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Primavera sombria

Três anos depois do início da Primavera Árabe, os países onde começaram a soprar ventos de mudança pouco têm a celebrar. Na Tunísia, Egito, Líbia, Iémen, Bahrain e Síria as transições revelaram-se mais difíceis do que o derrube dos ditadores ou, noutros casos, a luta pela democracia tornou-se um braço de ferro sangrento

TUNÍSIA

O FAROL DA MUDANÇA

Ficou conhecida como a Revolução de Jasmim (a flor nacional), embora nem todos os tunisinos apreciem a designação. A verdade é que o seu bálsamo contagiou outros povos árabes que se sentiram tentados a imitar os tunisinos que em 28 dias de protestos acabaram com um regime de 23 anos. O ditador Ben Ali fugiu para a Arábia Saudita a 14 de janeiro de 2011, mas três anos passados a transição política continua a marcar passo. As primeiras eleições “livres e democráticas” — a 23 de outubro de 2011, para a Assembleia Constituinte — ditaram a vitória do Ennahda (partido islamita moderado) que, na falta de uma maioria confortável, estendeu a mão a duas formações políticas laicas, de esquerda: o Congresso para a República e o Partido Ettakatol. Para a presidência do país, a Assembleia elegeu um médico e ativista dos Direitos Humanos — Moncef Marzouki, que na juventude viajara até à Índia para estudar a filosofia de resistência pacífica do Mahatma Gandhi. Porém, a falta de progressos a nível económico — o investimento estrangeiro e os turistas tardam a regressar — e o braço de ferro na Assembleia Constituinte sobre o peso da religião na futura Constituição desgastaram a troika no Governo. A situação agravou-se durante 2013 com o assassínio de dois importantes líderes da oposição laica — Chokri Belaid, em fevereiro, e Mohamed Brahmi, em julho —, factos que mergulharam o país num impasse político. No passado dia 9, o Governo concordou em entregar o poder a um novo Executivo, independente, formado por tecnocratas, e demitiu-se. Este desbloqueio político voltou a lançar a Tunísia no caminho da construção democrática, mas já não foi a tempo de viabilizar a aprovação da nova Constituição. Prevista para ser anunciada a 14 de janeiro de 2014 — dia do terceiro aniversário da revolução —, continua a ser votada, por estes dias, artigo a artigo. Não sendo um exemplo de uma revolução pacífica — uma comissão independente apurou que 338 pessoas foram mortas, 66% baleadas —, a Tunísia continua a ser o farol da Primavera Árabe. A transição avança a ritmo lento, mas tem prevalecido o diálogo, uma propensão para o consenso e, apesar de tudo, uma certa aversão à violência. E as Forças Armadas têm-se mostrado equidistantes.

O VENDEDOR AMBULANTE QUE DERRUBOU UM DITADOR

Mohamed Bouazizi foi o tunisino que catalisou todo o movimento da Primavera Árabe. A 17 de dezembro de 2010, este vendedor ambulante de 26 anos regou-se com gasolina e ateou o fogo ao corpo em frente à casa do governador da cidade de Sidi Bouzid. Protestava contra a apreensão da sua banca de frutas e vegetais pela polícia. Com queimaduras em 90% do corpo, sobreviveu ao seu ato desesperado e foi internado num hospital de Ben Arous, onde, a 28 de dezembro, recebeu a visita do Presidente Ben Ali, líder máximo do regime contra o qual se revoltara. Morreria a 4 de janeiro de 2011. Nesse ano, foi-lhe atribuído, a título póstumo, o Prémio Sakharov, pelo contributo para as “mudanças históricas no mundo árabe”. O Governo tunisino homenageou “o mártir da revolução da dignidade” estampando o seu rosto num selo de correio (em cima). Em Sidi Bouzid há uma avenida de 4 km com o seu nome.

EGITO

A FORÇA DOS MILITARES

Hosni Mubarak saiu de cena a 11 de fevereiro de 2011, mas talvez só ano e meio depois muitos egípcios tenham percebido a ironia em que a sua revolução se tinha tornado. Em junho de 2012, a segunda volta das presidenciais foi disputada entre o candidato da Irmandade Muçulmana (Mohamed Morsi, que venceu) e o do antigo regime (Ahmed Shafik, que obteve 48%). Quem representava os jovens revolucionários que, durante 18 dias a fio, não arredaram pé da Praça Tahrir até que Mubarak se fosse? A Irmandade colheu frutos da sua organização, da legitimidade angariada após anos de luta na clandestinidade e por ter sobrevivido à repressão do regime. Sem surpresa, os islamitas venceram as três consultas populares da era pós-Mubarak: legislativas, presidenciais e referendo constitucional. Eleito democraticamente, Mohamed Morsi não viria, porém, a comportar-se como tal. A 22 de novembro de 2012 aprovou uma declaração constitucional que o colocou acima da lei e dos tribunais. Dotou-se de poderes como nunca antes Mubarak tinha feito e, com isso, ditou a sua sentença de morte (política). A 3 de julho de 2013, os militares afastaram Morsi, após, nas ruas, um abaixo-assinado pedindo a sua demissão (campanha “Tamarud”) ter sido assinado por mais de 22 milhões de pessoas — Morsi tinha sido eleito por ‘apenas’ 13 milhões. Para quem assinou o documento, o golpe militar tinha, pois, base democrática. Os apoiantes da Irmandade não se ficaram e, nas ruas, ao estilo de um ‘verão quente’, a violência fez jorrar ainda mais sangue do que durante a revolta anti-Mubarak (que fez 846 mortos). Já este mês os egípcios aprovaram uma nova Constituição. Seguir-se-á uma nova ronda de eleições — a segunda vida da revolução. Até lá, os militares serão o principal poder político. E a mais pequena dissidência não será tolerada: Morsi está detido, a Irmandade Muçulmana foi declarada organização terrorista e ativistas laicos que impulsionaram a revolução de 2011 — como Ahmed Maher, fundador do Movimento 6 de Abril — estão presos. Nem no tempo de Mubarak.

O CIBERNAUTA QUE EMOCIONOU O PAÍS
E MOBILIZOU O FACEBOOK

Khaled Said (o jovem retratado na ilustração) adorava computadores e passava longas horas num cibercafé da cidade de Alexandria, onde vivia com a mãe. A 6 de junho de 2010, dois agentes da polícia de Sidi Gaber irromperam pelo café e arrastaram-no para a rua, onde o espancaram até à morte. Khaled, de 28 anos, provocara a fúria da polícia ao publicar, no YouTube, um vídeo que mostrava vários polícias a distribuírem entre si o produto de uma apreensão de haxixe. A foto do seu rosto desfigurado — tirada na morgue, por um irmão, com o seu telemóvel — tornou-se viral na internet. A 19 de julho de 2010, foi criada, no Facebook, a página “Todos Somos Khaled Said”, para denunciar casos de tortura e “a brutalidade da polícia egípcia” em geral. Neste mural foi convocada a primeira grande manifestação antirregime, que saiu às ruas a 25 de janeiro de 2011. ILUSTRAÇÃO DE CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

LÍBIA

O REINADO DAS MILÍCIAS

A revolta na Líbia introduziu uma dinâmica nova na Primavera Árabe: afinal, a rapidez com que caíram ditadores na Tunísia e no Egito era ‘boa demais para ser verdade’. Os líbios tinham agendado o “Dia da Ira” para 17 de fevereiro de 2011, mas o descontentamento popular explodiu dois dias antes, após a prisão de um conhecido advogado, em Bengasi. As forças leais a Muammar Kadhafi — guia da Revolução desde 1969 — tentaram conter os protestos desde a primeira hora. Mas a repressão não evitou o contágio da rebelião a outras grandes cidades. Os ataques contra civis e a suspeita de “crimes contra a humanidade” levaram o Conselho de Segurança da ONU a aprovar, a 17 de março de 2011, a criação de uma zona de exclusão aérea sobre a Líbia para proteger as populações. No mesmo dia, a NATO começou a bombardear posições do regime. Kadhafi já tinha perdido muito território, mas vendeu cara a derrota: foi apanhado (e executado) apenas a 20 de outubro de 2011, quando muitos líbios já tinham pago com a vida o preço da rebelião — o número de vítimas oscila entre os 2500 e os 25 mil. Oficialmente, o fim da guerra civil foi declarado a 23 de outubro de 2011. No poder, Kadhafi foi hábil a tecer uma teia de lealdades tribais para forjar uma unidade nacional, que ele corporizava. Após o seu desaparecimento, reavivaram-se sensibilidades num país historicamente dividido em três grandes regiões. O novo poder central tem-se revelado fraco perante o poder das milícias (rivais entre si) que se têm recusado a entregar as armas sem que a sua participação na “libertação” do país se traduza em ganhos políticos. Em três anos, a Líbia foi capaz de organizar eleições para o Parlamento — a 7 de julho de 2012, ganhas por uma aliança de tendência liberal composta por 58 partidos — e de recuperar os níveis de produção de petróleo anteriores à revolução. Persiste a insegurança e um baixo nível de insurgência que, ocasionalmente, explode de forma preocupante — como a 11 de setembro de 2012, quando o consulado dos EUA em Bengasi foi atacado e o embaixador assassinado.

O ADVOGADO QUE DEFENDEU OS PRESOS
E ACABOU NA PRISÃO

Fathi Terbil é um advogado e ativista que, em 1996, após o massacre de cerca de 1200 amotinados na prisão de Abu Salim, aceitou representar famílias das vítimas. Tornou-se persona non grata para o regime que, a 15 de fevereiro de 2011, o mandou prender pela sétima vez. A notícia correu depressa e, no mesmo dia, centenas de pessoas reuniram-se em frente à sede da polícia de Bengasi para exigir a sua libertação. Fathi voltou a ver a luz do sol no dia seguinte, mas os protestos não mais pararam na segunda cidade líbia, que se tornaria o berço da revolução. Nesse ano, Fathi recebeu o Prémio Ludovic-Trarieux, atribuído a um advogado que se tenha destacado na defesa dos Direitos Humanos — em 1985, foi dado a Mandela. Hoje, com 43 anos, Fathi é ministro da Juventude e Desporto do Governo Interino. [Fathi Terbil foi escolhido pela revista “Time” (na imagem) como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo em 2011.]

IÉMEN

A COSMÉTICA DO REGIME

Na Tunísia e no Egito, os ditadores demoraram dias a cair. No Iémen, Ali Abdullah Saleh combateu, durante meses, os protestos pró-democracia iniciados a 27 de janeiro de 2011, resistiu às deserções no Governo e nas Forças Armadas, sobreviveu a um atentado à bomba que o atirou para um hospital na Arábia Saudita e ignorou a atribuição do Nobel da Paz a uma voz crítica do seu regime. A 23 de novembro de 2011, disse finalmente que sim e cedeu o poder, após garantir imunidade total — durante a revolução, morreram mais de 2000 pessoas. A 27 de fevereiro de 2012, Saleh marcou presença na tomada de posse do sucessor, o seu vice-presidente, Abd Rabbuh Mansur al-Hadi — candidato único às presidenciais, onde obteve 99,80% de aprovação. Na cerimónia, Saleh entregou-lhe uma bandeira do país — e também um conjunto de problemas que têm contribuído para a afirmação do Iémen como um dos países mais pobres do mundo. Por um lado, o Iémen alberga um dos braços mais ativos da Al-Qaeda. Saleh abriu os céus iemenitas aos drones dos EUA e, com isso, tornou-se um importante aliado na luta antiterrorismo. Por outro lado, dada a natureza tribal do país — norte e sul estão unificados apenas desde 1990 —, o ativismo de vários grupos secessionistas coloca o país, com frequência, à beira da guerra civil. Lançada em março de 2013, a Conferência para o Diálogo Nacional no Iémen continua reunida sem conclusões, apesar de o Iémen ter previstas eleições gerais para este ano. O país está entregue a um governo de unidade nacional, chefiado por Mohammed Basindawaust, um dissidente do regime anterior que a 31 de agosto de 2013 escapou a uma tentativa de assassínio — situação que também o ex-ditador conhece e, pelos vistos, quer que o povo não o esqueça. No ano passado, Saleh inaugurou um museu em Sana sobre os seus 33 anos de poder. Entre os objetos expostos estão as calças queimadas que vestia quando tentaram matá-lo e estilhaços retirados do seu corpo.

A JORNALISTA QUE VENCEU O REGIME

Os iemenitas chamam-lhe “a mãe da revolução”. Tawakkol Karman deu nas vistas em 2005 quando, aos 26 anos, fundou a Jornalistas Femininas Sem Correntes (WJWC, em inglês). No ano seguinte, a organização iniciou um serviço de mensagens instantâneas para telemóveis, com notícias sobre direitos humanos. Tornou-se tão popular que o Governo o encerrou. A WJWC não baixou os braços e começou a publicar relatórios anuais sobre a liberdade de imprensa no Iémen. Aos poucos, as denúncias começaram a extrapolar o âmbito dos media e a visar também casos de corrupção. A 15 de janeiro de 2011, Tawakkol organizou uma jornada de solidariedade para com a revolução tunisina. Manifestações anteriores já a tinham levado, várias vezes, à prisão e a viver sob ameaças de morte. Em 2011, ganhou o Nobel da Paz.

BAHRAIN

A REVOLUÇÃO IMPOSSÍVEL

Os protestos no Bahrain arrancaram condenados à nascença. Contrariamente às revoltas árabes no Norte de África, esta rebelião mexia com grandes interesses geopolíticos do Médio Oriente. A maioria da população do Bahrain — uma das seis petromonarquias ribeirinhas do Golfo Pérsico — é de confissão xiita; porém, o poder reinante — a família Al-Khalifa — é sunita. Fora de portas, esta rivalidade é protagonizada por dois gigantes: a Arábia Saudita, sunita, e o Irão, xiita, separados apenas pelo Golfo Pérsico. O sucesso de uma revolta xiita na Península Arábica causa calafrios ao regime saudita (a braços com uma minoria xiita problemática). Por isso, foi sem surpresa que, mal o rei Hamad bin Isa Al Khalifa pediu ajuda aos vizinhos para conter os protestos que se faziam ouvir desde 14 de fevereiro de 2011 — exigindo mais reconhecimento político para os xiitas —, cerca de 1000 militares sauditas (e 500 dos Emirados Árabes Unidos) tenham entrado no Bahrain. A repressão que se seguiu não poupou ativistas, blogueres, médicos — condenados por prestar assistência a vozes críticas do regime —, nem mesmo o património. A 18 de março de 2011, as autoridades mandaram derrubar a estátua do centro da Praça da Pérola, em Manama, que fora o palco dos protestos. A praça foi cimentada e é hoje um cruzamento da capital como outro qualquer. Uma Comissão de Inquérito Independente, ordenada pelo monarca do Bahrain e composta por personalidades independentes estrangeiras, apurou que o regime recorreu a tortura sistemática e a outras formas de abusos físicos e psicológicos contra os manifestantes. A Comissão também refutou as acusações feitas pelo regime de que os protestos foram instigados pelo Irão. A revolução no Bahrain desapareceu do noticiário internacional, mas, na internet, o sítio do Centro para os Direitos Humanos do Bahrain não para de noticiar casos de cidadãos que são presos e condenados após fazerem uso da liberdade de expressão. Só em 2013 foi o que aconteceu com 651 cidadãos, rotulados de ameaças à segurança por terem participado nos protestos.

A ATIVISTA QUE FEZ A REVOLUÇÃO A PARTIR DO TWITTER

“Quando estamos acorrentados, vivendo sem dignidade ou sem direitos e curvando-nos perante ditadores criminosos, o primeiro passo a dar é esquecer os medos e perceber que temos o direito… de nos zangarmos.” Esta é a mensagem de apresentação de Zainab al-Khawaja no Twitter — onde é @angryarabiya (“a árabe zangada”) —, a arma que mais usou para divulgar os protestos pró-democracia no Bahrain. Nascida em 1983, Zainab herdou os genes do ativismo do pai, Abdulhadi Abdulla Hubail al-Khawaja, fundador do Centro para os Direitos Humanos do Bahrain, que cumpre uma pena de prisão perpétua por participação em manifestações antirregime. Zainab também já foi detida várias vezes. Inseparável do Blackberry, tanto alinha em protestos coletivos como se senta sozinha no meio de uma autoestrada.

SÍRIA

A GUERRA INTERMINÁVEL

No início de 2014, as Nações Unidas anunciaram que iam parar de atualizar o número de mortos na Síria. A contabilidade oficial ficou nos “mais de 100 mil mortos”, uma catástrofe a que se soma o facto de um terço dos sírios ter fugido de casa — dois milhões refugiaram-se noutros países e cinco milhões são deslocados internos. “A Síria é a grande tragédia deste século”, disse António Guterres, alto comissário da ONU para os Refugiados. A contestação a Bashar al-Assad começou a 15 de março de 2011 com o mesmo espírito das revoluções em Tunis ou no Cairo. Porém, a sua fase primaveril durou pouco tempo. O Presidente sírio não hesitou em recorrer às armas para reprimir a oposição e, valendo-se da sua superioridade aérea, tem conseguido garantir a sobrevivência do seu regime, alauita — etnia minoritária entre os sírios e de inspiração xiita (o que lhe tem valido o apoio do Irão). Beneficiando do interesse da Rússia — que tem em Tartus a sua única base naval nos mares quentes —, Damasco nunca foi condenado no Conselho de Segurança da ONU: Moscovo ameaça usar o direito de veto. No terreno, há muito que a guerra deixou de ser um confronto entre forças leais ao regime e o Exército Livre da Síria, o grupo rebelde que angariou apoio ocidental. A presença de grupos jihadistas, alguns fiéis à Al-Qaida, que se combatem uns aos outros, quase torna Assad “um mal menor”. Hoje, a Síria é uma manta de retalhos com pedaços do território controlados pelo regime, outros pelos rebeldes, outros por jihadistas e outros nas mãos da minoria curda, que ainda esta semana declarou a autonomia de uma região do norte. Vizinho da Síria, o Iraque, que tem índices de mortalidade semelhantes aos do tempo da guerra, é um exportador de instabilidade. E o Líbano, onde a classe política se divide entre os pró-Síria e os anti-Síria, tem visto aumentar os ataques suicidas. Atento, Israel já fez vários bombardeamentos dentro da Síria para impedir que material perigoso chegasse ao seu inimigo — e aliado de Assad — Hezbollah (xiita libanês). No caos da Síria, tudo é possível.

A CRIANÇA QUE FOI COM OS PAIS À ‘MANIF’
E NUNCA MAIS VOLTOU

A gozar o fim de semana, a família de Hamza Ali Al-Khateeb, de 13 anos (na ilustração a perseguir Bashar al-Assad), destinou aquela sexta-feira, 29 de abril de 2011, para participar num protesto em Jizah, na província de Daraa. Havia semanas que os ânimos estavam exaltados, após 15 crianças terem sido presas por escreverem nas paredes da escola o slogan que, na televisão, ouviam gritar em vários países árabes: “O povo quer a queda do regime.” Em Jizah, Hamza sumiu-se no caos gerado pela repressão da polícia. A 25 de maio, o cadáver foi devolvido à família, com marcas de queimadura, ferimentos de bala e os órgãos genitais decepados. As imagens do corpo e os indícios de tortura levaram muitos sírios a suspeitar dos serviços secretos. Os protestos continuaram e, além do “Dia da Ira” (às sextas-feiras), os sírios passaram a assinalar, aos sábados, o Dia de Hamza. ILUSTRAÇÃO DE CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

(Legenda do mapa: A preto, Tunísia, Líbia, Egito e Iémen, onde os protestos derrubaram os líderes. A vermelho, a Síria, onde aos protestos sucedeu a guerra. A azul, o Bahrain, com manifestações reprimidas com ajuda externa)

Artigo publicado na Revista do Expresso, a 25 de janeiro de 2014

Publicação do Livro/Blogue Maghreb/Machrek amanhã!

Caros/as Amigos/as,

os textos do blogue serão publicados em livro amanhã. Os mesmos continuarão online, sendo que a novidade são caixas com comentários adicionais e algumas correcções.

Convido-vos a estarem presentes amanhã, pelas 18.30h, na Sociedade de Geografia de Lisboa, às Portas de Stº Antão (Edifício do Coliseu dos Recreios, porta discreta à esquerda e com placa!). O Turismo de Marrocos e o ILAC (Instítuto Luso-Árabe para a Cooperação), decidiram associar-se ao evento, sendo que o mesmo será brindado com música marroquina ao vivo e chá de menta. Tâmaras frescas de Errachidia, também serão servidas, num patrocínio exclusivo de Fanou Adjana Souag. Conto com a vossa Gula e com o vosso click Facebook AQUI!

A partir de hoje e até à próxima 6ª-feira, pode ouvir a minha playlist na TSF, entre as 13h e as 14h.

Deixo-vos aqui os agradecimentos publicados no livro, com um forte abraço de Boas Festas a Todos/as:

Um primeiro agradecimento à Margarida Mota do Expresso, primeira responsável por ter conseguido chegar até aqui, já que foi pela sua mão que entrei na redacção do Expresso, me sentei frente ao Miguel Cadete, apresentei a ideia, o qual de imediato chamou a Maria Romero, que por sua vez colocou o Blogue online em apenas 5 minutos! Nunca tive manhã tão produtiva e a Maria nunca imaginou que fosse passar a trabalhar com tamanho infoexcluído. Grato pela ajuda e paciência, tanto ao Miguel Cadete, como à Maria Romero. Ainda no Expresso, um forte abraço ao Miguel Martins, actualmente na CMTV, o qual talvez tenha sido o primeiro a sugerir a publicação dos textos no papel. Forte abraço também ao Henrique Monteiro e ao Rui Cardoso, sempre com tempo para ouvirem as minhas ideias e projectos.

Nunca foi minha intenção fazer do Maghreb/Machrek “o blogue do Raúl” e, por isso mesmo, tenho convidado outros politólogos e arabistas a publicarem neste espaço, que se quer, sobretudo, feito por gente no terreno e cujos relatos e análises são feitos na 1ª pessoa. Impossível publicar os textos destes/as Amigos/as, já que só isso daria outro livro! No entanto não poderei deixar de agradecer os importantes contributos de: Abdessamad Abouchadi “Tunísia, Islamistas e a Primavera Árabe” e “A Bússula Turca”; Júlio de Magalhães “Novos incidentes na Tunísia”, “A Nova Tunísia” e “Os Amigos da Síria”; Selin Turkes “Algo está a acontecer na Turquia”; Milena Calvário Raposo “Ramadão em Sana’a, Iémen”; Eva Oliveira “Israel/Palestina: Quais os resultados de um Processo de Paz last minute?” e demais comentários aos textos sobre a Palestina.

Quero também aproveitar para agradecer a todos aqueles que me têm ajudado a divulgar o Blogue e o meu trabalho, nomeadamente ao João Janes da TSF, sempre disponivel para animar as madrugadas da “Telefonia Sem Fios” com uma estória por mim sugerida, ou na antecipação de algo que certamente será notícia nesse novo dia que ainda dorme.

Na SIC, impossível não referir e agradecer a confiança em mim depositada pelo Martim Cabral e pelo António José Teixeira, mas também pela Ana Lourenço, Augusto Madureira, Marta Atalaya, João Moleira, Cândida Pinto, Alberto Jorge, Anabela Neves, Joana Garcia, Liliana Gomes, Gabriela Neto, Ana Geraldes, Graça Costa Pereira, Sofia Pinto Coelho, Miguel Veiga e pelas Senhoras da Recepção que me tratam sempre na palminha da mão!

Ainda na TSF, forte abraço de agradecimento ao Pedro Pinheiro, João Paulo Baltazar, Ana Sofia Calaça, Guilhermina Sousa, Sandra Pires, Claúdia Arsénio, Ana Freitas, Nuno Amaral, Rui Tukayana, Sofia Santos, Nuno Domingues, Luísa Godinho, João Félix Pereira Andreia Nogueira, a “Patanisca Atómica”, que entretanto decidiu rumar até Jakarta.

Aos demais e nunca de mais:

Tiago Dias (LUSA); Paulo Pinto Mascarenhas (CM); Ricardo Alexandre, Alice Vilaça, José Manuel Rosendo e Luís Nascimento (Antena 1); Ana Guedes (VOA); Roger Sevrin Bruland (NRK); Neidy Teixeira Ribeiro, Liliana Henriques, Adriano do Vale Salgueiro, Lígia Anjos e Miguel Martins (RFI); Rui Neumann (PNN); Lumena Raposo, Abel Coelho Dias e Patrícia Viegas (DN); Luís Manuel Fonseca (FP-Edição Lusófona), Adriana Niemeyer (Globo TV News) e José Mussuaili (NFM), um forte abraço de agradecimento, na esperança de não me ter esquecido de ninguém!

Da Embaixada do Marrocos, darouri/obrigatório agradecer ao Nuno Roby Amorim, por tudo, mas sobretudo pela patuscada e pela gargalhada, que é o que ambos sabemos fazer melhor. Abraço também à equipa da Maghreb Arab Press (MAP) em Lisboa, a “LUSA marroquina”, constituida pelo Driss Lamrini e pela Nadia El Rhzaoui, curiosamente oriundos de Temara, o nosso Município nos arredores de Rabat. Uma vénia à Srª Embaixadora Karima Benyaich ao Turismo do Marrocos e ao ILAC (Instítuto Luso-Árabe para a Cooperação), que se associaram da melhor forma ao lançamento deste livro, fazendo os presentes degustarem o chá de menta ao som de música marroquina tocada ao vivo.

Faço também questão de isolar o nome e a pessoa da Margarida Santos Lopes, que dispensa qualquer apresentação, pelo acompanhamento que me tem dado à distância, sempre atenta aos textos, às gralhas, ao estilo e ao conteúdo, bem como sempre com sugestões valiosas. Grato por tudo, incluindo os puxões de orelhas que me dás, sempre que me vês passar o red line estabelecido pela “Polícia das Virtudes e dos Bons Costumes do Facebook”.

Forte agradecimento ao acompanhamento, incentivo e condições de trabalho que os Professores Armando Marques GuedesCristina Montalvão Sarmento e que o Observatório Político me têm proporcionado, ao Embaixador António Tânger Corrêa por ter aceite escrever o posfácio, aos Professores José Manuel Anes e Heitor Barras Romana pelas simpáticas palavras impressas na contra-capa, à Professora Maria do Céu Pinto que nunca se esquece de me convidar para as conferências que organiza, ao Intagrist El Ansari, especialista no e do Sahel e também ao Paulo Noguês, à Elsa Páscoa e à Elsa Gil Sobral da Diário de Bordo, que “estão dirigindo toda esta batota”, parafraseando o Mestre Vinícius no “Samba da Benção” e sem os quais nada disto seria possível.

Fico também sempre de coração cheio a cada comentário efectuado pelos leitores/as no online, os quais proporcionam por vezes um aprofundar do debate e ainda outros debates e mais ideias para novos textos. Grato a todos/as.

Impossível descrever o entusiasmo com que sou sempre recebido em casa a cada regresso, pela minha Mãe e pelo meu Pai, pelo meu Irmão Bruno, pelos meus Filhos Miguel e Frederico e pelos meus Amigos Paulinho MaradonaZé Luís, Zé Pranchas, Luís Vira-Mosca, João Cupido, Jorge Bana, Paulo Durão, Mário Henriques e demais malta lá da Praceta e do Café da D. Ondina.

Por último, um beijo nos lábios da Fanou, que desde o Dia 1 me tem dado tudo e de forma incondicional, como o Amor se quer. Vamos escrever muitos livros, ter muitos filhos e plantar muitas árvores. Oxalá!

Aos leitores,

o exercício de leitura proposto é o de prestarem atenção às datas dos textos, bem como de saltarem de tema em tema ao sabor dos gostos e prioridades de cada um, já que não há obrigatóriamente uma continuidade entre os mesmos. Por essa razão foram acrescentados comentários aos textos originais, os quais pretendem contextualizar o leitor perante a evolução dos acontecimentos relativamente ao assunto abordado, bem como corrigir erros entretanto detectados. Neste sentido, esta publicação poderá servir como uma espécie de guia de consulta, a utilizar sempre que surjam dúvidas sobre determinado tema, enquadrando-o de forma a perceber o lastro percorrido até ao momento da pesquisa.

O livro que tem entre-mãos não se trata dum trabalho académico, nem a isso tem pretensão. Por isso mesmo, os textos não foram alterados, continuando aliás disponiveis para consulta gratuita no sítio do Expresso, em www.expresso.pt/maghreb. Aí, poderá encontrar ainda outros textos que não estão aqui reproduzidos, por mera opção pessoal.

Um blogue é um blogue e nada mais do que isso. Por isso mesmo, também não é aqui apresentado qualquer tipo de bibliografia. As minhas fontes são o que viajo, vejo, oiço, leio, converso e interpreto do Mundo à minha volta.

Foi também uma opção consciente publicar não respeitando o Novo Acordo Ortográfico. Não porque seja contra o mesmo, que até nem sou, mas porque acho que durante esse debate se perdeu uma excelente oportunidade para levar à prática aquilo que fica sempre bem dizer em público e depois nunca se cumpre. Refiro-me ao “Todos Diferentes, Todos Iguais”. Por outro lado, como sei que não vou vender no Brasil, não me dei a esse trabalho. Quando chegar a esse patamar, que espero em breve, cederei, como qualquer bom chefe-de-família, a este capricho.

Nouakchott, 1º de Outubro do Ano da Graça de 2013.

P.S. E já que estou na Mauritânia, um forte abraço de agradecimento ao Dimas Santos que me proporcionou uma aventura de 5 dias no camião do peixe, desde Rabat até Nouakchott, bem como à Isabel Fiadeiro (visita obrigatória a www.zeinart.com) e ao António Araújo, o “Feitor” do Parque Nacional do Banc d’Arguin, a “nossa” Arguim, que entre casa, comida, dinheiro e roupa lavada, me proporcionaram tudo incondicionalmente, sem perguntarem nem como nem porquê. Da mesma forma que o Jorge Tavares nunca se esquece de mim a cada domingo, em Rabat, e me convida para me sentar à sua mesa e o Lucas e o Zé Manel arranjam sempre espaço no carro para uma boleia de e para o Marrocos. O meu sucesso só é possível graças a Todos/as Aqueles/as que me levam ao colo e me permitem voar. Pagarei tudo com bacalhau! Palavra de Pelintra.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de dezembro de 2013. Pode ser consultado aqui

O sargento que fala árabe

António José Rodrigues está colocado na NATO, onde é conselheiro para assuntos árabes e islâmicos

Sou militar há 21 anos. Após o terramoto no Paquistão, no Inverno de 2005, integrei a missão humanitária da NATO. Trabalhava no gabinete de Informação Pública do Joint Command Lisbon e parti com funções de acompanhamento da imprensa e de aconselhamento cultural ao chefe de Estado-Maior da missão. Estive lá 90 dias.

Sou fluente em árabe, que, oralmente, é semelhante ao urdu, a língua-mãe no Paquistão. Nas longas viagens por estrada, conversava com os motoristas sobre a vida do Profeta e o Islão. Se passávamos por um cemitério, acompanhava-os nas orações. Eles, que viam o ocidental como um estranho que menospreza a cultura islâmica, admiravam-se por eu conhecer a cultura deles.

Fui coleccionando conhecimento ao longo de mais de 20 anos de estudo. Frequentei cursos de Filologia Árabe, Ciências do Islão e História do Islão. Publiquei a minha tese, traduzi-a para árabe e ganhei uma bolsa na Arábia Saudita. Em toda a região, só não conheço Omã.

Num país islâmico, há cuidados a ter nas relações sociais. Quando o chefe de Estado-Maior tinha reuniões com entidades paquistanesas, eu dizia-lhe, por exemplo, para ter cuidado ao cruzar a perna: apontar a sola do sapato é ofensivo para os muçulmanos.

Se uma mulher ferida fosse tratada por um médico, isso poderia desonrar o clã. Vi mulheres assomarem-se à entrada da planície para pedir ajuda, mas assim que viam homens e fardas recuavam com medo de represálias da tribo. Os anciãos resistiam à evacuação de membros da comunidade. Tinham medo que as crianças fossem adoptadas ou que recebessem outros valores.

Abracei esta missão num misto de sentimentos. Sentia o orgulho de ostentar ao peito a minha mui amada bandeira portuguesa e de transportar a nossa afabilidade, espírito de solidariedade e vontade de bem-fazer.

Lidei com órgãos de informação de todo o mundo. Tinha uma ideia pré-concebida, que os jornalistas só queriam desgraça e dor. Um dia, acompanhei um fotojornalista até Arja, onde se removiam os escombros de uma escola feminina. Quando uma retro-escavadora pôs a descoberto muitos corpos de meninas, ele olhou-me emocionado: Daqui a meia hora, esta foto estaria a circular mundo. Mas tenho duas filhas desta idade… E não fotografou.

BIOGRAFIA

1.º Sargento do Exército, está destacado no quartel-general da NATO em Madrid. Na Organização Atlântica é também, desde 2003, professor de Informação Pública em Ambientes Islâmicos, na Alemanha. Arabista e investigador, é autor de um manual enciclopédico sobre o mundo árabe.

Artigo publicado na revista Única do Expresso, a 20 de setembro de 2008

“Há uma efervescência no mundo árabe”

Mongi Bousnina, director geral da Organização Árabe para a Educação, a Cultura e as Ciências (ALECSO), uma agência especializada da Liga Árabe, semelhante à UNESCO, sediada em Tunis, esteve recentemente em Lisboa para assinar um acordo de cooperação com o Instituto Luso-Árabe para a Cooperação e estabelecer contactos. Em entrevista ao “Expresso” afirmou que a Europa e o mundo árabe estão “condenados” ao diálogo: A Europa necessita da paz a Sul e os países árabes necessitam da Europa para se desenvolverem.

EXPRESSO O que é a ALECSO?

MONGI BOUSNINA  É a UNESCO do mundo árabe. Tem 22 países membros, foi criada em 1970 e, tal como a UNESCO, trabalha nos domínios da cultura, da educação e das ciências. Em relação à educação. o seu objectivo é a melhoria do ensino no mundo árabe: as reformas, a modernização do ensino, particularmente do ensino superior. Na última reunião dos ministros do ensino superior, na semana passada, no lémene, discutiram-se conceitos como a qualidade, a inovação e a investigação científica. Em meados do próximo mês, faremos uma reunião dos ministros da educação sobre a primeira infância, a educação pré-escolar. Ao nível da melhoria da educação, e tal como faz a UNESCO, queremos pôr em prática estratégias de desenvolvimento: da educação, da cultura, da educação científica, da educação informática, sobre o ensino à distância, sobre a internet, etc. Ao todo, a ALECSO tem doze estratégias de desenvolvimento para o mundo árabe. Ao nível da cultura, trabalhamos muito no domínio do diálogo de culturas, entre intelectuais, artistas, académicos para pôr em prática valores comuns e universais como os direitos do homem, a democracia e a cidadania.

EXP. — Essa estratégia cultural é prioritária em relação a qualquer estratégia política?

M.B. — Sim, porque ela prepara a estratégia política. Quando se quer fazer política, deve-se começar por lançar ideias. E quem tem ideias são geralmente os pensadores, os intelectuais, os professores, os investigadores que, ao criarem movimentos de pensamento e reflexão, podem influenciar e orientar os decisores políticos. Hoje. o mundo árabe tem relações privilegiadas com a Europa, como um todo e país a país. Mas ao nível dos princípios de Barcelona. que cumpriram dez anos este ano, ainda não se registaram sucessos no plano cultural. O que se faz não é suficiente. Por isso, há que desenvolver mais as relações com o Conselho da Europa, com a União Europeia e com cada país bilateralmente, No próximo ano, vamos organizar um colóquio sobre Islamismo, em Sarajevo, o que é simbólico no plano da reconciliação entre religiões. Pugnamos pela criação de condições favoráveis para que haja contactos estreitos e tentamos melhorar a imagem do mundo árabe, evitar os mal-entendidos e as más-interpretações.

EXP. — Quais deverão ser as próximas prioridades do Processo de Barcelona?

M.B. — É preciso continuar a apoiar as economias dos países do sul. O problema de África, e agora ao nível da imigração, é sobretudo subsariana, que também constitui um problema para os países do Magrebe. Há que ajudar os países do Mediterrâneo a encontrar empregos e recursos para fixarem as suas populações. O sul do Mediterrâneo constitui uma profundidade estratégica para a Europa. Da mesma forma que houve uma abertura da Europa em direcção ao Leste, a abertura ao sul deverá ser, nos próximos anos, a prioridade de Barcelona II.

EXP. — Na Europa, os árabes são frequentemente associados aos problemas com imigrantes e à organização de atentados…

M.B. — Essa visão dos árabes pode ser alterada através de uma acção junto dos media. Há que contactar os media, porque são eles que passam as imagens e formam a opinião pública. Há igualmente os intelectuais, os pensadores, os professores, que escrevem nos jornais. Eles são próximos dos políticos e podem influenciá-los para mudar a imagem e tentar encontrar uma linguagem nova. Os países árabes devem igualmente fazer esforços para explicar e reunir com pessoas no sentido de apagar essa imagem de uma pequena minoria que encobre centenas de milhões de pessoas que nada têm a ver com isso. Há também que encorajar o diálogo inter-religioso. Nós temos com o Conselho da Europa um programa ambicioso de avaliação dos manuais escolares, isto é, como se dá a imagem do “outro” nos manuais escolares. Se a imagem é má de um lado, será má do outro.

EXP. — O que mais o preocupa, presentemente, no mundo árabe?

M.B. — A forma como o mundo árabe deve acompanhar o progresso do mundo e, por conseguinte, alterar e modernizar os seus sistemas educativo, político e cultural para seguirem esse movimento de evolução da tecnologia e das ideias políticas. Cada país deve conservar a sua originalidade mas não deve perder o contacto com o mundo exterior. Penso que este é o desafio mais importante em todos os domínios. Actualmente, há uma efervescência no mundo árabe, muitas vezes violenta e incompreensível para o exterior, mas penso que toda essa agitação é o sinal de uma mudança que está em vias de acontecer, à custa de alguma dor porque há mudanças que não são fáceis. Pessoalmente, estou optimista. Aliás, muitas coisas começaram já a mudar.

EXP. — Pode dar um exemplo?

M.B. — Actualmente, fala-se muito da participação das mulheres nos Parlamentos, do voto das mulheres, dos direitos das mulheres e há associações de mulheres a organizarem-se para defenderem esses direitos. Ao nível dos sistemas de educação, há também muitos países em vias de promoverem reformas importantes ao nível da liberdade académica no interior das universidades, da modernização do sistema educativo, do lugar das mulheres no sistema de educação e na política. Em vários países do Golfo, as coisas estão a mudar muito. A modernidade segue forte e rápida, ainda que com oposições e desacordos, o que é normal, mas as coisas estão a avançar. Também ao nível religioso, hoje todos defendem o discurso da moderação e do respeito e contacto com as outras religiões. Muitos países árabes estão a tornar-se cada vez mais responsáveis e conscientes de que há que fazer qualquer coisa.

EXP. — Há algum país árabe modelo nesse âmbito?

M.B. — Cada país tem as suas particularidades e evolui à sua maneira, isto é, da forma que considera mais adequada para evoluir. Há países que evoluem mais rapidamente do que outros. Cada país tem as suas particularidades, a sua história, o seu passado, não mudam todos da mesma forma e ao mesmo tempo. Há que segui-los a todos.

EXP. — Os partidos islâmicos são actores incontornáveis nos processos de democratização?
M.B. — Somos todos contra quem possa conduzirá violência ou apelar a uma guerra religiosa ou a uma guerra civil. Nenhum país pode aceitá-lo. Defendemos a aceitação das regras do diálogo, da troca, e do respeito do “outro”.

EXP. — A população dos países árabes é maioritariamente jovem. Os países têm condições para corresponderem às suas expectativas e ambições?

M.B. — O mundo árabe é muito heterogéneo. Há países relativamente prósperos e outros que se apoiam muito na cooperação e no contacto com a Europa ou com os Estados Unidos. Penso que há uma consciência sobre a necessidade de desenvolvimento. Porém, há que resolver igualmente alguns problemas internacionais, nomeadamente os problemas das matérias-primas, das subvenções á agricultura, da liberalização dos serviços, que também afectam o mundo árabe. Há também que conduzir políticas de desenvolvimento que façam da juventude a prioridade e sobretudo que apostem na qualidade da formação dos jovens para que possam ir trabalhar para onde quiserem. O futuro está no capital intelectual.

Artigo publicado no Expresso Online, a 6 de junho de 2006

Uma voz incómoda

Aos 73 anos, Nawal El Saadawi é uma activista incansável na defesa dos direitos das mulheres

Nawal El Saadawi JAMES MURUA’S AFRICAN LITERATURE BLOG

Ouviu alguém a bater à porta. Estava sentada à secretária do quarto, absorvida pela escrita de um novo livro. Era tarde de domingo, 6 de Setembro de 1981. Ignorou. Talvez fosse o porteiro, possivelmente o leiteiro. Não paravam de bater. Foi à porta. Vislumbrou um vulto negro por detrás do vidro opaco. Um arrepio percorreu-lhe o corpo, estava sozinha em casa.

Abriu a janela da porta. Assustou-se. Homens armados esperavam lá fora. Uma voz grossa fez-se ouvir: Abre a porta. Queremos fazer-te uma ou duas perguntas. Depois regressas a casa. Foi levada e fechada numa prisão.

A arma da escrita

Vinte e três anos volvidos, à conversa com o “Expresso, a egípcia Nawal El Saadawi — que, na segunda-feira, recebeu, em Lisboa, o X Prémio Norte-Sul do Conselho da Europa — não disfarça uma expressão irónica quando lhe é perguntado que crime cometera: “Escrever e apenas escrever. Não sei carregar outra arma a não ser uma caneta. Critiquei a política de Anwar Sadate. Era impossível libertar as mulheres num país que não era livre, política, económica e socialmente”.

Um mês depois de ter sido presa, o Presidente egípcio foi assassinado e as portas da prisão abriram-se. “O que não nos mata, torna-nos mais fortes”, foi o lema que então nasceu e a guiaria vida fora. Aos 73 anos, Nawal El Saadawi é hoje uma das activistas dos direitos das mulheres mais respeitadas em todo o mundo.

Tinha apenas 10 anos quando exibiu, pela primeira vez, toda a sua natureza, despejando chá quente em cima de um homem de 32 anos que lhe tinham destinado. Acabaria por casar três vezes, com homens da sua livre escolha.

Em 1955, concluiu os estudos de Psiquiatria na Universidade do Cairo e, em 1966, o mestrado em Saúde Pública na Universidade Columbia, em Nova Iorque.

Aos 10 anos, despejou chá quente em cima de um homem de 32 anos, que lhe tinham destinado

O pai formara-se na Universidade islâmica de Al-Azhar (Cairo), mas ela admite nunca se ter sentido socialmente amordaçada: “Fui para a escola médica, falava com homens, viajei por todo o mundo. Conhecia raparigas cristãs coptas que não tinham a minha liberdade. Depende da mentalidade dos pais”.

A experiência médica em zonas rurais e o contacto com a pobreza apurou-lhe a consciência política. Nos anos 70, começa a abordar temas tabus e causa incómodo. Fala abertamente da excisão — uma experiência que viveu aos seis anos — e associa-a a problemas de ordem económica e política.

Em 1972, é exonerada de um cargo de chefia no Ministério da Saúde e vê a revista que fundara (“Saúde”) ser interditada. Em 1977, publica “A Face Oculta de Eva” — a sua única obra traduzida para português —, sobre as mulheres e o mundo árabe.

Após a publicação do livro “A Queda do Imã”, em 1987, começa a receber ameaças de morte. Em 1992, o seu nome passa a figurar na lista de alvos a abater por um grupo fundamentalista islâmico.

A intimação força-a a um período de exílio, mas não a cala. Em 2001, afirma que o acto de beijar a Pedra Negra, em Meca, não é islâmico. É acusada de apostasia, mas vence, em tribunal, um processo que visava sentenciá-la a um divórcio forçado do marido, muçulmano.

Nawal El Saadawi é uma acérrima defensora da separação de poderes: “A lei tem de ser secular, a religião fica em casa”. Mas, enquanto em muitos países árabes isso não acontece, ela recusa-se a culpar o Islão pela diminuição do estatuto das mulheres. “Islamismo, judaismo, cristianismo, todas as religiões oprimem muito as mulheres. São inferiores em todas as religiões. É ler a Bíblia…”

Artigo publicado na revista Única do Expresso, a 30 de outubro de 2004