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Dossiê nuclear estava à beira de novo acordo, mas acabou refém da guerra na Ucrânia

Há mais de um ano que sete países negoceiam, em Viena, uma segunda vida para o acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano. Quando parecia iminente um entendimento, a guerra na Ucrânia e as pesadas sanções a Moscovo condicionaram a posição da Rússia. Esta segunda-feira, a Agência Internacional de Energia Atómica debruça-se sobre relatórios internos que identificam vários incumprimentos por parte do Irão

A ambição do Irão em dotar-se de um programa nuclear tem um potencial incendiário tal que, de tempos a tempos, coloca o mundo à beira de um ataque de nervos. Esta segunda-feira, o Conselho de Governadores da Agência Internacional de Energia Atómica avalia a resposta que a República Islâmica tem dado aos compromissos assumidos no âmbito do acordo internacional de 2015.

Este balanço acontece numa altura em que mais de um ano de negociações em Viena, envolvendo os mesmos sete países que patrocinaram o acordo de há sete anos, não conseguiu ainda dar nova vida a esse entendimento, ferido em 2018 pela saída dos Estados Unidos. E coincide com a guerra na Ucrânia, que motivou uma alteração do posicionamento da Rússia no dossiê iraniano.

Enquanto não se percebe em que sentido evolui este dossiê, o Expresso apresenta quatro perguntas e respostas para melhor compreender o que está em causa e o contexto geopolítico que rodeia um dos maiores desafios políticos da atualidade.

Como olha a Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) para o Irão?

Presentemente, com alguma desconfiança. Esta segunda-feira, o Conselho de Governadores da organização discute o cumprimento pelo Irão dos compromissos assumidos no acordo de 2015, com base em relatórios recentes — penalizadores para Teerão — do diretor-geral da AIEA.

Entre as várias falhas apontadas pela Agência, estão:

  • a falta de resposta das autoridades iranianas a perguntas da Agência relativamente à origem de partículas de urânio encontradas numa instalação nuclear antiga, mas não declarada;
  • o aumento das reservas de urânio enriquecido para 3809,3 kg, um número mais de 18 vezes superior ao limite fixado pelo acordo de 2015, que era de 202,8 kg;
  • a dificuldade de acesso às gravações das câmaras de vigilância colocadas pela Agência em centrais iranianas.

“Suponho que deva abster-me de tirar uma conclusão final, pois ainda não finalizámos o processo, mas permitam-me que diga que estamos numa conjuntura muito difícil”, admitiu recentemente o diretor-geral da AIEA, o argentino Rafael Mariano Grossi, num discurso no Fórum Económico Mundial, em Davos.

As dúvidas AIEA constituem fonte de tensão acrescida entre o Irão e os países ocidentais, envolvidos em negociações que visam a revitalização do acordo de 2015.

Que resta desse histórico compromisso internacional?

O acordo que colocou o arsenal nuclear do Irão sob supervisão internacional, em troca do levantamento de sanções, sobreviveu à saída unilateral dos Estados Unidos, ordenada pelo então Presidente Donald Trump. Contudo, foi perdendo eficácia, já que, após a reintrodução das sanções norte-americanas suspensas pelo acordo, o Irão não se achou mais obrigado em cumpri-lo no desenvolvimento das suas atividades nucleares.

Com a mudança de inquilino na Casa Branca, voltou a haver vontade política em Washington no sentido de um regresso ao acordo, mas tal não pode ser feito de forma automática. Os iranianos, sentindo-se traídos pela deserção dos norte-americanos, não abdicam de impor condições a esse regresso. Até porque não têm garantias de que as eleições presidenciais de 2024 não coloquem um republicano na Casa Branca, o que aumentaria a possibilidade de um compromisso com o Irão voltar a ser rasgado.

Desde abril de 2021 que decorrem negociações, em dois hotéis de luxo da capital da Áustria — o Grand Hotel Wien e o Palais Coburg —, com vista à reativação do acordo de 2015 (também conhecido pelo acrónimo inglês JCPOA, de Joint Comprehensive Plan of Action). Na prática, isso passa por reintegrar os Estados Unidos e levar o Irão a reafirmar os compromissos assumidos.

Participam neste diálogo os mesmos sete países que assinaram o acordo de 2015: além do Irão, os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas (Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido e França) e ainda a Alemanha. Washington e Teerão — que não têm relações diplomáticas formais — não dialogam olhos nos olhos, mas de forma indireta.

Um diplomata espanhol, Enrique Mora, é o negociador-mor deste diálogo, em nome do Alto representante da União Europeia para a Política Externa e de Segurança, Josep Borrell.

Em meados de fevereiro, um compromisso parecia bem encaminhado. A 22, Mora escrevia no Twitter: “As conversações de Viena sobre o JCPOA estão num momento crucial. Estamos a aproximar-nos do fim após dez meses de negociações. O resultado ainda é incerto. Assuntos importantes precisam de ser resolvidos. Mas todas as delegações estão totalmente comprometidas. Trabalho intenso no Coburg”.

A sua publicação post seguinte, dois dias depois, seria de condenação à agressão da Rússia à Ucrânia, que contaminaria o processo iraniano.

De que forma a guerra na Ucrânia interfere nesta questão?

Se, em 2018, foram os Estados Unidos de Trump a abalar os alicerces do acordo sobre o nuclear iraniano (com a retirada unilateral), em 2022 é a Rússia de Vladimir Putin que torna o dossiê refém do conflito na Ucrânia.

Confrontado com um isolamento internacional em amplos domínios, justificado com a agressão à Ucrânia, o regime de Moscovo mudou a sua posição nas negociações internacionais com o Irão. No início de março, de forma inesperada, a Rússia exigiu aos Estados Unidos “garantias escritas” de que a sua relação comercial com o Irão, bem como a cooperação militar e os investimentos não seriam afetados pelas sanções à Rússia.

A possibilidade do colapso nas negociações chegou a Viena e as negociações pararam por tempo indeterminado. A 11 de março, o chefe da diplomacia da UE, Borrell confirmava: “É necessária uma pausa nas conversações de Viena, devido a fatores externos. Um texto final está essencialmente pronto e sobre a mesa”.

Para os países que tiraram lições da guerra na Ucrânia e querem acabar com a sua dependência energética em relação à Rússia, o levantamento das sanções ao petróleo e gás do Irão criaria mais abundância nos mercados internacionais e previsivelmente estabilizaria os preços da energia, inflacionados pela guerra na Ucrânia. Algo em que a pressionada Rússia não está interessada.

Como se posiciona o Irão perante tudo isto?

Para os iranianos, o impasse negocial significa a continuidade das sanções internacionais. Pelo acordo de 2015, Teerão obteve garantias de que as sanções seriam levantadas. Com isso não só conseguiria alívio ao nível das contas públicas como capitalizaria com a alta do preço do petróleo.

Só em bancos da Coreia do Sul, um dos maiores clientes do crude iraniano, o Irão tem congelados 7000 milhões de dólares (€6500 milhões) em fundos.

Outro braço de ferro é a exigência do Irão para que os Estados Unidos retirem da lista de organizações terroristas os Guardas da Revolução, força de elite iraniana criada após a Revolução Islâmica de 1979, assim rotulada à época da Administração Trump.

Desde que há novo Presidente em Teerão — Ebrahim Raisi tomou posse em agosto de 2021 — e face às dificuldades num entendimento com o Ocidente, a Rússia tem surgido como parceiro preferencial e de futuro para o Irão. Raisi já visitou Putin no Kremlin e Hossein Amir-Abdollahian, o ministro iraniano dos Negócios estrangeiros, foi a Moscovo pelo menos sete vezes.

Ao quarto dia da invasão russa da Ucrânia, 300 empresários russos, de sectores como as indústrias química, farmacêutica e alimentar, chegaram a Teerão para desenvolver relações comerciais e, previsivelmente, trocar opiniões e experiências sobre como contornar o cerco internacional. Além das sanções, ambos os países estão excluídos do sistema internacional de pagamentos SWIFT.

Para os iranianos, o colapso destas negociações significará rédea livre para desenvolverem o seu programa nuclear na direção que entenderem — para fins civis, militares ou ambos.

Sexta-feira passada, a convite do primeiro-ministro de Israel, o diretor-geral da AIEA realizou uma curta visita ao país. Naftali Bennett deixou claro a Grossi que “embora Israel prefira a diplomacia para privar o Irão da possibilidade de desenvolver armas nucleares, reserva-se o direito de autodefesa e de ação contra o Irão para travar o seu programa nuclear”. O Médio Oriente arrisca-se a ter mais um capítulo na sua longa história de conflitualidade.

(IMAGEM O acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano foi negociado pelo Irão e mais seis países BRUSSELS MORNING)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 6 de junho de 2022. Pode ser consultado aqui

Novo acordo nuclear à vista

Viena acolhe há 10 meses negociações sobre o nuclear iraniano. O negociador-mor garante: “Aproximamo-nos do fim”

A bandeira do Irão numa bomba FREE*SVG

Que é feito do acordo sobre o programa nuclear iraniano?

Há negociações em curso com vista à sua reativação e um novo compromisso pode estar a dias de ser anunciado. “As conversações sobre o [acordo] nuclear em Viena estão a chegar a um ponto sensível e importante”, alertou, quarta-feira, o ministro iraniano dos Negócios Estrangeiros, Hossein Amirabdollahian. “Questionamo-nos se o lado ocidental pode adotar uma abordagem realista para avançarmos para os restantes pontos das conversações.” Enrique Mora, o coordenador dos trabalhos em nome do chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, confirmou no Twitter a aproximação à meta. As conversações “estão num momento crucial. Aproximamo-nos do fim após 10 meses de negociações. O resultado é ainda incerto”.

O que se conhece do novo compromisso?

O objetivo é o mesmo de sempre — colocar o programa nuclear do Irão sob supervisão internacional —, mas as negociações estão a contemplar a associação de aspetos inéditos, como a libertação de ocidentais detidos no Irão. O levantamento das sanções é a principal contrapartida de Teerão, designadamente o descongelamento de sete mil milhões de dólares (€6200 milhões) em fundos que o Irão tem em bancos da Coreia do Sul, um dos maiores clientes do crude iraniano.

Que dizem os detratores de um entendimento?

“Podemos ver um acordo em breve”, mas será “mais curto e mais fraco do que o anterior” e permitirá que Teerão construa uma enorme quantidade “de centrifugadoras avançadas sem restrições” quando o acordo expirar, profetizou esta semana Naftali Bennett, primeiro-ministro de Israel. Este país sempre disse que não permitiria que o Irão tivesse armas nucleares.

Os EUA participam no diálogo em Viena?

Participam indiretamente. Há representantes norte-americanos na capital austríaca, mas as reuniões com os iranianos estão restritas à Rússia, China, França, Reino Unido e Alemanha. As negociações decorrem em quatro hotéis (Palais Coburg, Vienna Marriott, Ritz-Carlton e Hotel Imperial), onde estão hospedadas as sete delegações. O regresso dos EUA ao acordo, do qual saíram em 2018, por iniciativa de
Donald Trump, é um objetivo de Joe Biden.

A crise na Ucrânia está a afetar as negociações?

Pode ser surpreendente, mas não, apesar de o diálogo envolver a Rússia e países que já anunciaram sanções a Moscovo após a decisão de reconhecer a independência de Donetsk e Luhansk. A perspetiva da guerra avolumou preocupações sobre disrupções no fornecimento energético, o que está a atirar o preço do barril do petróleo para perto dos 100 dólares (€88). A perspetiva de, por força de um novo acordo, o Irão retomar as exportações de crude seria uma boa notícia.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 25 de fevereiro de 2022. Pode ser consultado aqui

Pode o diálogo salvar o acordo nuclear do Irão?

Seis países estão reunidos em Viena para tentar reativar o acordo sobre o programa nuclear iraniano. Os EUA, que se retiraram do entendimento, assistem à distância

1 Por que razão o acordo volta a ser discutido?

Assinado em 2015 por sete países, o acordo que colocou o programa nuclear do Irão sob supervisão internacional sofreu um duro golpe três anos depois. Donald Trump denunciou “um mau acordo”, retirou os Estados Unidos de forma unilateral e repôs sanções ao Irão, que afetaram duramente a exportação de petróleo.

A República Islâmica ripostou. Começou a violar limites assumidos no acordo, designadamente ao nível do enriquecimento de urânio, e dificultou o acesso total dos inspetores da ONU às suas instalações nucleares. Voltaram a soar alertas quanto a uma bomba nuclear em posse dos ayatollahs.

Esta semana, em Viena, foi retomado o diálogo para reativar o acordo.

2 Há pressa nestas conversações?

Muita, a atentar nas palavras de negociadores ocidentais. “Esta negociação é urgente”, defenderam, de forma inequívoca, representantes do Reino Unido, França e Alemanha, num comunicado. “Temos a certeza de que estamos a aproximar-nos do ponto em que a escalada do Irão ao nível do seu programa nuclear terá esvaziado completamente o JCPoA”, o acrónimo inglês do nome do acordo.

“Temos semanas, não meses, para concluir um acordo antes que os principais benefícios de não proliferação do JCPoA se percam.”

Mikhail Ulyanov, o negociador-chefe da Rússia, considerou esta jornada diplomática como “possivelmente a ronda final” das negociações.

3 Os EUA participam nestas negociações?

Apenas indiretamente. O diálogo que decorre no luxuoso hotel Palais Coburg — onde o acordo foi assinado há seis anos — está circunscrito ao Irão e ao grupo P4+1, ou seja, quatro membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (Rússia, China, França e Reino Unido) e Alemanha.

A saída dos EUA, que pôs o acordo à beira do colapso, acentuou a desconfiança entre os dois países, que não têm relações formais, e levou Teerão a rejeitar conversas diretas com Washington, apesar de Joe Biden ser pró-acordo. “Pode ter havido algum progresso modesto”, admitiu esta semana, em Washington, Ned Price, porta-voz do Departamento de Estado, sobre o que se passa na Áustria.

4 Qual é a posição do novo Governo iraniano?

Se o acordo de 2015 foi negociado por uma equipa liderada por um Presidente reformista (Hassan Rohani), desde agosto que o Irão tem um Presidente conservador (Ebrahim Raisi). Na sua primeira conferência de imprensa após tomar posse, Raisi prometeu que não iria permitir que as negociações se arrastassem e reiterou que o programa de mísseis balísticos do Irão (que os EUA tentaram incluir no acordo de 2015) “não é negociável”.

“Incorporamos as sensibilidades do novo Governo iraniano”, garantiu o diplomata espanhol Enrique Mora, coordenador da União Europeia em Viena. “Estamos exatamente no ponto em que devíamos estar se quisermos obter um resultado final de sucesso.”

5 O que poderá levar o Irão a fazer cedências?

A grave situação económica. No início do ano, um relatório do Banco Mundial identificou um “triplo choque” que contribui para a destruição do país. “A economia iraniana entrou num terceiro ano consecutivo de recessão a seguir ao triplo choque provocado pelas sanções, pelo colapso do mercado petrolífero e pela covid-19”, lê-se no documento.

Em Viena, Teerão tem como principal exigência o levantamento total das sanções ocidentais. Mas também é verdade que para o novo Presidente o diálogo com o Ocidente não é uma prioridade. Numa mudança significativa em relação ao antecessor, Ebrahim Raisi tem no horizonte não EUA e União Europeia, mas antes China e Rússia.

(FOTO Bandeiras dos participantes nas negociações que conduziram à assinatura do JCPOA, a 14 de julho de 2015, em Viena EUROPEAN EXTERNAL ACTION SERVICE)

Artigo publicado no “Expresso”, a 30 de dezembro de 2021. Pode ser consultado aqui

O puzzle de interesses à volta do programa nuclear

O norte-americano Joe Biden quer reverter a estratégia do seu antecessor para o Irão. O iraniano Ali Khamenei só aceita negociar se as sanções forem levantadas. E o israelita Benjamin Netanyahu fará de tudo para que não haja acordo

A velha máxima segundo a qual não se deve regressar ao local onde se foi feliz parece não se aplicar ao processo diplomático em torno do programa nuclear do Irão. Foi em Viena que, a 14 de julho de 2015, sete países assinaram um acordo que limitou as atividades nucleares iranianas, colocando-as sob supervisão internacional. É também na capital da Áustria que, desde 6 de abril, as mesmas partes tentam reativá-lo e minimizar os danos causados pela saída unilateral dos Estados Unidos, decidida por Donald Trump, em 2018.

EUA e Irão não têm relações diplomáticas e nutrem desconfiança mútua que os condiciona em contexto de aproximação. Houve, pois, que recorrer à criatividade para tornar a diplomacia possível. Em Viena, as duas delegações estão hospedadas em diferentes hotéis (o Grand Hotel Wien e o Imperial), que distam menos de 100 metros, cabendo a britânicos, franceses, alemães, russos e chineses a tarefa de andarem de um lado para o outro para se reunirem em separado.

Este diálogo sofreu um abalo esta semana, depois de a central de Natanz — principal infraestrutura nuclear iraniana — ter sofrido um apagão, na sequência de uma grande explosão que responsáveis iranianos não hesitaram em qualificar de “terrorismo nuclear”.

Ações de sabotagem

“Apesar de os EUA declararem que não estão envolvidos na operação que levou à explosão em Natanz, a desconfiança que já existia entre os responsáveis iranianos saiu reforçada”, comenta ao Expresso o iraniano Mohammad Eslami, do Centro de Investigação em Ciência Política da Universidade do Minho.

Teerão conteve-se na hora de apontar o dedo acusador, mas este ataque vem engrossar todo um historial de ações de sabotagem atribuídas a Israel, que vê no programa iraniano uma ameaça à sua existência. São exemplos o assassínio de cientistas nucleares (como Mohsen Fakhrizadeh, principal cientista do programa, em novembro passado), ataques cibernéticos (como o Stuxnet, em 2010, atribuído à Mossad e à CIA, que se estima tenha causado um atraso de anos ao programa); e ataques a navios iranianos.

Há muito que a tensão entre iranianos e israelitas transbordou do domínio verbal. Nas últimas semanas, tem sido visível uma escalada ao estilo de uma batalha naval

“Se é Israel que está por trás do ataque [em Natanz], fê-lo com dois objetivos”, enumera ao Expresso o israelita Ely Karmon, investigador do Centro Interdisciplinar de Herzliya (Israel). “Primeiro, com um objetivo operacional: travar o progresso do programa nuclear iraniano, que é real, uma vez que já começou a enriquecer urânio a 20% e iniciou o funcionamento com centrifugadoras avançadas (IR-9), que têm capacidade de separar isótopos de urânio 50 vezes mais depressa do que as centrifugadoras de primeira geração (IR-1). Depois, há um objetivo político: convencer os responsáveis ocidentais que estão a negociar em Viena a não ceder à pressão iraniana. O Irão quer regressar ao acordo original sem quaisquer restrições ao nível da produção de mísseis de longo alcance e da sua atuação agressiva na Síria, Líbano, Iraque e Iémen.”

O ataque a Natanz, no domingo, coincidiu com a visita a Israel do secretário da Defesa dos EUA, general Lloyd Austin. Ao lado do homólogo israelita Benny Gantz, o chefe do Pentágono reafirmou o compromisso “duradouro e blindado” dos EUA para com Israel. Mas, numa altura em que a Administração Biden se predispõe a dialogar com o arqui-inimigo de Israel, o aliado americano não se mostra sensível ao chavão israelita de que “é melhor nenhum acordo do que um mau acordo”.

Batalha naval

Há muito que a tensão entre iranianos e israelitas transbordou do domínio das palavras. Nas últimas semanas, tem sido visível uma escalada ao estilo de batalha naval. A 6 de abril, o exato dia em que começava o diálogo em Viena, o “Saviz”, navio de carga iraniano que se suspeita seja usado para apoiar os huthis no Iémen, foi atingido por uma mina no Mar Vermelho. Já esta semana, terça-feira, o navio comercial “Hyperion Ray”, de uma empresa israelita, foi atingido por mísseis quando navegava no Golfo Pérsico.

A economia iraniana entrou num terceiro ano consecutivo de recessão após o triplo choque causado pelas sanções, pelo colapso do mercado petrolífero e pela covid-19

Nessa mesma terça-feira, o Irão subiu a fasquia da pressão e informou a Agência Internacional de Energia Atómica de que vai começar a enriquecer urânio a 60% — quando chegar aos 90% poderá utilizar o minério em armamento.

“Isto vai melhorar significativamente a qualidade e a quantidade dos produtos radiofarmacêuticos”, regozijou-se Kazem Gharibabadi, representante do Irão junto da organização, enfatizando o argumento de Teerão de que só quer energia nuclear para fins pacíficos, nomeadamente para usar na área da saúde.

Trump falhou

Ao abrigo do acordo de 2015, o Irão está obrigado a respeitar uma percentagem máxima de enriquecimento de urânio de… 3,67%. Foi depois de os EUA se retirarem do acordo e adotarem uma estratégia de “pressão máxima”, reintroduzindo sanções, que o Irão começou a violar os compromissos.

“Muitos responsáveis do aparelho de Defesa israelita e muitos peritos, que em 2015 acharam que o acordo era mau e que a Administração Obama podia ter alcançado um melhor, opuseram-se às medidas de Trump”, recorda Karmon. “Hoje, consideram que a estratégia de Trump falhou e que os iranianos avançam ainda mais rapidamente na direção da bomba.”

No Irão, não se olha de forma unânime para as negociações com o Ocidente. “Há um grupo que as considera vitais para a sobrevivência do regime”, diz Eslami. “Outro ponto de vista, dominante, considera-as prejudiciais, ‘veneno que mata’ o regime, como qualificou o ayatollah Ali Khamenei”, Líder Supremo da República Islâmica.

Triplo choque

Para quem governa o país, as negociações podem ser tábua de salvação para grandes problemas. Em janeiro, um relatório do Banco Mundial identificou um “triplo choque” que destrói o país. “A economia iraniana entrou num terceiro ano consecutivo de recessão a seguir ao triplo choque provocado pelas sanções, pelo colapso do mercado petrolífero e pela covid-19”, lê-se. Não por acaso, em Viena, a principal reivindicação do Irão para voltar a cumprir o acordo é o levantamento das sanções.

“Ainda que algumas negociações produtivas, que melhorem o câmbio da moeda, diminuam a inflação e ajudem ao controlo da pandemia sejam cruciais para o Governo, e para os partidos reformistas que tentam atrair votos nas eleições [presidenciais de 18 de junho], a visão da liderança é a de não fazer compromissos”, diz Mohammad Eslami. “O Líder Supremo está sempre a promover a confiança nas capacidades internas, popularizada como ‘autossuficiência’.”

As eleições que se aproximam estão na sombra das conversações de Viena. O atual Presidente, Mohammed Rouhani, é reformista (defensor do diálogo com o Ocidente), mas a linha dura do regime tem argumentos para ambicionar resgatar o cargo — ‘o acordo foi uma traição’, ‘nada ganhamos com ele’. “A sugestão do Líder Supremo à nação para que eleja um Presidente ‘jovem e revolucionário’ reforça a ideia de que não está otimista em relação às negociações. Apesar de não ter dito o nome, a maioria dos analistas acredita que ‘jovem e revolucionário’ é um ‘código’ para Saeed Mohammad, general dos Guardas da Revolução [52 anos] profundamente antiocidental e antinegociações.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 16 de abril de 2021. Pode ser consultado aqui

À espera que o outro dê o primeiro passo

Diálogo entre iranianos e americanos está refém de pré-condições de ambas as partes

A chegada de Joe Biden à Casa Branca foi um bálsamo de esperança para a revitalização do acordo sobre o programa nuclear do Irão. Essa janela de oportunidade está, contudo, a fechar-se a cada dia que passa. Em junho haverá eleições presidenciais na república islâmica e, no tradicional braço de ferro entre candidatos da linha dura e moderados, começam a faltar argumentos aos últimos (como o Presidente Hassan Rohani) para continuarem a defender o diálogo com o Ocidente.

“Após a retirada dos Estados Unidos do acordo [decisão de Donald Trump], surgiu no Irão uma espécie de fobia à cooperação internacional. Muitos pensam: ‘Mesmo que façamos um novo acordo, que garantias temos de que os outros países vão respeitar os compromissos?’ Por causa desse ceticismo nas elites políticas e na sociedade iraniana, creio que vai haver mais votos em candidatos da linha dura”, diz ao Expresso o iraniano Mohammad Eslami, investigador na Universidade do Minho que se dedica aos estudos do Médio Oriente.

“Os moderados procuram preservar o interesse nacional em negociações internacionais. Os conservadores acham que o interesse nacional só fica garantido quando se é poderoso em termos militares, defendem que o Irão só pode confiar em si próprio e que a autossuficiência é o mais importante. Por isso acho que as pessoas vão escolher um conservador, que não vai negociar de forma alguma.”

Ciente de que a eleição de um Presidente da linha dura será a sentença de morte para o acordo nuclear, um dos seus principais negociadores, o ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano, Mohammad Javad Zarif, alertou esta semana: “O tempo está a esgotar-se para os americanos, tanto por causa do decreto do Parlamento [que obriga o Governo iraniano a endurecer a sua posição nuclear se as sanções não forem suavizadas até 21 de fevereiro] como devido à atmosfera eleitoral que se seguirá ao ano novo iraniano [celebrado a 21 de março].”

Só a Venezuela paga ao Irão

Depois de Biden se ter mostrado recetivo a um novo compromisso, Teerão e Washington hesitam em dar o primeiro passo. “O Irão diz que quem saiu da mesa da negociação primeiro tem de voltar à mesa da negociação primeiro”, diz o professor Eslami, invocando as palavras, há dias, do Líder Supremo do Irão, que detém o poder de decisão em matéria de política nuclear.

Os Estados Unidos “não têm direito a estabelecer condições. Quem tem direito a colocar condições à continuação do acordo é o Irão, porque o Irão cumpriu todos os seus compromissos desde o início”, disse o ayatollah Ali Khamenei. “Se querem que o Irão regresse aos seus compromissos, têm de levantar as sanções por completo.”

Face à perspetiva de recomeço, as partes querem maximizar ganhos. Para o Irão o interesse passa por vender petróleo e preservar a segurança, vendendo e comprando armas e equipamento militar. “O Irão perdeu oportunidades de vender petróleo, de ganhar dinheiro, por causa das sanções. Mesmo em tempos de pandemia, não conseguiu importar medicamentos”, diz Mohammad Eslami. “O Irão vendeu 7000 milhões de dólares [€5800 milhões] de petróleo à Coreia do Sul. O dinheiro está numa conta em Seul, mas o Irão não consegue mexer-lhe por causa das sanções. Há muitos países a reter dinheiro iraniano. Só a Venezuela está a pagar ao Irão.”

Esta semana, em entrevista à CBS, Biden defendeu que as sanções não serão levantadas enquanto o Irão não voltar aos níveis de enriquecimento de urânio a que está obrigado. O acordo nuclear prevê uma percentagem máxima de 3,67%, fasquia que o Irão começou a desrespeitar após a saída dos EUA — atualmente, enriquece a 20%.

“O interesse dos Estados Unidos, totalmente ligado ao de Israel, passa por controlar o Irão e parar o programa iraniano de mísseis balísticos de longo alcance”, diz o analista. “A força aérea do Irão é antiquada, o país não pode comprar carros de combate nem barcos de guerra, a única coisa com que se pode defender é o programa de mísseis balísticos. A doutrina militar iraniana depende muito deste programa, que significa dissuasão. O Irão não vai negociar a sua política de defesa.”

Governo Biden sensível ao tema

Na equipa governativa de Biden há vários nomes que, direta ou indiretamente, estiveram envolvidos na elaboração do acordo nuclear. O próprio Presidente e o secretário de Estado Antony Blinken eram, à época, vices dos cargos que agora ocupam. Há, pois, sensibilidade para o tema, mas nem o problema se resolve por decreto (como Biden resolveu o regresso do país ao Acordo de Paris) nem 2015 é 2021. Se a desconfiança mútua é constante desde a Revolução Islâmica de 1979, acentuou-se perigosamente com Trump.

“A saída dos Estados Unidos do acordo foi muito importante. Mas o principal ponto de viragem foi o assassínio do general Qasem Soleimani, que era um herói nacional, defendia o país e derrotou o Daesh”, conclui Eslami. “O povo iraniano não quer confiar nos Estados Unidos.”

SETE ANOS A (DES)CONFIAR

2015
A 14 de julho, Irão, EUA, Rússia, China, Reino Unido, França e Alemanha assinam um acordo sobre o programa nuclear. Em troca do fim das sanções, o Irão aceita limitar o enriquecimento de urânio e inspeções internacionais

2016
EUA e UE levantam sanções, a 16 de janeiro. No dia seguinte Obama aprova sanções visando o programa de mísseis balísticos do Irão (não incluído no acordo)

2017
Trump chega à Casa Branca a 20 de janeiro. A 17 de maio confirma a renúncia às sanções ao Irão

2018
A 8 de maio os EUA retiram-se do acordo, repõem sanções e anunciam uma estratégia de “pressão máxima” sobre o Irão. Este aumenta os níveis
de enriquecimento de urânio

2019
Os EUA rotulam os Guardas da Revolução (corpo de elite do Irão) de organização terrorista, a 8 de abril. O Irão declara que as forças americanas no Médio Oriente passam a ser alvos

2020
Um drone dos EUA mata o general iraniano Qasem Soleimani, a 3 de janeiro, no Iraque. Cinco dias depois, o Irão bombardeia duas bases dos EUA

2021
Biden chega à Casa Branca com vontade de novo pacto com o Irão

(FOTO Mural anti-Estados Unidos no muro da antiga embaixada norte-americana em Teerão PHILLIP MAIWALD / WIKIMEDIA COMMONS

Artigo publicado no “Expresso”, a 12 de fevereiro de 2021