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Donald Trump aspira ao Nobel da Paz. Serão os Acordos de Abraão suficientes?

O dedo da Administração norte-americana no processo de normalização da relação diplomática entre Israel e dois países árabes é o grande trunfo de Donald Trump na disputa pelo Nobel da Paz, que será conhecido esta sexta-feira. Mas há um histórico que joga contra si: no passado, antecessores que mediaram negociações importantes no Médio Oriente foram ignorados pela Academia

O Prémio Nobel da Paz 2020 é anunciado esta sexta-feira e, segundo a organização, há 211 indivíduos e 107 organizações na corrida. A lista de candidatos não é pública, mas pelo menos um nome é conhecido.

Christian Tybring-Gjedde, deputado norueguês do Partido do Progresso (populista), fez saber que propôs a candidatura de Donald Trump. “Por seu mérito, acho que tem feito mais tentativas para criar a paz entre as nações do que a maioria dos outros indicados para o prémio da Paz”, justificou.

O Presidente dos Estados Unidos tem como forte trunfo os Acordos de Abraão, assinados na Casa Branca a 15 de setembro, que selaram a normalização da relação diplomática entre Israel e dois países árabes — os Emirados Árabes Unidos e o Bahrain, ambos na região do Golfo Pérsico.

Não se tratando de verdadeiros acordos de paz, uma vez que os signatários não estavam nem nunca se envolveram em guerra, são entendimentos importantes numa região tão conflituosa como o Médio Oriente, onde a diplomacia norte-americana leva décadas de investimentos.

“Goste-se ou não, os Estados Unidos continuam a ser o principal intermediário em negociações no Médio Oriente”, diz ao Expresso Henry R. Nau, professor no Departamento de Ciência Política da Universidade de George Washington (Washington D.C.). “Por imperfeita que seja a política do Médio Oriente, os acordos entre Israel e os Emirados Árabes Unidos e o Bahrain representam dois grandes passos em frente na direção de uma região mais estável.”

Nos últimos 50 anos, a diplomacia dos Estados Unidos participou com êxito na mediação de três importantes tratados de paz na região. Dois foram mesmo assinados na Casa Branca e valeram aos protagonistas diretos o Nobel da Paz — mas não ao mediador.

Dialogar às escondidas

O primeiro concretizou-se a 17 de setembro de 1978, era o Presidente dos EUA Jimmy Carter. O democrata foi anfitrião da cerimónia de assinatura dos Acordos de Camp David, que levaram à paz entre Israel e o Egito.

O tratado resultou de 13 dias de negociações secretas em Camp David, casa de campo presidencial, nas montanhas Catoctin, no estado de Maryland. Naquele recato, o diálogo fez-se entre três homens: Carter, que mediou, Menachem Begin (primeiro-ministro israelita) e Anwar al-Sadat (Presidente egípcio). Apenas os dois últimos foram então agraciados com o Nobel da Paz.

Quinze anos depois, o caminho da paz no Médio Oriente voltou a passar pelos Estados Unidos. A 13 de setembro de 1993, a Casa Branca abriu portas a novo acontecimento histórico: a assinatura dos Acordos de Oslo, pelos quais Israel e a Organização de Libertação da Palestina (OLP) se reconheceram mutuamente, dando início a um processo negocial que tinha a sua etapa final na declaração do Estado palestiniano.

Ainda que o trabalho de formiga tenha sido realizado pela diplomacia da Noruega, os Acordos de Oslo valeram o Nobel da Paz apenas aos protagonistas: os israelitas Yitzhak Rabin (primeiro-ministro) e Shimon Peres (ministro dos Negócios Estrangeiros) e o palestiniano Yasser Arafat (líder da OLP). Ganhariam o Nobel em 1994 e não em 1993, ano dos sul-africanos Nelson Mandela e Frederik de Klerk.

Bill Clinton seria ainda mediador no Tratado de Paz entre Israel e a Jordânia, assinado a 26 de outubro de 1994, em Arabah (Israel), junto à fronteira entre os dois países. Mas o Nobel nunca lhe chegaria às mãos, contrariamente a Jimmy Carter que haveria de ser galardoado em 2002 “por décadas de incansável esforço para encontrar soluções pacíficas para os conflitos internacionais, fazer avançar a democracia e os direitos humanos e promover o desenvolvimento económico e social”, justificou o Comité Nobel.

E Trump?

Donald Trump tem contra si este histórico, que colocou antecessores seus em plano secundário perante a Academia Nobel, mas tem também obra feita. Além dos Acordos de Abraão, contribuiu decisivamente para o desanuviamento da tensão na Península da Coreia (ainda que sem resultados políticos substanciais) e averbou um tratado de paz entre os EUA e os talibãs afegãos, assinado a 29 de fevereiro passado, em Doha (Qatar).

Além disso, ao ter eliminado o líder do Daesh, Abu Bakr al-Baghdadi, em outubro de 2019, sempre pode dizer que teve um papel principal no combate ao terrorismo internacional.

(FOTO RAWPIXEL)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de outubro de 2020. Pode ser consultado aqui

A vontade de um homem rico continua a cumprir-se 124 anos depois

Um obituário prematuro retratou Alfred Nobel, que fizera fortuna criando e vendendo armas de guerra, como um “comerciante da morte”. Chocado com a sua imagem pública, o sueco destinou parte da sua riqueza àqueles que conferirem “os maiores benefícios à humanidade”. Esta sexta-feira, o Prémio Nobel da Paz será atribuído pela 100ª vez

Os Prémios Nobel têm na sua origem uma imensa fortuna, a última vontade de um homem culto e uma verdade inconveniente: aquele que ainda hoje mais recompensa os esforços de paz em todo o mundo foi um grande fabricante de armas. Ainda hoje, a empresa sueca Bofors e a alemã Dynamit Nobel decorrem de projetos de Alfred Bernhard Nobel.

Nascido em 1833, em Estocolmo (Suécia), cresceu no seio de uma família dedicada à indústria do armamento. O pai, o engenheiro Immanuel, construiu minas subaquáticas para a Rússia, durante a Guerra da Crimeia. Alfred herdou dele a curiosidade científica e investiu na criação de novos tipos de explosivos. Registou 355 patentes a nível internacional, uma das quais a dinamite, que revolucionou a arte da guerra.

Quando os Nobel choraram a morte de Ludwig — o mais velho dos oito filhos de Immanuel e Caroline —, em abril de 1888, um jornal francês publicou um obituário pensando tratar-se de Alfred. “O comerciante da morte morreu”, escreveu-se. “O Dr. Alfred Nobel, que enriqueceu encontrando formas mais rápidas de matar mais pessoas, morreu ontem.”

A cerimónia de atribuição do Nobel realiza-se em Oslo, a 10 de dezembro, data da morte de Alfred. O laureado recebe uma medalha em ouro, um diploma e nove milhões de coroas suecas (quase 830 mil euros) GETTY IMAGES

Confrontado com aquela imagem pública, este homem culto, fluente em cinco línguas e grande estudioso de Química — na tabela periódica, o elemento nobélio foi assim batizado em sua homenagem —, ficou em choque.

Quando morreu, deixou manuscritas quatro páginas repartindo a sua riqueza por familiares, criados e conhecidos, e por um fundo destinado a premiar anualmente “aqueles que, no ano anterior, conferiram os maiores benefícios à humanidade”.

Alfred determinou as áreas a merecer distinção e responsabilizou instituições por esse reconhecimento: os prémios da Física e da Química seriam atribuídos pela Real Academia Sueca das Ciências, o da Fisiologia ou Medicina pelo Instituto Karolinska de Estocolmo e o da Literatura pela Academia de Estocolmo.

Além do processo de paz israelo-palestiniano (1994, na foto), o Nobel já reconheceu outros diálogos políticos: EUA-Vietname (1973), Israel-Egito (1978), África do Sul (1993) e Irlanda do Norte (1998) GETTY IMAGES

Quanto ao prémio destinado ao “campeão da paz”, não seria concedido por uma organização sueca, mas por “um comité de cinco pessoas selecionadas pelo Storting [Parlamento] norueguês”. Esta deferência para com o reino da Noruega decorre de uma realidade política: à época, suecos e noruegueses eram todos súbditos do rei sueco, apesar de os noruegueses terem Constituição e Parlamento próprios.

Por essa altura, o Storting já tinha uma tradição de envolvimento em questões de arbitragem internacional e trabalho feito no âmbito da União Interparlamentar, uma instituição global fundada em 1889. Com alguma naturalidade, Alfred encarrega-o de distinguir “a pessoa que fez mais ou melhor trabalho em prol da fraternidade entre as nações, da abolição ou redução de exércitos permanentes e da realização e promoção de congressos de paz”.

O norte-americano Henry Kissinger (à esquerda na foto, com o Presidente chinês Xi Jinping, em 2018) é o premiado mais antigo ainda vivo. Nesse ano de 1973, o colaureado, o vietnamita Le Duc Tho, recusou o prémio THOMAS PETER / GETTY IMAGES

Desde que foi atribuído pela primeira vez, em 1901, o Nobel da Paz já consagrou 89 homens e 17 mulheres. Aos 17 anos, a estudante paquistanesa Malala Yousafzai (2014) foi o laureado mais jovem de sempre.

Por duas ocasiões, os holofotes incidiram sobre um trio: três homens em 1994 — Yasser Arafat, Shimon Peres e Yitzhak Rabin —, pelo acordo de paz israelo-palestiniano do ano anterior; e três mulheres em 2011 — Ellen Johnson Sirleaf (Presidente da Libéria), Leymah Gbowee (ativista liberiana) e Tawakkol Karman (ativista iemenita).

O “campeão da paz” é, porém, o Comité Internacional da Cruz Vermelha, que já recebeu o Nobel por quatro vezes: três enquanto organização (1917, 1944 e 1963) e uma a título individual, já que o suíço Henry Dunant, cofundador da organização, foi o primeiro galardoado, em 1901. No total, este Nobel já foi entregue a organizações por 27 vezes.

Três laureados estavam presos na hora de receber o Nobel: o jornalista alemão Carl von Ossietzky (1935), a política birmanesa Aung San Suu Kyi (1991) e o ativista chinês Liu Xiaobo (2010), cuja cadeira (na foto) ficou vazia ODD ANDERSEN / AFP / GETTY IMAGES

O Nobel da Paz já foi entregue por 99 vezes. Em 1948, um dos 19 anos em que não foi atribuído, o Comité anunciou que “não havia candidato vivo adequado”. A justificação soou a arrependimento… A 30 de janeiro desse ano, o indiano Mahatma Gandhi tinha sido assassinado. Símbolo mundial do pacifismo, morreu sem nunca ter recebido o prémio.

A embaraçosa ausência de Gandhi na lista de laureados leva a que, no próprio “site” oficial do Nobel, haja uma justificação: “Até 1960, o Prémio Nobel da Paz era concedido quase exclusivamente a europeus e americanos. Em retrospetiva, o horizonte do Comité Nobel Norueguês pode parecer muito estreito. Gandhi era muito diferente dos laureados anteriores. Não era um político ou um defensor real do direito internacional, não era essencialmente um trabalhador humanitário e não era um organizador de congressos internacionais de paz. Ele teria pertencido a uma nova classe de laureados.”

Mahatma Gandhi (1869-1948), sorridente, na companhia das netas Ava e Manu, na Birla House, em Nova Deli, onde o ativista passou os últimos 144 dias de vida GETTY IMAGES

Gandhi parece ser um peso na consciência do Comité Norueguês. Em 1989, quando o Nobel da Paz foi dado a Tenzin Gyatso, o 14º Dalai Lama do budismo tibetano, o presidente do Comité disse tratar-se, “em parte, de um tributo à memória de Mahatma Gandhi”.

(FOTO Início do testamento de Alfred Bernhard Nobel, datado de 27 de novembro de 1895 JESSICA GOW / REUTERS)

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 10 de outubro de 2019. Pode ser consultado aqui

Um Nobel da Paz que embaraça os senhores do mundo

Atribuído à Campanha Internacional para a Abolição das Armas Nucleares, o Nobel da Paz deste ano não desencadeou polémicas. Um analista português do Instituto de Investigação para a Paz de Oslo leu o prémio nas entrelinhas e explica por que o considera “altamente político” e uma derrota para a política externa portuguesa

Encontro de voluntários da ICAN, realizado em Londres, a 6 e 7 de julho de 2015 ICAN

A atribuição de um Nobel da Paz a causas — e não tanto a personalidades — isenta a escolha, normalmente, de grandes críticas e polémicas. Foi o que aconteceu este ano com a distinção da Campanha Internacional para a Abolição das Armas Nucleares (ICAN), uma organização não governamental com sede em Genebra e parceiros em mais de 100 países. Limpar o mundo de um poder tal, mortífero e destruidor, não pode, humanamente, merecer objeções. Mas…

“Apesar de ser tentador pensar que este é um daqueles Nobel que nos provoca boas sensações, em que se premeia uma ONG sem entrar em polémicas com os Estados mais poderosos, interpreto este Nobel como sendo altamente político”, comenta ao “Expresso” Bruno Oliveira Martins, investigador no Instituto de Investigação para a Paz de Oslo (PRIO). “Envia uma mensagem forte a todos aqueles que foram e são responsáveis pelo contexto internacional em que estamos. Pela primeira vez em muitos anos, um conflito nuclear internacional não parece totalmente impossível.”

https://twitter.com/nuclearban/status/883362944456810497

Nos últimos meses, dois assuntos competem perigosamente para pôr o mundo à beira de um ataque de nervos. Por um lado, a crescente tensão no Pacífico, com a Coreia do Norte a testar, com regularidade, armas nucleares cada vez mais potentes e ameaçadoras, e a retórica entre Pyongyang e Washington a ganhar contornos cada vez mais belicistas.

Este sábado, recorrendo ao Twitter, Donald Trump deitou mais lenha para a fogueira: “Os Presidentes e os seus governos andam há 25 anos a falar com a Coreia do Norte, foram feitos acordos e pagas grandes quantidades de dinheiro… e não funcionou, os acordos foram violados antes da tinta secar, fazendo de tolos os negociadores dos Estados Unidos. Desculpem, mas só uma coisa vai resultar!”

Um segundo tema quente é a incerteza quanto ao futuro do acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano, alcançado em Viena, a 14 de julho de 2015 e assinado pelo P5+1 (EUA, Rússia, China, Reino Unido, França e Alemanha) e pelo Irão. Esta semana, durante uma sessão fotográfica, na Casa Branca, com responsáveis militares, com quem se reuniu, Donald Trump afirmou, de forma enigmática, diante dos repórteres: “Vocês sabem o que é que isto representa? Talvez a calma antes da tempestade…”

Apesar da insistência dos jornalistas, o Presidente dos EUA não concretizou a que se referia, mas não faltou quem recordasse que a 15 de outubro a Administração norte-americana tem de certificar o cumprimento do acordo por parte de Teerão — um procedimento que se repete a cada 90 dias. Se a Casa Branca concluir pelo incumprimento, poderá haver lugar à reintrodução de sanções económicas ao Irão por parte do Congresso.

Boicote ao Tratado

“É inevitável pensar que entre os visados por este Nobel está, em primeiro lugar, Donald Trump e a sua Administração absolutamente errática e irresponsável”, refere o investigador português. “Trump está a criar instabilidade e imprevisibilidade nos dois cenários internacionais com mais potencial para conflito: Coreia do Norte e Irão. Naturalmente que as provocações principais surgem da Coreia do Norte, mas é verdade que essas provocações sempre existiram e sempre foram geridas de forma a conter a ameaça, não a potenciá-la.”

Um segundo alvo deste Nobel, para este analista, são os países que “boicotaram” o Tratado para a Proibição de Armas Nucleares, aprovado a 7 de julho passado, nas Nações Unidas. O documento, que resultou do trabalho da ICAN, passou com os votos de 122 países — nenhum deles detentor de ogivas nucleares, nenhum deles membro da NATO… “A palavra é mesmo boicote, porque, com a exceção da Holanda, que votou contra, todos esses Estados estiveram ausentes da votação”, diz Bruno Oliveira Martins.

Para além de estar ausente da votação, Portugal não participou nas negociações do Tratado, uma posição antecipada a 23 de dezembro de 2016, quando votou contra a resolução 71/258 da Assembleia Geral da ONU, que estabeleceu o mandato para os países negociarem o Tratado. Portugal argumenta que “as armas nucleares dos Estados Unidos são essenciais à sua segurança”, lê-se no sítio da ICAN. Esta posição é partilhada por outros 29 países, na sua esmagadora maioria membros da NATO. “Há que dizê-lo claramente que este Nobel vai explicitamente contra uma opção de política externa portuguesa”, comenta o investigador.

https://twitter.com/antonioguterres/status/916267044353474560

No sítio da ICAN, lê-se que o Tratado entrará em vigor assim que 50 países o ratifiquem. Até ao momento, foi assinado por 53 países e ratificado por apenas três, uma meta insuficiente para que possa aumentar a pressão sobre o “clube do nuclear” — sejam os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas (EUA, Rússia, China, Reino Unido e França) sejam países como Índia, Paquistão e Israel, detentores de arsenais atómicos e que nunca assinaram o Tratado de Não Proliferação Nuclear, em vigor desde 1970.

Tratado e Nobel são, por isso, instrumentos importantes para a cruzada anti-nuclear. “Obrigam a que haja um maior debate interno nos Estados e que a questão do desarmamento nuclear abandone o nicho das ONG pacifistas e entre na esfera da política real.”

O investigador do PRIO recorda que, no passado, esta fórmula já deu frutos. A 10 de outubro de 1997, a Academia Nobel atribuiu o galardão da Paz à Campanha Internacional para a Eliminação de Minas. Menos de dois meses depois, era assinado o Tratado de Otava, que entraria em vigor em 1999. “Gerou-se um grande consenso em torno de uma oposição incondicional às minas pessoais”, recorda o analista. “No caso do nuclear, estamos muito longe disso, mas este passo é importante.”

Yes, I CAN

A viver em Oslo, Bruno Oliveira Martins conhece de perto o trabalho do braço norueguês da ICAN e, através dele, a própria organização. “Julgo que a questão mais interessante em torno da ICAN é a estratégia e a lógica intelectual seguida para atingir os objetivos. A argumentação da ICAN tem a ver não com considerações geostratégicas ou geopolíticas, mas com princípios humanitários relacionados com o caráter arbitrário e desproporcional dos danos causados pelas armas nucleares.”

O investigador realça o facto da ICAN ser um movimento das bases, que emerge do seio da sociedade civil. “Está nos antípodas da política das grande potências que normalmente envolve as questões nucleares. É um movimento amplo, aberto, baseado em ONG e em muito voluntariado por parte de pessoas que efetivamente acreditam nesta causa e que entregam as suas vidas à luta por um mundo sem armas nucleares.

Subtilmente, a sigla, em inglês, ICAN tem um apelo implícito a esse voluntarismo e contributo individual: “i can” (eu posso, em inglês).

“Em vários países da NATO, sendo ou não potências nucleares — incluindo aqui na Noruega —, o trabalho desta organização, e dos seus parceiros, é sujeito a grandes pressões e críticas por parte dos governos nacionais, que os consideram idealistas e, por vezes, demagogos e populistas. Por tudo isso”, conclui, “este Nobel é efetivamente político.”

Artigo publicado no Expresso Online, a 8 de outubro de 2017. Pode ser consultado aqui

Quando os Nobel da Paz contribuem para a guerra

Aung San Suu Kyi está a ser criticada por não defender a minoria rohingya. Não é caso único entre aqueles que receberam o Nobel da Paz. Nem sempre o percurso dos galardoados corresponde às expectativas e, noutros casos, é o próprio Comité que nunca deu o Nobel da Paz a Mahatma Gandhi, por exemplo a distinguir personalidades implicadas em episódios de violência. Seis casos foram particularmente controversos

Aung San Suu Kyi

De Nobel para Nobel. O líder dos budistas do Tibete, Dalai Lama (Nobel da Paz 1989), apelou na semana passada à líder da oposição na Birmânia, Aung San Suu Kyi (Nobel da Paz 1991), que faça alguma coisa em defesa dos rohingya, a minoria muçulmana que enfrenta uma situação de perseguição naquele país de maioria budista.

“É muito triste. Espero que Aung San Suu Kyi, enquanto Nobel da Paz, possa fazer alguma coisa”, disse o Dalai Lama. “Eu estive com ela duas vezes, em Londres e depois na República Checa. Falei do assunto e ela disse-me que tinha algumas dificuldades, que as coisas eram muito complicadas. Mas apesar disso eu sinto que ela pode fazer alguma coisa.”

Aung San Suu Kyi, que completa 70 anos a 19 de junho, tem sido criticada por não se pronunciar sobre o drama dos rohingya discriminados internamente e rejeitados externamente, como o demonstra os barcos à deriva, cheios de gente desesperada, junto às costas da Tailândia, Indonésia e Malásia, sem que estes países lhe abram portas.

Em declarações ao “Expresso”, Akihisa Matsuno, professor na Universidade de Osaka (Japão) especializado em assuntos do Sudeste Asiático, descodifica o silêncio da Nobel da Paz. “O assunto dos rohingya é difícil não só para Aung San Suu Kyi, mas para qualquer político birmanês. Mesmo os ativistas pró-democracia não têm coragem de falar sobre o problema.”

Falar dos rohingya arruína a carreira política

Na Birmânia (país também chamado Myanmar), quer as populações budistas quer as minorias étnicas que vivem no país algumas das quais lutam por autonomia ou autodeterminação olham para os rohingya como estrangeiros (bangladeshianos) e não como cidadãos birmaneses. “Neste aspeto, todos estão de acordo”, comenta o professor Matsuno. “Se Aung San Suu Kyi falar dos rohingya, ela e a sua Liga Nacional para a Democracia (LND) perderão apoio e verão a popularidade de todo o movimento democrático afetada.”

Em 2012, quando de uma digressão da Nobel birmanesa pela Europa, ela falou publicamente do assunto e logo foi dissuadida por conselheiros a não voltar a fazê-lo. “Para qualquer político na Birmânia, falar dos rohingya significa o fim da sua carreira política”, refere o académico japonês.

A Birmânia tem eleições parlamentares previstas para o final do ano. Estará então em causa a eleição de 75% dos lugares os restantes 25% são nomeados pelo regime. A seguir ao ato eleitoral, um colégio eleitoral designará o chefe de Estado Suu Kyi está impedida de se candidatar aos cargos de presidente ou vice-presidente uma vez que os seus filhos não têm nacionalidade birmanesa (são britânicos).

Para alterar este preceito constitucional, é necessário o apoio de mais de 75% dos deputados, uma fasquia difícil de superar dada a lealdade de (pelo menos) 25% dos deputados ao regime liderado pelo ex-general Thein Sein. “Até ao momento, não houve pressão internacional suficiente para que o regime considere rever a Constituição”, comenta o professor da Universidade de Osaka.

Objetivo é sobreviver e ganhar as eleições

“É um erro assumir que Aung San Suu Kyi tem uma ambição pessoal de liderar o país. Mas a sua LND e um ciclo alargado de políticos e ativistas pró-democracia têm de sobreviver e têm de ganhar as próximas eleições. É o objetivo dela neste momento. A LND é totalmente dependente de Aung San Suu Kyi sem qualquer outro político à altura de a substituir. O problema dos rohingya surgiu numa má altura para ela e para o movimento pró-democracia em geral”, defende Akihisa Matsuno.

“A comunidade internacional deveria condenar o Governo da Birmânia, e não Suu Kyi. Também deveria condenar o monge budista radical que instiga a violência (Ashin Wirathu), e não a LND.”

Com a violência anti-rohingya concentrada sobretudo na província de Rakhine, junto à fronteira com o Bangladesh, Akihisa Matsuno acredita que esta comunidade corre o risco de ser totalmente expulsa da província. “Seria uma versão birmanesa de limpeza étnica. Não penso ou não quero pensar que haverá um genocídio, porque tal não poderá acontecer se não for organizado de forma sistemática por determinadas autoridades. Instigar a violência pode contribuir para a morte de dezenas de pessoas, mas sem a intervenção dos militares julgo que não haverá assassínios em massa em grande escala. O regime sabe que seria fatal para si. A comunidade internacional não iria tolerar. Mas o que o regime pode fazer é instigar pessoas comuns para que empurrem os rohingya na direção do mar.”

AUNG SAN SUU KYI NÃO ESTÁ SÓ…

BARACK OBAMA  Com apenas nove meses na Casa Branca, Barack Obama recebeu o Nobel da Paz 2009 para surpresa geral. Aos comentários de que o Nobel era precipitado e tinha motivações políticas sucederam-se críticas à atuação do próprio laureado: a coberto da guerra contra o terrorismo internacional, Obama mandou bombardear no Iraque, Afeganistão, Líbia, Paquistão e Iémen, nestes dois últimos casos com aviões não tripulados (drones)

LIU XIAOBO — Galardoado pela sua luta não violenta em prol dos direitos humanos na China, Liu Xiaobo foi criticado por ter apoiado intervenções militares dos Estados Unidos. “O mundo livre liderado pelos EUA combateu quase todos os regimes que esmagaram os direitos humanos. As grandes guerras em que os EUA se envolveram são todas eticamente defensáveis”, escreveu em 1996, num artigo intitulado “Lições da Guerra Fria”. Viu-lhe ser atribuído o Nobel da Paz de 2010, mas Pequim impediu-o de ir recebe-lo. E para protestar contra esse reconhecimento, instituiu o Prémio Confúcio da Paz, atribuído na mesma altura do Nobel

HENRY KISSINGER — Mais de 40 anos depois do fim da guerra do Vietname, muitos continuam a pedir a prisão do então secretário de Estado norte-americano, pelo seu papel no conflito. Kissinger recebeu o Nobel da Paz em 1973, juntamente com o líder vietnamita Le Duc Tho, o qual declinou o prémio dizendo que os Acordos de Paz de Paris não estavam a ser aplicados na sua plenitude. O Nobel a Kissinger é considerado o mais controverso de sempre

YASSER ARAFAT — Em 1994, o Comité Nobel reconheceu os protagonistas da paz celebrada no Médio Oriente e premiou o líder palestiniano Yasser Arafat e os israelitas Yitzhak Rabin e Shimon Peres. Os críticos de Arafat recordaram então o passado violento da Organização de Libertação da Palestina, que liderava, nomeadamente o período na década de 70 que ficou conhecido como “Setembro Negro”. Kare Kristiansen, membro do Comité Nobel, demitiu-se do cargo em protesto contra a escolha. A Arafat chamou “o terrorista mais proeminente do mundo”

ANWAR SADAT & MENACHEM BEGIN — O Nobel da Paz de 1978 foi entregue ao Presidente egípcio Anwar Sadat e ao primeiro-ministro israelita Menachem Begin. Através do Acordo de Camp David, ambos celebraram a paz entre os respetivos países, que dura até hoje. Mas no passado, os dois tinham-se destacado na guerra contra o colonizador britânico. Em 2006, um livro do jornalista alemão Henning Sietz defendeu que Begin participou, em 1952, numa tentativa de assassínio contra o chanceler alemão Konrad Adenauer

HULL CORDELL — Hull Cordell recebeu o Nobel da Paz em 1945 pelo seu contributo para a criação da Organização das Nações Unidas. Cordell tinha sido secretário de Estado do Presidente Franklin D. Roosevelt e protagonista da polémica à volta do St. Louis, uma embarcação que transportava cerca de 950 judeus, em fuga aos horrores do regime nazi, e que em 1939 se acercou do Estreito da Florida para atracar nos EUA. Cordell defendeu junto de Roosevelt a recusa da entrada, posição que prevaleceu, e o St. Louis viu-se forçado a regressar à Europa: um quarto dos seus passageiros morreu nas câmaras de gás

Artigo publicado no Expresso Online, a 1 de junho de 2015. Pode ser consultado aqui e aqui

O silêncio da Nobel da Paz

Aung San Suu Kyi tem sido criticada por não falar dos rohingya, mas neste país fazê-lo pode custar uma carreira política

Selo norueguês dedicado a Aung San Suu Kyi, Nobel da Paz 1991

Treze anos após ter recebido o Prémio Nobel da Paz, Aung San Suu Kyi é cada vez mais contestada por reagir ao drama dos rohingya… com silêncio. “A questão dos rohingya é difícil não só para Aung San Suu Kyi mas para todos os políticos birmaneses. Nenhum líder político, incluindo os ativistas pró-democracia, tem coragem suficiente para falar do problema”, explicou ao Expresso Akihisa Matsuno, professor na Universidade de Osaca (Japão), perito em assuntos do Sudeste Asiático. “Os birmaneses budistas mas também minorias étnicas que têm lutado pela autonomia ou pela autodeterminação não olham para os rohingya como compatriotas, mas como estrangeiros (bangladeshianos). Nisso estão todos de acordo.”

Desafiar essa retórica tão profundamente enraizada na sociedade trará inevitavelmente consequências. “Se Aung San Suu Kyi falar dos rohingya, ela e a sua Liga Nacional para a Democracia (o principal partido da oposição) perderão apoio interno, o que afetará a popularidade de todo o movimento democrático”, refere Matsuno. “Para os políticos birmaneses, falar dos rohingya significa o fim das suas carreiras políticas.”

Em novembro, a Birmânia realizará eleições parlamentares. Depois, um colégio eleitoral escolherá o próximo chefe de Estado. Suu Kyi, que fará 70 anos a 19 de junho, está impedida de se candidatar a Presidente ou vice-presidente — os seus filhos não têm nacionalidade birmanesa (são britânicos). Para alterar essa cláusula na Constituição é necessário o apoio de mais de 75% dos deputados — 25% dos parlamentares são nomeados pelos militares no poder.

“Não posso provar que o regime esteja a incitar à violência em Rakhine, mas intencionalmente não toma medidas contra a escalada. Deixa que aconteça e explora o sentimento popular de que, quem apoia os ‘estrangeiros’ não tem patriotismo para liderar o país”, explica Matsuno. “O regime pode ter a secreta esperança de que Aung San Suu Kyi mencione os rohingya num deslize. É sabido que o regime tem um histórico de tentativas de descrédito de Suu Kyi com o trunfo nacionalista. É muito provável que, neste caso, espere ter o mesmo efeito.”

Artigo publicado no Expresso, a 30 de maio de 2015