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Eurovisão 2019: um festival desafinado

O anúncio da cidade que vai acolher o próximo Festival da Canção está enguiçado. A Eurovisão quer garantias por parte do Governo de Israel de que as opiniões políticas dos visitantes não serão obstáculo à obtenção de visto e que será possível trabalhar durante o “shabat”, o dia de descanso dos judeus

A vitória de Netta Barzilai no Festival Eurovisão realizado em Lisboa pode vir a revelar-se um presente envenenado para Israel.

A União Europeia de Radiodifusão (UER) — a entidade responsável pelo evento — previu, para este mês de setembro, o anúncio da cidade que vai acolher o evento, mas por enquanto o que soa desde os bastidores desse concurso musical é uma grande desafinação.

Uma delegação da UER esteve recentemente em Israel, onde visitou três cidades potencialmente anfitriãs (Telavive, Jerusalém e Eilat, tendo esta última ficado fora da corrida). Para além da avaliação dos locais, os responsáveis da Eurovisão entregaram ao Governo de Benjamin Netanyahu uma lista com exigências para a realização do evento em solo israelita.

Uma delas passa pela concessão de vistos independentemente das opiniões políticas dos visitantes, o que colide com legislação aprovada em 2017 que possibilita que pessoas que apoiem boicotes ou sanções a Israel sejam impedidas de entrar no país. Este ano, ao abrigo dessa lei, pelo menos 250 pessoas não passaram do Aeroporto Internacional Ben Gurion (Telavive), do posto fronteiriço de Taba (entre o Egito e a cidade de Eilat) ou da ponte Allenby, entre a Jordânia e o território palestiniano da Cisjordânia.

Outras condições requeridas pela UER passam pela liberdade de circulação no país sem limitações em virtude de opiniões políticas, religião ou orientação sexual; liberdade de imprensa e de expressão para todos os participantes e delegações; e — porventura a exigência mais sensível — o levantamento da restrição religiosa que impede o trabalho aos sábados (“shabat”), o dia de descanso dos judeus.

“Isto é uma desgraça completa”, reagiu, na terça-feira, o ministro da Segurança Pública, Gilad Erdan. “Não entendo como eles tiveram a ousadia de fazer este tipo de exigências. Espero que o primeiro-ministro não aceite estas condições ultrajantes.”

Qualquer uma das exigências feitas pela Eurovisão desafia limites do Estado judeu. Mas para a UER, “para se fazer o Festival Eurovisão da Canção tem de ser possível trabalhar-se as 24 horas do dia, os sete dias da semana, todas as semanas – não apenas na do evento e dos ensaios, mas nas semanas anteriores, quando se constrói o cenário, quando se prepara o local do espetáculo”, explicou, em entrevista à televisão pública israelita KAN, o norueguês Jon Ola Sand, supervisor executivo da organização. “Lamento ter de o dizer, mas não há forma de realizar a Eurovisão sem se poder trabalhar também aos sábados. É absolutamente impossível, isso é fundamental para nós!”

Para os judeus, o período que decorre entre o pôr do sol de sexta-feira e o de sábado é dedicado a Deus, pelo que as obrigações profissionais devem ser evitadas. Os ultraortodoxos levam o preceito ao limite, recusando-se a conduzir um carro ou a enviar sms. Em novembro, o rabino Yaakov Litzman demitiu-se do cargo de ministro da Saúde, em protesto contra umas obras de reparação da linha ferroviária realizadas a um sábado. (A coligação governamental integra três partidos religiosos: Shas, Judaísmo da Tora Unida e Casa Judaica.)

Ativistas de mangas arregaçadas

Das três vezes que Israel venceu a Eurovisão — em 1978, 1979 e 1998 —, Jerusalém acolheu o espetáculo por duas vezes.

A exceção aconteceu após o triunfo em 1979: Israel fez saber que não conseguia financiar o festival dois anos seguidos e o evento realizou-se em Haia (Holanda).

A possibilidade de a Cidade Santa voltar a receber o Eurofestival, em maio do próximo ano, deixa antever uma grande politização do evento, em virtude do polémico reconhecimento de Jerusalém como capital do Estado de Israel por parte dos Estados Unidos. Se Jerusalém for a escolha da Eurovisão, será pois de prever uma maior contestação ao evento do que se for Telavive — ou não…

“Independentemente de onde se realizar, se a Eurovisão de 2019 for organizada pelo regime de apartheid de Israel, tem de ser boicotada para impedir cumplicidade e negócios com este regime e para evitar manchar a marca Eurovisão, de forma irreversível, com o registo chocante de Israel ao nível dos direitos humanos”, diz ao Expresso o palestiniano Omar Barghouti, cofundador do movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS). “O ponto-chave é que o Governo de extrema-direita de Israel está a tentar usar a Eurovisão descaradamente como parte da sua estratégia oficial [de promoção] da marca Israel. Netanyahu considerou Barzilai ‘a melhor embaixadora de Israel’. Está desesperadamente a tentar projetar a ‘cara linda de Israel’ para branquear e desviar as atenções de décadas de ocupação e de crimes de guerra contra os palestinianos.”

“Só no dia 14 de maio”, recorda Barghouti, vencedor do Prémio Gandhi da Paz de 2017 (concedido anualmente pelo Governo da Índia), “apenas dois dias após a vitória na Eurovisão, Israel massacrou 62 palestinianos em Gaza, incluindo seis crianças. Nessa mesma tarde, Netta Barzilai atuou num concerto comemorativo [da vitória] em Telavive, organizado pelo presidente da Câmara Municipal que afirmou: ‘Temos uma razão para estarmos felizes’.”

Nascido no Qatar em 1964, Barghouti diz que o movimento BDS já está a preparar uma campanha de boicote à Eurovisão em Israel. Vários apelos nesse sentido já soaram, entretanto. “Acho que a Irlanda não devia enviar um representante”, defendeu Micheal Mac Donncha, presidente da Câmara Municipal de Dublin. “A terrível provação do povo palestiniano tem de ganhar destaque.” Na Islândia, mais de 26.700 pessoas — 8% da população total (330.000 habitantes) — já assinaram uma petição no mesmo sentido.

Em maio passado, a participação de Israel no evento de Lisboa já tinha sido objeto de uma batalha fora de palco. O movimento BDS saiu a público com a campanha “Zero pontos para a canção do apartheid israelita”, que teve o resultado inverso ao pretendido, já que “Toy” foi a mais votada.

Barghouti desvenda a razão do fracasso: “O Governo israelita e organizações lobistas investiram muitos recursos humanos e fundos recordes em publicidade numa campanha de propaganda em toda a Europa para ganhar votos para a sua canção”, diz. “A bem oleada propaganda israelita recorreu ao ‘pinkwashing’ — o uso cínico dos direitos dos LGBT [lésbicas, gays, bissexuais e transexuais] para encobrir a ocupação e o apartheid de Israel — e apelou aos movimentos feministas ao mesmo tempo que deixou de enfatizar Israel na mensagem.”

Uma das plataformas ao serviço dessa estratégia foi a aplicação Grindr, “a maior app mundial para pessoas gay, bi, trans e queer”, criada pelo israelita Joel Simkhai.

Após o apuramento de “Toy” para a final, mal abriam a aplicação, os utilizadores começaram a ser surpreendidos com uma fotografia de Netta e o apelo ao voto na canção nº 22.

(Foto: De troféu na mão, Netta Barzilai atua no Altice Arena, em Lisboa, a 12 de maio de 2018, como a grande vencedora da 63ª edição do Festival Eurovisão da Canção ANDRES PUTTING / EUROVISION)

Artigo publicado no Expresso Diário, a 7 de setembro de 2018. Pode ser consultado aqui

As cidades mais cantadas

Uma análise a cerca de 14 milhões de canções, em várias línguas, revela que Nova Iorque é a cidade mais homenageada pela música. Lisboa, a metrópole portuguesa mais cantada, surge em 54º lugar entre 300 cidades pesquisadas. Este artigo lê-se em poucos minutos, mas demora mais de duas horas a ouvir

Nova Iorque é a metrópole que mais inspira os letristas em todo o mundo. Imortalizada pela voz de Liza Minnelli, no filme “New York, New York” (1977), de Martin Scorsese, a Grande Maçã é citada num total de 30.867 canções. De longe, seguem-se duas cidades europeias: Paris e Londres, com 20.007 e 14.805 referências, respetivamente.

As conclusões resultam de uma análise a mais de 14 milhões de letras, elaborada pela empresa Holidu, um motor de busca para casas de férias, com sede em Munique, e Musixmatch, o maior catálogo mundial de letras de músicas e respetivas traduções.

Entre as dez cidades mais mencionadas nas letras de músicas, metade são norte-americanas. Para além de Nova Iorque, Nova Orleães — considerada a capital mundial do jazz — ocupa o quinto lugar, com 8798 referências, e a solarenga Miami aparece na posição seguinte, mencionada em 7809 canções. Em oitavo lugar, surge Atlanta, seguida de Houston.

As restantes cinco do top-10 absoluto são maioritariamente europeias. Para além das capitais francesa e britânica, também a italiana e a alemã inspiram os compositores: Roma surge em quarto lugar (11.859 referências) e Berlim em sétimo (6267).

Num ranking exclusivamente europeu, após Paris, Londres, Roma e Berlim, completam o top-10 MilãoVienaAmesterdãoMadridVeneza e Barcelona.

A primeira cidade fora dos continentes europeu e americano aparece em décimo lugar. Tóquio, a capital japonesa, é citada em 4719 músicas.

A primeira cidade portuguesa surge na 57ª posição. Lisboa é mencionada em 538 canções, seguida por Coimbra, com 49 referências. A tradição fadística contribui fortemente para a distinção de ambas, mas não a esgota, especialmente no caso da capital, como o prova “Lisboa”, de Charles Aznavour. No ranking português, o terceiro lugar é ocupado por Sintra, citada em 44 letras.

Em declarações ao Expresso, Fernando Esteves, “country manager” da Holidu, defende que a música pode ser um bom indutor no momento de escolher um destino de férias. E Lisboa é “um excelente exemplo. Além da arquitetura, história e culinária, muito viajantes escolhem a capital portuguesa devido ao Fado, um estilo musical único que tem as suas raízes nos bairros da cidade. Muitos viajantes têm o primeiro contacto com Lisboa através da música de Amália Rodrigues”.

Outras cidades são encaradas como destinos de sonho por parte de fãs desejosos de calcorrearem os lugares dos seus ídolos musicais. São exemplos a norte-americana Memphis, onde a propriedade de Elvis Presley é um verdadeiro local de peregrinação — em maio de 2016, Graceland recebeu o visitante 20 milhões —, ou a britânica Liverpool, onde nasceram The Beatles. Neste ranking, Memphis surge na 13ª posição e Liverpool na 40ª.

Havana, a mais recente homenagem

Para este estudo, foram inseridos os nomes de 300 cidades, escritos em inglês, português, italiano, alemão, francês e espanhol. No caso de Lisboa, a pesquisa foi feita também por “Lisbon”, “Lisbona”, “Lissabon” e “Lisbonne”.

De fora ficaram metrópoles cujo nome pode sugerir algo mais do que o nome de uma cidade. Foi o caso da Invicta. Se em “Porto Sentido” não há dúvidas em relação à intencionalidade das palavras de Rui Veloso, já no tema “Ti Porto Via Con Me”, de Jovanotti, a palavra é um tempo verbal — “Levo-te comigo”.

Igualmente, só foram contempladas referências explícitas às cidades. Ou seja, ainda que “Garota de Ipanema”, de Tom Jobim, seja indissociável do Rio de Janeiro, não entra na contabilidade da cidade brasileira já que a letra de Vinicius de Moraes omite o seu nome.

“Garota de Ipanema” é “uma das canções mais interpretadas em todo o mundo em diversas línguas, o que contribuiu imensamente para a popularidade da cidade do Rio de Janeiro e das suas icónicas praias junto dos turistas estrangeiros”, diz Fernando Esteves. “Mas como a música não menciona exatamente o Rio de Janeiro não a contamos no número total para que fosse possível manter a mesma metodologia para todas as cidades.”

Rio de Janeiro surge em 29º lugar na lista das cidades mais musicadas, seis posições atrás da capital de Cuba, a mais recente metrópole a conquistar as “billboards”, pela voz de Camila Cabello e do tema “Havana”.

(Foto: Os arranha-céus de Nova Iorque  HOLIDU)

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 16 de março de 2018, e republicado no Expresso Online, a 18 de março de 2018. Pode ser consultado aqui e aqui

Discretos e unidos: eis os fãs portugueses do K-Pop

Com origem na Coreia do Sul, o K-Pop é um género musical que conquistou milhões de fãs em todo o mundo. Portugal não está imune ao fenómeno. Este sábado, realiza-se em Lisboa a eliminatória portuguesa do K-Pop World Festival. A competição é também um momento de convívio entre uma comunidade pequena, mas unida, diz uma participante

Pouco presente nos noticiários portugueses e a mais de 10 mil quilómetros de distância, a Coreia do Sul é, para a generalidade dos portugueses, um somatório de conhecimentos avulsos.

Os mais atentos à política internacional saberão que a península coreana parece viver permanentemente à beira de um conflito, com o Norte governado pela dinastia Kim a testar, com frequência, mísseis cada vez mais ameaçadores. E talvez também que o secretário-geral das Nações Unidas que antecedeu a António Guterres foi um sul-coreano, Ban Ki-moon.

Quem se interessa por indústria e tecnologia associará o país a marcas globais como a Samsung, a KIA ou a LG. E os amantes de desporto recordarão que foi em Seul que Rosa Mota conquistou o ouro olímpico e talvez que, não há muito tempo, passou pelo plantel portista um futebolista sul-coreano chamado Suk, do qual já terão perdido o rasto.

Para um número crescente de jovens portugueses, porém, a Coreia do Sul é bastante mais especial do que tudo isso. É a pátria do K-Pop (lê-se “Kei Pop”, ou seja, Korea Pop), um género musical que combina diferentes sonoridades e estilos musicais, elementos coreográficos, efeitos audiovisuais e eleva ao patamar de ídolos jovens intérpretes que ditam tendências de moda.

Semanalmente, o programa interativo “After School Club”, transmitido na televisão sul-coreana Arirang, é dedicado ao mundo do K-Pop. Na imagem, os convidados são os B.I.G. MARGARIDA MOTA

Este sábado, o Museu do Oriente, em Lisboa, acolhe, pelas 17 horas, a pré-eliminatória portuguesa do K-Pop World Festival 2017. O evento, que se realiza desde 2012, visa selecionar um vencedor na categoria de Canto (há seis candidatos) e outro na de Performance (concorrem sete grupos) que, posteriormente, serão avaliados pela organização da grande final, na cidade coreana de Changwon (sudeste), a 29 de setembro próximo.

Em cinco edições já realizadas, apenas por uma vez Portugal foi escolhido para disputar a final. Em 2014, então com 19 anos, a lisboeta Filipa Cardoso venceu a categoria de Canto e, com isso, ganhou um bilhete para uma experiência inesquecível. “A vitória deu-me oportunidade para pôr os pés num lugar novo, cuja cultura (para além da música pop) muito aprecio e de fazer algo com que sempre sonhei — pisar um palco e cantar num estádio, com 25 mil pessoas a assistir!” (Veja abaixo o vídeo da atuação de Filipa Cardoso em Changwon.)

Filipa conheceu a K-Pop em 2011 quando “passeava” pelo Youtube. “Na coluna das recomendações surgiu um vídeo de umas raparigas com umas calças muito coloridas”, as Girls’ Generation. “Atraída pelas cores e pela curiosidade, abri o vídeo e gostei imenso da música e do conceito — música pop animada, estilo hiper-feminizado, coreografia. Nunca tinha visto um grupo com tantos membros (algo muito comum no K-Pop) e isso também me fascinou.”

Filipa tinha alguns conhecimentos musicais, tinha tido aulas de guitarra e cantava num coro. Sozinha, cantava apenas em casa — até conhecer o K-Pop e decidir-se a aventurar no festival português. “Hoje em dia, continuo a cantar K-Pop, mas não tanto como na fase da descoberta. Oiço K-Pop mas ao contrário do pop extremo, colorido, mega comercial que me aliciou no início, agora ouço artistas mais ‘folk’/‘indie’, que se aproximam mais do que gostaria de fazer caso tivesse oportunidade de ser artista.” Ouve principalmente AkmuLim Kim e Eddy Kim.

As portuguesas E-DEN, vencedoras do K-Pop Festival Portugal em 2016 na categoria Performance EMBAIXADA DA REPÚBLICA DA COREIA EM PORTUGAL

Vencedoras no ano passado na categoria Performance — mas sem direito a ir à final na Coreia —, as E-DEN não desistem desse sonho. “Termos ganho foi das melhores sensações de sempre. Lutamos pelo título desde 2013 e, apesar de altos e baixos, finalmente conseguimos um dos nossos objetivos”, conta Natacha Costa, 23 anos. “Mas ainda falta outro… Portugal não foi apurado para a final na Coreia. Este ano vamos mesmo tentar que seja!”

Natacha é a “Sasha” deste grupo de quatro amigas e a única com formação em dança. Acompanham-na a Susana (23 anos), a Cathia (22) e a Mariah (20). Conheceram-se num evento em Odivelas, em agosto de 2012, “numa espécie de matiné/discoteca de K-pop”, e ali se inspiraram para um grupo de “covers”.

“Foi algo criado com base numa amizade super espontânea” e do interesse despertado pelos animes [animações japonesas] que passavam na televisão. “Os animes ajudaram bastante os curiosos a irem mais longe e a acompanharem também o J-pop [pop japonês] e a chegarem ao K-Pop e à restante cultura da Coreia.”

A língua é uma barreira? Nem por isso

Uma das características do K-Pop é a existência de pequenas frases em inglês no meio das letras em coreano. Os trechos ajudam à internacionalização das músicas, mas em pouco facilitam a vida de quem as quer interpretar do princípio ao fim. Mas arranhem ou não o coreano, nenhum fã português do K-Pop encara a língua como uma barreira intransponível.

“Nunca aprendi coreano e não foi por isso que deixei de desfrutar da música”, diz Filipa Cardoso. “Gostava do K-Pop não pelo significado das palavras em si (que nunca soube, a maior parte das vezes) mas pelo conceito como um todo. É extremamente pop. Nenhum outro país explorou este género desta maneira. São as cores, os cenários, o estilo, a batida, as coreografias… Sempre me preocupei mais em sentir a batida e aprender as coreografias. Quando tinha muito interesse em saber o significado das letras, ia ao Google. Mas era raro. Mais depressa pesquisava simplesmente a versão romanizada do hangeul (alfabeto coreano). Resultado: acabava por ter uma pronúncia ótima sem fazer a mínima ideia do que estava a dizer.”

Foto de conjunto do K-Pop Festival Portugal, no ano passado, no Teatro Maria Matos, em Lisboa EMBAIXADA DA REPÚBLICA DA COREIA EM PORTUGAL

Se Filipa chegou ao K-Pop pelos vídeos na internet e Natacha pelos animes japoneses na televisão, o cantor e ator Rui Andrade — o apresentador do espetáculo pelo segundo ano consecutivo — mergulhou nesse mundo por força da curiosidade artística. “Como músico e como curioso, já conhecia algumas canções, mas não propriamente o mundo K-Pop. Quando fiz a pesquisa para apresentar o evento, fiquei completamente rendido”, diz o artista, que aprecia, em especial, a cantora Ailee e o grupo 2NE1.

“As músicas são muito apelativas e os instrumentais muito sonantes, mas principalmente a imagem dos vídeos é extremamente cuidada, têm muita qualidade. É isso que caracteriza o k-Pop. A nossa música pop ocidental, até mesmo a música americana das Beyoncés e Lady Gagas inspira-se no K-Pop.”

Rui Andrade nunca teve um projeto nesta área, mas já teve um contacto com um produtor coreano. “A primeira coisa que ele me perguntou não foi se eu sabia cantar… foi qual era a minha altura! E explicou-me que seria muito difícil encontrar bailarinos com a minha altura para fazerem parte de vídeoclips…”

Captura de ecrã do vídeoclip “Gangnam Style”, de Psy

Há cinco anos, um artista de K-Pop arrebatou o nº 1 das listas de músicas mais ouvidas em todo o mundo: o rapper Psy, com o tema “Gangnam Style”. (Por curiosidade, Gangnam é um bairro chique de Seul.) O sul-coreano correu mundo e foi convidado por Barack Obama para atuar num evento natalício na Casa Branca. Foi o expoente máximo daquilo que muitos artistas K-Pop são, na realidade, a todo o tempo: embaixadores da Coreia do Sul um pouco por todo o mundo.

Não por acaso, a final do K-Pop World Festival é organizada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros sul-coreano e as eliminatórias nacionais, realizadas em mais de 60 países, pelas missões diplomáticas sul-coreanas.

Jin Sun Lee, assessora cultural na Embaixada da República da Coreia em Portugal, diz que os participantes no festival português têm vindo a aumentar “em quantidade e em qualidade”. E que “o objetivo do evento é divertir os fãs do K-Pop em Portugal”. A repetente Natacha confirma que assim é: “Apesar de serem eventos discretos, o K-pop vai tendo os seus momentos nesta comunidade pequena mas unida!”

(Foto principal: Girls’ Generation é um dos mais populares grupos femininos sul-coreanos de K-Pop KOREA.NET / KOREAN CULTURE AND INFORMATION SERVICE (JEON HAN) / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no Expresso Online, a 29 de julho de 2017. Pode ser consultado aqui

“Não serei uma estrela do rock, serei uma lenda”: o Freddie vive

Fernando Conceição é um fã abnegado de Freddie Mercury, daqueles que gastam os CD de tanto os ouvir. Coleciona tudo o que tenha que ver com o artista e viaja pelo mundo no encalce dos seus sítios emblemáticos. Quando um grave problema de saúde debilitou Fernando Conceição, a quem chamam “o Freddie português”, foi alvo de uma homenagem da melhor banda de tributo aos Queen. Na semana do 25º aniversário da morte de Freddie Mercury, que se assinala esta quinta-feira, abriu ao Expresso a porta de casa e do seu raro museu privado para desvendar encontros e episódios singulares

Freddie Mercury, o carismático vocalista dos Queen, morreu faz esta quinta-feira 25 anos. Mas a lenda continua viva graças a fãs como Fernando Conceição. “Era um génio, a compor, a cantar e em palco. Para nós, os fãs, ele não morreu, apenas deixou de escrever. Ouvimos as músicas dos Beatles ou do Elvis com nostalgia, mas não as do Freddie. Parece que ele está ali, a cantá-las.”

Fernando, de 52 anos, recebe o “Expresso” no seu apartamento em Queluz vestido com uma t-shirt preta que tem estampada uma frase emblemática do seu ídolo: “Não serei uma estrela do rock, serei uma lenda”, uma espécie de declaração prévia a uma conversa onde o fã se dispõe a partilhar como nasceu a admiração pelo artista e como, 25 anos após o seu desaparecimento, Freddie continua a ser importante para tanta gente. “Tinha uns 15 anos quando ouvi os Queen pela primeira vez. Gostava muito de música, mas não os conhecia. Um dia, o meu irmão mais velho trouxe um single do ‘Crazy little thing called love’ e pôs a tocar. Eu não queria dar parte fraca — coisa de irmãos — e não dei muito valor. Mas a música nunca mais me saiu da cabeça. Fui comprar o mesmo single para mim. Ainda o tenho.”

Aquele disco seria a primeira peça de um “museu” que foi ganhando forma ao longo dos anos e que hoje ocupa uma parede na sala de estar de Fernando, onde uma grande estante está totalmente preenchida com todo o tipo de objetos alusivos aos Queen: discos em vinil, cassetes e CD, vídeos, livros, postais e álbuns fotográficos, pins, medalhas e porta-chaves, bandeiras e peças de roupa, brinquedos, bonecos e puzzles, garrafas de vinho, cerveja e vodka, frascos de ketchup e preservativos, entre muitas outras coisas que Fernando vai comprando e recebendo de presente. Umas mais valiosas do que outras em termos monetários, todas elas emocionalmente preciosas.

Fernando Conceição na sua sala-museu, onde guarda todo o tipo de objetos alusivos a Freddie e aos Queen, de discos em vinil a preservativos ANA BAIÃO

Na sua sala-museu, como Fernando lhe chama, já esteve Jacky Smith, que preside há décadas ao Clube de Fãs Internacional Oficial, de que Fernando é o sócio 60.360. Muitos outros admiradores conhecem o espaço através do Facebook de Fernando. De Vila Nova de Gaia à Polónia, vários já lhe expressaram o desejo de visitar o museu. Fernando tem cotação alta junto de fãs de todo o mundo. “Dizem que sou o Freddie português.” Perguntam-lhe se tem o número de telemóvel dos músicos da banda, pedem-lhe que esclareça rumores e que confirme informações, como aconteceu recentemente quando foi conhecida a morte da mãe de Freddie Mercury.

Aparentemente, aquela parede homenageia todos os membros dos Queen por igual, mas a figura de Freddie Mercury sobressai. “Sou fã dos Queen, mas mais do Freddie Mercury. Marcou-me principalmente a voz dele, que é muito poderosa, e as suas atuações ao vivo, a personagem que ele assumia em cima do palco e a interação com o público”, diz. “Até hoje, não houve mais ninguém como ele.”

Após vencer um concurso organizado pela editora dos Queen, em 2011, o fã português teve entrada numa festa só para convidados, na véspera da inauguração de uma exposição sobre a banda. Roger Taylor e Brian May não faltaram. Fernando e a sua jaqueta amarela não passaram despercebidos FOTO CEDIDA POR FERNANDO CONCEIÇÃO

Uma foto da parede da sala-museu está também na origem de um dos momentos mais especiais da vida de Fernando Conceição. Em 2011, a Universal, editora dos Queen, organizou um concurso em vários países: quem provasse ser o maior fã da banda ganharia uma viagem a Londres para duas pessoas com direito a estadia e entrada numa festa privada que teria lugar na véspera da inauguração da exposição “Stormtroopers in Stilettos”, sobre os primeiros anos da banda e que abriu ao público a 25 de fevereiro.

Fernando participou com a imagem do seu “museu” e foi o vencedor português. Embarcou para Londres trajado à Freddie da cabeça aos pés, com jaqueta amarela, calças desportivas e ténis Adidas, a indumentária com que o vocalista subiu ao palco no mítico concerto em Wembley, a 12 de julho de 1986.

Sem saber se os membros dos Queen que continuaram com o projeto após a morte de Freddie iam à festa, Fernando desfilou pela “passadeira vermelha” — que naquele caso era rosa-choque — e entrou num espaço exclusivo onde conviviam familiares do cantor — como a mãe, Jer Bulsara, e a irmã Kashmira —, pessoas próximas da banda, como o manager Jim Beach, e outras estrelas do espetáculo, como a cantora Jessie J e Dave Grohl, vocalista dos Foo Fighters.

O desejo de Fernando concretizou-se e quer o guitarrista Brian May quer o baterista Roger Taylor compareceram ao evento. O momento para tirar fotos com ambos, pedir autógrafos e trocar umas palavras surgiu com naturalidade. “Foi um sonho realizado, já que com o Freddie não consigo estar”, recorda. “O Brian May disse-me que se não soubesse onde está a jaqueta amarela original, usada pelo Freddie, dizia que era a minha.”

O casaco foi um presente de aniversário da esposa de Fernando, que o encomendou às escondidas a uma amiga aderecista, após visionar muitos vídeos e fotografias de Freddie com ele vestido. “Se a costureira quiser fazer outro, já não sai igual”, garante Fernando. “Este casaco tem qualquer coisa de especial. O próprio Brian May mo disse.” Diana Moseley, a costureira de Freddie Mercury, também já lhe pôs a vista em cima. Confirmou que o tecido usado era o mesmo, observou Fernando de cima a baixo e… procurou defeitos. Disse que as calças tinham o bolso na perna errada. Fernando ficou aflito, mas depois confirmou não ser verdade. “Não vendia este casaco por dinheiro algum! Uns italianos já mo quiseram comprar, mas não aceitei.” Tem o casaco desde 2009. Nunca o lavou. “Tenho medo que aconteça alguma coisa.”

Após a morte de Freddie Mercury, a banda britânica prosseguiu a carreira com apenas dois dos restantes três membros. Para John Deacon, o baixista, não fazia sentido continuar sem Freddie, a alma do projeto ANA BAIÃO

Depois de privar com os músicos dos Queen, Fernando já voltou a Londres várias vezes, por altura de outras festas, apenas para se colocar à porta a tirar fotos e ver entrar os convidados. Para ele, cada ida à capital britânica torna-se um “tour” pelos sítios emblemáticos frequentados por Freddie: o colégio onde estudou, o Heaven (uma discoteca gay), a casa onde viveu (Garden Lodge), na zona de Kensington, fechada ao público por vontade do artista, e onde vive Mary Austin, namorada de Freddie durante oito anos, a quem o cantor deixou a fortuna e a quem dedicou o tema “Love of my life”. Esta é também a música preferida de Fernando — “preferidas são elas todas, mas aquela é especial” — e a que tem como toque de telemóvel para identificar as chamadas da mulher. Para os outros, o toque é o “Bohemian Rhapsody”.

Junto a Freddie, em Montreux

Fernando não é um fã que se limita a “romper” os discos dos Queen, ouvindo-os até à exaustão. Além do museu, viaja sempre que pode, no rasto do ídolo, até Londres e desde 2008 até à cidade suíça de Montreux, para onde Freddie Mercury se retirou numa fase tardia da vida e onde anualmente fãs de todo o mundo acorrem para celebrar o aniversário do artista, a 5 de setembro.

À casa que Freddie ali comprou, voltada para o lago Léman, só se chega de barco. “É um paraíso”, confirma Fernando. “O lago transmite uma grande tranquilidade. É muito fácil perceber por que motivo o Freddie quis lá morar.” Ali, tinha sossego, isolamento e anonimato.

Em Montreux, a festa oficial decorre no casino, onde se entra mediante a compra de bilhete, mas o grande convívio entre fãs acontece junto a uma estátua em bronze de Freddie, oferecida pela soprano espanhola Montserrat Caballé (com quem Freddie gravou “Barcelona”) e inaugurada a 25 de novembro de 1996.

A estátua está virada para o lago. “A dada altura, os suíços quiseram virá-la para a cidade, mas os fãs não deixaram. Fizeram uma petição”, que Fernando também assinou. “O Freddie comprou ali a casa para estar a olhar para o lago…”

Estátua de Freddie Mercury virada para o lago Léman, na cidade suíça de Montreux, onde o músico viveu nos últimos anos. Todos os anos, a 5 de setembro, os fãs ali acorrem para celebrar o aniversário de Freddie S_WERNER / WIKIMEDIA COMMONS

Entre os admiradores, junto à estátua, nunca falta assunto. Convivem, cantam (músicas dos Queen e também os parabéns), tiram fotos, partilham entre si informações novas. “Só falamos do Freddie, há sempre uma novidade qualquer.” Junto de Peter Freestone, o assistente pessoal de Freddie que também é presença assídua, tentam saber pormenores inéditos da vida do músico. “Às vezes, o Peter, que também cozinhava, faz-nos o bolo que costumava fazer para o Freddie.”

Em Montreux, Fernando dá nas vistas mal sai do comboio “por causa do casaco amarelo”, que o acompanha desde que lá vai e por causa do bigode à Freddie que deixa crescer propositadamente. Junto à estátua, torna-se, ele próprio, uma atração para os fãs, a quem não diz que não quando lhe pedem para tirar uma foto. É uma grande festa a vários níveis. “Só não vou se não puder”, diz.

Foi o que aconteceu este ano. Há cerca de dois anos e meio, a vida de Fernando — da mulher, do pequeno Afonso de 9 anos e de Fábio de 24 (filho apenas de Fernando) — deu uma reviravolta, quando lhe foi diagnosticado um cancro. Deixou de poder fazer planos e deixou de comparecer com a frequência habitual nos locais de sempre. Mas “os fãs do Freddie português” não o esqueceram.

Foi o caso da banda argentina Dios Salve a la Reina, reconhecida por muitos — incluindo Fernando — como “a melhor banda de tributo aos Queen” em todo o mundo e que recentemente se apresentaram em versão sinfónica em Lisboa e Gondomar, acompanhados da Orquestra Filarmonia das Beiras, dirigida pelo maestro Cristiano Silva, e pelo Coro do Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro. Conhecedores do problema de saúde de Fernando, que conheciam dos seus concertos em Portugal, dedicaram-lhe um vídeo de motivação.

HOMENAGEM A 27 de junho de 2014, os Dios Salve a la Reina deram um concerto no Campo Pequeno, em Lisboa. Nos bastidores, não esqueceram o fã português e dedicaram-lhe um vídeo especial… VÍDEO CEDIDO POR FERNANDO CONCEIÇÃO

No ano passado, conseguiu ir a Londres e marcou presença na festa no Hard Rock Cafe que, a cada 5 de setembro, doa uma percentagem de cada refeição servida em todos os seus restaurantes por todo o mundo à Fundação Mercury Phoenix Trust. Criada em 1992, apoia o combate à Sida, que vitimou Freddie. “O gerente era português. Na festa atribuíram prémios aos mais bem vestidos. Lá trouxe mais uns… É o casaco.”

The show must go on… com outros vocalistas

Talvez a “fúria” com que Fernando viaja no encalce de Freddie Mercury se explique pelo facto de nunca ter visto o artista ao vivo. “É um desgosto que tenho. Ele nunca veio a Portugal e, naquela altura, eu não tinha hipótese de viajar. Eram outros tempos. Se fosse hoje, desgraçava-me a vida porque eu andaria atrás dele para todo o lado.”

O primeiro concerto dos Queen a que assistiu foi em Barcelona, a 2 de abril de 2005. Freddie tinha morrido há 14 anos e a banda regressava aos palcos com um novo vocalista, Paul Rodgers, mas sem o baixista John Deacon, para quem os Queen acabaram quando Freddie morreu. Nesse ano, a 2 de julho, os “Queen + Paul Rodgers” passaram também pelo Estádio do Restelo e Fernando não faltou. O terceiro e último concerto a que assistiu foi a 20 de maio passado, no Rock in Rio Lisboa, com Adam Lambert como vocalista.

“Como fã dos Queen/Freddie Mercury, para mim nenhum deles se aproxima do Freddie. O Brian May e o Roger Taylor gostam de música, querem continuar com os Queen, mas deviam fazer músicas novas. Podiam tocar repertório dos Queen, mas não apenas isso, como acontece. Em Barcelona, ouvir as músicas interpretadas por outro cantor que não o Freddie mexeu muito com o público. O concerto estava completamente morno e só ‘explodiu’ quando surgiu no video wall a imagem do Freddie.”

Para fãs como Fernando, Freddie é insubstituível, pelo que as músicas compostas por ele não deveriam ser interpretadas por outros cantores enquanto Queen. A banda está ciente desta sensibilidade. Durante os concertos, é Brian May quem interpreta “Love of my life”. A ele junta-se inevitavelmente o público e… Freddie Mercury, projetado no ecrã.

Desta forma, homenageiam a alma da banda e acalmam as hostes. “Eles passam muitas imagens do Freddie, que é o que realmente une o público. Eles têm a noção de até onde podem ir com o Adam Lambert ou qualquer outro.”

Como se depreende da forma como aprecia os argentinos Dios Salve la Reina, Fernando não se opõe à existência de bandas tributo, que copiam os Queen em repertório e atitude. “Eu faço o meu tributo, eles fazem o tributo deles.” Igualmente, não se incomodou quando, a dada altura, Freddie Mercury optou por seguir com a carreira a solo. “Para mim era igual, era o Freddie”, um artista de exceção e um homem extravagante, de excessos, que não queria envelhecer em palco e que protegeu a sua privacidade até ao fim da vida.

A 23 de novembro de 1991, a imprensa noticiou que Freddie Mercury tinha sida. No dia seguinte, morreu, aos 46 anos. “Não estou a ouvir o Freddie”, reclama Fernando durante a sessão fotográfica para o “Expresso”. A mulher, a assistente do fã quando está “em modo Freddie” e companheira de aventuras, dirige-se ao leitor de CD e carrega no “on”. Freddie volta a ouvir-se por toda a casa.

(Foto principalChamam-lhe “o Freddie português” e aquele casaco amarelo é valioso e invejado ao ponto de Fernando Conceição ter medo de lavá-lo (mas não de levá-lo). Nas idas a Londres e a Montreux, veste-se a rigor com a indumentária com que Freddie subiu ao palco no mítico concerto em Wembley, em 1986. E em casa tem um precioso museu privado dedicado aos Queen ANA BAIÃO)

Artigo publicado no Expresso Diário, a 23 de novembro de 2016, e republicado no “Expresso Online”, a 24 de novembro de 2016. Pode ser consultado aqui e aqui