Há mais de um ano que sete países negoceiam, em Viena, uma segunda vida para o acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano. Quando parecia iminente um entendimento, a guerra na Ucrânia e as pesadas sanções a Moscovo condicionaram a posição da Rússia. Esta segunda-feira, a Agência Internacional de Energia Atómica debruça-se sobre relatórios internos que identificam vários incumprimentos por parte do Irão
A ambição do Irão em dotar-se de um programa nuclear tem um potencial incendiário tal que, de tempos a tempos, coloca o mundo à beira de um ataque de nervos. Esta segunda-feira, o Conselho de Governadores da Agência Internacional de Energia Atómica avalia a resposta que a República Islâmica tem dado aos compromissos assumidos no âmbito do acordo internacional de 2015.
Este balanço acontece numa altura em que mais de um ano de negociações em Viena, envolvendo os mesmos sete países que patrocinaram o acordo de há sete anos, não conseguiu ainda dar nova vida a esse entendimento, ferido em 2018 pela saída dos Estados Unidos. E coincide com a guerra na Ucrânia, que motivou uma alteração do posicionamento da Rússia no dossiê iraniano.
Enquanto não se percebe em que sentido evolui este dossiê, o Expresso apresenta quatro perguntas e respostas para melhor compreender o que está em causa e o contexto geopolítico que rodeia um dos maiores desafios políticos da atualidade.
Como olha a Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) para o Irão?
Presentemente, com alguma desconfiança. Esta segunda-feira, o Conselho de Governadores da organização discute o cumprimento pelo Irão dos compromissos assumidos no acordo de 2015, com base em relatórios recentes — penalizadores para Teerão — do diretor-geral da AIEA.
Entre as várias falhas apontadas pela Agência, estão:
- a falta de resposta das autoridades iranianas a perguntas da Agência relativamente à origem de partículas de urânio encontradas numa instalação nuclear antiga, mas não declarada;
- o aumento das reservas de urânio enriquecido para 3809,3 kg, um número mais de 18 vezes superior ao limite fixado pelo acordo de 2015, que era de 202,8 kg;
- a dificuldade de acesso às gravações das câmaras de vigilância colocadas pela Agência em centrais iranianas.
“Suponho que deva abster-me de tirar uma conclusão final, pois ainda não finalizámos o processo, mas permitam-me que diga que estamos numa conjuntura muito difícil”, admitiu recentemente o diretor-geral da AIEA, o argentino Rafael Mariano Grossi, num discurso no Fórum Económico Mundial, em Davos.
As dúvidas AIEA constituem fonte de tensão acrescida entre o Irão e os países ocidentais, envolvidos em negociações que visam a revitalização do acordo de 2015.
Que resta desse histórico compromisso internacional?
O acordo que colocou o arsenal nuclear do Irão sob supervisão internacional, em troca do levantamento de sanções, sobreviveu à saída unilateral dos Estados Unidos, ordenada pelo então Presidente Donald Trump. Contudo, foi perdendo eficácia, já que, após a reintrodução das sanções norte-americanas suspensas pelo acordo, o Irão não se achou mais obrigado em cumpri-lo no desenvolvimento das suas atividades nucleares.
Com a mudança de inquilino na Casa Branca, voltou a haver vontade política em Washington no sentido de um regresso ao acordo, mas tal não pode ser feito de forma automática. Os iranianos, sentindo-se traídos pela deserção dos norte-americanos, não abdicam de impor condições a esse regresso. Até porque não têm garantias de que as eleições presidenciais de 2024 não coloquem um republicano na Casa Branca, o que aumentaria a possibilidade de um compromisso com o Irão voltar a ser rasgado.
Desde abril de 2021 que decorrem negociações, em dois hotéis de luxo da capital da Áustria — o Grand Hotel Wien e o Palais Coburg —, com vista à reativação do acordo de 2015 (também conhecido pelo acrónimo inglês JCPOA, de Joint Comprehensive Plan of Action). Na prática, isso passa por reintegrar os Estados Unidos e levar o Irão a reafirmar os compromissos assumidos.
Participam neste diálogo os mesmos sete países que assinaram o acordo de 2015: além do Irão, os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas (Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido e França) e ainda a Alemanha. Washington e Teerão — que não têm relações diplomáticas formais — não dialogam olhos nos olhos, mas de forma indireta.
Um diplomata espanhol, Enrique Mora, é o negociador-mor deste diálogo, em nome do Alto representante da União Europeia para a Política Externa e de Segurança, Josep Borrell.
Em meados de fevereiro, um compromisso parecia bem encaminhado. A 22, Mora escrevia no Twitter: “As conversações de Viena sobre o JCPOA estão num momento crucial. Estamos a aproximar-nos do fim após dez meses de negociações. O resultado ainda é incerto. Assuntos importantes precisam de ser resolvidos. Mas todas as delegações estão totalmente comprometidas. Trabalho intenso no Coburg”.
A sua publicação post seguinte, dois dias depois, seria de condenação à agressão da Rússia à Ucrânia, que contaminaria o processo iraniano.
De que forma a guerra na Ucrânia interfere nesta questão?
Se, em 2018, foram os Estados Unidos de Trump a abalar os alicerces do acordo sobre o nuclear iraniano (com a retirada unilateral), em 2022 é a Rússia de Vladimir Putin que torna o dossiê refém do conflito na Ucrânia.
Confrontado com um isolamento internacional em amplos domínios, justificado com a agressão à Ucrânia, o regime de Moscovo mudou a sua posição nas negociações internacionais com o Irão. No início de março, de forma inesperada, a Rússia exigiu aos Estados Unidos “garantias escritas” de que a sua relação comercial com o Irão, bem como a cooperação militar e os investimentos não seriam afetados pelas sanções à Rússia.
A possibilidade do colapso nas negociações chegou a Viena e as negociações pararam por tempo indeterminado. A 11 de março, o chefe da diplomacia da UE, Borrell confirmava: “É necessária uma pausa nas conversações de Viena, devido a fatores externos. Um texto final está essencialmente pronto e sobre a mesa”.
Para os países que tiraram lições da guerra na Ucrânia e querem acabar com a sua dependência energética em relação à Rússia, o levantamento das sanções ao petróleo e gás do Irão criaria mais abundância nos mercados internacionais e previsivelmente estabilizaria os preços da energia, inflacionados pela guerra na Ucrânia. Algo em que a pressionada Rússia não está interessada.
Como se posiciona o Irão perante tudo isto?
Para os iranianos, o impasse negocial significa a continuidade das sanções internacionais. Pelo acordo de 2015, Teerão obteve garantias de que as sanções seriam levantadas. Com isso não só conseguiria alívio ao nível das contas públicas como capitalizaria com a alta do preço do petróleo.
Só em bancos da Coreia do Sul, um dos maiores clientes do crude iraniano, o Irão tem congelados 7000 milhões de dólares (€6500 milhões) em fundos.
Outro braço de ferro é a exigência do Irão para que os Estados Unidos retirem da lista de organizações terroristas os Guardas da Revolução, força de elite iraniana criada após a Revolução Islâmica de 1979, assim rotulada à época da Administração Trump.
Desde que há novo Presidente em Teerão — Ebrahim Raisi tomou posse em agosto de 2021 — e face às dificuldades num entendimento com o Ocidente, a Rússia tem surgido como parceiro preferencial e de futuro para o Irão. Raisi já visitou Putin no Kremlin e Hossein Amir-Abdollahian, o ministro iraniano dos Negócios estrangeiros, foi a Moscovo pelo menos sete vezes.
Ao quarto dia da invasão russa da Ucrânia, 300 empresários russos, de sectores como as indústrias química, farmacêutica e alimentar, chegaram a Teerão para desenvolver relações comerciais e, previsivelmente, trocar opiniões e experiências sobre como contornar o cerco internacional. Além das sanções, ambos os países estão excluídos do sistema internacional de pagamentos SWIFT.
Para os iranianos, o colapso destas negociações significará rédea livre para desenvolverem o seu programa nuclear na direção que entenderem — para fins civis, militares ou ambos.
Sexta-feira passada, a convite do primeiro-ministro de Israel, o diretor-geral da AIEA realizou uma curta visita ao país. Naftali Bennett deixou claro a Grossi que “embora Israel prefira a diplomacia para privar o Irão da possibilidade de desenvolver armas nucleares, reserva-se o direito de autodefesa e de ação contra o Irão para travar o seu programa nuclear”. O Médio Oriente arrisca-se a ter mais um capítulo na sua longa história de conflitualidade.
(IMAGEM O acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano foi negociado pelo Irão e mais seis países BRUSSELS MORNING)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 6 de junho de 2022. Pode ser consultado aqui





