Rima al-Sabah, mulher do embaixador do Kuwait nos EUA, é uma das figuras mais populares nas festas do “jet set” de Washington
Em janeiro de 2015, Rima al-Sabah foi nomeada embaixadora da Boa Vontade do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
É árabe a estrela mais cintilante da alta-roda da diplomacia sediada em Washington. Rima al-Sabah, a elegante esposa do embaixador do Kuwait nos Estados Unidos, Salem Abdullah al-Jaber al-Sabah, goza de uma popularidade galopante e é cabeça-de-cartaz nas festas mais badaladas da capital dos EUA.
Para quem tem das kuwaitianas uma imagem no mínimo tão conservadora quanto a rigidez do próprio Kuwait, a embaixatriz é a negação em pessoa. “Rima al-Sabah gosta de irromper numa casa com a sua aparência de modelo parisiense, o cabelo comprido ruivo a cair-lhe, solto, abaixo dos ombros, o seu metro e setenta e cinco, o corpo delgado envolto num traje de marca e uns escandalosamente sexys sapatos de tacão, quanto mais alto melhor”, dizia há tempos o “Washington Post”.
Paralelamente ao porte indiscreto, Rima não abdica do cigarro, dos vestidos de alta-costura e de vistosas peças de joalharia. Na edição 2003 da lista das personalidades mais distintas da capital norte-americana feita pela “Washington Life Magazine”, Rima e Salem só foram ultrapassados pelos Bush, pelos Cheney e pelos Allbritton (financeiros).
“São sociáveis, inteligentes, interessantes e muito, muito atractivos”, justificou Nancy Bagley, a directora da revista, que funciona como uma espécie de roteiro da vida mundana de Washington.
Mas, a par da beleza e dos hábitos sofisticados, a embaixatriz do Kuwait é uma mulher reconhecidamente inteligente. E o facto de os Al-Sabah terem chegado a Washington dias antes dos atentados ao World Trade Center e ao Pentágono determinaria quer a agenda diplomática de Salem quer o empenho de Rima na arte de bem receber. “Isto é um trabalho de equipa”, afirma ela.
Por isso, cada recepção que a embaixatriz organiza assume contornos de verdadeira cerimónia de Estado. “Ela preocupa-se muito com a aproximação entre as culturas islâmica e ocidental. As listas de convidados, os menus, a decoração… Ela pensa ao máximo em todos os pormenores”, diz Debbie Dingell.
Rima e o marido são os terceiros da lista dos mais distintos
Fluente em inglês, francês e árabe, Rima, de 40 anos, mostra igual à-vontade quando fala de moda, política ou das últimas novidades de jogos de computador que os três filhos adoram.
Filha de dois licenciados pela Sorbonne (Paris), nasceu e cresceu no Líbano e foi educada na religião católica. A conversão ao islamismo ocorreu aquando do casamento com Salem, cinco anos mais velho, que conheceu na Universidade Americana de Beirute, onde se licenciou em Jornalismo: “Quando eu era apenas uma caloira, o meu marido era um veterano, e nós tornámo-nos os namorados do campus”, recorda.
Percursos como o de Rima al-Sabah não estão ao alcance da esmagadora maioria das kuwaitianas, privadas do direito de votar ou de abrir uma conta bancária, por exemplo.
Reconhecendo o carácter delicado do assunto, a embaixatriz aborda-o com grande diplomacia: “Nós, mulheres do Kuwait, temos uma grande quantidade de direitos e bastante poder, apesar de não termos o direito de votar. Mas vamos consegui-lo. E só uma questão de tempo”.
Artigo publicado na revista Única do “Expresso”, a 25 de abril de 2003
Não estava previsto, mas a História chamou-o a suceder a um dos líderes históricos do Médio Oriente. Depois da morte súbita do irmão e sucessor eleito de Hafez al-Assad, Bashar não teve outra alternativa senão a de suceder ao pai, figura carismática de um dos países mais conturbados dos últimos 50 anos. Estudava em Londres e preparava uma carreira de médico oftalmologista, quando o destino lhe trocou as voltas e o fez voltar a Damasco, para marcar a entrada da Síria no próximo milénio
Os Assad. Sentados, Hafez e a esposa, Anisa Makhlouf. De pé, da esquerda para a direita, os cinco filhos: Maher, Bashar, Basil, Majid e Bushra WIKIMEDIA COMMONS
A “era dos doutores” tem, desde há pouco mais de um mês, um novo protagonista — o oftalmologista Bashar al-Assad que terá a seu cargo uma das transições mais complicadas do Médio Oriente: suceder a Hafez al-Assad à frente dos destinos da Síria.
Aquele que até há uns anos era o mais soviético e autocrático dos Estados árabes — dirigido pelo pulso firme de quem não hesitava em recorrer à repressão para silenciar as vozes incómodas — prepara-se para dobrar o milénio sob o comando de um jovem politicamente inexperiente, que aprecia Phil Collins, gosta de navegar na Internet e sempre afirmou nunca ter ambicionado suceder ao pai.
As suas capacidades de liderança são, por enquanto, uma incógnita, e o seu ar afável e sorridente transmite um sentimento de fragilidade e insegurança a quem, durante 30 anos, se habituou a venerar o rosto frio e sem expressão de Hafez al-Assad — o que lhe valeu o epíteto de “Esfinge de Damasco”.
Assad foi “o único líder que manteve um perfil cem por cento árabe face a pressões ocidentais”. “Sem Assad, o nosso futuro é muito inseguro, mas Bashar já se comprometeu em seguir o programa, a visão e a estratégia do pai. Ninguém está interessado em revoluções.” No dia do funeral de Hafez al-Assad era assim que falava a voz do povo sírio: Bashar nunca substituiria Assad, mas seria certamente um bom discípulo.
Bashar al-Assad nasceu a 11 de Setembro de 1965 e tinha apenas dois anos quando o pai, então ministro da Defesa, sofreu a maior humilhação da sua vida: em apenas seis dias, Israel ocupava os Montes Golã, um maciço montanhoso que envolve o Lago Tiberíades (ou Mar da Galileia) — onde se situa a nascente do rio Jordão —, que viria a constituir um dos mitos geoestratégicos do século XX.
“Sr. Presidente, eu sei onde é a fronteira. Até 1967, nadei no lago, fiz lá churrascos e lá comi peixe”, desabafou, em Março passado, Hafez al-Assad junto de Bill Clinton. Mas mais do que as recordações de infância, era a ânsia de vingança que presidia à permanente reivindicação de cada centímetro dos Golã e que Assad transformaria numa questão de “vida ou de morte”.
Assad costumava dizer que com Israel qualquer coisa seria negociável… após o regresso das fronteiras ao seu desenho anterior à Guerra dos Seis Dias. Quando recebia visitas, espalhava mapas pelo chão e realçava, durante horas, a importância dos Golã para a sobrevivência do Estado sírio.
Mas Bashar não herda essa obsessão pessoal de Assad, o que o poderá libertar para, à mesa das negociações, colocar a tónica naquilo que, de facto, é o mais importante para os sírios: o acesso aos recursos aquíferos e não propriamente a soberania sobre uma fortaleza que, do ponto de vista estratégico-militar, se tornou obsoleta perante a extraordinária capacidade tecnológica da “máquina de guerra” israelita.
Bashar terá nos Golã o capítulo mais difícil da sua afirmação como líder da Síria, mas outros desafios se lhe deparam.
Desde 1976 que a Síria “exportou” mais de 30 mil soldados para o Líbano, com redobrada intensidade após a invasão israelita do sul daquele país, em 1982. Em 1998, Hafez al-Assad entregou a gestão deste “dossier” a Bashar, mas não será por já conhecer a matéria que ele terá a vida facilitada.
A recente retirada de Israel do território libanês deitou por terra o mais sólido dos argumentos que justificavam e legitimavam a presença dos sírios. Timidamente, a imprensa libanesa — que já rotulou Bashar de Assad II — vai trazendo o assunto à liça, ansiando pelo dia em que o Líbano deixe de funcionar como uma “província” da Síria e se assuma como um Estado soberano.
Paralelamente, coloca -se a questão do futuro do Hizbullah, o grupo terrorista que, a partir do Líbano e sob o alto patrocínio da Síria, combatia o inimigo sionista e que agora, aparentemente, ficou sem motivação.
Mas se, com Assad, tudo girava à volta da oposição permanente e sistemática a Israel, com Bashar, por natureza, tudo poderá ser diferente.
Antes de Assad era o caos e a lei em vigor era a dos golpes de Estado. Assad trouxe estabilidade política à Síria — a estabilidade pela opressão e pelo terror —, mas não o desenvolvimento e muito menos a prosperidade económica. Faxes e computadores não faziam parte do ambiente de trabalho dos sírios, os telemóveis eram completamente desconhecidos e as antenas parabólicas ilegais.
A este nível, Bashar tem o perfil de um verdadeiro revolucionário. Familiarizado com o ocidente europeu, por força da sua estadia em Londres, onde se especializou em Oftalmologia, Bashar desenvolveu uma sensibilidade particular pelas novas tecnologias, sobretudo pela Internet, da qual se tornou um adepto entusiasta e um frequente navegador.
Estava em Londres, a especializar-se em Oftalmologia, quando foi chamado à Síria para se submeter ao curso intensivo de “como governar”
Da presidência da Sociedade Informática Síria, desenvolveu a maior das pressões para que o governo procedesse à informatização do país, o que começou a ser uma realidade a partir de 1998, com a introdução de 7 mil terminais de Internet. Ainda há duas semanas, Damasco anunciou que, até 2001, espera ampliar a rede em 200 mil novas ligações.
A Síria constitui, aliás, um terreno propício à implantação das novas tecnologias. Cerca de 60% da população tem menos de 30 anos e anseia que o país se liberte das amarras da história e se modernize. Por outro lado, Bashar sabe que a modernização e a aposta na inovação tecnológica é fundamental para atrair os investimentos financeiros de que o país tanto carece.
Um quarto e último desafio que se coloca a Bashar al-Assad prende-se com a sua própria manutenção no poder. A afirmação política do pai fez-se lutando contra um sentimento de inferioridade que o acompanhou desde o nascimento. Hafez al-Assad veio ao mundo em 1930, no seio da uma família alauita — cerca de 12% dos mais de 15 milhões de sírios —, da minoria xiita, vista pela esmagadora maioria dos sírios (sunitas), como uma seita herege, e consolidou o poder aglutinando à sua volta representantes de várias outras minorias, nomeadamente ismaelitas, cristãos, curdos, drusos, laicos…
Partindo desta base de apoio, Hafez al-Assad construiu e controlou a máquina do poder e garantiu a lealdade do Exército — onda a maioria das unidades de elite é composta por alauitas — e dos serviços secretos.
Se, por um lado, Bashar está legitimado por ser um Assad, o facto de ser um alauita granjeia-lhe, automaticamente, um conjunto de inimigos, designadamente dos Irmãos Muçulmanos, um grupo sunita exilado na Jordânia que se tem oposto violentamente ao predomínio alauita em Damasco. E o facto de ser solteiro, torna-o ainda mais vulnerável, pois não existe qualquer aliança matrimonial que o possa socorrer — contrariamente ao pai que, ao casar com uma alauita oriunda de um clã diferente, capitalizou apoio.
Talvez este aspecto não venha a constituir um verdadeiro problema se Bashar se conseguir afirmar e alterar o tradicional esquema de solidariedade tribal através de reformas políticas e da liberalização económica.
Bashar herda tudo por resolver e vê-se prisioneiro da falta de preparação para o cargo em virtude de não ter sido a primeira escolha do pai. Quando nasceu, Assad tinha já dois filhos: uma rapariga (a mais velha) e um rapaz, Basil, que, na esteira da mais fiel das tradições monárquicas, foi o eleito para lhe suceder. Foi Basil, e não Bashar, quem se viu, desde cedo, envolvido nas lides militares e foi alvo de uma educação cuidada e vocacionada para a liderança.
Daí que, quando, a 21 de Janeiro de 1994, Assad surpreende Bashar, em Londres, com a notícia da morte do irmão — na sequência de um acidente de viação, perto do aeroporto de Damasco — e o convoca para o regresso urgente à Síria, a situação se tenha assemelhado ao voltar à estaca zero porque tudo estava por fazer: havia que formar Bashar rapidamente para que ele cumprisse a nobre missão de suceder ao pai.
O percurso académico de Bashar tinha seguido por um caminho contrário àquele que seguiria se tivesse sido o eleito. Começou por frequentar o liceu franco-árabe Al-Hourriet, estudou Medicina na Universidade de Damasco e, entre 1988 e 1992, Oftalmologia no hospital militar de Techrin, igualmente na capital síria. Depois, seguiu-se o refúgio londrino, para os estudos especializados — de onde lhe advém a alcunha de “o doutor” — e de onde é arrancado em 1994, para ser submetido a um curso rápido e intensivo de “como governar”.
Sem qualquer preparação militar — algo inaceitável para as elites governativas de um país do Médio Oriente —, logo ingressou na Academia Militar de Homs e em Janeiro de 1999, foi graduado coronel. Momentos após a morte do pai, o Parlamento promoveu-o a general e nomeou-o comandante-chefe das Forças Armadas.
Paralelamente, multiplicaram-se pelas ruas os seus retratos, ele que aos olhos do povo era um ilustre desconhecido, contrariamente ao irmão Basil que já tinha conquistado o afecto dos sírios.
A herança de Bashar é pesada: uma Síria economicamente frágil e um Estado pródigo em coleccionar inimigos — com Israel e Iraque à cabeça
Ainda o pai era vivo, quando Bashar nomeou o seu primeiro inimigo a abater — a corrupção, dando início a uma espécie de “operação mãos limpas” e banindo do governo e do exército o mais pequeno vestígio de corrupção, ainda que tal significasse o afastamento de alguns dos mais antigos colaboradores do pai.
A morte de Hafez al-Assad, a 10 de Junho de 1999, precipitaria todo o processo de legitimação de Bashar, num país que, sendo uma república, estava prestes a reconhecer uma sucessão dinástica. E eis que à legitimidade sanguínea se junta todo o processo de legalização burocrática vertiginosamente acelerado: horas depois do pai falecer, o Parlamento reúne-se de urgência e altera a Constituição, passando a idade mínima para ascender a Presidente de 40 para 34 anos (a idade de Bashar); em meados do mês, o Partido Baas — partido único, no poder também no Iraque — reúne-se em congresso e escolhe Bashar como o seu candidato à presidência; dias depois, o Parlamento nomeia-o Presidente; a 10 de Julho, num referendo popular, 97,2% dos sírios aprovam-no e uma semana depois Bashar al-Assad toma posse, tornando-se, assim, o “Presidente de todos os sírios” e, aos 34 anos, o mais jovem Chefe de Estado em todo o mundo.
A herança de Bashar é pesada: herda uma Síria que ainda é olhada com desconfiança mas que, a partir de 1996, deixou de constar da lista do Departamento de Estado norte-americano de países que apoiam o terrorismo; herda um país economicamente frágil, mas jovem e com vontade de explorar os caminhos da revolução informática; herda um Estado pródigo em coleccionar inimigos — com Israel e Iraque à cabeça —, mas que se tornou um actor incontornável da paz no Médio Oriente.
Se Assad foi “o protector dos leões” (o significado, em árabe, de “Hafez al-Assad”) — fiel ao lema de que “mais vale ser temido do que amado” —, Bashar tem a aparência de um pequeno cachorro a quem se exige, porém, a força e garra de um felino.
Ascendeu ao trono por unanimidade, mas só o tempo dirá se o instinto de Thomas Friedman, um articulista do “The New York Times”, estava certo quando, imediatamente após a morte de Assad, escreveu: “A lápide deveria dizer: ‘Hafez Assad, Presidente temido e feroz. Durou demasiado tempo e morreu cedo demais’.”
OS PRÓXIMOS LÍDERES
Quem se seguirá? É esta a pergunta que com maior insistência paira no subconsciente de todos quantos se interessam pela conturbada história dos países árabes do Médio Oriente e Norte de África.
Em pouco mais de um ano, Jordânia, Bahrain, Marrocos e Síria despediram-se de líderes carismáticos e experientes e sentaram na “cadeira do poder” jovens na casa dos trinta anos. As atenções viram-se agora para os veteranos ainda em acção e os palpites sobre quem será o próximo a claudicar dispersam-se. Será o palestiniano Arafat ou o líbio Kadhafi? O egípcio Mubarak ou qualquer um dos soberanos dos pequenos reinos do Golfo?
Não há analista que se atreva a fazer previsões — há anos que a saúde do Rei Fahd, na Arábia Saudita, está por um fio —, mas um facto é incontornável: no Iraque, Saddam Hussein já tratou de introduzir um dos filhos na estrutura política do país. A 27 de Março, Uday Hussein — um engenheiro doutorado em Ciência Política pela Universidade de Bagdade — foi eleito para a Assembleia Nacional iraquiana com… 99,99% dos votos. Aos 35 anos, acumula uma quantidade impressionante de cargos, desde o comando das milícias Fedayin de Saddam até à presidência do sindicato dos jornalistas, passando pela direcção de inúmeras associações juvenis, estudantis e desportivas e pela administração de vários órgãos de comunicação social. Essa concentração de poder fê-lo coleccionar inimigos com fartura. Em 1996, sobreviveu como que por milagre a uma chuva de balas que crivaram o automóvel em que seguia e o atingiram em dez pontos do corpo.
A sua recuperação foi lenta e demorada, mas quando voltou a televisão iraquiana fez questão de passar imagens suas a nadar no rio Tigre, para que não houvesse dúvidas de que o “enfant terrible” estava de volta e em grande forma.
No clã Hussein, as disputas, por vezes, só se resolvem à lei da bala. Em 1995, Uday esteve na origem da fuga de dois genros de Saddam para a Jordânia. O episódio humilhou o patriarca da família de tal forma que logo Uday procurou redimir-se: atraiu os cunhados a Bagdade e… participou, pessoalmente, na sua execução.
A entrega do lugar de “delfim de Saddam” a Uday não é unanimemente aceite. Qusay, o filho mais novo de Saddam, desempenha importantes funções ao nível da estrutura militar do regime, pelo que nem sempre a coexistência entre os dois irmãos é fraterna.
Poucos conhecem Uday de perto, mas muitos dos que com ele se cruzaram arrependeram-se para toda a vida. Quando a selecção iraquiana de futebol falhou a qualificação para um campeonato do Mundo, Uday — que adora futebol — mandou prender os jogadores. Depois, chicoteou-os e torturou-os. Se vier a suceder ao pai, como se espera, Uday passará a personificar, entre a nova geração de “príncipes” — a “geração Internet”, como já é chamada —, uma nova modalidade de liderança. Será a subida ao poder de “playboys” assassinos e sanguinários, sedentos de poder e apenas preocupados com o estatuto pessoal, por oposição a figuras tais como Abdallah II da Jordânia ou Mohammed VI de Marrocos, por exemplo, que não só conquistaram de imediato os súbditos como as simpatias do Mundo.
Artigo publicado na Revista do “Expresso”, a 19 de agosto de 2000
Herdeiros dos tronos da Jordânia e de Marrocos, cresceram e formaram -se no Ocidente. Regressaram como soberanos, e desde o início marcaram uma nova forma de reinar: querem estar próximos dos seus povos
À porta do terceiro milénio, o mundo árabe revela indícios de querer liderar uma espécie de “revolução silenciosa”. Jordânia e Marrocos têm, desde o ano passado, soberanos jovens que, com aparente naturalidade, imprimiram um estilo novo de reinar — porventura mais moderno e menos “imortal” — e afastaram a tentação de serem permanentemente comparados aos seus carismáticos pais. Abdallah II e Mohammed VI ainda estão a escrever o primeiro capítulo dos seus reinados, mas talvez seja já suficiente para afugentar o perigo de passarem à história como “o filho de Hussein” e “o filho de Hassan II”.
Com alguns dias de reinado, Abdallah da Jordânia abriu o seu “livro de aventuras” e assinou uma forma original de governar. De tempos a tempos, inspira-se no maior dos mestres do disfarce, encarna o mais anónimo dos cidadãos e sai à rua disposto a avaliar, com os seus próprios olhos, o empenho dos funcionários governamentais e a auscultar as queixas do seu povo.
“Trajado a rigor”, já fez de repórter de televisão, de taxista, de mendigo e de doente. Num centro de assistência social, fez tantas perguntas aos idosos que esperavam por atendimento que teve mesmo de enfrentar a ira dos responsáveis pelo estabelecimento.
Já o seu pai era um perito nestas artimanhas. Da última vez que o fizera, há pouco menos de dez anos, numa altura em que a Polícia andava a testar um novo equipamento de radar, saiu do palácio montado numa moto, conduziu-a a alta velocidade, pelo centro de Amã, e só foi apanhado 90 minutos depois.
Abdallah assinou uma forma original de governar. Já fez de repórter de televisão, de taxista, de mendigo e de doente
O método de Abdallah pode, pois, não ser inédito, mas é altamente mediático e popular. Quando, no “local do crime”, se vê obrigado a revelar a sua identidade, é frequentemente brindado com aplausos. E as consequências destas missões incógnitas não podiam ser mais satisfatórias: “Eles começaram a tratar toda a gente como um rei, porque nunca sabiam se a próxima pessoa da fila a ser atendida era o rei”, afirmou Abdallah.
Segundo o monarca, a ideia inicial era usar os disfarces para contornar algumas situações mais incómodas e passar despercebido. Em Maio do ano passado, por exemplo, durante uma visita a Washington, Abdallah resolveu ir ao cinema. “Acabei no meio de um desfile de dez automóveis, com carros da polícia, sirenes e 26 agentes dos serviços secretos. Eu nunca me tinha sentido tão embaraçado na minha vida”.
Em Marrocos, Mohammed ainda não tentou a arte do disfarce, mas, tal como o seu colega jordano, faz do contacto directo com as populações ponto de honra. E quando se refugia num dos seus maiores prazeres — a condução de potentes automóveis —, pára sempre que alguém o reconhece e lhe pede para falar. Ele “tem uma personalidade afectuosa e um interesse pessoal nas pessoas que encontra, a quem gosta de perguntar pelas famílias e empregos. Parece não gostar de protocolos e cerimoniais e prefere uma abordagem mais modesta”, assim o caracterizou um alto funcionário marroquino.
Para quem não convive com Mohammed, a sua personalidade vai-se compondo à custa de pequenos episódios. O monarca alauita surpreende ao não fazer uso das “benesses” inerentes à sua condição real. Quando lhe apetece jogar golfe, não ordena o encerramento do campo, para que dele usufrua em exclusividade, e quando conduz.., obedece aos semáforos.
Em Marrocos, Mohammed, tal como o seu colega jordano, faz ponto de honra do contacto directo com as populações
Quando, há pouco menos de meio ano, uma avaria geral deixou o palácio real às escuras, três empresas apresentaram orçamento para a reparação, um dos quais bastante inferior aos restantes. Intrigado, Mohammed quis saber qual a razão da diferença. “Não há necessidade de arranjar toda a instalação, como os outros preconizam. Basta reparar duas ou três coisitas”, justificou o electricista. Sensibilizado, o rei não só lhe adjudicou a obra como ainda arredondou muito por alto o seu preço. “Em sinal de encorajamento”, precisou Mohammed.
Consta que, num festival de música, ficou furioso quando reparou que tinha sido montada uma estrutura para o proteger da chuva e que nada tinha sido feito para abrigar os artistas. Cioso da sua vida privada, Mohammed reage mal à publicação de fotografias suas disparadas em momentos de descontracção, seja aos comandos de um “jet-ski” ou durante um passeio em “jeans”. Inseparável dos seus óculos de sol, não se livra da fama de “playboy”, assente no facto de, aos 36 anos, continuar solteiro.
De facto, na cultura árabe, não é frequente um herdeiro ascender ao trono sem ter, previamente, constituído família. No caso de Mohammed, porém, tal não dificultou a sua aceitação por parte dos súbditos, embora no caso jordano o casamento tenha engrandecido a popularidade do soberano. A 10 de Junho de 1993, o príncipe Abdallah tinha casado com Rania al-Yassin, uma palestiniana formada em gestão, nascida no Kuwait, em 1970. Esposa dedicada e mãe extremosa de dois pequenos filhos, Rania é uma digna herdeira da beleza e “charme” da rainha Noor — a última esposa do rei Hussein —, bem como do seu espírito solidário e voluntarista. A sua coroação aos 28 anos tornou-a a mais jovem rainha do mundo e catapultou-a para o exíguo firmamento das estrelas da realeza.
Hoje, o casal real hachemita é assunto obrigatório da imprensa “cor-de-rosa”, ameaçando seriamente o protagonismo que a família real monegasca assumiu após o desaparecimento da princesa Diana. Fora dos compromissos oficiais, o casal procura levar uma vida tão normal quanto possível. Uma vez por semana, fazem questão de sair com os amigos para uma noitada de convívio. “É bom as pessoas verem o rei e a rainha a comer um hamburguer no Planet Hollywood. Passa a mensagem certa: ‘Ali estão eles, fazem parte da nossa sociedade’”, exemplificou Abdallah.
Mas o simbolismo da rainha Rania transcende, em muito, o “glamour” social. Desde que Abdallah foi nomeado príncipe herdeiro, a 25 de Janeiro de 1999, ela tem representado um papel importante na afirmação do marido junto do seu povo.
Abdallah cresceu sem a pressão de vir a ser o futuro rei, apesar de ser o varão do soberano
Nascido a 30 de Janeiro de 1962, Abdallah cresceu sem a pressão de vir a ser o futuro rei, apesar de ser o primeiro varão do soberano. Em 1965, uma emenda constitucional tinha-o afastado da linha de sucessão, devido à sua tenra idade e ao facto de ser filho de uma inglesa — Antoinette (Toni) Gardiner —, o que motivara o “veto” da influente mãe de Hussein. O mesmo diploma nomeara Hassan, um irmão mais novo do rei, seu herdeiro, mas os “abusos” por ele cometidos, enquanto regente, durante a longa ausência do malogrado rei, em 1998 — quando esteve em tratamentos, nos EUA — desgostaram Hussein. Por isso, embora lógica, a entronização de Abdallah foi inesperada. E não deixou de causar alguma surpresa, até porque era sabido que o favorito de Hussein era Hamza, o filho mais velho do seu matrimónio com Noor, nascido em 1980.
A escolha de Abdallah causou surpresa e insegurança num povo que temia pelo seu futuro, agora nas mãos de um “desconhecido”. “Eu fui de repente atirado para uma posição à qual nunca tinha aspirado, nem tão-pouco desejado, mas tal foi a directiva de Sua Majestade”, confessou Abdallah. “Não tenho nenhuma preparação como príncipe herdeiro, mas também não acho que alguém esteja preparado para ser rei até calçar os sapatos”, era esta a sua filosofia.
E é precisamente perante as dificuldades em suceder ao pai no coração dos súbditos que a palestiniana Rania constitui um “trunfo” para Abdallah. Num país onde 60% da população é originária da Cisjordânia, a presença de um dos seus na corte tranquiliza, mesmo que ao lado de uma pessoa que passou metade da vida além- fronteiras. “Afinal de contas, ele é casado com uma palestiniana”, resignou-se Abu Adnan, um comerciante de verduras de Amã. Abdallah efectuou todos os seus estudos entre a Inglaterra e os EUA, facto que o faz dominar na perfeição a língua inglesa e ter algumas deficiências na pronúncia de certos sons do árabe.
Contrariamente, Mohammed, o primeiro filho varão de Hassan, fora preparado para reinar, desde o dia em que nasceu, a 21 de Agosto de 1963, pelo que fala fluentemente árabe, francês, espanhol e inglês. Sob a severa e exigente orientação do pai — a quem passou a tratar por “Majestade”, aos 13 anos —, Mohammed estudou em Marrocos. Depois de se licenciar em Direito, em 1985, rumou para Bruxelas — onde estagiou junto de Jacques Delors, na Comissão Europeia — e para a sede das Nações Unidas, em Nova Iorque. Em 1993, doutorou-se na Universidade de Nice. “Quero que os meus filhos tenham horror da mediocridade”, era uma das máximas de Hassan.
Contrariamente ao pai, Mohammed inscreveu os assuntos internos como tarefa prioritária
Por causa do carácter crucial que atribuía à formação, os receios de Estado sobrepuseram-se à afectividade quando, em Setembro de 1985, o Mercedes que o filho guiava caiu numa ravina. “A inquietude do rei foi superior à do pai. Eu apercebi-me que o príncipe herdeiro tinha passado ao lado de uma catástrofe. Eu vi 20 anos de educação, de formação, completamente destruídos”, declarou Hassan II.
Durante dois longos reinados — 46 anos de Hussein e 38 de Hassan —, os príncipes viveram na sombra de dois líderes míticos que asseguraram a unidade nacional com punhos-de-ferro. A entronização dos dois jovens, horas após a morte dos pais — a de Abdallah II a 7 de Fevereiro de 1999 e a de Mohammed VI a 23 de Julho seguinte —, correspondia à coroação de dois verdadeiros enigmas, mas, ao mesmo tempo, à injecção de sangue novo em reinos politicamente estagnados, economicamente débeis e socialmente fracturados. Afirmou então Abdallah: “Eu tenho 37 anos e 70% do meu país é mais novo do que eu, portanto eu penso que os líderes da minha geração talvez reflictam melhor as atitudes das gerações mais novas”.
Quando subiu ao trono, a juventude de Mohammed foi celebrada de forma eufórica. Em Marrocos, 80% da população nasceu após a independência (1956). “Eu não posso saber, com certeza, que tipo de rei será Mohammed, mas já era altura de um homem mais jovem assumir o comando”, confessou um comerciante de Casablanca. “O rei da mudança chegou. Muitas cabeças vão rolar. Sua Majestade vai ser uma boa surpresa. Ele viu os erros do seu pai e vai fazer o contrário! Todo o mundo procura a justiça, o fim da corrupção, a liberdade. Graças à sua mentalidade de jovem, nós vamos consegui-lo”, escreveu um jornalista marroquino.
Contrariamente ao pai, cuja reconhecida visão histórica e inteligência lhe tinham granjeado um papel de destaque na aproximação israelo-árabe, Mohammed inscreveu os assuntos domésticos como tarefa prioritária da sua ordem de trabalhos. “Hassan II era um génio da política externa, não da interna! Como compensação, o que interessa ao novo rei somos nós, as nossas necessidades”, escreveu o mesmo jornalista. “Hassan II evocava, facilmente, a propósito da dureza da vida quotidiana dos seus súbditos, a coragem do seu ‘querido povo’. Enquanto a reacção de Sidi Mohammed consiste, antes, em interrogar-se o que pode ser feito para melhorar a situação. Ele vê os indivíduos onde o seu pai não via mais do que o povo”, analisou um observador ocidental.
Na Jordânia, Abdallah é um modelo no que toca à combinação da modernidade com a tradição. Com a mesma facilidade com que leva a família para umas férias na Côte d’Azur, ele senta-se nas tendas das tribos beduínas e escuta os sábios conselhos dos anciãos. “Cada monarca tem o seu próprio estilo. Hussein era Deus, o pai. Abdallah é mais humano, é antes um irmão mais velho”, disse um jornalista.
Na Jordânia como em Marrocos, os velhos soberanos deixaram de herança uma monarquia incontestada. E mesmo aqueles que não morrem de amores pela instituição monárquica não ficam indiferentes ao permanente “estado de graça” em que os jovens monarcas parecem viver. “Vamos acabar sendo todos monárquicos!”, afirmou um jornalista marroquino. “Hoje, com o nosso rei Mohammed, sentimo-nos como os espanhóis que não são monárquicos mas antes juancarlistas”, disse um outro.
Mohammed e Abdallah são amigos próximos. Juntamente com o Sheik Hamad, do Bahrain, eles são as faces visíveis de uma nova geração de líderes num mundo árabe onde ainda predominam as personalidades que fizeram a transição do período colonial para a independência. Em sentido figurado, são uma espécie de crianças desprotegidas rodeadas de gerontes experientes. “Nós fomos todos educados no Ocidente e somos muito amigos. Estamos sempre a falar e comparamos notas, comparamos problemas — que são todos muito parecidos — e partilhamos as nossas experiências e como resolvemos os problemas. É, na verdade, fascinante. Eu não tenho esta intimidade com a geração mais velha”, afirmou Abdallah.
Com percursos ainda curtos, estas almas gémeas dão o mote para a era das sucessões que se aproxima e onde os casos sírio, saudita, iraquiano e palestiniano serão, com toda a certeza, alvo de muita curiosidade.
Artigo publicado na Revista do “Expresso”, a 11 de março de 2000
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.