O autodenominado Estado Islâmico (Daesh) abriu uma exceção num dos seus princípios puritanos: por razões de segurança, em Mossul, as mulheres estão proibidas de entrar com burqa em infraestruturas relacionadas com a segurança
O autodenominado Estado Islâmico (Daesh) declarou guerra à burqa invocando razões de segurança. A medida aplica-se a vários edifícios militares ou infraestruturas relativas à segurança do grupo extremista, na cidade de Mossul (norte do Iraque), onde as mulheres não poderão entrar se trajarem burqa (vestimenta que cobre todo o corpo) ou niqab (lenço que cobre toda a cabeça, deixando apenas os olhos à mostra).
Os jiadistas abrem assim uma brecha num dos seus princípios puritanos até agora não negociável: a imposição do uso da burqa às mulheres, sob pena de serem espancadas pela chamada “polícia da moralidade” ou mesmo executadas.
O recuo nesta obrigação surge na sequência de vários ataques, nos últimos meses, levados a cabo por mulheres que disfarçaram armas nas suas vestes e que resultaram na morte de vários jiadistas, incluindo alguns comandantes.
A 5 de setembro, num posto de controlo em Sharqat (sul de Mossul), uma mulher tapada matou dois membros do Daesh usando uma pistola.
Fora dos centros militares e dos postos de segurança, as populações sob controlo do Daesh — na Síria, Iraque e Líbia — terão de continuar a respeitar o estrito código de vestuário, pelo menos enquanto a relação de forças na sua região não se alterar…
No início de agosto, após a libertação da cidade de Manbij pelas forças sírias, nas mãos do Daesh desde inícios de 2014, surgiram imagens de mulheres a queimarem burqas em público, como forma de celebração. “Maldita invenção estúpida que nos obrigaram a usar”, diz uma delas. “Somos seres humanos, temos a nossa liberdade.”
“Num eco surreal do recente angustiante debate em França sobre proibir ou não o burquíni nas praias”, escreve a agência noticiosa iraniana Al-Alam, “o Estado Islâmico alega agora preocupações com a segurança para proibir mulheres de taparem a cara nalgumas circunstâncias.”
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 7 de setembro de 2016. Pode ser consultado aqui
Muitas iranianas estão a desafiar o regime dos “ayatollahs”, tirando fotografias sem o véu na cabeça. A jornalista que criou a página no Facebook onde essas fotos proibidas são publicadas conta ao Expresso como nasceu a ideia
Sempre que publicava no Facebook fotos do seu quotidiano em Londres, onde vive exilada, a jornalista iraniana Masih Alinejad recebia mensagens de compatriotas dizendo-se frustradas por não poderem fazer o mesmo no Irão. “Eu postava fotos minhas, em liberdade e sem o ‘hijab’ [véu] e recebia emails de iranianas a dizer que eu tinha muita sorte por usufruir dessas liberdades”, conta ao Expresso.
“Comecei então a pensar se outras iranianas sentiriam o mesmo e quereriam ter uma oportunidade para tirar ‘selfies’ sem estarem cobertas da cabeça aos pés. Apelei a que me mandassem fotografias e comecei a publicá-las na minha página pública no Facebook. Mas começaram a ser tantas que achei que devia criar uma página só para isso.”
“Tirei esta foto na Rua do Véu sem o \’hijab\’ a segurar este cartaz com uma mensagem contra o véu. Durante um breve momento, senti-me realmente nervosa, mas eu queria fazê-lo. E fiz!”, diz uma iraniana
Assim nasceu, a 3 de maio passado, a página “Stealthy Freedoms of Iranian Women” (“Liberdades Furtivas das Mulheres Iranianas”), que já tem quase 200 mil seguidores. Masih deu o exemplo e partilhou um dos seus momentos secretos, longe de olhares reprovadores, num campo de papoilas cor de laranja, na berma de uma estrada perto de Ghomikola, onde nasceu, no norte do Irão.
De imediato, começaram a chover fotos de iranianas de cabelos ao vento – ao volante, junto ao mar ou a um monumento, no meio de estradas ou da natureza, sozinhas ou em grupo, jovens e mais velhas. Algumas surgem de costas ou ocultam a cara; a esmagadora maioria enfrenta a câmara fotográfica com um sorriso. As identidades não são reveladas e as mulheres aproveitam para juntar mensagens e desabafos às fotos que publicam.
Masih, de 37 anos, tem “fotos proibidas” de sobra nos seus álbuns pessoais. “A ideia das ‘Liberdades Furtivas’ surgiu depois de eu olhar para fotos minhas no Irão sem o ‘hijab’, tiradas secretamente num campo qualquer ou num local sossegado”, diz. “Era um prazer culpabilizante, uma forma de eu exigir a minha própria liberdade, longe dos olhares fixos da polícia cultural ou até mesmo da reprovação da sociedade. Era uma forma de eu exercer a minha própria independência.”
Outra iraniana envolvida na campanha surge agachada dentro de uma gruta: “Dentro do Labirinto de Corredores na antiga caverna de Niyasar. Quando as coisas não nos são impostas, podemos ser nós próprias!”
Brigadas da moralidade
No Irão, o uso do véu é obrigatório para as mulheres, nativas ou visitantes, muçulmanas ou não. Quando se viaja de avião para a antiga Pérsia, por exemplo, momentos antes do aparelho aterrar, um aviso informa que as mulheres devem cobrir a cabeça antes de pisarem solo iraniano. Não há exceções, nem mesmo para chefes de Estado.
Nas ruas, brigadas da chamada polícia moral passam revista à indumentária dos transeuntes, advertindo as mulheres que circulam com o véu descaído, com roupas justas ou maquilhagem carregada. Como não pode haver contacto físico entre homens e mulheres que não sejam da mesma família, muitas vezes as iranianas são interpeladas por agentes do sexo feminino, vestidas com o chador preto, que identifica maior devoção religiosa na República Islâmica.
“Eu respeito o direito das mulheres que querem usar o véu”, continua Masih, que trabalha como repórter num programa satírico do serviço persa da Voz da América e é correspondente da Rádio Farda. “A minha mãe é uma delas e muitas mulheres da minha família sentem-se mais confortáveis a usar o véu ou um lenço. Mas eu quero ter a possibilidade de escolher o que vestir e não ser forçada a usar o véu por causa de pressões culturais ou religiosas. Não sou uma ativista. Iniciei esta página por curiosidade e estou surpreendida pela quantidade de fotos e emails enviados pelas iranianas. Quaisquer ações no futuro, a haver, vão depender das iranianas. Tenho esperança que ações deste género obtenham uma resposta por parte do Governo, mas não espero muito.”
Nasrin Sotoudeh, jurista que esteve presa três anos por defender outras advogadas (como a Nobel da Paz Shirin Ebadi), associou-se à campanha. “Disse aos meus carcereiros que não voltaria a usar o chador e que preferia que me cortassem a cabeça à frente do gabinete do governador. Não voltaria a usá-lo. E não voltei”
O assunto do momento
De acordo com os códigos morais e legais do regime dos “ayatollahs”, que governa o Irão desde a Revolução Islâmica de 1979, só é aceitável que as mulheres exibam o cabelo – que entendem ser fonte de sedução – dentro de casa. A 19 de abril, o país assinalou o Dia da Mulher, coincidindo essa efeméride com o aniversário de nascimento de Fatima Zahra, filha do profeta Maomé. Este ano, o papel da mulher na sociedade iraniana originou uma polémica entre as duas principais figuras do regime, o líder Supremo e o presidente.
Num discurso em Teerão, diante de centenas de mulheres vestidas com o chador negro, o “ayatollah“ Ali Khamenei considerou que “um dos maiores erros do Ocidente em relação às mulheres é a igualdade de género”, disse. “Por que razão um emprego masculino deverá ser dado a uma mulher? Que orgulho pode ter uma mulher num emprego masculino?”
Uma iraniana sem véu diante de um edifício onde fica um dos gabinetes do “ayatollah” Ali Khamenei, líder supremo do Irão, explica ao que vai: “Nós vamos avançar cada vez mais rápido até que você compreenda o que nós somos capazes de fazer. O que quer que você diga que nós não podemos fazer, nós vamos fazer!”
Para o líder religioso, de 74 anos, a mulher está destinada a cuidar do lar e zelar pelo bem estar da família. “Mulheres dentro de casa trazem paz ao homem e às crianças. Uma mulher que é humilhada, injuriada, pressionada pelo trabalho, não pode ser uma boa dona de casa nem administrar o lar.”
No dia seguinte, também Hasan Rohani, o presidente reformista de 65 anos eleito há menos de um ano, homenageou as mulheres em termos contrários aos do guia espiritual. “As mulheres devem ter oportunidades, benefícios e direitos sociais iguais. Será possível marginalizar metade da sociedade?” Disse ainda que as iranianas estão a ganhar protagonismo em todas as áreas da sociedade, mas admitiu que “ainda falta muito para atingir a meta” da igualdade de género.
“Nos países economicamente avançados”, continua a criadora da campanha #mystealthyfreedom, “as mulheres podem chegar aos mais altos cargos, ser executivas em empresas, juízas do Supremo Tribunal ou líderes políticas e chefes de Governo”. “No Irão não podem sequer escolher a forma de se vestir, muito menos alcançar posições de topo na sociedade.” Para Masih Alinejad, o maior obstáculo a essas conquistas “é o Governo”. “Antes da Revolução Islâmica, havia iranianas laicas que se vestiam como as mulheres ocidentais e outras com origens tradicionais ou religiosas. Ambas eram toleradas. Agora, a via islâmica não tolera qualquer diferença de opinião.”
FOTOGALERIA DA LIBERDADE
O QUE DIZ A LEI IRANIANA
Segundo o código penal islâmico iraniano de 1991, “as mulheres que surjam em público sem um véu adequado deverão ser presas entre dez dias a dois meses”. As penas podem ser substituídas pelo pagamento de uma multa. Na prática, a ausência de uma definição clara sobre o que é um “véu adequado” sujeita as mulheres a interpretações arbitrárias por parte de quem aplica a lei. As regras de indumentária não visam, porém, apenas as iranianas. Um homem de calções pode ter a polícia de costumes à perna.
FOTO PRINCIPAL A autora da campanha, fotografada sem véu num campo junto à sua cidade natal, no norte do Irão MASIH ALINEJAD
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 15 de maio de 2014. Pode ser consultado aqui
Há cada vez mais mulheres a praticar râguebi no Irão. A Al Jazira assistiu a um treino da equipa que lidera o campeonato feminino
No Irão, as mulheres não podem entrar nos estádios para assistir a jogos de futebol. Mas podem praticar râguebi, um dos desportos fisicamente mais exigentes. O campeonato nacional é liderado por uma equipa de Teerão, que a televisão árabe Al Jazira visitou durante um treino. As atletas garantem que, no relvado, as regras são as mesmas dos homens. E que o hijab — no Irão, as mulheres devem cobrir a cabeça e disfarçar a silhueta do corpo — não estorva, apesar de facilitar as placagens. “Adoramos este desporto e o não é um obstáculo”, confirma a treinadora Elham Shahsavarri. Para as atletas, o que são obrigadas a vestir é um pormenor, que não afecta o entusiasmo que o desporto lhes proporciona. A popularidade do râguebi entre as iranianas já levou mesmo à formação de uma selecção nacional, que treina desde há um ano.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 10 de novembro de 2009. Pode ser consultado aqui
Ouviu alguém a bater à porta. Estava sentada à secretária do quarto, absorvida pela escrita de um novo livro. Era tarde de domingo, 6 de Setembro de 1981. Ignorou. Talvez fosse o porteiro, possivelmente o leiteiro. Não paravam de bater. Foi à porta. Vislumbrou um vulto negro por detrás do vidro opaco. Um arrepio percorreu-lhe o corpo, estava sozinha em casa.
Abriu a janela da porta. Assustou-se. Homens armados esperavam lá fora. Uma voz grossa fez-se ouvir: “Abre a porta. Queremos fazer-te uma ou duas perguntas. Depois regressas a casa”. Foi levada e fechada numa prisão.
A arma da escrita
Vinte e três anos volvidos, à conversa com o “Expresso”, a egípcia Nawal El Saadawi — que, na segunda-feira, recebeu, em Lisboa, o X Prémio Norte-Sul do Conselho da Europa — não disfarça uma expressão irónica quando lhe é perguntado que crime cometera: “Escrever e apenas escrever. Não sei carregar outra arma a não ser uma caneta. Critiquei a política de Anwar Sadate. Era impossível libertar as mulheres num país que não era livre, política, económica e socialmente”.
Um mês depois de ter sido presa, o Presidente egípcio foi assassinado e as portas da prisão abriram-se. “O que não nos mata, torna-nos mais fortes”, foi o lema que então nasceu e a guiaria vida fora. Aos 73 anos, Nawal El Saadawi é hoje uma das activistas dos direitos das mulheres mais respeitadas em todo o mundo.
Tinha apenas 10 anos quando exibiu, pela primeira vez, toda a sua natureza, despejando chá quente em cima de um homem de 32 anos que lhe tinham destinado. Acabaria por casar três vezes, com homens da sua livre escolha.
Em 1955, concluiu os estudos de Psiquiatria na Universidade do Cairo e, em 1966, o mestrado em Saúde Pública na Universidade Columbia, em Nova Iorque.
Aos 10 anos, despejou chá quente em cima de um homem de 32 anos, que lhe tinham destinado
O pai formara-se na Universidade islâmica de Al-Azhar (Cairo), mas ela admite nunca se ter sentido socialmente amordaçada: “Fui para a escola médica, falava com homens, viajei por todo o mundo. Conhecia raparigas cristãs coptas que não tinham a minha liberdade. Depende da mentalidade dos pais”.
A experiência médica em zonas rurais e o contacto com a pobreza apurou-lhe a consciência política. Nos anos 70, começa a abordar temas tabus e causa incómodo. Fala abertamente da excisão — uma experiência que viveu aos seis anos — e associa-a a problemas de ordem económica e política.
Em 1972, é exonerada de um cargo de chefia no Ministério da Saúde e vê a revista que fundara (“Saúde”) ser interditada. Em 1977, publica “A Face Oculta de Eva” — a sua única obra traduzida para português —, sobre as mulheres e o mundo árabe.
Após a publicação do livro “A Queda do Imã”, em 1987, começa a receber ameaças de morte. Em 1992, o seu nome passa a figurar na lista de alvos a abater por um grupo fundamentalista islâmico.
A intimação força-a a um período de exílio, mas não a cala. Em 2001, afirma que o acto de beijar a Pedra Negra, em Meca, não é islâmico. É acusada de apostasia, mas vence, em tribunal, um processo que visava sentenciá-la a um divórcio forçado do marido, muçulmano.
Nawal El Saadawi é uma acérrima defensora da separação de poderes: “A lei tem de ser secular, a religião fica em casa”. Mas, enquanto em muitos países árabes isso não acontece, ela recusa-se a culpar o Islão pela diminuição do estatuto das mulheres. “Islamismo, judaismo, cristianismo, todas as religiões oprimem muito as mulheres. São inferiores em todas as religiões. É ler a Bíblia…”
Artigo publicado na revista Única do “Expresso”, a 30 de outubro de 2004
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.