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Eurovisão arranca hoje: Ucrânia volta a ganhar? Há canções políticas? Porque há, como na ONU, cinco países com assento permanente na final?

A organização do festival não gosta, mas a política sobe ao palco da Eurovisão, ano após ano. O certame de 2023 em Liverpool não será exceção. Ao estilo de aperitivo para a primeira semifinal, esta terça-feira à noite, na qual a portuguesa Mimicat disputará um lugar na final, seguem-se dez interrogações de caráter político, comentadas por Tiago André Lopes, professor na área das Relações Internacionais e grande fã do concurso musical

1. A Ucrânia repetirá a vitória do ano passado?

Ainvasão russa continua, mas é pouco provável que o triunfo da Ucrânia, obtido com o coração, no evento de 2022 em Turim — realizado menos de três meses após o início da guerra —, se repita em Liverpool.

“A vitória da Ucrânia parece-me muito improvável este ano. Ao nível dos júris, não parece de todo que a Ucrânia esteja na corrida. Julgo que vão privilegiar canções mais previsíveis de serem premiadas”, diz Tiago André Lopes, professor de Comunicação para a Diplomacia, na Universidade Portucalense. “Mas não ficarei surpreso se, na votação do público, o bloco de leste votar de forma expressiva na Ucrânia”. O país invadido concorre com o tema “Heart Of Steel”, dos Tvorchi.

Afinal, no ano passado, foi precisamente a preferência do público europeu o segredo da vitória da Ucrânia. “Stefania”, da banda Kalush Orchestra, foi a canção mais pontuada no televoto, com 28 dos 39 países participantes a dar os 12 pontos à Ucrânia (Portugal foi um deles).

Porém, ao nível dos júris, a Ucrânia só obteve a pontuação máxima de cinco países do bloco de leste: Letónia, Lituânia, Moldávia, Polónia e Roménia. O júri português atribuiu 8 pontos à canção ucraniana (e o ucraniano deu 10 à portuguesa).

2. A Rússia participa nesta edição?

Não, nem a sua aliada Bielorrússia. Foram ambas suspensas pela União Europeia de Radiodifusão (EBU), a entidade que organiza a Eurovisão, mas por razões diferentes.

A 25 de fevereiro de 2022, no dia seguinte ao início da invasão russa da Ucrânia, a EBU emitiu um comunicado excluindo a Rússia do festival de Turim. “A decisão reflete a preocupação de que, à luz da crise sem precedentes na Ucrânia, a inclusão de uma inscrição russa no concurso deste ano trouxesse descrédito à competição”, explicou a organização. Esta posição levou os três canais russos membros da EBU a ameaçarem desfiliar-se, ao que a União respondeu com a suspensão.

Já a emissora estatal de rádio e televisão bielorrussa BTRC está suspensa desde 28 de maio de 2021, como resposta à “supressão da liberdade de imprensa” no país.

A penalização da Rússia, em particular, tem consequências abrangentes. “A Rússia era um país que contribuía muito significativamente para a EBU, e a sua suspensão fez com que a inscrição [no festival] subisse de preço”, explica Tiago Lopes. “Há países que não conseguiram comportar os custos e optaram por não ir este ano.” Bulgária, Macedónia do Norte e Montenegro são exemplos. O mesmo aconteceu com Portugal em 2013, durante o resgate financeiro pela troika.

Por estes dias, a “superlambanana”, uma icónica escultura de Liverpool, ganhou as cores da Ucrânia PAUL ELLIS / AFP / GETTY IMAGES

3. Há mais países ausentes?

A EBU é composta por organizações de radiodifusão oriundas de 56 países (incluindo os dois suspensos). Em Liverpool participarão apenas 37, logo há bastantes que ficam de fora. A última vez em que concorreram 37 canções foi em 2014. Desde então, houve sempre mais.

Na história da Eurovisão, o recorde de participantes está nos 43, registados em três edições: 2008 (Belgrado), 2011 (Dusseldorf) e 2018 (Lisboa).

Este ano, para lá das questões financeiras, há razões de peso a justificar ausências. A conservadora Hungria, por exemplo, está em declarada rota de colisão com a exuberância que a Eurovisão tem vindo a assumir.

“A Hungria participou pela última vez em 2019, na mesma semifinal de Conan Osíris. Joci Pápai, que já era um repetente na Eurovisão, ficou muito perto da final, mas não passou. Depois, a Hungria retirou-se do certame e uma das razões invocadas foi a de que o festival se tornara uma parada LGBT, e o país não compactuaria com isso.”

Tiago André Lopes recua até 2012 para recordar outra manifestação de grande conservadorismo em relação ao festival. “O anfitrião foi o Azerbaijão, país conservador, de maioria islâmica xíita, como o Irão”, onde cerca de 15% da população é de etnia azeri. “O Irão considerou que o Azerbaijão estava a perverter a sua alma ao receber um espetáculo desta natureza. Em protesto, o embaixador retirou-se e a embaixada iraniana em Baku fechou portas durante o mês de maio para não ser contaminada pelo espírito da Eurovisão.”

4. Em Liverpool, haverá temas com letras políticas?

“A canção da Ucrânia não tem nada que ver com guerra, mas alguns países levam canções cujas letras estão, claramente, contaminadas pela guerra”, diz Tiago Lopes. “A Croácia faz uma paródia aos ditadores.”

Em palco, cinco homens apresentam-se ao estilo de um espetáculo de travestismo e cantam sobre uma “mamã” que “comprou um trator” e “beijou um idiota”, numa alusão implícita ao trator oferecido pelo Presidente bielorrusso, Alexander Lukashenko, ao homólogo russo, Vladimir Putin, a 7 de outubro de 2022, como presente pelo seu 70.º aniversário.

“Toda a atuação do grupo croata [Let 3] é muito bizarra e é uma crítica direta a esses dois ditadores.” Com um histórico de provocações, a banda confirmou, numa entrevista, tratar-se de “uma canção contra a guerra. O nosso único desejo é que a guerra acabe o quanto antes e que a paz e o amor emerjam.”

Outra música política é a balada da Suíça, “Watergun”. “Remo Forrer canta sobre o modo como passamos de brincar às guerras, em crianças, para de repente estarmos numa guerra, e numa guerra real onde não se brinca com pistolas de água.”

Carlos e Camila, os monarcas britânicos, visitaram o palco da Eurovisão, a M&S Bank Arena de Liverpool PHIL NOBLE / AFP / GETTY IMAGES

5. Grécia e Chipre vão continuar a dar 12 pontos um ao outro?

É um clássico na Eurovisão que até já motiva apupos dos fãs na plateia. Desde que Chipre se estreou no certame, em 1981, cabem nos dedos de uma mão as vezes em que Grécia e este país insular do Mediterrâneo não deram pontuação máxima ao outro. Na origem desta preferência está a invasão turca da ilha de Chipre, em 1974, que dividiu o território numa parte grega (Estado soberano, membro da UE e com direito a participar no festival) e numa zona turca (um país que só a Turquia reconhece).

“Grécia e Chipre não são caso único”, diz Tiago Lopes. “Roménia e Moldávia, tradicionalmente, também partilham votos. Mesmo o bloco nórdico — Dinamarca, Noruega, Suécia, Finlândia e Islândia — tende a trocar a votação máxima entre si. E também acontecia entre a Rússia e Bielorrússia.” Há também solidariedade natural entre países do Báltico ou dos Balcãs.

Há dez anos, a Rússia protagonizou um dos episódios mais indigestos da história da Eurovisão. No festival de Malmö, na Suécia, o júri russo deu 12 pontos à canção do Azerbaijão (que ficaria em segundo lugar), enquanto os azeris não atribuíram pontos à música russa (que ficou em quinto).

A questão escalou a hierarquia e chegou ao primeiro plano da política. Em Moscovo, o ministro dos Negócios Estrangeiros, já então Sergei Lavrov, disse que foram “roubados 10 pontos” à Rússia. “Esta ação ultrajante não ficará sem resposta”, prometeu. Em Baku, o Presidente Ilham Aliyev ordenou uma investigação aos zero pontos dados à Rússia e uma recontagem de votos.

Esta lógica de blocos regionais e o impacto que tem nas votações levaram Ancara a bater com a porta da Eurovisão. “A Turquia está contra o sistema de votação, porque considera que, tal como Portugal, é prejudicada por ter poucos vizinhos.” A última participação turca foi em 2012, pela voz de um cantor judeu.

A cidade que acolhe a Eurovisão viu nascer The Beatles, em 1960 CHRISTOPHER FURLONG / GETTY IMAGES

6. Há países árabes a participar na Eurovisão?

Atualmente não, mas já houve e poderá voltar a haver. Entre os 56 países membros da EBU, há sete árabes: Argélia, Jordânia, Líbia, Egito, Tunísia, Marrocos e Líbano. Apenas uma vez um deles participou na Eurovisão: Marrocos, em 1980, em Haia. Em 19 participantes, a canção de Samira Bensaid ficou em penúltimo lugar.

“Não correu muito bem, mas, curiosamente o espetáculo em Marrocos, e em particular na Argélia, é muito popular”, diz o professor. “A saída de Marrocos teve um efeito negativo para a Turquia. No ano em que participou, Marrocos, obviamente, deu-lhe 12 pontos.” Além da solidariedade islâmica, “as sonoridades marroquina e turca estão muito próximas”.

7. Há um padrão de votação entre Portugal e Espanha?

“Há um padrão enviesado a favor de Espanha. Tradicionalmente, Portugal dá votações altas, sem dar votações máximas.” A última edição da Eurovisão confirmou a desafinação entre os dois países ibéricos: Madrid deu a “Saudade, saudade”, de Maro, 4 votos do público e 0 do júri. Lisboa deu a “SloMo”, de Chanel, 10 votos através do televoto e 12 do júri. “É mais comum Portugal dar votação alta a Espanha do que o contrário.”

É também frequente “Portugal dar votações máximas a países de leste, porque as comunidades de leste em Portugal mobilizam-se para votar. Moldávia, Roménia, Bulgária já tiveram, várias vezes, votações muito significativas”.

Nos últimos anos, Portugal e Espanha não têm beneficiado dos votos de países onde têm comunidades migrantes significativas. “Andorra é um país muito pouco regular no que troca a Eurovisão, o que é pena para Portugal, porque, por norma, Andorra vota significativamente em Portugal e Espanha, que são as comunidades maiores.”

O mesmo se passa com o Luxemburgo, onde a maior comunidade estrangeira é a portuguesa: este país, que já venceu a Eurovisão cinco vezes, participou pela última vez em 1993.

Mimicat, a representante portuguesa, durante um ensaio, em Liverpool ANTHONY DEVLIN / GETTY IMAGES

8. Qual o único Estado que a EBU não pressiona para ir à Eurovisão?

O Vaticano. É membro da EBU através da Radio Vaticana, mas nunca arriscou uma participação no festival. “Seria complicado para o Vaticano escolher uma canção e estar ao lado de vários tipos de atuações que desafiam os limites e que já levaram a várias reclamações”, diz Tiago Lopes.

Um exemplo aconteceu na Eurovisão de Lisboa, em 2018. “Nesse ano, pela primeira vez, foram dados os direitos de transmissão à China, que lhe foram retirados após a primeira semifinal. A canção da Irlanda tinha uma coreografia em palco que retratava um amor homossexual entre dois homens. Houve um corte na emissão chinesa e a canção não passou. Quando a imagem voltou, já estava outra em palco. A EBU não gostou desta discriminação com base na sexualidade e retirou os direitos de emissão à China para a segunda semifinal e para a grande final.”

Outro caso polémico ocorreu no evento de Malmö, em 2013. “A canção da Finlândia terminava com um beijo entre duas mulheres. Houve vários países — Rússia, Arménia, Azerbaijão — que reclamaram contra esse beijo.”

9. Porque há cinco países com entrada direta na final?

São conhecidos como os Big Five (cinco grandes) e estão para a Eurovisão como os cinco membros permanentes estão para o Conselho de Segurança das Nações Unidas. Alemanha, França, Itália, Reino Unido e Espanha não disputam as semifinais e têm lugar assegurado na final de cada festival, com o anfitrião de cada ano.

Nenhum dos cinco foi o país que mais vezes ganhou a Eurovisão: França e Reino Unido venceram cinco vezes, Itália três e Alemanha e Espanha duas vezes. A campeã do festival é a Irlanda (7 vezes), seguida da Suécia (6).

“Os Big Five são uma necessidade”, explica Tiago Lopes. “A EBU precisa de ter estados que contribuam mais do que os outros. A Eurovisão é um espetáculo pesado do ponto de vista financeiro e, apesar de parte significativa dos custos ficar para o canal de televisão do país anfitrião, há gastos que ficam do lado da EBU.”

A passagem direta para a final pode não ser uma passadeira para os Big Five. “Uma vez que não atuam nas semifinais, curiosamente, acabam por ficar prejudicados. Como estão automaticamente na final, não passam pelo filtro, não passam pelas discussões que durante várias semanas animam os fãs. Acabam por gerar menos interesse e ter mais dificuldade para atrair a atenção na final. É uma benesse que pode virar-se um bocadinho contra eles.”

Nos últimos anos, Reino Unido e, sobretudo, Alemanha têm marcado presença nos últimos lugares: em 2015, os alemães receberam 0 pontos e em 2021 foi a vez dos britânicos ficarem em branco.

10. Haverá invasões de palco em Liverpool?

Não há análise política que consiga prever essas surpresas. Na edição de Lisboa, a invasão de palco durante a atuação da britânica SuRie (cerca do minuto 1:40) foi o maior percalço que manchou a realização da RTP.

O invasor, que conseguiu arrancar o microfone das mãos da cantora britânica, autodenomina-se Dr ACactivism e tem currículo em matéria de interrupção de grandes eventos de palco. No ano anterior, por exemplo, este “filósofo, ativista e DJ/MC sedeado em Londres”, como se apresenta n rede social Twitter, tinha invadido o palco durante a final do concurso “The Voice”, no Reino Unido.

Em 2010, em Oslo, um intruso que invadiu o palco durante a atuação de Espanha quase se tornou um verdadeiro figurante, tal foi a demora dos seguranças em tirá-lo dali. Jaume Marquet i Cot, catalão nascido em 1976, era já experiente na “arte”, com investidas no palco dos prémios Goya, no court de Roland Garros, numa pista de Fórmula 1 e em vários relvados de futebol.

Uma das mais célebres aconteceu em Lisboa, durante a final do Euro 2004, entre Portugal e a Grécia. “Jimmy Jump”, como é popularmente conhecido, correu pelo relvado do Estádio da Luz com uma bandeira da Catalunha na mão e arremessou-a contra a cara de Luís Figo. O futebolista português protagonizara a maior das traições, na opinião de muitos adeptos, ao trocar o Barcelona pelo Real Madrid.

(FOTO PRINCIPAL Na impossibilidade da Ucrânia organizar a Eurovisão, por vencer em 2022, a edição deste ano fica a cargo do segundo classificado, o Reino Unido PETER KNEFFEL / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de maio de 2023. Pode ser consultado aqui

John Lennon nasceu há 82 anos. O seu caráter inspira ‘telas de contestação’ por todo o mundo

A promoção da paz tornou-se a maior luta de John Lennon, sobretudo nos últimos anos de vida. Hoje, em territórios onde a paz social é uma miragem, como Hong Kong e Myanmar, cidadãos revoltados contra quem os governa expressam as suas frustrações e aspirações em pequenos papeis coloridos que afixam na via pública. Chamam-lhes ‘paredes Lennon’

Imagine there’s no countries
(Imagina que não há países)

It isn’t hard to do
(Não é difícil faze-lo)

Nothing to kill or die for
(Nada por que matar ou morrer)

And no religion, too
(E também nenhuma religião)

Imagine all the people
(Imagina todas as pessoas)

Livin’ life in peace
(A viver a vida em paz)

(Excerto de “Imagine”, de John Lennon)

Década após década, geração atrás de geração, “Imagine” é uma canção que não perde o seu caráter icónico. Mais de 50 anos depois de ter sido lançado, este tema imortalizado por John Lennon continua a mobilizar vozes dos cinco continentes em apelos uníssonos a um mundo de paz, sem materialismo, religiões ou fronteiras a separar os povos.

Quando este hino ao pacifismo foi lançado, em 1971, já após a separação dos Beatles, o seu autor e intérprete tinha apenas 31 anos. John Winston Lennon faria este domingo 82 anos.

Nascido em Liverpool, a 9 de outubro de 1940, o mais carismático dos fab four ‘sobreviveu’ à própria morte por força da sua música e também do seu espírito pacifista e rebelde, que continua a inspirar sucessivas gerações incomodadas com o curso do mundo. Nos últimos anos, as chamadas ‘paredes Lennon’ têm sido mostras dessa influência.

As ‘paredes Lennon’ mais não são do que paredes físicas, muros ou outras estruturas sólidas na via pública, onde transeuntes deixam post-its de todas as cores com mensagens de caráter político e social, exigências àqueles que os governam, apelos à democracia e ao respeito pelos direitos humanos ou slogans de incentivo à continuação dos protestos.

Foram uma ‘arma’, por exemplo, nos protestos pró-democracia em Hong Kong, a região administrativa especial chinesa em luta contra a erosão da democracia e a acelerada integração na República Popular da China.

Em Hong Kong, “a primeira ‘parede’ surgiu no local dos protestos que ocorreram na zona Central [o centro financeiro do território]. Uma delas recebeu esse nome e a imprensa difundiu-o”, recorda ao Expresso Evan Fowler, nascido no território há 42 anos.

O termo pegou e passou a ser usado de forma generalizada para identificar qualquer espaço usado pelos habitantes de Hong Kong — não só nos locais dos protestos, mas por todo o território — para expressarem, por escrito, a sua oposição à crescente influência do regime de Pequim sobre o território.

“Cada campus universitário tinha ‘paredes Lennon’ muito dinâmicas. Recordo-me também de ver muitas em passagens subterrâneas”, diz o cofundador da publicação digital Hong Kong Free Press.

Uma ‘parede Lennon’ no interior de um restaurante de Hong Kong ISAAC LAWRENCE / AFP / GETTY IMAGES

“As ‘paredes Lennon’ apareceram pela primeira vez em 2014, no início dos protestos Occupy”, continua Fowler, referindo-se à campanha de desobediência civil liderada por estudantes — também conhecida por Revolução dos Guarda-Chuvas — que deu origem a manifestações participadas por centenas de milhares de pessoas.

“A ideia de escrever mensagens em papel apareceu organicamente em locais de protestos estudantis. Ter sempre consigo e usar post-its coloridos para escrever lembretes ou apontamentos durante o estudo é uma prática muito comum entre os estudantes de Hong Kong, tanto no ensino secundário como universitário”, diz Fowler.

“No primeiro dia do protesto de 2014, lembro-me de vê-los a aparecer espontaneamente em locais de protesto, basicamente em qualquer lugar que pudesse ser usado como um quadro de mensagens. Nessa altura, os manifestantes estavam desesperados por transmitir as suas razões de queixa àqueles que consideravam estarem apáticos e também aos órgãos de informação internacionais que sentiam estar a ignorar os problemas que os cidadãos de Hong Kong enfrentavam.”

Os apelos tiveram especial eco na ilha vizinha de Taiwan, igualmente assediada por Pequim de forma crescente.

https://twitter.com/lnachman32/status/1367758109834244099

À medida que se iam multiplicando, as ‘paredes Lennon’ passaram também a ser um alvo da polícia de Hong Kong, orientada em fazer desaparecer das ruas toda e qualquer posição antigovernamental.

No Parque John Lennon, em Havana (Cuba), uma escultura do músico, do artista cubano José Villa Soberón, espera por companhia num banco de jardim CHRISTOPHER HUGHES / WIKIMEDIA COMMONS

Este tipo de espaços prolifera noutras zonas do mundo envoltas em convulsões populares, como Myanmar. Curtas mensagens em papel colorido surgem, muitas vezes, em paragens de autocarro e pontes.

É o caso das imagens abaixo, numa travessia sobre o rio Irrawaddy, no estado de Kachin (norte), com posições contra o golpe militar de 1 de fevereiro de 2021 que afastou a líder pró-democracia Aung San Suu Kyi do poder.

https://twitter.com/MayWongCNA/status/1366261558993559555

Mas Lennon porquê?

Na origem deste tipo de ‘telas de contestação’ está a ‘parede Lennon’ original, localizada em Praga, a capital da Chéquia, na pequena Praça do Grão Priorado, em frente à Embaixada de França. Nos anos 1960, este muro — propriedade da Ordem Militar Soberana de Malta — era decorado com poemas e mensagens de amor, escritas a giz e em contexto de passeios românticos.

As inscrições de cariz político não abundavam, naquele país comunista, exceção feita as épocas de agitação, como em agosto de 1968, quando cinco países do Pacto de Varsóvia, liderados pela União Soviética, invadiram a Checoslováquia.

Uma das primeiras pinturas sobre John Lennon, na parede que haveria de ficar batizada com o seu nome, em Praga (foto de 1981) DAVID SEDLECKY / WIKIMEDIA COMMONS

O primeiro desenho alusivo a John Lennon remonta a 1980 (o autor do graffiti é desconhecido). Nesse ano, a 8 de dezembro, o mundo chocou-se com a morte do carismático músico britânico, assassinado junto à entrada do luxuoso e centenário edifício Dakota, onde ele vivia com Yoko Ono, em Nova Iorque.

À época, vários países da Europa de Leste — como a então Checoslováquia —, satélites da União Soviética, lutavam para se libertarem dos tentáculos de Moscovo. Lennon e as suas músicas eram, neste contexto, símbolos da liberdade a que estes países estavam privados.

Escultura em bronze da cabeça de John Lennon com um olho coberto por uma flor, numa rua de Vilnius, capital da Lituânia GO VILNIUS

O espaço tornou-se uma tela ao ar livre, onde os visitantes podiam expressar preocupações, alertar para causas globais e os turistas podiam deliciar-se com uma galeria em permanente construção. A própria imagem de Lennon foi mudando de feições e mesmo sendo tapada por novas camadas de criatividade e contestação.

A aparência geral do muro já mudou muitas vezes. Na noite de 17 de novembro de 2014 — dia em que, 25 anos antes, começara a Revolução de Veludo, que levou ao fim do comunismo no país —, estudantes de arte pintaram o muro de branco, deixando visível uma curta mensagem no meio: “O muro acabou”. A Ordem de Malta apresentou queixa por vandalismo e os estudantes retrataram-se.

Quase cinco anos depois, a 22 de abril de 2019, no Dia da Terra, foi a vez do grupo ambientalista Extinction Rebellion branquear a parede, deixando à vista apenas porções da pintura que lá estava para formar a expressão “Klimatická nouze” (emergência climática, em checo).

Menos de um mês após a Rússia invadir a Ucrânia, surgiu no muro de Praga um retrato de Vladimir Putin com traços de Adolf Hitler MICHAEL HEITMANN / GETTY IMAGES

Já este ano, a presidência checa da União Europeia promoveu a iniciativa “The Freedom Wall” que levou artistas de países membros e também da Noruega e Ucrânia a redecorar o muro com pinturas alusivas ao tema “Liberdade e Energia”.

Um dos participantes, o artista plástico português Hugo Lami, licenciado em Pintura pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa, deixou no muro a imagem de um astronauta com o planeta Terra em forma de bola de cristal. “Para mim, o espaço é liberdade, já que não tem fronteiras e pertence a todos nós”, disse, em declarações à Rádio Prague International.

Sem critérios artísticos, muitas vezes a parede foi vandalizada com desenhos desrespeitosos. Em outubro de 2019, na sequência de queixas, a parede foi renovada e novas regras foram adotadas: não é mais permitido pintar a parede com spray, só são permitidas inscrições nas zonas brancas, a lápis ou giz, e está proibida a presença de artistas de rua.

Em julho de 2021, abriu portas, na capital checa, o museu The Lennon Wall Story, dedicado ao local e aos Beatles em geral. A parede física fica a dois minutos a pé — em constante mutação, mas com a mensagem de sempre na sua essência: ‘Façam o amor, não a guerra’. John Lennon não diria melhor.

(FOTO PRINCIPAL A imagem de John Lennon, no mítico muro que o homenageia, em Praga, vai-se adaptando aos desafios do mundo, como a pandemia MICHAL CIZEK / AFP / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de outubro de 2022. Pode ser consultado aqui

Dar voz à causa da pobreza com Bono Vox por inspiração

A pandemia de covid-19 pode condenar 100 milhões de pessoas a uma vida de pobreza extrema. “É fundamental que qualquer futura vacina seja disponibilizada para todos os países ao mesmo tempo”, alerta ao Expresso um voluntário português na ONE, a organização cofundada por Bono Vox, o carismático vocalista dos U2 envolvido há décadas no combate às desigualdades sociais

Para a esmagadora maioria dos portugueses, €1,70 no bolso não é dinheiro com que se conte para fazer grandes compras — são trocos. Para mais de 700 milhões de pessoas em todo o mundo, contudo, é todo o dinheiro que possuem para (sobre)viverem durante um dia.

“As Nações Unidas definem como pobreza extrema uma situação em que alguém vive com menos de 1,90 dólares por dia (cerca de €1,70)”, explica ao Expresso Rúben Castro, madeirense de 29 anos que dedica parte do seu tempo ao combate à pobreza. Para uma família de quatro, o orçamento diário não vai além de €6,80. “Em março de 2020 havia 737 milhões de pessoas a viver nestas condições”, continua. “Isto corresponde a cerca de 10% da população do planeta.”

Rúben Castro trabalha como voluntário na ONE, organização cofundada pelo músico Bono Vox, carismático vocalista dos U2, que pugna pela erradicação da pobreza extrema no mundo. A batalha ia no bom caminho, com mais de 1000 milhões de pessoas resgatadas de vidas miseráveis desde 2000.

A esse ritmo, a ONE acredita que seja possível sonhar com o fim da pobreza extrema em 2030. “Era, era possível”, corrige Rúben, “antes da pandemia”. O Banco Mundial fez contas e, após considerar diferentes cenários de evolução da pandemia, estima que a doença possa empurrar mais 71 a 100 milhões de pessoas para um quotidiano de pobreza extrema.

Do total de 737 milhões de pessoas em situação de pobreza extrema antes da pandemia, cerca de 420 milhões estavam na África Subsariana. Segundo o Banco Africano de Desenvolvimento, a pandemia pode fazer o número aumentar entre 28 e 49 milhões.

Trinta e cinco anos depois do “Live Aid” — o megaconcerto televisionado por mais de 1000 milhões de espectadores, a 13 de julho de 1985, com o qual o mundo do rock tentou sensibilizar para a fome em África —, o continente permanece vulnerável ao problema.

Então um dos artistas a subir ao palco do Estádio de Wembley, em Londres (Reino Unido), repleto com 72 mil pessoas, hoje, aos 60 anos, Bono continua a travar a luta através da ONE, batizada com o título de um dos mais emblemáticos temas da banda irlandesa, lançado em 1991 no álbum “Achtung Baby”.

One”, a canção, fala de amor, perdão e de uma vida que tem de ser aproveitada. O enorme êxito do tema resgatou os U2 de uma fase decadente e relançou a banda para uma nova vida de êxitos. Com o mesmo espírito, a ONE luta por providenciar dignidade aos mais pobres entre os pobres.

Rúben Castro, um madeirense de 29 anos, desempenha o cargo de “jovem embaixador da ONE”, desde novembro de 2019 ONE

“Desde miúdo que acho que o lugar onde nascemos não devia definir a forma como vivemos. As desigualdades sociais, o facto de morarmos num país em guerra ou num sítio onde o elevador social muitas vezes não funciona ou não existe, tudo isto continua a chatear-me imenso”, confessa Rúben Castro. “Integrar a ONE é uma maneira de lutar e de dar o meu contributo para que esse impacto nas pessoas seja minimizado.”

Além da pobreza extrema, a outra grande frente de combate da ONE é a erradicação de doenças tratáveis. O português diz que é importante “não repetir os erros do passado”, nomeadamente não desguarnecendo o processo de vacinação.

Em 2019, recorda, durante o surto de ébola na República Democrática do Congo, o número de pessoas que morreram de sarampo foi o dobro das mortes de Ébola. “Isso aconteceu devido à interrupção dos cuidados de saúde e dos programas de vacinação de rotina.”

Numa campanha recente em que Rúben deu a cara, a ONE alertou para um aspeto crucial do combate à pandemia: “É fundamental que qualquer futura vacina para a covid-19 seja disponibilizada a todos os países ao mesmo tempo”, defende. “A igualdade deve estar no âmago da resposta global a esta crise. Nenhum de nós estará em segurança até que todos estejamos seguros.”

Aliviar a pressão sobre os países mais vulneráveis passaria também por um perdão de dívida. “Mesmo os melhores sistemas de saúde do mundo tiveram e continuam a ter dificuldade em fazer face a esta pandemia. Imagine-se nos países menos desenvolvidos… o perdão da dívida ajudaria a fazer face à pandemia e à recuperação económica. Se não tiverem de gastar dinheiro a pagar dívidas ou empréstimos, podem focar-se nessas áreas.”

Rúben colabora com a ONE desde novembro passado, a partir do escritório da organização em Bruxelas, cidade onde — arrumada a licenciado em Ciências da Cultura na Universidade da Madeira — o português está a estagiar no âmbito de um mestrado em jornalismo.

O polo da ONE na capital belga está encarregue dos contactos com a União Europeia, que é o maior doador a nível mundial. Por essa razão, a organização acompanhou atentamente as recentes negociações sobre o quadro orçamental para o período 2021-2027 sem, no fim, deixar de sentir um certo desapontamento.

“É verdade que se trata de um acordo histórico para a Europa, mas não é um bom acordo para os parceiros da UE”, comenta Rúben. “O orçamento para ações externas diminuiu em quase €20 mil milhões, uma redução de 17% face à proposta da Comissão de maio passado.” Para a ONE, investir nos parceiros da UE é não só a coisa certa a fazer como também a mais inteligente.

“Estamos desapontados. A pandemia demonstrou que só através da união e de um trabalho conjunto é possível resolvermos os desafios que enfrentamos a nível mundial. O acordo mostra falta de ambição por parte da UE e um sinal preocupante de falta de solidariedade global face ao momento atual. A longo prazo, estes cortes irão custar mais à Europa.”

Fundada em 2004, a ONE tem escritórios em Abuja, Berlim, Bruxelas, Dacar, Joanesburgo, Londres, Nova Iorque, Otava, Paris e Washington. Não aceita doações de governos nem de particulares: financia-se recorrendo à filantropia (como as Fundações Bill e Melinda Gates e a Bloomberg Philanthropies), de empresas como a Google e a Coca-Cola e de personalidades com influência política. A sua presidente é Gayle E. Smith, antiga assessora dos presidentes norte-americanos Bill Clinton e Barack Obama.

“A ONE não pede contribuições. No máximo, pede que as pessoas assinem as suas petições para que, quando levarmos propostas à Comissão Europeia ou a outros atores, possamos mostrar que tempos pessoas connosco e dizer que determinado assunto é importante para estas pessoas, ‘por isso oiçam-nas’.”

Rúben considera que, para ser escolhido como “jovem embaixador” da ONE, foi importante o seu conhecimento dos meandros do Parlamento Europeu — onde trabalhou como assistente de uma eurodeputada portuguesa —, a experiência enquanto dirigente na associação académica na Madeira, voluntariados em diferentes áreas e a capacidade de trabalhar e de saber estar em equipa, que desenvolveu com a prática do andebol.

Em Portugal deixou uma carreira como semiprofissional no Madeira SAD, mas o bichinho do andebol acompanhou-o na sua aventura belga. Ingressou no United Brussels Handball Club e já celebrou uma subida de divisão. “Desde miúdo tive sempre uma agenda muito preenchida, fazia imensas coisas ao mesmo tempo, estudava e trabalhava aos fins de semana. Esta maneira de gerir o tempo e de gerir prioridades foi importante”, diz o ponta-esquerda.

De Rúben, a ONE espera que seja um rosto e uma voz no movimento global de sensibilização para o problema da pobreza. “Nos seus concertos, o Bono faz questão de falar do tema. Numa escala um bocadinho não comparável”, conclui com humor, “olhando para ele e para mim, ambos damos voz à causa.”

(FOTO PRINCIPAL O músico irlandês Bono Vox é o principal mentor e inspirador da campanha ONE que busca o nome a um grande êxito dos U2 KAY NIETFELD / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de julho de 2020. Pode ser consultado aqui

Sem boicotes mas com danos

Os múltiplos apelos à não-participação no festival em Israel não tiveram eco junto dos participantes. Mas, fruto das discussões geradas, o país já não é visto da mesma forma

O Festival Eurovisão da Canção em Israel tem uma baixa anunciada por razões políticas: a Ucrânia. A ausência não decorre, porém, dos múltiplos apelos ao boicote feitos por ativistas da causa palestiniana. Simplesmente, a cantora escolhida para representar a Ucrânia recusou-se a cancelar concertos que tinha agendados… na Rússia, o que levou a televisão estatal ucraniana a cancelar a sua participação. Menos mediático e mobilizador do que o conflito israelo-palestiniano, o diferendo entre as ex-repúblicas soviéticas faz mais danos a um evento que Israel quer organizar sem mácula.

“Apesar de nenhum cantor ter desistido, em cada país houve apelos por parte do povo em geral e de músicos e antigos participantes do festival para que cancelassem a participação e se recusassem a dançar sobre as sepulturas de Al-Sheikh Muwannis, que foi alvo de limpeza étnica”, diz ao Expresso o ativista israelita Ronnie Barkan. Esta antiga aldeia palestiniana foi abandonada dois meses antes da guerra da independência (1948), por pressão de grupos armados judaicos. O Centro de Convenções de Telavive — que acolhe a Eurovisão entre terça-feira e sábado — fica sobre as ruínas da aldeia.

O israelita realça, entre as ações de pressão desenvolvidas sobre os concorrentes, a petição assinada por 8% da população da Islândia a pedir um boicote ao evento. Iniciativa no mesmo sentido na República da Irlanda foi apoiada pelo então presidente da Câmara de Dublin. Em Portugal, o apelo feito a Conan Osíris por Roger Waters (Pink Floyd) pôs o assunto na agenda noticiosa.

“A Eurovisão nunca foi uma plataforma para criar consciência política”, continua Barkan. “É vista, mesmo pela indústria musical, como mero espetáculo. Dito isto, é interessante notar que as movimentações e negociações em torno da Eurovisão de 2019 nada têm de apolítico. Tudo o que aconteceu desde a participação de Israel em Lisboa, no ano passado, foi assolado pelo apartheid israelita e pelos seus numerosos crimes contra o povo palestiniano. Isto inclui a celebração de Netta Barzilai, vencedora em 2018, ao mesmo tempo que Israel assassinava 61 civis no gueto de Gaza, horas antes, mas sem estragar a festa.”

“É cada vez mais claro que atuar hoje em Israel é análogo a atuar em Sun City antigamente”

Apesar das garantias dadas à União Europeia de Radiodifusão de que não condicionaria os vistos às ideias políticas dos visitantes, o Governo de Telavive fez saber esta semana, através de Emmanuel Nahshon, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que não hesitará em fechar a fronteira a “ativistas anti-Israel cujo único objetivo é perturbar o evento”.

Soft power musical

O Estado hebraico quer conter eventuais embaraços, mas o receio de que algum concorrente aproveite a sua atuação, em direto para milhões de telespectadores, para fazer uma declaração política e virar os holofotes para o drama palestiniano é real. Uma ameaça séria é a banda Hatari, que representa a Islândia. Crítica da realização do festival em Israel, afirmou numa entrevista, já em Telavive, que Israel é um Estado de “apartheid”. Afirma que o grupo vive uma situação “de conflito” por estar ali, naquele contexto. “Mas enquanto participantes temos o poder de abordar o absurdo de haver um concurso como este, fundado no espírito da unidade e da paz, num país marcado por conflitos e pela desunião.”

“Nunca é tarde para os participantes, cantores e fãs ganharem consciência e recusarem-se a conferir legitimidade a um regime supremacista e criminoso, através da sua participação”, comenta o ativista Barkan. “Alguns grupos podem querer expressar uma forma suave de divergência, o que é compreensível, mas não suficiente. É cada vez mais claro que atuar em Israel hoje é análogo a atuar em Sun City, na África do Sul, antigamente.”

Em Telavive, os primeiros ensaios foram “saudados” por 700 rockets lançados de Gaza

Sun City era um grande casino para brancos na África do Sul, nos anos do apartheid. Apesar do boicote cultural apoiado pela ONU, Frank Sinatra, Julio Iglesias ou os Queen, e mesmo negros como Ray Charles, Tina Turner e Dionne Warwick não resistiram aos cachês. Em 1985, quando foi gravado “We are the world”, contra a fome na Etiópia, outro coletivo de artistas deu voz a “I ain’t gonna play Sun City” (Não vou atuar em Sun City).

Com uma imagem cada vez mais associada à África do Sul racista, seja pela forma como segrega os palestinianos da Cisjordânia (sob ocupação militar e alvo de um projeto colonial) e da Faixa de Gaza (sujeitos a um bloqueio por terra, mar e ar) seja pelo tratamento que dá aos seus cidadãos de cultura árabe (cidadãos de segunda, sob certas leis), Israel busca em eventos como a Eurovisão montras para revelar normalidade.

“Considero a Eurovisão em Israel um instrumento de soft power”, diz ao Expresso o cientista político Joseph S. Nye, pai do conceito. “Soft power é a capacidade de se conseguir o que se quer através da atração, em detrimento da coação ou do pagamento. Na medida em que o evento torna Israel mais atrativo aos olhos de outros, isso melhora o seu soft power.”

Em Telavive, os primeiros ensaios foram “saudados” por uma chuva de 700 rockets lançados de Gaza, que mataram quatro israelitas. A Jihad Islâmica disse que a intenção é “impedir que o inimigo consiga montar qualquer festival que vise prejudicar a narrativa palestiniana”. Em Gaza, Haidar Eid é presença ativa nos protestos contra o asfixiante cerco israelita. O Expresso pergunta-lhe se está desiludido por não haver boicotes ao festival. “Nem por isso. Há outras conquistas”, diz. Envia uma imagem divulgada pela organização Jewish Voice for Peace com “cinco razões por que a Eurovisão é um flop”: bilhetes por vender, hotéis por esgotar, eventos alternativos em todo o mundo, milhares de assinaturas  em petições e recorde de artistas cientes de que atuar em Israel é aprovar o apartheid.

(IMAGEM Logotipo de uma  campanha internacional de apelo ao boicote da Eurovisão em Israel BDS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 11 de maio de 2019

Apelos há muitos, boicotes à Eurovisão não há nenhum

Roger Waters pediu a Conan Osíris que boicote a Eurovisão em Israel. O fundador dos Pink Floyd, um destacado ativista da causa palestiniana, tentou sensibilizar o artista português para a ocupação da Palestina e o “apartheid” ali imposto. Mas a dois meses do Festival, a disputa entre a Rússia e a Ucrânia fez mais danos ao evento do que o conflito israelo-palestiniano…

Roger Waters, fundador dos Pink Floyd, junto ao “muro da Cisjordânia”, na região de Belém, a 21 de junho de 2006. “Stop apartheid”, lê-se AHMAD MEZHIR / REUTERS

Acolher um evento como a Eurovisão pode ser uma faca de dois gumes para um Estado como Israel. Por um lado, confere-lhe uma montra única de promoção do país, já que o evento é visto por centenas de milhões de pessoas. Por outro, tem inerente uma grande dose de risco dada a possibilidade de se registarem boicotes em protesto contra a ocupação israelita da Palestina.

A dois meses da final de Telavive – agendada para 18 de maio – não há, até ao momento, qualquer boicote anunciado. Mas desde domingo que Portugal está na linha de mira do movimento internacional BDS que promove formas de “Boicote, Desinvestimento e Sanções” contra Israel. Na sua página no Facebook, Roger Waters, fundador dos Pink Floyd e um dos mais destacados ativistas da causa palestiniana, publicou uma “carta aberta a Conan Osíris e aos outros 41 finalistas da Eurovisão”.

“Amigos meus disseram-me que Conan Osíris poderia juntar-se à vasta rede de artistas que estão atentos ao apelo palestiniano de boicote à Eurovisão na cidade de ‘apartheid’ de Telavive.” O músico inglês leu a tradução da letra de “Telemóveis”, apreendeu a mensagem “bem profunda” sobre a vida, a morte e o amor e dirigiu-se ao artista português. “[Há dez dias], escrevi-lhe e sugeri que agora ele tinha uma oportunidade para falar da vida sobre a morte e também de direitos humanos sobre erros humanos.”

Na carta, “expliquei que a Eurovisão poderia ser um ponto de inflexão [na situação de ‘apartheid’ em que vivem os palestinianos], pedi a Conan que se erguesse. Infelizmente, até agora, não há resposta de Conan”. À SIC, o português confirmou que recebeu o email, que o leu, mas escudou-se a comentar a abordagem do músico britânico.

Na bolsa das apostas, o inesperado protagonismo de Conan Osíris não o fez mais favorito à vitória do que até então. Esta segunda-feira, estava em 10º lugar quer no EurovisionWorld.com quer no OddsChecker.com — ambos os rankings são liderados pela Holanda, seguida pela Rússia e pela Suécia.

A banda Hatari, que representará a Islândia, tem sido crítica da realização da Eurovisão em Israel FOTO RUV

A ausência de boicotes não significa que as autoridades de Telavive possam confiar num evento sem casos políticos. A perspetiva de algum artista aproveitar o direto para expressar apoio aos palestinianos é real e, com todos os concorrentes já apurados, Telavive tem um receio particular: a banda Hatari, que representará a Islândia com o tema “O ódio prevalecerá”.

Há duas semanas, numa entrevista no Canal 13 de Israel, a banda techno-punk não iludiu a questão: “Houve muita pressão na Islândia para que a competição fosse boicotada. Nós temos sido críticos em relação à realização da competição em Israel, e o facto de a Islândia ter votado em nós significa que concordam com a nossa agenda de manter viva uma discussão muito importante.” A banda — que está em 7º lugar no ranking dos favoritos — não desvendou o que planeia fazer durante a atuação. Porém, “julgamos que não haverá uma bandeira palestiniana no palco”.

Atento à “ameaça”, o Ministério dos Assuntos Estratégicos de Israel montou uma “task force” interministerial para lidar com eventuais críticas de teor político que emirjam de delegações ao festival e que possam constituir uma violação da “Lei de Prevenção de Danos ao Estado de Israel através de Boicote”, de 2011. A organização Shurat HaDin, que representa judeus vítimas de terrorismo, apelou a que a banda seja proibida de entrar no país.

“Não vemos razão para que não sejam autorizados a entrar”, reagiu Jon Ola Sand, supervisor executivo do Festival. “Temos um diálogo estreito com os governantes de Israel, e eles sabem que isso pode rapidamente voltar-se contra eles e contra os organizadores se for recusado visto a alguém.” O “Sr. Eurovisão” acrescentou que a televisão pública islandesa (RUV) está ciente das consequências que podem advir de uma provocação política em palco. As regras da União Europeia de Radiodifusão (EBU, na sigla inglesa) não permitem letras, discursos ou gestos de natureza política e comercial durante a Eurovisão.

Dos 42 membros da EBU com participação prevista na Eurovisão, um saltou fora por razões políticas — não relacionadas com Israel. A Ucrânia, vencedora em 2004 e 2016, e onde Salvador Sobral ganhou, cancelou a sua participação após a candidata escolhida pelo público, Anna Korsun (MARUV de seu nome artístico) ter-se recusado a cancelar os concertos que já tinha agendados… na Rússia.

Uma outra participação envolta em polémica política é a da França. Na semana anterior à Eurovisão, a televisão pública israelita (KAN) tem prevista a transmissão de uma série em três episódios intitulada “Douze Points” (Doze Pontos) alusiva a um festival da canção realizado em Israel. Na trama, o representante francês é um jovem de origem magrebina (franco-argelino), homossexual e muçulmano que se vê pressionado pelo Daesh para realizar um atentado durante o direto do espetáculo. A série decorre num registo humorístico e nem os jiadistas nem os agentes da Mossad que tentam sabotar os planos são poupados à sátira.

Numa coincidência extraordinária, o representante francês em Telavive é Bilal Hassani, um jovem de aparência andrógina, nascido em Paris no seio de uma família franco-marroquina, muçulmano e homossexual. As autoridades francesas acusaram o desconforto, pressionaram para que a série não fosse cancelada mas esclareceu que não tenciona faltar ao evento.

Em matéria de boicotes, dir-se-ia que a organização israelita da Eurovisão tem visto o seu trabalho mais dificultado por… israelitas. Ultrapassadas as meias-finais de 14 e 16 de maio, a final realiza-se no dia 18, um sábado. Entre o pôr do sol de sexta-feira e o de sábado, os judeus observam o “sabbath”, período dedicado à oração e à introspeção, incompatível com qualquer atividade laboral. Ainda que a gala da Eurovisão possa decorrer já num horário posterior, o dia será necessário para ensaios.

Se a escolha de Telavive em detrimento de Jerusalém — a opção preferida do Governo israelita para acolher a Eurovisão — afastou o evento do epicentro de eventuais protestos por parte de judeus ultraortodoxos, não o protegeu em absoluto de danos motivados por questões religiosas. Desafiado pela organização para abrir o espetáculo da final, Omer Adam, estrela da pop israelita, declinou o convite por respeito ao “sabbath”. Já na fase de apuramento do candidato israelita, The Shalva Band, composta por músicos com deficiências e um dos favoritos à vitória, desistiu da competição por incompatibilidade entre os deveres religiosos e o calendário da Eurovisão.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 18 de março de 2019. Pode ser consultado aqui