uma causalidade directa entre a pobreza e Bin Laden. O que é inquietante é a sua popularidade junto de muitos sectores de países árabes e, mais discretamente, de países do Terceiro Mundo.

DE SEATTLE A DOHA

Quem, na quinta-feira, foi assistir à conferência de Bernard Cassen, na expectativa de o ouvir enunciar as dificuldades por que passa o movimento antiglobalização, terá ficado desiludido. Perante o auditório do Instituto Franco-Português, em Lisboa, este destacado dirigente do movimento reafirmou os propósitos dos protestos antiglobalização perante os acontecimentos de 11 de Setembro nos EUA, afastando a necessidade de uma reinvenção do movimento. Não deixa de ser curiosa a perspectiva de Bernard Cassen em vésperas de uma importante reunião da OMC (Organização Mundial do Comércio), que ontem se iniciou, em Doha (Qatar).

Além da formalização da adesão da China à organização, a cimeira ficará marcada pelo início de um novo ciclo de liberalização comercial. Da última vez que a OMC tentou lançar uma nova ronda de conversações (Seattle, 1999), os distúrbios explodiram nas ruas, inviabilizando o acordo e instituindo o movimento antiglobalização como o conhecemos. Mas as semelhanças entre Seattle e Doha resumem-se aos destacamentos policiais nas ruas, numa cópia a papel-químico dos cânones praticados em Génova, quando da última grande manifestação antiglobalização, contra uma reunião do G8. Na quinta feira, a capital do Qatar assemelhava-se a uma cidade-fantasma com as ruas a serem percorridas por polícias armados, cães-polícias e camiões militares. A segurança é apertada, sobretudo para os jornalistas que, após serem revistados por oficiais qataris, têm de passar pela segurança norte-americana…

E se, em circunstâncias normais, seriam os protestos de rua a justificar o aparato policial, no Qatar é a ameaça de novos ataques terroristas que está na ordem do dia. Na quarta-feira, o alarme disparou quando um qatari, alegadamente com perturbações mentais, disparou contra uma base militar norte-americana.

No Qatar, apenas a organização ambientalista Greenpeace parece estar a preparar protestos, tendo o famoso navio Rainbow Warrior, na quinta-feira, atracado em águas do Qatar, com 15 activistas a bordo. Desta vez, a tribo antiglobalização — dados os custos da deslocação e as dificuldades em obter o visto — não sai de casa: em pelo menos 29 países vão decorrer sessões de trabalho, marchas e festas de rua. Quanto à tradicional contra-cimeira, não se realizou nos moldes habituais, resumindo-se a um modesto encontro de algumas dezenas de organizações não-governamentais (na maioria árabes), na sede da UNESCO em Beirute (Líbano).

Para Bernard Cassen, porém, o importante é lutar, através da informação e da acção dos cidadãos, contra as múltiplas facetas da dominação da esfera financeira sobre todos os domínios da actividade humana, escreveu no seu livro “Contra a Ditadura dos Mercados”.

Artigo publicado no Expresso, a 10 de novembro de 2001

Em Génova para protestar

Génova foi o palco da última grande manifestação antiglobalização. Um grupo de portugueses marcou presença. Reportagem em Génova

Já em Génova, os manifestantes portugueses lançam-se a caminho do cortejo, atrás de uma faixa onde se lê: “Pela globalização das lutas” MARGARIDA MOTA

Lisboa tinha ficado para trás há mais de 30 horas quando o autocarro da resistência” foi tomado pela primeira grande discussão. “Como é, tiramos a bandeira ou não?” Eram oito da manhã de sábado passado. Desde que arrancara de Lisboa, ao início da madrugada do dia anterior, o autocarro atravessara Portugal, Espanha e França com uma pequena bandeira cor-de-rosa do Bloco de Esquerda (BE) orgulhosamente colada no vidro do primeiro andar.

A bordo, 51 jovens portugueses — vindos de Lisboa, Porto, Coimbra e Faro, quase todos militantes do BE — seguiam para Génova, para a manifestação internacional antiglobalização. A proximidade com a fronteira franco-italiana levantou a dúvida acerca da oportunidade da bandeira. Dificilmente o autocarro não seria mandado parar, a questão era saber se a bandeira não dificultaria ainda mais as coisas. “Deixa ficar. Afinal, o que não falta, dentro do autocarro, são indícios de que vamos para Génova”, foi a posição que acabou por prevalecer.

Mas não seria por causa da bandeira que o autocarro ficaria imobilizado durante cerca de uma hora na fronteira de Ventimiglia. Era nas fronteiras internacionais que funcionava o principal filtro do tráfego que ia para Génova. Por isso, sem surpresa, todos os autocarros eram mandados parar.

Os carabinieri entram no autocarro português e recolhem as identificações dos passageiros. No exterior, as bagagens são retiradas da mala e alinhadas no chão. Dezenas de sacos, bolsas e mochilas são abertos e revistados por alto. Junto dos jovens, não há receio, apenas impaciência: “Isto é só para atrasar. Nem estão a ver aquilo como deve ser.” Mais ao lado, um “carabiniero” tenta deitar água na fervura: “Mais vale prevenir do que remediar.”

“Carabinieri” revistam as mochilas dos portugueses, na fronteira italiana MARGARIDA MOTA

Alguns papéis mais suspeitos são traduzidos, com a ajuda de um agente brasileiro. Um saco com vídeos, livros, autocolantes, isqueiros e panfletos do BE causa alguma apreensão. A Polícia italiana quer ver o conteúdo dos vídeos, e é com algum gozo que os jovens portugueses observam os “carabinieri”, no interior do autocarro, a verem os tempos de antena do BE, ao mesmo tempo que divagam sobre o potencial de perigo das palavras de camaradas como Francisco Louçã ou Boaventura Sousa Santos à medida que vão surgindo no ecrã da televisão.

Quilómetros antes, ainda no lado francês, numa primeira barragem policial, a gargalhada soltara-se com igual facilidade. Após uma revista ao interior do autocarro, um guarda francês apreendera um exemplar do “Combate”, o jornal oficial do Partido Socialista Revolucionário (PSR). Mas a artificialidade do gesto foi tão evidente que o guarda nem se inibiu de sorrir e de posar para a fotografia, simulando que estava a ler o pretenso objecto de delito…

O autocarro acabaria por deixar o posto fronteiriço italiano sem problemas. Menos sorte teve um outro que vinha da Catalunha, igualmente com destino a Génova, que já lá estava quando os portugueses chegaram e que ainda lá ficou quando partiram.

Com pontualidade britânica, o autocarro português entra em Génova às 13h30 de sábado, exactamente 36 horas depois de ter partido de Lisboa. A ânsia de integrar a manifestação é grande, e rapidamente os jovens organizam-se atrás de uma faixa de protesto — “Pela globalização das lutas” —, munidos de coloridas bandeiras do BE e do PSR. Uma carrinha que vai a passar pára e previne que a Polícia anda a pulverizar a cidade com gás lacrimogéneo.

Lenços a cobrir as vias respiratórias para proteger do gás lacrimogéneo MARGARIDA MOTA

Os portugueses começam a marchar com a sensação de que a tarde não vai ser fácil. Pelo caminho, vão ensaiando “gritos de guerra”, até surgirem os primeiros obstáculos. É difícil circular, a maioria das ruas está bloqueada por cordões policiais, enormes contentores ou densas nuvens de gás lacrimogéneo. O som dos helicópteros da Polícia intensifica o clima de tensão, e é no meio de alguma desorientação que os portugueses lá conseguem intersectar o gigantesco cortejo antiglobalização.

Ao grito de “Repressão policial, terrorismo oficial”, os bloquistas são recebidos com uma estrondosa ovação. Um grupo de ingleses e irlandeses abre espaço, e o reforço português passa a desfilar, oficialmente, na “manif” de Génova, atrás dos curdos. Os primeiros momentos são de deslumbre. “É impressionante”, “Nunca vi nada assim”, “Isto está com um ambiente excelente”, é o que se vai ouvindo um pouco por todo o lado. Há centenas de cartazes e de faixas de protesto, mas nem uma única bandeira nacional: “Estas questões são universais”, afirma-se convictamente.

Vive-se o primeiro momento de entusiasmo geral quando corre o boato de que a cimeira do G8 tinha sido cancelada. Mas seria o povo de Génova que estaria na origem da maior euforia da tarde. Em cada edifício, várias janelas vão-se abrindo, ao ritmo da marcha, e os moradores empenham-se em refrescar os manifestantes com mangueiras, bacias ou garrafas de água. Durante os dias que antecederam as manifestações, Génova foi caracterizada como uma cidade-fantasma, abandonada pela sua população, pretensamente de costas voltadas para os protestos antiglobalização. Contrariamente, os manifestantes acabaram por testemunhar que as mesmas pessoas que, na véspera, tinham fechado as portas a sete chaves para sobreviverem à jornada de violência estavam com eles no protesto.

É mesmo provável que em Génova tenha nascido um novo ícone do movimento antiglobalização: a solidariedade implícita das populações, vítimas directas da violência das alas radicais do movimento mas em sintonia com os manifestantes pacíficos. Os protestantes percebem o simbolismo do acto e correspondem: “Genova libera” (“Génova livre”), repete-se muitas vezes.

As janelas vão-se abrindo, e os moradores empenham-se em refrescar os manifestantes com mangueiras e bacias de água

Ao fim de duas horas, o cortejo dissolve-se espontaneamente. Nalguns pontos da cidade, decorrem comícios, mas permanece no ar um sentimento generalizado de insegurança e um cheiro intenso a gás lacrimogéneo. Os jovens portugueses querem ir até à Praça Kennedy, onde têm combinado um encontro com um grupo de italianos, mas as informações que lhes chegam fazem abortar o plano: “A praça está destruída. Vamos mas é para o autocarro.”

Há muita gente a desmobilizar, e o percurso até ao autocarro é feito com um olho por cima do ombro. As bandeiras do BE e do PSR há muito que estão recolhidas: contrariamente à chegada à fronteira italiana, onde o espírito de aventura estava na sua máxima força, o perigo, em Génova, é real e espreita a cada esquina.

Ao passarem por três “radicais” que batem a compasso com paus em contentores do lixo, numa clara provocação à Polícia, os portugueses ouvem o inevitável: “Fujam! Fujam!” O alarme revela-se falso, mas é suficientemente assustador para desencadear uma curta correria e provocar algumas quedas inconsequentes. Já quase a chegarem ao autocarro — estacionado perto do estádio Luigi Ferraris —, vêem uma densa coluna de fumo negro emergir ao longe. “É na bomba de gasolina por onde passámos há bocado”, garantem.

Há a sensação de que a Polícia está a “limpar” a cidade a gás lacrimogéneo, e todos querem abandonar Génova o mais rapidamente possível. De súbito, uma nuvem de gás, vinda não se sabe de onde, atinge em cheio os portugueses, que se precipitam para dentro do autocarro. “Fechem as portas! Fechem as portas!”, grita-se. Os olhos avermelhados choram abundantemente, e são precisos uns bons minutos para que a visão se restabeleça.

O autocarro arranca, e Génova começa a ficar para trás. Instala-se então o sentimento do dever cumprido. “Ficou demonstrada a amplitude do movimento, e o ónus da violência coube, mais uma vez, à repressão policial”, afirma, em jeito de balanço, Hugo Albuquerque, de 24 anos, um dos organizadores da excursão.

Artigo publicado no suplemento Vidas do Expresso, a 28 de julho de 2001

Sem regras claras

A luta antiglobalização carece de regras. A violência em Génova foi uma evidência. Reportagem em Génova

Jovens portugueses durante a manifestação antiglobalização em Génova, a 21 de julho de 2001 MARGARIDA MOTA

Salvatore ia sensivelmente a meio do caminho, quando se enganou no percurso. Não consigo conduzir e conversar ao mesmo tempo”, afirmou, esboçando um sorriso de resignação.

Desembaraçou-se a corrigir a trajectória e retomou o caminho para Roma, mas não se conseguiu calar: “Em Génova, estiveram entre 200 e 300 mil pessoas, hoje estão 10 mil a protestar em Milão e amanhã vai haver outra manifestação em Roma”, afirmava, na segunda-feira, este italiano. Estava visivelmente entusiasmado com as jornadas de protesto contra a actuação policial, que se seguiram às manifestações de Génova.

Tinha sido num cenário de guerrilha urbana que a manifestação pacífica — organizada por sindicatos, associações e organizações não-governamentais — desfilara no sábado. Na véspera, a desobediência civil, convocada pelos “casseurs (as alas radicais do movimento antiglobalização) tinha transformado a cidade mediterrânica de Génova num cenário de guerra balcânica, com vidros estilhaçados, carros calcinados e lixo em abundância.

No sábado, a presença constante de helicópteros da polícia e o previsível desejo de vingança de Carlo Giuliani (o italiano de 23 anos, membro de um grupo anarquista, mortalmente atingido na véspera) realça uma calma precária. À semelhança da desobediência civil, também a marcha da não-violência activa” viria, ironicamente, a terminar em confrontos.

Os excessos cometidos pela polícia italiana durante uma rusga nocturna, no domingo, à sede do Fórum Social de Génova — a contracimeira com 700 organizações, paralelamente à reunião do G8 (os sete países mais ricos e a Rússia) —, foram amplamente denunciados. Mas nem globalização nem antiglobalização podem cantar vitória. São muitas as contradições que os dois campos encerram, tornando este fenómeno uma autêntica guerra de surdos.

Cada um por si

Após a morte de Carlo Giuliani, foram várias as organizações que desmobilizaram, não marcando presença na manifestação pacífica — entre as quais a famosa Drop the Debt” (“Anulem a Dívida”) e alguns movimentos católicos. Ao mesmo tempo, os encontros dos cantores Bono Vox (U2) e Bob Geldof com alguns líderes do G8 — fazendo “lobby” pelo cancelamento da dívida dos países do Terceiro Mundo — foram duramente criticados pelo principal “site” coordenador da luta antiglobalização (Indymedia.org ).

“O espectáculo de Geldof e Bono, abraçando os líderes do G8, foi revoltante. Tratou-se de uma irreflectida associação com os senhores do mundo’ e de uma dissociação das dezenas de milhares de pessoas que se juntaram para protestar contra as injustiças e desigualdades da nova ordem mundial”, lia-se nas páginas do Indymedia.

As contradições também se reflectiram nas ruas. “Esta é a nossa manifestação, a vossa, a dos anarquistas, foi ontem”, gritava um homem para outro, que usava uma máscara de gás, durante a manifestação pacífica.

G8 a várias vozes

Também os “senhores do mundo” não escapam às contradições. Um dos pontos do comunicado final da cimeira apela para o estabelecimento de uma “larga parceria com a sociedade civil e o sector privado”.

Paralelamente, o G8 — refugiado, em Génova, a bordo de um luxuoso paquete, protegido por um apertado esquema de segurança — anunciou que a cimeira de 2002, inicialmente prevista para a capital canadiana (Otava), se realizará em Kananaskis, uma estação de desportos de Inverno isolada, no coração das Montanhas Rochosas…

Em relação à violência nas manifestações, os presidentes dos EUA e da França, por exemplo, desafinaram publicamente. Para George W. Bush, estes manifestantes, que tentam impedir as nossas discussões sobre o comércio e a ajuda aos países pobres, não representam os pobres”.

Já para Jacques Chirac, o fenómeno merece uma reflexão. As dezenas e dezenas de milhares de compatriotas, vindos sobretudo da Europa para manifestar o desejo de mudança, merecem consideração por parte dos dirigentes do mundo”.

Parece evidente que este braço -de-ferro entre os “senhores do mundo” e o movimento antiglobalização não tem ainda regras definidas. No sábado, enquanto observava o pandemónio em que se transformara a sua cidade, um habitante de Génova dizia: “Tenho 82 anos, conheci a guerra, mas isto… isto é uma vergonha”.

PORTO ALEGRE JÁ EM MARCHA

Está já em preparação o II Fórum Social Mundial (FSM), que decorrerá de 31 de Janeiro a 5 de Fevereiro de 2002 na cidade brasileira de Porto Alegre — à semelhança do primeiro —, onde são esperados entre 80 e 100 mil participantes. Ainda em fase de discussão, os dois eixos centrais desta segunda edição deverão ser o cancelamento da dívida externa dos países do Terceiro Mundo e o futuro da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Mas é ao nível dos resultados práticos que o II FSM se propõe dar um passo de gigante: Estamos a trabalhar na organização e na estrutura deste II FSM para que ele seja muito mais positivo, com resoluções que possam ser assumidas por movimentos sociais, por governos e pela sociedade civil em geral, afirmou, em declarações ao “Expresso, André Mombach, um brasileiro de 23 anos directamente envolvido na organização desta segunda edição do FSM através do Comité da Juventude.

André Mombach, de 23 anos, da organização do II Fórum Social de Porto Alegre MARGARIDA MOTA

Para Mombach, é importante que o Fórum de Porto Alegre caminhe no sentido da elaboração de propostas alternativas para os problemas que o FSM denuncia, até para dar crédito ao próprio movimento antiglobalização: Nesse aspecto, o I Fórum foi muito deficitário e ficou muito no plano da resistência, refere o jovem. A reincidência do Brasil — e da cidade de Porto Alegre — como anfitrião da segunda edição não é casual: “É um país onde os dois planos do FSM existem e estão muito bem constituídos: o plano da resistência (através do movimento sindical, do Movimento dos Sem-Terra) e o da discussão de uma alternativa (através da democracia participativa, que tem já 13 anos de experiência na Prefeitura de Porto Alegre)”, diz André Mombach.

Artigo publicado no Expresso, a 28 de julho de 2001

Cimeira de Génova sob o signo da morte

Carlo Giuliani, morto durante os protestos contra a realização da cimeira do G8 em Génova GRATISPNG

No meio de um caos indescritível e depois de horas de confrontos violentos nas ruas de Génova, foi ontem morto pela polícia um jovem [Carlo Giuliani, retratado na ilustração] que se manifestava contra a cimeira do G8, dos sete países mais industrializados do mundo, mais a Rússia. Uma outra jovem terá sido gravemente ferida, e pelo menos 46 manifestantes e 31 polícias, segundo dados provisórios, foram também feridos. Foram detidas pelo menos 40 pessoas.

O jovem, que usava um capuz, foi atingido com duas balas na cabeça e deixado no chão durante horas, coberto por um lençol, enquanto prosseguiam os confrontos entre a polícia e as dezenas de milhares de manifestantes antiglobalização (100 mil, segundo os organizadores), que convergiram de todo o mundo para o porto italiano e usaram técnicas de guerrilha urbana nos seus confrontos com a polícia. Os manifestantes tentaram furar as barreiras colocadas pela polícia para os impedir de chegar até ao Palácio Ducal, onde os oito líderes mundiais iniciavam o seu primeiro encontro oficial.

A notícia dos confrontos pareceu não abalar a confiança do grupo de 51 jovens militantes do Bloco de Esquerda, que partiu de Lisboa na madrugada de sexta-feira, de autocarro, para Génova. Os jovens têm a expectativa de entrar ainda hoje na cidade, para participar na grande manifestação internacional antiglobalização, marcada para esta tarde. Agora é que vai ser mais importante do que nunca desfilar pacificamente”, disse ao “Expresso” Jorge Costa, um dos organizadores.

Artigo escrito com o contributo de Vitoria Di Lelio, correspondente do “Expresso” em Roma e publicado no Expresso, a 21 de julho de 2001

Em Génova, contra o capital…

Os soldados da antiglobalização já estão a postos para mais um combate: a cidade italiana de Génova, onde, dentro de uma semana, se realiza mais uma cimeira do G8. A nebulosa de grupos que compõem o movimento antiglobalização (chamam-lhe a “Quinta Internacional”) são chamados às armas, fazendo temer uma explosão de violência que faz empalidecer um movimento que luta, afinal, também por uma globalização mais justa e solidária

Membros do movimento social italiano Tute Bianche WIKIMEDIA COMMONS

Ana Cruz e Hugo Albuquerque são dois dos rostos do movimento antiglobalização em Portugal. Militantes do Partido Socialista Revolucionário e do Bloco de Esquerda (BE), estão de mochila feita para irem até Génova, para uma jornada anti-globalização, que decorrerá às portas de mais uma reunião do Grupo dos sete países mais industrializados e a Rússia (G8), no dia 21.

Apesar de ser a primeira vez que vão a uma “manif” antiglobalização no estrangeiro, não revelam uma excitação adicional. Em entrevista ao “Expresso”, preferem, aliás, falar de “motivações”: “Não contestamos a globalização por contestar, a globalização pode ser um bom conceito, agora não é a globalização capitalista com certeza”, refere Hugo, um estudante de Engenharia do Ambiente de 24 anos que, nas próximas autárquicas, encabeçará a lista do BE à Câmara Municipal de Odivelas.

Ana, de 22 anos, está de acordo com  ele: “Não consigo estar parada, a assistir, vou para a rua porque não é este tipo de globalização que quero — isto é uma globalização feita de princípios económicos, que põe em causa princípios humanitários e de igualdade que defendo”.

Não às fronteiras!

Paralelamente ao curso de Sociologia, Ana trabalha na associação SOS Racismo. O problema da imigração ilegal é uma das suas principais bandeiras. “Não concordo com o encerramento das fronteiras”, diz. “Como é que as pessoas podem ser ilegais? Não gosto da palavra, é um contra-senso da dignidade humana. As fronteiras não impedem ninguém de entrar, se as pessoas querem entrar num país elas entram, podem sofrer, muitos até morrem… As fronteiras só tornam miserável a vida das pessoas”, afirma.

Hugo concorda: “Uma perspectiva interessante seria que as pessoas também pudessem circular como os capitais — e não podem”.

As críticas à globalização fluem a compasso, tal como os argumentos em defesa da militância antiglobalização. Hugo diz que há um slogan da Juventude Comunista Revolucionária Francesa de que gosta particularmente: “As companhias mundiais globalizam a miséria, globalizemos nós a resistência”. Segundo Hugo, esta máxima exprime, de alguma forma, aquilo que preside ao movimento.

Ambos aceitam que o movimento encerra várias contradições, mas não deixam de reconhecer que o Fórum Social de Porto Alegre (que decorreu em Janeiro, paralelamente à cimeira de Davos, que reuniu os “poderosos” do planeta) constitui um marco do processo de afirmação do movimento. “Deixa de ser uma manifestação pela manifestação, é um fórum pela positiva”, diz Hugo.

Quando confrontados com a necessidade de, eles próprios, apontarem soluções para os problemas que reivindicam, as respostas passam, invariavelmente, pela chamada “Taxa Tobin”. “É uma coisa irrisória”, refere Hugo. “É uma proposta simples, mas nem isso o sistema quer assimilar. Não controlaria a especulação, porque é um valor muito pequeno para controlar a ‘economia de casino’, mas permitiria redireccionar esse lucro para coisas importantes”, sustenta. Ana salienta também “o fim da dívida dos países do Terceiro Mundo, um dos grandes consensos do movimento antiglobalização”.

A multiplicidade de causas que integram o movimento antiglobalização não constitui um factor desmobilizador. “Apesar das pessoas participarem com objectivos muito diferentes, há um princípio global, que é a revisão da forma como o mundo está constituído”, defende Ana.

Para Hugo, “a diversidade de posições é, neste caso, parte da solução. A alternativa a uma globalização capitalista não pode ser um modelo monocolor. Aquilo que une a globalização capitalista é o mercado, aquilo que une a globalização da resistência é são aceitar aquilo que nos querem impor”.

Sem violência, mas…

Pelo facto de ter ganho visibilidade mediática na sequência dos distúrbios paralelos à cimeira de Seattle, em Novembro de 1999, o movimento antiglobalização é conotado com um certo tipo de violência.

Hugo reconhece-a, mas rejeita qualquer semelhança com o fenómeno “hooligan”, no futebol. Não lhe parece que fazer distinções entre “boas e más companhias” seja politicamente consequente. “Distanciamo-nos dessa violência, mas não deixamos de aceitar essas pessoas. Seria extremamente complicado fazê-lo num movimento deste tipo e as pessoas têm o direito de se manifestar”. Para ele, “a carga policial é, até, o principal estímulo”.

Em Génova, a violência está na primeira fila das preocupações. O Fórum Social (entre 16 e 22) vai juntar cerca de 150 associações estrangeiras e mil italianas: católicas, ecologistas, sindicalistas e também as “Tute Bianche” (“fatos-de-macaco” brancos), os anarquistas-guerreiros que assinaram um pacto de não violência e respeito pela cidade e pelas pessoas.

No dia 20, as “Tute Bianche” tentarão furar a “zona vermelha” (área interdita), para o que efectuaram simulações de confrontos com a polícia, em Milão, no passado dia 30.

Um dos chefes do movimento, Vittorio Agnoletto, pede que se corrija a imagem dada pela comunicação social. “Não nos chamem povo de Seattle, mas de Porto Alegre, porque foi aí que começou o trabalho para transformar o movimento, da contestação para a proposta”, disse ele ao “Expresso”. “De Génova, lançaremos novo slogan: um outro mundo está em construção”, adianta.

Tensão latente

Existe um clima de tensão sobre o que poderá acontecer quando da cimeira do G8, sobretudo devido aos “sinais” dados pelo Governo, Polícia e instituições em geral. “A impressão é de que há aparelhos internos da polícia que não partilham as posições tomadas pelo seu chefe de Génova, De Gennaro, e que tentarão provocar para instigar um choque”, disse ao “Expresso” Stefano Lenzi, do Fórum Social de Génova.

Aparentemente, a estratégia das “Tute Bianche” mantém-se: “Para Génova, apurámos uma mensagem forte, baseada na metáfora de ‘Braveheart’ — queremos dizer que chegamos de uma nova Idade Média, onde existe, simultaneamente, a máxima potência tecnológica e crianças de seis anos que costuram sapatilhas para a Nike. O paradoxo é que, quanto mais falarmos do ‘bastião cercado’, mais os nossos adversários disfarçam os polícias de Robocop”, diz Luca Casarini, porta-voz das “Tute Bianche”.

Génova representa também uma chamada às armas da ala violenta do movimento antiglobalização. Situacionistas, insurrecionalistas, eco-sabotadores, ou “Black Bloc” (anarquistas) dizem que, após Gotemburgo (Conselho Europeu, da UE, em Junho, onde ocorreram violentos incidentes), não há espaço para mediação.

Artigo escrito com o contributo de Vittoria Di Lelio, correspondente do “Expresso” em Roma, e publicado no “Expresso”, a 14 de julho de 2001