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Os talibãs não as deixam estudar, mas elas não se dão por vencidas: 50 afegãs vão frequentar universidades portuguesas

O regresso dos talibãs ao poder encurralou as afegãs em casa. Para as estudantes universitárias, em especial, as perspetivas de futuro caíram por terra, mas para 50 delas o sonho continuará em Portugal, onde têm garantidas bolsas de estudo para frequentar instituições do ensino superior. Nas 1424 candidaturas recebidas, “todas as raparigas usaram a expressão ‘poder continuar aquilo que eu estava a fazer’”, diz ao Expresso Ana Santos Pinto, responsável da Nexus 3.0, a organização não governamental que está na origem do projeto

FOTO Escola pública feminina, na província de Bamyan, no Afeganistão FLICKR CANADA IN AFGHANISTAN

A 15 de agosto de 2021, a retirada em contrarrelógio das tropas internacionais do Afeganistão e, em simultâneo, a avançada sem resistência dos talibãs sobre Cabul constituíram um enorme embaraço para quem acreditava que 20 anos de presença estrangeira no país tinham tornado a influência dos talibãs residual.

Nimroz, no sudoeste, foi a primeira província a cair, nove dias antes de as forças do Emirado Islâmico entrarem na capital. Nove dias depois, mais 32 regiões ficaram totalmente sob controlo talibã. Apenas a província do Panjshir, no nordeste, resistiu durante uns tempos.

Com igual rapidez, a autoridade dos talibãs impôs-se a todo o território, com o sector da educação a servir de montra do novo Afeganistão. Quatro dias após controlarem os edifícios governamentais em Cabul, as escolas secundárias reabriram para um novo ano letivo, mas apenas com professores e estudantes do sexo masculino.

A generalização da interdição do ensino às mulheres seria questão de tempo. A 20 de dezembro de 2022, foi proibido o acesso às universidades. Apenas as escolas primárias continuaram a ter estudantes do sexo feminino, uma cedência controversa num país tribal e conservador como é o Afeganistão.

Em junho passado, quase 80 meninas foram hospitalizadas na sequência de casos de envenenamento em duas escolas primárias do norte do país. Em causa estão raparigas nascidas já este século sem conhecimento nem memória do que é viver sob domínio talibã e andar invisível debaixo de uma burca.

Para muitas delas, agora sem direito a educação formal, resta correr riscos e procurar conhecimento em centros de aprendizagem clandestinos — ou então sair do país.

1424 candidaturas para vir para Portugal

É o que acontecerá a 50 universitárias afegãs que prosseguirão com os estudos em Portugal, ao abrigo de um programa que lhes garante uma bolsa com duração até três anos. “Recebemos 1424 candidaturas. Cada manifestação de interesse não é um número, é uma história, uma vida que está em causa”, explica ao Expresso Ana Santos Pinto, secretária-geral da Nexus 3.0, a organização não governamental (ONG) na origem do programa.

“A vida destas raparigas não parou, está fechada dentro de casa. Algumas delas continuam a ler e a procurar conhecimento, dentro dos limites que a casa e o regime lhes impõe. Isso é uma demonstração de resiliência e de esperança de que podem ter um futuro”, explica Santos Pinto.

Um primeiro grupo de 25 afegãs chegará a tempo de frequentar o ano letivo 2023/24. As restantes virão no próximo. “Bem sei que 25 é um número limitado, mas é aquilo que sabemos que conseguimos fazer com eficácia”, garante a responsável.

Todas as raparigas frequentavam universidades quando os talibãs as encurralaram dentro de casa. Em Portugal, tirarão o curso que escolherem, dentro das vagas disponibilizadas pelas instituições de ensino superior aderentes.

Duas rondas de entrevistas

“Elas candidatam-se àquilo que querem de acordo com uma listagem”, explica a fundadora da Nexus 3.0, realçando a recetividade “muito positiva” de universidades e politécnicos.

“Consoante as vagas que cada instituição disponibilizar, serão feitas duas rondas de entrevistas: uma mais pessoal, do ponto de vista da candidata, do seu percurso, das condições que dispõe e daquilo que já fez; e depois a própria instituição terá os seus critérios, do ponto de vista de exames e de provas de conhecimento.”

Desse trabalho cruzado entre as disponibilidades da academia portuguesa e os interesses pessoais das afegãs resultará a escolha dos 50 nomes. Selecionadas as estudantes, seguir-se-á uma etapa sensível.

Neste momento, a esmagadora maioria das candidatas está no Afeganistão. Outras já foram forçadas a sair do país e estão em países vizinhos, como o Paquistão e o Irão, “muito poucas ainda com o estatuto de proteção internacional”, diz a professora universitária.

As que estão no país terão de arranjar forma segura para atravessar a fronteira. “O primado é, naturalmente, a segurança destas raparigas. Temos de o fazer de uma forma o mais discreta possível, porque não se trata só da segurança delas, mas de toda a sua família”, que fica para trás.

“Estas raparigas nasceram após 2001”, o ano do 11 de Setembro, da subsequente invasão militar do Afeganistão e da deposição do primeiro governo talibã, punido por ter dado guarida à Al-Qaeda de Osama bin Laden.

“O que elas conhecem do país é um processo de presença internacional, dentro do qual houve uma abertura à educação, ao desenvolvimento de capacidades, uma esperança de construção de um futuro. E, subitamente, todo o planeamento de vida, tudo aquilo que imaginaram deixou de ser possível. As expectativas destas raparigas deixaram de poder ser concretizadas neste contexto”, diz Ana Santos Pinto.

“Os últimos 20 anos criaram uma noção de possibilidades diferentes daquela que existia há 40. Nas candidaturas, todas elas usaram a expressão ‘poder continuar aquilo que eu estava a fazer”, prossegue. Segundo a UNESCO, se em 2001 cerca de 5000 afegãs frequentavam o ensino superior, em 2021 esse número era de 100 mil.

CRONOLOGIA DE UM DESASTRE HUMANO

  • 19.09.2021 — Escolas secundárias reabrem só com professores e alunos do sexo masculino. Escolas femininas ficam encerradas indefinidamente.
  • 20.12.2022 — Mulheres são proibidas de frequentar as universidades.
  • 06.06.2023 — Talibãs dão 40 dias às ONG internacionais para transferirem as suas operações relativas à educação para organizações locais.

Este programa da Nexus 3.0 — organização fundada em 2022, por três mulheres, focada na promoção da educação, ciência, artes e cultura em contextos de fragilidade, violência e conflito — é também uma resposta a duas posições recentes da Assembleia da República.

  1. A 10 de fevereiro último, um projeto de resolução recomendou ao Governo que avaliasse com urgência a criação de um estatuto de estudante específico para refugiadas impedidas de frequentar o ensino superior, tendo como prioridade as afegãs. Apresentado pelo Livre, foi aprovado com votos favoráveis de todas as bancadas e abstenção do partido Chega.
  2. A 10 de março seguinte, outra resolução recomenda ao Governo que “incentive as instituições de ensino superior a implementarem programas de acolhimento e apoio a estudantes, investigadores e professores, provenientes do Afeganistão, que sejam impedidos de estudar, estejam em risco ou forçados à deslocação”. De iniciativa do PAN, foi aprovada por unanimidade.

“Não se pode apregoar a igualdade de género e não se tentar fazer alguma coisa quando no Afeganistão ocorre uma discriminação absoluta, um verdadeiro apartheid de género”, diz Ana Santos Pinto.

A expressão, que condensa a impossibilidade de exercício de direitos por razão de género, é usada atualmente pelas Nações Unidas para qualificar o tratamento dos talibãs às mulheres. “Com este nível de proibição absoluta não me ocorre outro exemplo” de regime político ao qual se possa aplicar este rótulo, diz a professora de Relações Internacionais.

CRONOLOGIA DO CERCO TALIBÃ ÀS MULHERES

  • 26.12.2021 — Proibição das mulheres viajarem a mais de 72 km sem a companhia de “um familiar masculino próximo”.
  • 07.05.2022 — Obrigatoriedade de as mulheres se cobrirem totalmente em público, incluindo o rosto. Doze dias depois, a medida é aplicada também às apresentadoras de televisão.
  • 10.11.2022 — Mulheres proibidas de usar banhos comunitários, ginásios e parques públicos.
  • 24.12.2022 — Proibição das mulheres trabalhar em organizações não governamentais. Cinco dias depois, os talibãs acedem a que continuem a trabalhar em ONG do sector da saúde.
  • 04.04.2023 — Afegãs proibidas de trabalhar para as Nações Unidas. A 5 de maio, o secretário-geral António Guterres anunciou que as operações da organização continuam no país, apesar das mulheres não poderem trabalhar para a ONU e ONG.
  • 05.07.2023 — Interdita a entrada em salões de beleza femininos, a quem é dado um mês para fecharem portas.

Outra frente do programa destinada a “criar capacidade no Afeganistão” será o ensino online. “Neste momento, o que as raparigas têm no Afeganistão para contactar com o exterior — seja da sua casa, seja do país — é essencialmente um telemóvel com acesso à Internet. É irregular e instável, mas existe. Gostaríamos de providenciar cursos de ensino superior com recurso ao online. Permitir-nos-ia chegar a mais raparigas”, diz a responsável.

Para garantir o financiamento do projeto, a Nexus 3.0 — que já coordena um programa de bolsas para refugiados oriundos da Ucrânia — bateu a várias portas, garantindo verbas públicas e comunitárias, bem como apoio de instituições particulares de solidariedade social (IPSS) e mecenas.

As bolsas estão garantidas, faltando ainda uma verba complementar, a ser angariada por recolha privada, para custear despesas com viagens e alojamento, a necessidade de equipamentos informáticos ou de uma consulta num dentista, por exemplo. Nesta ligação é disponibilizada informação sobre como contribuir.

“Independentemente da sua área científica, todas as raparigas que submeteram candidatura têm o desejo de transformar o contexto das mulheres no Afeganistão”, conclui Ana Santos Pinto, que participou no processo de análise das propostas. “Para elas, é aquilo que, obviamente, é mais sensível.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 22 de agosto de 2023. Pode ser consultado aqui

Há dois anos no poder, Governo talibã afirma-se pelo “apartheid de género”

Os radicais privaram as mulheres de trabalhar e de frequentar estabelecimentos de ensino. Determinadas em seguir com a vida que tinham, 50 universitárias afegãs virão estudar para Portugal

Mulher coberta por uma burqa, no Afeganistão DIRK HAAS / FLICKR AFGHANISTAN MATTERS

O regresso dos talibãs ao poder no Afeganistão, fez na terça-feira dois anos, reativou um conceito da Ciência Política que não se aplica, de forma tão absoluta, a nenhum outro regime político — “apartheid de género”. O termo, que remete para uma situação de discriminação sistemática e institucionalizada das mulheres, é hoje usado pelas Nações Unidas para rotular o Governo dos radicais.

Primeiro, baniram as mulheres de balneários, ginásios e parques públicos. Depois, deixaram cair a guilhotina sobre os sonhos de milhares de jovens, proibindo-as de frequentar a universidade e de exercer uma profissão (exceção feita ao sector da saúde). Sucessivos decretos foram encurralando as afegãs em casa. A 5 de julho passado, os talibãs deram um mês a todos os salões de beleza femininos para fechar portas.

Com as vidas interrompidas, e remetidas ao desígnio medieval de cuidar da casa e ter filhos em exclusivo, muitas estão recetivas a seguir em frente noutro país. É neste contexto que chegarão a Portugal 50 estudantes universitárias afegãs (25 já este ano letivo), no âmbito de um programa de atribuição de bolsas da Nexus 3.0, uma organização não governamental fundada em 2022 por três mulheres portuguesas.

Recomeçar em Portugal

“Não se pode apregoar a igualdade de género e não se tentar fazer alguma coisa quando, neste momento, no Afeganistão, ocorre uma discriminação absoluta e um verdadeiro apartheid de género”, diz ao Expresso Ana Santos Pinto, secretária-geral da organização.

A esmagadora maioria das jovens que irá beneficiar das bolsas estão no Afeganistão, onde frequentavam os mais variados cursos. Em Portugal, estudarão o que escolherem, mediante as vagas disponibilizadas por universidades e politécnicos de todo o país. “A vida destas raparigas não parou, antes está fechada dentro de casa”, continua Ana Santos Pinto. “Algumas delas tentam continuar ativas, leem e procuram conhecimento, dentro dos limites que a casa e o regime impõem. É uma demonstração de resiliência e de esperança.”

Ao todo, a Nexus 3.0 recebeu 1424 candidaturas. Esta procura revela que “fugir” do país continua a ser a prioridade para muitos afegãos. Nas travessias do Mediterrâneo, onde muitos migrantes arriscam a vida para tentar chegar à Europa, os afegãos continuam a ser dos contingentes mais numerosos. Em finais de 2022, 52% do total mundial de refugiados eram sírios, ucranianos e afegãos.

O regresso ao poder retirou os talibãs das trincheiras da resistência armada, que tanto sangue derramou durante a presença militar internacional. Mas não pacificou o país. “O Afeganistão está mais seguro do que estava nos anos da presença dos EUA e da NATO. Mas os talibãs têm sido incapazes de passarem de força rebelde para força governamental”, diz ao Expresso Agostino Bono, analista no International Team for the Study of Security Verona.

Alternativa chamada Daesh

A queda em desgraça do Governo do Presidente Ashraf Ghani, que fugiu do país no dia em que os talibãs entraram em Cabul sem a mínima resistência, impulsionou grupos terroristas no Afeganistão e no Paquistão. “O grupo que mais beneficiou foi o Estado Islâmico — Província Khorasan [Daesh-K], estabelecido em 2014, que combate os talibãs e assume-se como uma alternativa ao seu Emirado Islâmico”, acrescenta Bono.

Um ataque revelador desta inimizade ocorreu a 8 de junho, durante o funeral de um político talibã, morto num ataque suicida. Uma explosão dentro da mesquita onde decorria o ritual, na província de Badakhshan (norte), provocou 19 mortos. O Daesh-K reivindicou o ataque ao funeral e a execução do político.

“O Afeganistão nunca terá segurança enquanto o Daesh-K estiver ativo na região”, prevê o investigador. “O Daesh-K, que no passado tinha como principal alvo os hazaras [minoria xiita], agora visa interesses estrangeiros. Em finais de 2022, atacou as embaixadas russa e paquistanesa e um hotel chinês. A estratégia visa desacreditar o Emirado perante a população e a comunidade internacional.”

Outra potencial fonte de instabilidade decorre das divisões entre talibãs. Em linha de choque estão a ala dura, representada pelo líder supremo, Mawlawi Hibatullah Akhundzada, instalado em Kandahar (local de nascimento do movimento talibã, no sul), e outra mais pragmática, protagonizada pela liderança do Governo em Cabul. Em teoria, os últimos, ditos moderados, estão dispostos ao diálogo com o Ocidente e a abrir as escolas às raparigas. Atualmente, os conservadores levam a melhor.

Artigo publicado no “Expresso”, a 18 de agosto de 2023, e no “Expresso Online”, no mesmo dia. Pode ser consultado aqui e aqui

Iranianas preparam nova revolta contra o regime dos ‘ayatollahs’: “Vejo as mulheres mais motivadas do que assustadas”

A um mês do primeiro aniversário da morte da jovem iraniana Mahsa Amini às mãos da polícia da moralidade, por usar o lenço islâmico de forma “imprópria”, há cada vez mais iranianas a sair à rua sem o hijab na cabeça. Ao Expresso, uma jovem envolvida em ações clandestinas de resistência ao regime religioso partilha as motivações das mulheres e levanta o véu sobre a jornada de contestação que se projeta para o próximo mês. “De certeza que o regime vai aumentar a repressão, mas até a repressão tem limites”, desafia

O Irão está em contagem decrescente para aquilo que se perfila como uma nova vaga de protestos contra as autoridades teocráticas. Dentro de exatamente um mês, passará um ano desde a violenta morte da iraniana Mahsa Amini, de 22 anos, num hospital de Teerão, na sequência de ferimentos infligidos por agentes da polícia da moralidade. A jovem fora detida por levar o lenço islâmico na cabeça (hijab) de forma “imprópria”.

Nas ruas do país, uma presença crescentemente indiscreta é reveladora do nervosismo do regime quanto a esse cenário. Dez meses após os grandes protestos antirregime que se seguiram à morte da jovem curda, a polícia da moralidade regressou em força, com “patrulhas de orientação” a percorrer os espaços públicos com o foco nas mulheres.

“Eles colocaram a polícia da moralidade em todas as ruas principais. Há carros grandes com agentes do sexo feminino que mandam parar as mulheres e meninas que não usam o véu e levam-nas para as esquadras. Recentemente, o município de Teerão contratou 400 agentes para controlar as estações de metro e impedir que mulheres sem véu usem esse transporte”, diz ao Expresso Niloufar (nome fictício), uma iraniana de 26 anos, residente na cidade de Shiraz, no sul do país.

No Irão, a quantidade de mulheres que recusa cobrir a cabeça quando sai de casa aumentou muitíssimo, num claro gesto de desafio ao regime dos ayatollahs. “Apesar das patrulhas, muitas mulheres não colocam o véu nas ruas”, continua a jovem. “É uma forma de protesto. As mulheres falam sobre a próxima revolta que será ainda maior e mais forte” do que a do ano passado.

Para além do boicote ao hijab, cujo uso é obrigatório pela lei da República Islâmica, as mulheres têm recorrido a “formas mais profundas de mostrar oposição”, diz Niloufar. “Apesar da repressão, há cada vez mais palavras de ordem contra o regime escritas nas paredes. Os grandes cartazes com fotos dos líderes do regime, em particular [o Líder Supremo, o ayatollah] Ali Khamenei, são destruídos e às vezes queimados. Isto é muito percetível.”

Também nas redes sociais, as mulheres desdobram-se em incentivos à mobilização no primeiro aniversário da morte de Mahsa Amini. “É hora de nos erguemos”, “não há outra forma”, “vamo-nos vingar”, lê-se nos cartazes em farsi, exibidos por iranianas que ocultam a identidade, mas não os cabelos sem véu.

“Eu vejo as mulheres mais motivadas do que assustadas. Estão unidas, querem liberdade e direitos básicos. Sabem que podem ser presas, mas estão determinadas”, diz Niloufar. “Os mullahs têm todas as razões para temer uma nova revolta no aniversário da morte de Mahsa Amini. De certeza que o regime vai aumentar a repressão, mas até a repressão tem limites. Tenho a certeza que as jovens e as mulheres não enjeitarão nenhuma possibilidade de ir para as ruas e o regime sabe disso.”

“Este é o preço pela nossa liberdade. Algo mudou para sempre no Irão desde o ano passado.”

Muitas já o fazem, arriscando serem enxovalhadas e agredidas na via pública, como aconteceu à mulher que seguia sem véu, no vídeo abaixo, registado na cidade de Amol, no norte do país.

Niloufar leva uma autêntica vida dupla na região onde vive. Sem que a família tenha conhecimento, ela põe a sua segurança em risco e colabora ativamente, na clandestinidade, com a Organização dos Mujahidin [Combatentes] do Povo do Irão [MEK, na sigla persa], um grupo opositor ao regime dos ayatollahs, formado por dissidentes no exílio.

“Todos os dias, vemos cada vez mais ações realizadas em várias cidades por células de resistência ligadas ao MEK. Muitas destas unidades são compostas por mulheres valentes, cientes dos riscos de vida que correm quando escrevem slogans nas paredes contra o regime, distribuem folhetos do MEK ou colocam fotografias da líder do grupo, Maryam Rajavi” na via pública, penduradas em pontes e viadutos. “Há alguns protocolos como, por exemplo, vigiar que não há polícia por perto. Parece uma operação de uma guerra.”

A organização é um alvo especial do regime. Durante os protestos após o caso Mahsa Amini, 3626 apoiantes e simpatizantes do MEK foram presos. No mês passado, um dos seus membros, Javad Vafaei, de 27 anos, natural de Mashhad, a segunda maior cidade do Irão, foi condenado à morte pelas suas atividades ao serviço do MEK, designadamente participação em protestos.

A execução por enforcamento de manifestantes tem sido uma das armas do regime para calar a contestação. Niloufar descreve mais brutalidade das forças governamentais. “Muitos manifestantes ficaram cegos após serem usadas espingardas contra eles. Quando prendem pessoas, pulverizam-lhes os olhos para não verem quem os está a prender ou para onde são levados. É uma espécie de tortura branca, não atacam o corpo, mas a alma.

“Impor medo e terror ao povo é a maneira dos mullahs manterem o seu poder.”

Hoje, como sempre desde a Revolução Islâmica no Irão (1979), a polícia da moralidade e a imposição do hijab são as estratégias favoritas do regime para controlar as mulheres. Mas diante de cada vez mais atos de desobediência na via pública, o Governo tem intensificado e diversificado medidas para as intimidar.

Nas últimas semanas, um projeto de lei destinado a endurecer as penalizações para as iranianas que recusem usar o hijab começou a produzir resultados ainda antes de ser aprovado pelos legisladores. O novo diploma visa introduzir formas de obrigar ao uso do hijab sem passar por confrontos entre polícia e cidadãos.

Reservado a mulheres com hijab

Isso passa por penalizar as mulheres nos empregos, universidades, espaços comerciais, aeroportos, restaurantes, no interior de carros ou nas redes sociais. E também punir quem quer que o regime entenda ser cúmplice dos atos de rebeldia femininos.

Em nome da decência da República Islâmica, um restaurante que abra as portas a uma cliente sem hijab, por exemplo, pode ser multado. Um caso recente exposto nas redes sociais tem no centro a startup iraniana Digikala que, no mês passado, viu a sua sede ser fechada pelas autoridades até que fosse feito um pedido de desculpas público pelo “comportamento não islâmico” de funcionárias que não usavam o hijab. E também que a empresa adotasse um código de vestuário.

Muita da controvérsia em torno deste projeto de lei prende-se com o facto de estar a ser discutido à margem das sessões regulares do Parlamento, mas antes numa comissão parlamentar e à porta fechada, para não suscitar debate público.

Niloufar, que à semelhança de muitas conterrâneas arrisca sair à rua sem o hijab, diz que as forças de segurança “temem” as mulheres iranianas, uma vez que elas, especialmente as jovens, “estão na linha da frente da revolta e motivam outras pessoas a protestar”, diz. “Os mullahs pensam que, visando as mulheres, podem controlar as ruas e manter a população descontente dentro de casa. Mas como é possível assustar metade da população do Irão dessa maneira?”

O véu islâmico é um poderoso símbolo político no Irão. A seguir à morte de Mahsa Amini, muitas mulheres queimaram os seus lenços em fogueiras na via pública. No atual contexto, não usá-lo de todo ou de forma relaxada, deixando à mostra fartas mechas de cabelo, é uma forma inequívoca de rejeitar o regime.

“Este regime é misógino, quer limitar as mulheres. Eles não contemplam direitos para as mulheres, pensam que são cidadãos de segunda. Os mullahs são muito antiquados e agressivos. Dizem que são muçulmanos, mas não são. Mostram o Islão como uma religião agressiva no mundo. E executam pessoas”, conclui Niloufar, que não se considera uma pessoa religiosa, mas diz observar algumas regras.

“Os fundamentalistas são contra as mulheres em qualquer lado, e os mullahs que mandam no Irão são o regime mais fundamentalista de todos. Por isso, por definição, eles são contra as mulheres. Mas a repressão sobre as mulheres é apenas uma parte da repressão sobre toda a sociedade que se virou contra eles.”

(FOTO A imagem de Mahsa Amini, numa manifestação solidária com os protestos anti-regime no Irão, na cidade australiana de Melbourne MATT HRKAC / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de agosto de 2023, e no “Expresso”, a 18 de agosto de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Os lenços que destaparam a frustração

Grandes protestos dinamizados por mulheres visam o uso obrigatório do hijab, mas também o regime

Às primeiras notícias de protestos nas ruas do Irão, Gil Pinheiro começou a disparar perguntas para quem, à sua volta, tinha algum conhecimento do país. “Que me aconselhas? Vou ou cancelo a viagem?” Este engenheiro de 28 anos, natural de São João da Madeira, estava a cerca de um mês de umas férias de 20 dias no Irão. “Parece ser um país incrível, com montanha, deserto, mar, ilhas, cidades, aldeias, e uma cultura muito diferente da nossa”, enumera ao Expresso. “E tenho a impressão de que as pessoas são muito acolhedoras.”

Nos preparativos para a viagem, obtido o visto, um assunto preocupava-o: dado que não poderia usar Visa ou Mastercard, devido às sanções internacionais, teria de levar numerário para toda a viagem. Os ecos dos protestos resolveram o problema. “Houve quem me dissesse que não teria problemas se insistisse em ir e quem me aconselhasse a cancelar a viagem. Dada a rápida escalada da situação, decidi não ir.”

Seja por haver agitação nas ruas ou ameaças de guerra devido ao programa nuclear iraniano, muitos turistas acabam por adiar planos para visitar o país. Para os iranianos, imersos num oceano de privações, estadas como a do jovem português seriam gotas de alívio.

Panela de pressão social

Além das dificuldades inerentes a conjunturas críticas pontuais — como a pandemia ou a guerra na Ucrânia —, o Irão enfrenta três crises endémicas: precariedade socioeconómica marcada por muito desemprego, sobretudo entre jovens e mulheres; degradação ambiental, com a população afetada ora pela desertificação e escassez de água ora por cheias potenciadas pela intervenção humana e por gestão negligente; e ortodoxia política que torna a teocracia imune a reformas.

O Irão enfrenta três crises endémicas: precariedade socioeconómica, degradação ambiental e ortodoxia política

Tudo contribui para um quotidiano de grande frustração que, diante de um pretexto sólido e mobilizador, explode qual panela de pressão. É o que se passa atualmente, com protestos de rua dinamizados por mulheres contra o uso obrigatório do hijab (lenço).

O crime da ‘rapariga azul’

“Os protestos contra o hijab não são assunto recente. É algo que existe desde a criação da República Islâmica [em 1979]”, explica ao Expresso o iraniano Mohammad Eslami, investigador na Universidade do Minho. Porém, as manifestações de descontentamento aumentaram face a pontos de viragem como a proibição de as mulheres entrarem nos estádios, a morte da ‘rapariga azul’ e agora a de Mahsa Amini.”

A “rapariga azul” era Sahar Khodayari, adepta do Esteghlal F.C. de Teerão, que se imolou pelo fogo a 9 de setembro de 2019, aos 29 anos. Respondia em tribunal por ter tentado entrar no Estádio Azadi, disfarçada de rapaz, para ver um jogo da sua equipa do coração.

Mahsa Amini é o gatilho que fez disparar os protestos iniciados a 16 de setembro, dia em que foi noticiada a morte desta iraniana de 22 anos. Pertencente à minoria curda, morreu num hospital na sequência de ferimentos atribuídos a agentes da “polícia da moralidade”, que a intercetaram na rua e a detiveram por andar com o hijab “de forma imprópria”.

Numa tentativa de reter dentro de portas as imagens da repressão aos protestos, que já contagiaram mais de 150 cidades, as autoridades tiraram velocidade à internet e restringiram o acesso às redes Instagram e WhatsApp. Ainda assim, muitos vídeos ultrapassaram fronteiras, mostrando mulheres a queimarem lenços, a enfrentarem polícias nas ruas de cabelo solto ou a cortarem os próprios cabelos à tesourada. Ao Expresso, uma iraniana que vive em Lisboa interpreta este último gesto: “Se é o meu cabelo que incomoda, então eu corto-o e deixam-me livre.”

Liberdade só às escondidas

Há oito anos, a dissidente Masih Alinejad, dona de farta cabeleira, tornou-se uma voz amplificadora da sede de liberdade das mulheres do seu país. Inundada por mensagens de compatriotas frustradas por não poderem andar sem lenço, como Masih fazia no Ocidente (onde vivia), criou a página #MyStealthyFreedoms (Minhas Liberdades Furtivas), no Facebook, onde partilhava fotos de iranianas sem hijab, tiradas às escondidas no Irão.

Hoje nos Estados Unidos, a ativista já não disfarça as olheiras ganhas a seguir o que se passa no Irão e a responder a órgãos de informação. Ao Expresso, destaca um aspeto dos protestos. “Os homens estão nas ruas e em grande número. Isto não é só sobre o hijab, símbolo mais forte da República Islâmica e ferramenta de controlo das mulheres. Tanto homens como mulheres estão fartos de um regime que os governou com terror e controlo. Exigem a sua queda. Os cânticos nas ruas são: ‘Morte ao ditador’, ‘Morte a [Ali] Khamenei [o Líder Supremo]’ e ‘O nosso inimigo está aqui, eles mentem quando dizem que são os Estados Unidos’.”

Dois grupos participam nos protestos. Um deles luta por direitos civis, o outro vai mais longe e quer uma mudança de regime

Ainda que à distância, Eslami identifica dois grupos a participar nos protestos. “O primeiro luta pelos seus ‘direitos civis’, incluindo as liberdades de escolha e de expressão. Diz que a Constituição [adotada em 1979 e revista dez anos depois] não atende às necessidades da sociedade e devia ser alvo de uma grande revisão nas dimensões política e social. O segundo grupo vai mais longe e quer uma mudança de regime e uma revolução contra os mullahs’. Considera o hijab e os direitos civis assunto secundário, que só será importante quando o povo iraniano se libertar da corrupção sistémica, do isolamento internacional, das sanções económicas e da frustração social e política.”

Revolta ou revolução?

Nos últimos 15 anos, esta é a terceira grande vaga de manifestações antigovernamentais no Irão. A primeira foi em 2009, contra a reeleição do candidato conservador Mahmud Ahmadinejad nas presidenciais. A segunda, dez anos depois, seguiu-se à triplicação do preço dos combustíveis. “Esta revolta [de 2022] não tem as características de uma revolução”, diz Eslami. “Apesar da adesão de celebridades, os protestos carecem de capital social e de um líder legítimo”, como os de 2009, organizados em torno de dois reformistas derrotados nas eleições.

Os órgãos de informação oficiais já admitiram a morte de mais de 40 pessoas; a resistência no exílio fala em mais de 240. “A reação da República Islâmica aos protestos não é nova: repressão brutal e sangrenta, com forte presença de forças de segurança nas ruas, equipadas com gás lacrimogéneo, bastões e armas”, descreve Masih Alinejad. Em paralelo, Teerão tenta neutralizar a contestação com contramanifestações pró-regime.

Sempre que os iranianos saem às ruas, há expectativas de uma “primavera iraniana”. Mas, como realça o investigador iraniano, “nunca ninguém avançou com uma alternativa ao regime dos ayatollahs. Dessa forma, derrubar o regime não ajudará o povo e levará à destruição do país, algo muito semelhante ao atual estado da Síria. Estes protestos não têm potencial para mudar o regime ou pelo menos coagi-lo a aceitar as exigências.”

(ILUSTRAÇÃO Cartoon de homenagem a Mahsa Amini e à luta das iranianas contra o regime religioso EMAD HAJJAJ / CARTOON MOVEMENT. No seu site, o Cartoon Movement dedica uma página a cartoons sobre Mahsa Amini, que pode ser consultada aqui)

Artigo publicado no “Expresso”, a 30 de setembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Porque há contestação nas ruas aos “ayatollahs”?

A morte de uma jovem sob custódia da polícia, detida por andar na via pública com “trajes inadequados”, desencadeou manifestações contra o uso obrigatório do véu islâmico. E, por arrasto, contra o regime religioso que governa o Irão há 43 anos

Engarrafamento na direção do cemitério de Saqqez, onde está enterrada Mahsa Amini TWITTER / BBC

1. Porque há protestos em várias cidades iranianas?

Aagitação está nas ruas desde sábado, dia do funeral de uma mulher de 22 anos que morreu fruto de ferimentos graves infligidos dentro de uma carrinha da polícia. Mahsa Amini fora detida em Teerão, pela polícia de costumes, por levar “trajes inadequados”.

Imagens nas redes sociais mostram iranianas a queimar os véus, de uso obrigatório. Os protestos já fizeram pelo menos sete mortos e concentram-se em Teerão, Mashhad, Tabriz e na região curda. Mahsa pertencia a esta minoria, que resistiu a tentativas de assimilação.

2. Que é e para que serve a polícia de costumes?

Também chamada polícia da moralidade, foi criada após a Revolução Islâmica. Tem como missão fazer cumprir, na via pública, os códigos de vestuário impostos pelos ayatollahs, desde logo o uso obrigatório do véu islâmico para as mulheres e roupa larga para ocultar a silhueta.

Transeuntes vestidos de forma que considerem “não islâmica” — por exemplo, com o véu descaído ou, no caso dos homens, calções e camisas de manga curta — são admoestados, multados ou presos por agentes desta força de segurança.

3. Que potencial político têm os protestos?

Este episódio traz à memória a morte do vendedor ambulante tunisino Mohamed Bouazizi, que se imolou pelo fogo, em 2010, depois de a polícia apreender a sua banca.

Este ato desesperado desencadeou protestos no país e originou um efeito dominó no Norte de África e Médio Oriente (Primavera Árabe), que depôs ditadores na Tunísia, Egito, Líbia e Iémen.

No Irão, o descontentamento apoia-se também em slogans políticos, como “Morte ao ditador”, referência velada ao Líder Supremo, Ali Khamenei.

4. Esta contestação nas ruas é inédita no país?

Nos últimos 15 anos, eclodiram grandes manifestações antigovernamentais por duas vezes, que criaram expectativas de uma “primavera iraniana”.

A primeira foi em 2009, contra a vitória do candidato conservador Mahmud Ahmadinejad nas presidenciais (Movimento Verde).

Dez anos depois, nova vaga de protestos, que começou a propósito do forte aumento do preço dos combustíveis, evoluiu para um movimento pró-democracia.

Ambas as jornadas foram violentamente reprimidas pelas forças do regime.

5. Como reagem agora as autoridades de Teerão?

Restringindo o acesso a WhatsApp e Instagram e remetendo-se ao silêncio. Quarta-feira, Khamenei falou 55 minutos na televisão sobre a guerra Irão-Iraque.

Na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, o Presidente Ebrahim Raisi também foi omisso.

Já o homólogo americano não perdeu a ocasião de expor Teerão: “Estamos com os corajosos cidadãos e as bravas mulheres do Irão que se manifestam para garantir os direitos básicos”, disse Joe Biden, nas Nações Unidas.

Artigo publicado no “Expresso”, a 23 de setembro de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui