Derrubaram os líderes, mas querem garantias de uma nova era. Argelinos e sudaneses continuam nas ruas
Na Argélia, Abdelaziz Bouteflika foi apenas o alvo óbvio. A revolta do povo argelino — coroada de êxito com a renúncia do Presidente, a 2 de abril passado — tem, porém, um objetivo maior: o fim de um regime monolítico e anacrónico que não corresponde aos anseios de uma população de 40 milhões em que quase metade tem menos de 25 anos.
“Queremos um Presidente que nos entenda. Queremos viver aqui e não imigrar para a Europa”, dizia Bouzid Abdoun, um engenheiro de 25 anos, à reportagem da agência Reuters, numa das manifestações de sexta-feira que, desde 22 de fevereiro, continuam a sair à rua semana após semana.
Desde que Bouteflika saiu de cena, os argelinos têm direcionado os seus protestos contra o triunvirato “3B” — Abdelkader Bensalah (presidente interino), Noureddine Bedoui (primeiro-ministro) e Tayeb Belaiz (ministro do Interior). “Por enquanto, os manifestantes estão unidos em torno de uma ideia: derrubar o regime”, diz ao Expresso Youcef Bouandel, professor de Ciência Política na Universidade do Qatar. “Há um apoio popular muito grande a um sistema político democrático. A ‘rua’ parece expressar este sentimento ao pedir o afastamento de ‘Le Pouvoir’ e a instauração de um sistema mais democrático”, acrescenta Ishac Diwan, professor na Universidade de Harvard (EUA).
“Le Pouvoir” (O Poder) é a alcunha que os argelinos usam para se referirem ao regime composto por veteranos de guerra, magnatas dos negócios e funcionários da Frente de Libertação Nacional, o partido no poder desde a independência (1962). Prossegue Diwan: “Quando lemos os editoriais na imprensa argelina, as exigências políticas são: um sistema político de governação mais descentralizado e parlamentar, um sistema judicial independente e órgãos de informação não dominados pelo Estado.”
Veteranos do poder
Oito anos após o movimento conhecido como “Primavera Árabe” (ver “Contexto”), a rua árabe continua reivindicativa. Nove dias após o argelino Bouteflika abdicar, o Presidente Omar al-Bashir foi deposto pelos militares, no Sudão, na sequência de grandes manifestações populares. Excetuando alguns monarcas, eram os líderes árabes há mais tempo no poder: Bouteflika estava a menos de um mês de completar 20 anos no cargo e Bashir — indiciado no Tribunal Penal Internacional por genocídio e crimes contra a Humanidade praticados na região do Darfur — ficou a pouco mais de dois meses de governar 30 anos.
Esta semana, o principal grupo de protesto sudanês expressou desconfianças em relação aos militares e às promessas feitas no sentido da transferência do poder para os civis. Manifestantes e ativistas têm estado a negociar com os militares a formação de um órgão de transição conjunto, mas não conseguem chegar a acordo sobre em que mãos ficará a autoridade.
“Com o passar do tempo, os poderes do conselho militar estão a aumentar, o que é um perigo muito grande para a revolução sudanesa”, afirmou na terça-feira Mohammed Naji Elasam, porta-voz da Associação dos Profissionais Sudaneses, que lidera um amplo grupo de ativistas e opositores. No mesmo dia, os protestos voltaram a Cartum, com estradas bloqueadas, pedras arremessadas e pneus em chamas em várias zonas da capital. Em frente ao Ministério da Defesa continua, desde 6 de abril, um protesto em permanência, que os generais sudaneses prometeram não dispersar.
A exceção marroquina
Na ponta ocidental do Magrebe, também Marrocos não tem escapado à agitação, ainda que, como refere ao Expresso Raúl Braga Pires, ex-professor na Universidade de Rabat, o país “aproveite qualquer tipo de manifestação para poder dizer ao mundo que não há súbdito que não seja livre de se manifestar”. “Sair à rua e protestar insere-se na categoria da ‘exceção marroquina’ no Magrebe e restante mundo islâmico. É prática comum, sendo mesmo curricular em certos sectores, como é o caso dos ‘Diplômés Chaumeurs’ [Graduados desempregados] que se manifestam diariamente, das 16h às 18h, em frente ao Parlamento, exigindo serem integrados no sector público e em Rabat, de preferência.”
Mas há manifestações de outra natureza com mais potencial para indispor Mohammed VI, ainda que a sua autoridade não seja questionada nas ruas. É o caso dos protestos iniciados no Rif (norte, região berbere), após a morte de um peixeiro de Al-Houceima que se atirou para dentro de um camião do lixo para impedir a destruição de 500 quilos de espadarte que tinham sido apreendidos, e ali morreu esmagado, em 2016.
A contestação originada pela tragédia extravasou o Rif. “As manifestações atuais em várias cidades, nomeadamente Rabat, têm exigido a libertação do líder do Hirak, condenado a 20 anos de prisão por ter liderado os protestos no caso do peixeiro e que se tornaram transversais a outros, sobretudo de cariz berbere”, refere Braga Pires, autor do blogue “Maghreb/Machrek”. “Poderão dar azo a uma insatisfação mais generalizada por parte das comunidades berberes, que misturam tudo, tantas são as queixas que têm. Mas não é um caso que una esquerda e direita, oposição e fiéis ao regime.”
CONTEXTO
Manifestações Em 2010, protestos tomam a Tunísia após um vendedor se imolar pelo fogo em desespero
Movimento Os protestos contra o regime contagiaram outros países, no que ficou conhecido como “Primavera Árabe”
Ditadores Quatro líderes caíram: Ben Ali (Tunísia), Mubarak (Egito), Kadhafi (Líbia) e Saleh (Iémen)
Conflitos Na Líbia, Síria e Iémen, aos protestos seguiram-se guerras
(FOTO Manifestantes na Argélia pedem: “Liberdade para a Argélia”, “Fim de jogo! Sai!” WIKIMEDIA COMMONS)
Artigo publicado no “Expresso”, a 4 de maio de 2019. Pode ser consultado aqui
Na Argélia, no Sudão e na Líbia, os povos estão nas ruas em ações de protesto, numa espécie de reedição da Primavera Árabe que, há oito anos, varreu vários países do Norte de África e do Médio Oriente. Argelinos e sudaneses manifestam-se contra regimes que levam décadas de poder. Já os líbios, alertam para o fantasma da guerra que volta a assustar um país que, após a queda do ditador, ainda não encontrou o seu rumo
Em menos de duas semanas, os dois líderes árabes há mais tempo no poder — se retirarmos da equação os monarcas — foram empurrados para fora de cena.
Na Argélia, Abdelaziz Bouteflika renunciou à presidência a 2 de abril, a menos de um mês de completar 20 anos no cargo (tomou posse pela primeira vez a 27 de abril de 1999) e a menos tempo ainda de tentar ser reeleito para um quinto mandato nas presidenciais inicialmente agendadas para 18 de abril — e agora previstas para 4 de julho.
Fisicamente muito debilitado, confinado ao conforto privado e quase sem aparecer em público, Bouteflika não resistiu a quase cinco semanas de oposição popular nas ruas. Afastado da presidência, o poder transitou para as mãos de um triunvirato a que os argelinos apelidam de “3B”: Abdelkader Bensalah (presidente interino), Tayeb Belaiz (ministro do Interior) e Noureddine Bedoui (primeiro-ministro).
São eles agora o rosto do odiado regime que o povo continua a contestar, em especial às sextas-feiras, quando gozam o fim de semana e algumas prédicas nas mesquitas têm grande poder mobilizador. No vídeo abaixo, captado em Argel na última sexta-feira, milhares de pessoas entoam o hino nacional.
No Sudão, Omar al-Bashir também saiu de cena a pouco mais de dois meses de completar 30 anos na liderança do país. Entronizado a 30 de junho de 1989, foi deposto a 11 de abril, após protestos populares contra o custo de vida, iniciados em várias cidades em meados de dezembro, se terem transformado em contestação política.
Indiciado no Tribunal Penal Internacional por genocídio e crimes contra a humanidade praticados na região do Darfur, Al-Bashir ficou sob custódia dos militares. Nas ruas, os sudaneses temem que os generais tomem também as rédeas do país e não desarmam, exigindo um governo liderado por civis.
Alaa Salah, uma estudante de arquitetura na Universidade Internacional de Cartum, de 22 anos, tornou-se um símbolo destes protestos, após ser fotografada em cima de um carro a discursar para uma multidão. Em declarações à alemã Deutsche Welle, aquela a quem chamam “Kendaka” (que na cultura núbia significa uma mulher forte e revolucionária) ignorou as ameaças de morte que recebeu após o mediático momento e afirmou-se feliz por ver acontecer uma “revolução” no seu país.
Os protestos na Argélia e no Sudão surgem oito anos após o movimento da Primavera Árabe ter varrido vários países do Norte de África e do Médio Oriente e originado a queda de vários autocratas. Na Tunísia, Zine El Abidine Ben Ali fugiu para a Arábia Saudita; no Egito, Hosni Mubarak foi deposto pelos militares; e na Líbia, Muammar Kadhafi foi executado numa rua da cidade de Sirte, a 20 de outubro de 2011.
Desde o desaparecimento do coronel líbio, o país mergulhou no caos, dividido em dois poderes que não se entendem: um governo instalado na capital, Trípoli (ocidente), liderado pelo primeiro-ministro Fayiz Al-Sarraaj e reconhecido pela comunidade internacional; um outro com sede na cidade de Tobruk (leste), alinhado com Khalifa Haftar, um general que controla a região e que tem atualmente em curso uma ofensiva militar para tomar a capital.
Na semana passada, por pressão da França, a União Europeia falhou a adoção de uma posição condenatória das movimentações do general líbio. Numa posição que contraria a sensibilidade maioritária na comunidade internacional, Paris colocou-se ao lado de Haftar, que beneficia também de equipamento militar fornecido por Egito, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.
Este posicionamento francês não será alheio ao facto de a Líbia ser um grande produtor de petróleo e de ter as maiores reservas localizadas precisamente nos “domínios” do general Haftar, no leste do país. Até agora, é a petrolífera italiana ENI que tem tido um acesso privilegiado às jazidas líbias, mas a francesa Total já deu mostras de não querer ficar atrás.
Nas ruas da Argélia, do Sudão e da Líbia, manifestações populares anti-regime fazem lembrar os protestos da Primavera Árabe que, há oito anos, derrubaram vários ditadores
No centro de Argel, este homem pede a “reciclagem” dos governantes do seu país Ramzi Boudina / ReutersNão contentes com o afastamento do ex-Presidente Abdelaziz Bouteflika, os argelinos querem também a saída do poder de toda a elite próxima do regime Ramzi Boudina / ReutersA designação de Abdelkader Bensalah como presidente interino da Argélia não agradou ao povo que continua nas ruas Ramzi Boudina / ReutersPolícia antimotim nas ruas de Argel Ramzi Boudina / ReutersJovem argelino em dificuldades após inalar gás lacrimogéneo disparado pela polícia Ramzi Boudina / ReutersFrente a frente entre a polícia argelina e os manifestantes. “Na Argélia são sempre as pessoas que escrevem a sua história”, lê-se na tarja Ramzi Boudina / ReutersNo Sudão, esta mulher pede “liberdade” no mural que está a pintar, em Cartum Umit Bektas / ReutersVitória, congratula-se este sudanês, após o anúncio da saída do poder de Omar al-Bashir ReutersAfastado o homem que os governou nos últimos 30 anos, os sudaneses querem garantias de que os militares não ficarão a mandar em Cartum ReutersManifestantes bloqueiam a passagem de um comboio de mercadorias pela capital do Sudão ReutersAs mulheres têm sido um importante motor dos protestos no Sudão ReutersProtestos dia e noite, em frente ao Ministério sudanês da Defesa, em Cartum ReutersEm 2011, os líbios saíram às ruas contra Muammar Kadhafi. Agora voltam a sair pela unidade do país Mahmud Turkia / Afp / Getty ImagesNa mira dos protestos em Trípoli está o general Khalifa Haftar que lidera uma ofensiva militar sobre a capital, desde o leste do país Hazem Turkia / Anadolu Agency / Getty ImagesNa capital da Líbia: “Criminosos não têm lugar em Trípoli.” “Haftar é um criminoso de guerra.” “Quem deu a luz verde para destruir Trípoli?” Ahmed Jadallah / ReutersProtestos contra a “interferência francesa” na Líbia. Paris apoia a investida do general sobre a capital Mahmud Turkia / Afp / Getty ImagesComo na Argélia e no Sudão, muitas mulheres participam nas manifestações na Líbia Ahmed Jadallah / ReutersNa Praça dos Mártires, no centro de Trípoli, uma líbia pede ajuda divina para os desafios terrenos Ahmed Jadallah / Reuters
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de abril de 2019. Pode ser consultado aqui
As recentes eleições no Líbano ditaram um reforço das fações pró-Irão. O mesmo poderá acontecer nas legislativas deste sábado no Iraque. Do Golfo ao Magrebe, Teerão está em alta
Aeroportos e postos de fronteira no Iraque estão, este sábado, encerrados para que milhões de eleitores possam ir às urnas com um sentimento mínimo de segurança. Derrotado no país, o autodenominado Estado Islâmico (Daesh, sunita) — que chegou a controlar um terço do território — ameaçou cobrir de sangue as primeiras eleições desde a sua capitulação. A circulação entre províncias está suspensa e a circulação rodoviária tem grandes restrições. O alerta é máximo.
Quinze anos após o início da guerra do Iraque, a segurança nacional continua a ser um projeto e a influência iraniana uma constante neste país de maioria xiita. Nas legislativas deste sábado, 27 coligações compostas por 143 partidos vão disputar lugares no Parlamento, entre as quais cinco importantes blocos xiitas — a coligação “Vitória do Iraque”, do atual primeiro-ministro xiita Haider al-Abadi procurará tirar dividendos do anúncio do fim do Daesh. Num país onde a política se faz em obediência a uma lógica sectária, a vitória dos xiitas não estará em causa. Resta saber se a influência iraniana em Bagdade se manterá ou se aumentará — como acaba de acontecer no Líbano.
Faz amanhã uma semana que o Irão foi um dos grandes vencedores das legislativas libanesas, as primeiras em nove anos. Hezbollah (elegeu 13 deputados) e Amal (15) — o “duo xiita” próximo de Teerão — foram quem mais ganhou num Parlamento de 128 lugares em que, por imperativo constitucional, 64 terão de ser preenchidos por cristãos (maronitas, ortodoxos, católicos, protestantes, etc.) e os outros 64 por muçulmanos (sunitas, xiitas, alauitas) e druzos.
Inversamente aos resultados xiitas, o partido do primeiro-ministro Saad al-Hariri, sunita e próximo da Arábia Saudita, foi um dos grandes derrotados. O Movimento Futuro perdeu deputados inclusive nos seus bastiões (Beirute, Trípoli e Sidon), o que fez soar os alarmes em Riade e, por “amizade”, em Washington também.
Donald Trump tinha até este sábado para decidir se continuaria a apoiar ou se retiraria os EUA do acordo sobre o nuclear iraniano. Não deixou que o prazo se esgotasse, nem esperou por eventuais cedências iranianas de última hora no sentido de uma revisão do acordo. Pressionado pela Arábia Saudita (que tem no Irão o grande rival) e por Israel (que tem fronteira com o Líbano e vive em alerta permanente em relação às movimentações do Hezbollah), Trump cortou a eito. Os resultados eleitorais no Líbano podem ter sido a provocação final à sua conhecida impaciência.
Do Iémen a… Marrocos
Iraque e Líbano são barómetros da influência iraniana na região, tal como a Síria, onde, ao apoiar Bashar al-Assad, que sobreviveu à guerra, Teerão mantém a sua influência intacta. Ontem, ao bombardear território sírio (ver texto de cima), foi o Irão que os israelitas quiseram atingir.
Teerão está em alta também na outra grande guerra em curso no Médio Oriente, no Iémen, onde apoia os rebeldes huthis, que controlam a capital. Na quarta-feira, o dia seguinte a Trump ter rasgado o acordo, os huthis dispararam mísseis que foram intercetados na direção de Riade, a capital da Arábia Saudita (árabe sunita). Esta lidera uma operação no Iémen para acabar com os huthis e, consequentemente, com a influência persa xiita no sul da península arábica.
A 1 de maio, sem alarido, Marrocos cortou relações com o Irão. Segundo Rabat, Teerão está por trás de ações do Hezbollah em território argelino, junto da Frente Polisário (que luta pela independência do Sara Ocidental). Do Golfo ao Magrebe, os tentáculos do Irão são sinónimos de crise.
Artigo publicado no “Expresso”, a 12 de maio de 2018
As transições políticas pós-revolução tardam em produzir estabilidade. No Egito e na Líbia, dois militares agarraram o leme
O deposto Hosni Mubarak “na sombra” do general Mohssen El–Fangari, membro do Conselho Supremo das Forças Armadas (SCAF) CARLOS LATTUF / WIKIMEDIA COMMONS
A revolução egípcia acaba de colocar um militar no poder — o marechal Abdel Fattah al-Sisi, eleito por sufrágio universal por uma maioria esmagadora. Na Líbia, um general na reserva declarou guerra às milícias islamitas e desencadeou uma ofensiva por conta própria, na região de Bengasi (leste). Líder de um país em guerra, o sírio Bashar al-Assad sobrevive ao conflito apoiado numas forças armadas que continuam a ser-lhe leais, apesar de múltiplas deserções no início dos protestos. São apenas três exemplos que revelam uma crescente preponderância do poder militar sobre regimes bafejados pela Primavera Árabe.
“Há uma grande preocupação nas populações árabes de que a relativa segurança e estabilidade em que viviam sob regimes autocráticos dê lugar ao caos e à desintegração das instituições, como acontece na Síria e, até certo ponto, na Líbia e no Iémen”, diz ao “Expresso” Manuel Almeida, editor da edição inglesa do jornal árabe “Asharq Al-Awsat”. “Neste contexto, as forças armadas, que eram uma pedra basilar dos regimes e que têm privilégios próprios a defender, são para muitos a principal garantia de que as transições políticas não deem lugar ao caos e de que, pelo menos, o exército zele pelo interesse nacional.”
Três anos após o início da Primavera Árabe — Manuel Almeida prefere chamar-lhe “despertar árabe”, por refletir a ideia de que os árabes acordaram de um sono induzido e não voltarão ao estado anterior de medo e indiferença —, é legítimo interrogar se este protagonismo dos militares não significará um regresso às ditaduras contra as quais os povos se rebelaram. “O risco de um retorno a regimes autocráticos e despóticos com os militares no topo da hierarquia existe”, defende o editor daquele conceituado jornal pan-árabe publicado em Londres.
Pelo povo e para o povo
Mas hoje, entre os árabes, nem tudo é exatamente como antes das revoluções, a começar pela forma como encaram os seus governantes. “O sentimento que se estabeleceu, nos últimos três anos, de que o poder político (seja de que natureza for) tem de prestar contas pelas suas decisões, implica que haja uma pressão maior sobre quem assumir o poder”, continua o editor português. “A necessidade de apresentar trabalho e resultados vai existir, seja o governo em causa democrático ou não, civil ou militar.”
Será assim com o marechal Sisi no Egito, apesar do apoio incondicional que recebeu nas presidenciais de maio (96,9% dos votos). “Sisi poderá ser alvo de um forte descontentamento popular a médio prazo, principalmente se não conseguir reavivar a economia e reduzir o desemprego. A reforma da economia vai inevitavelmente envolver medidas impopulares, como a diminuição dos subsídios. Para partilhar responsabilidades, acredito que Sisi se veja obrigado a garantir que, a breve prazo, haja um governo maioritariamente de civis e tecnocratas.”
Para Manuel Almeida, uma segunda razão concorre para a popularidade e ascensão política das forças armadas nos países árabes: “Uma reação ao poder dos islamitas, principalmente dos vários grupos nacionais da Irmandade Muçulmana”. Embora, em muitos casos, estivesse banida ou proibida de participar no processo político, “a Irmandade Muçulmana é um movimento extremamente determinado e organizado. Esse facto e a ausência de oposição ativa permitiu-lhe tirar partido das transições políticas e posicionar-se como uma das principais forças políticas, como aconteceu no Egito, Tunísia e Líbia.”
Precisamente a Líbia é, hoje, outro país onde o poder militar impõe as regras. Khalifa Haftar — um general na reforma, laico, que lutou ao lado dos rebeldes contra Muammar Kadhafi — lançou a “Operação Dignidade” contra posições islamitas na região de Bengasi, onde começaram os protestos antirregime, coordenando ataques terrestres e bombardeamentos com caças e helicópteros.
A Líbia organiza eleições legislativas a 25 de junho e o general já prometeu um cessar-fogo para essa altura.
“Este combate às milícias surgiu numa altura em que crescia a preocupação em relação ao domínio islamita — e da Irmandade Muçulmana em particular —, tanto no Parlamento como nas regiões estratégicas exportadoras de petróleo, como Bengasi”, explica Almeida. “Há certamente um interesse da parte de Haftar em reclamar para si uma posição de relevo, que procura desde há décadas no exílio (nos EUA). No entanto, o país está bastante fragmentado, existem demasiadas divisões regionalistas e tribais, assim como milícias fortemente armadas, para permitir que um general assuma o controlo facilmente.”
Na falta de um projeto nacional que una as diferentes fações líbias — regionais, tribais, religiosas ou seculares —, a possibilidade de o país se desintegrar não é ficção. “O mais grave é o facto de não existir qualquer tipo de monopólio do uso da força. Há dezenas de milícias e grupos armados e uma forte presença de jihadistas nacionais e de outros países árabes. É uma receita explosiva.”
Militares impiedosos
No contexto das revoltas árabes, dois países preocupam particularmente o editor. Por um lado, o Iémen, palco de uma tragédia humana com tendência para se agravar. “O Iémen quase não tem petróleo e espera-se que a sua população duplique em menos de 20 anos.” Por outro, a Síria. “Talvez a Síria não tenha matado a Primavera Árabe, mas foi certamente um travão.”
No Norte de África, a Argélia destoa por ser o único país onde não se fizeram sentir esses “ventos da mudança”. “Além do eterno Abdelaziz Bouteflika, que foi reeleito recentemente para um quarto mandado presidencial — apesar da deterioração da sua saúde indicar que provavelmente não o irá terminar —, a Argélia é dominada pelos militares e pelos serviços secretos de uma maneira particularmente eficiente e impiedosa”, diz o editor do “Asharq Al-Awsat” (“Médio Oriente”, na língua árabe). “Existe não só a preocupação da oposição em não ir longe demais na exigência de reformas para não dar azo a instabilidade, mas há também reformas tímidas”, como as legislativas de 2012, que a oposição considerou serem um esquema do Governo para prolongar o poder de Bouteflika, mas que foram um passo no sentido da democracia.
Também os fantasmas da guerra civil dos anos 90 — a repressão à violência islamita por parte das forças de segurança provocou, em números redondos, 200 mil mortos — inibem os argelinos na hora de sair à rua para reivindicar.
“Para muitos” no mundo árabe, conclui Manuel Almeida, “a intervenção política das Forças Armadas é, no máximo, um mal menor. Mas inevitavelmente há um preço a pagar, por se colocar o futuro das transições políticas nas mãos dos militares. Como diz o ditado, quando se tem um martelo, todos os problemas começam a assemelhar-se a pregos.”
O QUE CONQUISTARAM OS PAÍSES DA PRIMAVERA ÁRABE?
TUNÍSIA: Avanço a conta-gotas
Ben Ali fugiu do país a 14 de janeiro de 2011, mas só a 27 de janeiro passado foi aprovada a primeira Constituição pós-revolução. Governo, oposição e sociedade civil discutem agora se realizam primeiro legislativas ou presidenciais. Estes sufrágios concluirão a fase de transição, que foi liderada pelos islamitas do Movimento Ennahda (moderado), vencedor das eleições de 2011 para a Assembleia Constituinte.
O processo tunisino avança lentamente e com recuos, como o assassínio de dois líderes da oposição laica, em 2013. Mas é notória a procura de consensos. A 9 de janeiro, o primeiro-ministro Ali Larayedh (Ennahda) demitiu-se para desbloquear o impasse político e viabilizar a aprovação da Constituição.
Capa do “El País” de 15 de janeiro de 2011
EGITO: De volta à estaca zero
Com a eleição de Abdel Fattah al-Sisi, os militares regressaram à cadeira do poder de onde os revolucionários da Praça Tahrir tinham apeado Hosni Mubarak a 11 de fevereiro de 2011. Como previsto na Constituição aprovada em janeiro, o Governo interino demitiu-se segunda-feira, tendo Sisi reconduzido o primeiro-ministro Ibrahim Mehleb, que formará Governo até novas legislativas, previstas para este ano.
Em mais de dois anos, a transição egípcia decorreu ao estilo de uma falsa partida. Sempre que o povo votou (legislativas, presidenciais e referendo constitucional), a Irmandade Muçulmana venceu. A experiência islamita no país dos faraós terminou a 3 de julho de 2013, quando os militares, liderados por Sisi, afastaram o Presidente Mohamed Morsi após, num abaixo-assinado, milhões terem pedido a sua demissão.
Capa do “The New York Times” de 4 de julho de 2013
LÍBIA: Muitas armas na rua
Muammar Kadhafi foi executado a 20 de outubro de 2011. Desde então, o país continua refém das milícias (muitas delas armadas durante a intervenção da NATO em apoio dos rebeldes), que se recusam a depor as armas até que a sua participação na “libertação” da Líbia se traduza em ganhos políticos.
A segurança no país é intermitente, interrompida ocasionalmente por episódios de violência extrema, como o ataque ao consulado dos EUA em Bengasi, a 11 de setembro de 2012 (o embaixador Christopher Stevens foi um dos 11 mortos). Também a 10 de outubro de 2013, o então primeiro-ministro Ali Zeidan foi levado por homens armados do Hotel Corinthia, em Tripoli, sendo libertado horas depois.
A Líbia elegeu uma Assembleia Constitucional a 20 de fevereiro passado e realiza legislativas a 25 de junho. As últimas, em julho de 2012, foram ganhas por uma aliança composta por 58 partidos. Delas saiu um Parlamento interino que, em fevereiro, por pressão popular, acordou a sua dissolução. Os líbios responsabilizam os deputados pelo caos generalizado.
Árabes e árabes-berberes (amarelo), tubus (azul), tuaregues (vermelho), berberes (preto), zona desabitada (branco) CBC / RADIO-CANADA
IÉMEN: O poder das tribos
Ali Abdullah Saleh abandonou o poder a 23 de novembro de 2011, após dez meses de protestos pró-democracia e após garantir imunidade total. Sucedeu-lhe o seu vice, Abd Rabbuh Mansur al-Hadi, para um mandato de dois anos — prorrogado, em janeiro, por mais um ano.
Lançada em março de 2013, a Conferência para o Diálogo Nacional aprovou, em fevereiro, um sistema federativo que divide o país em seis regiões. “É uma resposta às reivindicações das regiões que se sentem historicamente marginalizadas pelo poder central”, diz Manuel Almeida, editor no jornal “Asharq al-Awsat”. “É o modelo que mais poderá contribuir para a resolução dos gravíssimos problemas do Iémen.”
O país foi unificado em 1990, mas enfrenta uma rebelião huthi (xiita) a norte e pretensões separatistas a sul. Alberga ainda a Al-Qaida na Península Arábica, um dos braços mais ativos da organização. “Julgo que não voltará a haver dois Estados. Mesmo regiões como Hadramaut, historicamente parte do Iémen do Sul, escolheram ser autónomas e não integrar uma solução de dois Estados, o que foi um sério revés para o movimento separatista do sul, baseado em Aden.”
O Iémen antes da unificação, em 1990 WIKIMEDIA COMMONS
SÍRIA: Guerra sem fim
A 3 de junho, Bashar al-Assad fez-se reeleger Presidente, por 88,7%, indiferente ao facto de já não mandar em todo o país (os curdos declararam autonomia a norte e fações rebeldes, algumas islamitas radicais, disputam parcelas de território), mas convicto de que o seu “reinado” está para durar. A Constituição aprovada em 2012 — com a guerra em curso — instituiu o multipartidarismo (nas presidenciais de 3 de junho houve três candidatos) e permitirá a recandidatura de Assad. Se sobreviver politicamente ao conflito poderá ficar no poder até 2028.
A contestação ao Presidente começou a 15 de março de 2011 com o mesmo espírito de Tunis e do Cairo. Assad não hesitou em recorrer às armas e à supremacia aérea para reprimir a oposição. Porém, “o fator desequilibrador da guerra tem sido o enorme apoio, a todos os níveis, que Assad tem recebido do Irão, do Hizbullah (a milícia xiita libanesa), e da Rússia”, diz Almeida. “Comparativamente, o apoio à oposição política e militar dos EUA e de países da União Europeia e do Golfo fica muito aquém daquele que Assad tem recebido.”
Notícia da Al-Jazeera de 5 de junho de 2014
MARROCOS: Um rei com visão
Mohammed VI foi hábil a tirar conclusões das consequências da Primavera Árabe noutras latitudes e antecipou-se a problemas. Com o Movimento 20 de Fevereiro nas ruas, reivindicando mais democracia, o monarca promoveu uma revisão constitucional, aprovada em referendo a 1 de julho de 2011.
O novo texto obriga o rei a nomear para primeiro-ministro uma personalidade do partido mais votado, a transferir prerrogativas para o primeiro-ministro, como a possibilidade de dissolver o Parlamento, e outras para o Parlamento, como a concessão de amnistias. E torna o berbere língua oficial. O rei também convocou eleições antecipadas, que foram ganhas, a 25 de novembro de 2011, pelo Partido Justiça e Desenvolvimento (islamita).
Notícia do “El Mundo” de 16 de fevereiro de 2011
BAHRAIN: Luta já não é notícia
O Bahrain é a única monarquia do Golfo com uma população etnicamente divergente da família real: os bahrainis são maioritariamente xiitas e os Al-Khalifa sunitas. A tensão entre povo e poder é, por isso, latente. A 18 de março de 2011, as autoridades mandaram derrubar a estátua do centro da Praça da Pérola, em Manama, que fora palco de protestos que pediam, entre outros, reconhecimento político para os xiitas e que foram reprimidos com a ajuda de tanques enviados pela Arábia Saudita (sunita).
A revolução desapareceu das televisões, mas, na internet, o Centro para os Direitos Humanos do Bahrain noticia diariamente atentados à liberdade e à condição humana. A 1 de junho, Firas al-Saffar, de 15 anos, foi levado de casa por polícias à paisana. Num posto de Manama, foi interrogado e acusado de “filmar reuniões não autorizadas”.
“Direitos humanos não são permitidos no Bahrain”, lê-se neste “aviso” acompanhado pela imagem do ativista Nabeel Rajab CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS
Artigo publicado no “Expresso”, a 13 de junho de 2014
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.