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“A esperança e a alegria questionam o modelo de opressão de Israel.” Em Gaza, há palhaços a tentar animar quem tudo perdeu

Num território destruído e massacrado, como é hoje a Faixa de Gaza, o combate ao medo e ao trauma, sobretudo junto das crianças, passa muito pela tontice dos palhaços. Em entrevista ao Expresso, o galego Iván Prado, referência mundial do circo solidário, fala da intervenção da sua associação, Palhaços em Rebeldia, nos territórios palestinianos. Recorda um episódio antigo em Gaza que lhe despertou a consciência de que o palhaço é um interlocutor da parte da humanidade “que não se deixa vencer pelas bombas”

Na Faixa de Gaza, o sorriso é uma arma, ainda que ali não haja atualmente motivos para sorrir. No sul daquele território palestiniano, consumido por uma guerra sem trégua vai para quatro meses, uma brigada de “capacetes azuis do riso” desloca-se entre escolas e acampamentos de tendas, onde vivem amontoadas milhares de pessoas que ficaram sem teto.

Estes saltimbancos são habitantes de Gaza, com formação na área das artes circenses. Eles próprios foram afetados e deslocados pelo conflito. “Desde a primeira semana de guerra, temos trabalhado com as crianças, para aliviar o seu sofrimento. Temos esse dever humanitário e profissional para com elas”, diz ao Expresso Majid Elmosalami, coordenador das atividades. “Temos feito muitas atuações em escolas-abrigo e em tendas para refugiados. As pessoas acreditam que são sítios seguros, mas a verdade é que não são.”

Os animadores são alunos e formadores da Gaza Stars Circus School, uma escola de circo estabelecida em 2014, em Beit Lahia, no norte do território. Esta região foi o alvo prioritário dos bombardeamentos e da posterior ofensiva terrestre das forças israelitas. “Não sabemos se a nossa sede foi atingida, mas temos a certeza de que perdemos tudo nesta guerra”, continua o responsável.

Junto dos deslocados, os artistas começam por realizar atividades descontraídas, jogos de grupo e pinturas faciais para criar um clima de diversão. Depois assumem o protagonismo e fazem alguns números de circo, da forma mais criativa possível, tendo em conta o escasso material que têm ao dispor.

A arrecadação onde guardavam os acessórios para as atuações ficava numa escola que foi bombardeada. Com tudo reduzido a cinza, estes voluntários socorrem-se da criatividade. Procuraram materiais intactos e ferramentas caseiras nas ruas e entre escombros e construíram massas, bolas e arcos com as próprias mãos. O vídeo abaixo mostra como.

FALTA VÍDEO

A técnica do improviso não é nova para estes artistas. Por causa do bloqueio à Faixa de Gaza, imposto por Israel e pelo Egito desde 2007, estão impedidos de receber determinado tipo de materiais.

“Não há ninguém nem nenhum sector que não tenha sido afetado por esta guerra. Aconteceu também na área do entretenimento. Perdemos todo o equipamento de circo que recolhemos junto dos nossos amigos estrangeiros durante os últimos dez anos”, diz Majid Elmosalami.

A escola ficou também sem o circo móvel, destruído num bombardeamento. Este miniautocarro, destinado a levar animação — e, com isso, apoio psicológico e psicossocial — às zonas mais devastadas de Gaza, tinha sido adquirido há pouco mais de dois anos na sequência de uma campanha de crowdfunding promovida por um dos principais parceiros: o coletivo espanhol Palhaços em Rebeldia.

CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL

Esta associação cultural com sede em Pontevedra, na Galiza, que encara a figura do palhaço e as artes circenses no geral como antídotos para as desigualdades, as injustiças, a dor e o sofrimento, tem um compromisso especial com a Palestina. “Temos uma relação de vários anos com a Gaza Stars Circus School” diz Iván Prado, o palhaço que fundou e dirige a organização, em entrevista ao Expresso.

“Visitámo-los, fazemos atuações conjuntas e damos-lhes formação. Mas fundamentalmente damos-lhes apoio económico para que possam andar pelas escolas das Nações Unidas. Neste momento, estão a trabalhar sobretudo em Khan Yunis e Rafah [no sul da Faixa de Gaza]. Também querem dar apoio humanitário — roupa, comida, medicamentos —, por isso estamos a fazer uma campanha para angariar mais dinheiro.”

CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL

Nascido em Lugo, em 1974, Iván Prado é uma referência mundial do circo solidário. Esse percurso internacional levou um forte impulso precisamente na Palestina, em 2002, estava Gaza ainda sob ocupação israelita e, também na Cisjordânia, as ruas estavam tomadas pela segunda Intifada (revolta palestiniana). “Descobrimos a importância da alegria e do mundo dos palhaços — a palhaçaria — para as populações que sofriam, após bombardeamentos constantes. Éramos três palhaços e fizemos 28 espetáculos em 22 dias, por toda a Cisjordânia e em Gaza.”

Nessa primeira imersão palestiniana, constataram a esperança que o simples abraço de um palhaço pode provocar. Em Gaza, na zona de Erez, quando estavam prestes a iniciar um espetáculo, no pátio de uma escola, começou um bombardeamento israelita não muito longe dali. “As crianças puseram-se de pé a cantar e a bater palmas para tentar abafar o som das bombas e incentivar os palhaços a atuarem. Preferiam ficar a assistir ao espetáculo, em vez de fugirem e esconderem-se das bombas”, recorda.

CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL

Este episódio marcou Iván até hoje. “Levou-me a tomar consciência de que o palhaço é um interlocutor dessa parte da humanidade que crê na esperança e no ser humano e que não se deixa vencer pelo medo, pelo terror ou, neste caso, pelas bombas.”

Se, em contexto bélico, o palhaço pode ser uma “arma de diversão maciça”, como defende a Palhaços em Rebeldia, pode também tornar-se um alvo. Foi o que aconteceu com o galego, em 2010, noutra viagem aos territórios palestinianos: foi detido pelas autoridades de Israel e interrogado durante mais de cinco horas.

“Disseram de tudo, que eu tinha o número de um terrorista no meu telefone, que me recusei a colaborar com eles, na realidade queriam que abrisse o meu correio eletrónico num computador do Shin Bet [serviço de segurança interna de Israel], o que é ilegal”, conta. “Mas acima de tudo não queriam que fizéssemos um festival de palhaços, porque para eles a esperança e a alegria é algo que questiona o seu modelo de opressão.”

Passou uma noite numa prisão em Telavive e foi deportado “por razões de segurança”. O ‘caso do palhaço preso’ teve ampla difusão mediática. Apesar de expulso, o espanhol conseguiu voltar à Palestina no ano seguinte para lançar a semente de um projeto improvável, que vingou: o Festiclown Palestina.

CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL

A primeira edição deste festival internacional de palhaços, em 2011, contou com a participação de 40 artistas — incluindo os Irmãos Esferovite, uma banda de palhaços de Vila do Conde —, que realizaram mais de 100 atuações por toda a Palestina.

De Pontevedra para o mundo

As deslocações dos ‘narizes vermelhos’ vão sendo possíveis graças ao financiamento da casa-mãe — Festiclown —, um festival do riso nascido em 1999, no município de Pontevedra, dirigido por Iván Prado. No seu sítio na Internet, o evento apresenta-se como “artefacto de alegria rebelde, que usa o riso como alavanca para mover o mundo”.

Além da Gaza Stars Circus School, a Palhaços em Rebeldia tem uma escola de circo no Lajee Center, no campo de refugiados de Aida, em Belém (na Cisjordânia ocupada) e apoia, no mesmo território, a Escola de Circo Palestiniana (Birzeit), outra em Silwan (Jerusalém Oriental) e a organização Human Supporters (Nablus).

CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL

“Conseguimos enviar-lhes um mínimo de apoio económico para que façam o que sabem, que é animar, levar alegria, tentar aplicar as artes mágicas e esperançosas do circo. No fundo, o nosso universo é aquele lugar onde as coisas impossíveis se tornam possíveis e as coisas possíveis se tornam belas. É a nossa função e é por isso que o fazemos, viajando até lugares, como a Palestina, que leva 75 anos de limpeza étnica e apartheid”, acrescenta Prado.

Na Palhaços em Rebeldia, colocamos a nossa arte ao serviço da humanidade. O que me faria muito feliz seria que futuros palhaços e palhaças entendessem que a nossa arte é uma ferramenta para construir os sonhos e as utopias da humanidade e que sempre estará ao serviço dos que mais sofrem”, prossegue.

CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL

A vocação internacional desta associação galega já a fez galgar muitas fronteiras e tornou Iván num nómada, com deslocações frequentes a lugares do mundo onde as pessoas que ali vivem não sabem se estarão vivas no dia seguinte. Para lá dos territórios palestinianos, já esteve nos acampamentos sarauís no deserto da Argélia, nos campos de refugiados em Idomeni (Grécia) e nas favelas do Rio de Janeiro. Quando conversou com o Expresso, tinha acabado de chegar de terras indígenas de Chiapas (México).

Nessas regiões esquecidas, apesar das dificuldades e do sofrimento, é fácil provocar o riso, garante. “A ferramenta usada pelo palhaço é a estupidez humana, a partir do próprio ridículo de cada um de nós. Essa é uma linguagem internacional e universal. Quando alguém se põe ao ridículo, faz de tonto e trabalha a partir da lógica da estupidez, consegue estabelecer uma relação em qualquer idioma, cultura e circunstância. Há potencial de comunicação de sobra.”

Quando a guerra terminar, associações como a Palhaços em Rebeldia terão um papel importante num território com muitas crianças órfãs e um grande trauma para debelar. “Seremos imprescindíveis. Nós já estamos a tentar viajar agora para a Palestina. Estamos a ver como e por onde.”

(FOTO PRINCIPAL CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 24 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui

Noite infeliz em Belém

As festividades foram canceladas na cidade onde Jesus nasceu. “Não podemos celebrar quando o nosso povo está a ser morto”

O presépio da Igreja Evangélica Luterana da Natividade de Belém lembra as crianças mortas em Gaza MAJA HITI / GETTY IMAGES

O little town of Bethlehem
How still we see thee lie
Above thy deep and dreamless sleep
The silent stars go by

Ó pequena cidade de Belém
Tão quieta te encontramos
Sobre o teu sono profundo e sem sonho
Passam as estrelas silenciosas

Este clássico das canções de Natal, que anima a época há mais de 100 anos, descreve uma localidade idílica que em tudo contrasta com a realidade presente da cidade onde, segundo a tradição cristã, Jesus Cristo nasceu. Belém fica no território palestiniano da Cisjordânia, ocupado por Israel há mais de 50 anos. Devido à guerra na Faixa de Gaza, as festividades foram canceladas. “Não foi difícil tomarmos a decisão”, diz ao Expresso o presidente da Câmara de Belém, Hanna Hanania. “Não podemos celebrar o Natal enquanto o nosso povo está a ser morto. E também a Cisjordânia está sob bloqueio militar.”

Não é a primeira vez que a conflitualidade afeta as celebrações natalícias em Belém, “mas não desta maneira”, diz o autarca. “Esta é a situação mais difícil por que o povo palestiniano já passou. Durante a pandemia, ainda tivemos algumas festividades virtuais e acendemos a árvore de Natal [na Praça da Manjedoura, contígua à Igreja da Natividade], numa cerimónia para um número limitado de pessoas. Desta vez, cancelámos tudo. Nunca enfrentámos uma guerra destas, testemunhamos crimes de guerra todos os dias, a maioria dos mortos são crianças. Como podemos festejar?”

Em Belém, apenas se mantêm as cerimónias religiosas dos vários ritos cristãos — a 25 de dezembro (para os católicos), 7 de janeiro (ortodoxos) e 19 do mesmo mês (arménios). Na Igreja Evangélica Luterana da Natividade de Belém, o presépio é um amontoado de pedras sobre o qual está deitado um menino Jesus envolto num keffiyeh, o tradicional lenço palestiniano. A instalação recorda as crianças de Gaza que ficaram sem teto ou pereceram sob escombros.

“O Natal é, por excelência, uma história palestiniana, muito ligada ao que se passa hoje em Gaza”, diz ao Expresso o reverendo evangélico luterano Mitri Raheb, a partir de Belém. “Essa história fala da sagrada família, que tem de deixar Nazaré, no norte da Palestina, por decreto imperial, para ir para Belém, no sul — como aconteceu com o nosso povo em Gaza. Fala de Herodes, um ocupante sanguinário que tentou matar todas as crianças de Belém — em Gaza já foram mortas mais de 8000 crianças. Jesus nasce numa manjedoura porque não tem outro lugar — é o que está a acontecer a 50 mil mulheres grávidas em Gaza, que têm os seus filhos em tendas. E fala sobre o anjo que canta ‘glória a Deus nas alturas’, que significa glória ao Todo-Poderoso — e não aos poderosos. Hoje, Jesus é, na verdade, uma das pessoas em Gaza. Se alguém quiser vê-lo, é lá que ele está.”

Belém é visita indispensável para qualquer cristão que rume à Terra Santa no encalço dos passos de Jesus. É ali que se localiza a Igreja da Natividade, construída no século IV sobre a gruta onde os cristãos acreditam que José e Maria descansaram e Jesus nasceu. Outros destinos obrigatórios são Nazaré (no norte de Israel) e Jerusalém, que palestinianos e israelitas querem para capital dos seus Estados.

Ao longo do ano, Belém recebe entre milhão e meio e dois milhões de visitantes. “No Natal, o turismo internacional cai, porque as pessoas celebram com as suas famílias. Já o turismo local aumenta”, explica o autarca. “Na Páscoa, a maioria dos turistas é do mundo árabe, desde logo do Egito”, onde há dez milhões de cristãos (coptas).

“O Natal é, por excelência, uma história palestiniana, ligada ao que se passa em Gaza”, diz o reverendo evangélico luterano Mitri Raheb

Por estes dias, “não há um turista na cidade, estamos encerrados”, diz ao Expresso Joey Canavati, diretor do Alexander Hotel, a 800 metros da Igreja da Natividade. “Não podemos reabrir enquanto durar a guerra. As fronteiras e os checkpoints estão encerrados. Todos os 78 hotéis da cidade estão de portas fechadas.”

Um dos mais famosos é o provocador Walled Off Hotel, do misterioso artista britânico Banksy, com vistas sobre o muro de betão que separa Israel da Cisjordânia. “Devido aos grandes desenvolvimentos na região, optámos, com pesar, por encerrar o hotel, por enquanto”, lê-se num aviso publicado no seu site, a 12 de outubro, cinco dias após o ataque do Hamas a Israel, que espoletou bombardeamentos e uma invasão terrestre a Gaza.

Cristãos já não são a maioria

“A economia de Belém depende do sector do turismo”, diz o autarca. “Mal começou a agressão israelita, o motor económico parou.” Hanania estima que a população da cidade ronde as 33 mil pessoas. Apesar da centralidade de Belém no cristianismo, os cristãos não vão além de 20 a 25% da população. “O número de cristãos está a diminuir”, diz Mitri Raheb. “A cada dois, três anos, há uma guerra. As pessoas querem ter vida decente e em liberdade. Muitas emigram.”

Por decreto do líder histórico dos palestinianos, Yasser Arafat — a que o atual Presidente, Mahmud Abbas, deu continuidade —, o autarca de Belém é sempre cristão. No cargo desde abril de 2022, Hanania, cristão ortodoxo grego de 44 anos, explica o processo. Eleito por voto popular, “o Conselho Municipal tem 15 membros, que incluem presidente e vice-presidente. Oito devem ser cristãos e sete muçulmanos, e deve haver três mulheres. Se o presidente é ortodoxo grego, o vice é católico, e vice-versa. Este decreto surgiu para preservar o caráter da cidade. Além de Belém, isto acontece em mais nove cidades da Cisjordânia.” Uma delas é Ramallah, o centro administrativo.

Jerusalém à distância

Como qualquer outro palestiniano da Cisjordânia ou da Faixa de Gaza, o presidente da Câmara de Belém precisa de autorização das autoridades israelitas para ir a Jerusalém, por exemplo. Essa burocracia vale também para o reverendo Raheb, destacado teólogo de 61 anos, fundador e presidente da Universidade Dar al-Kalima (Belém) e vencedor do Prémio Olof Palme em 2015. “Desde 2000, não estou autorizado a ir a Jerusalém no meu carro, só posso ir de transportes públicos.” Todas as autorizações estão agora canceladas.

Quer o autarca quer o pastor testemunham uma boa relação, em Belém, entre a minoria cristã e a maioria muçulmana. “Somos o mesmo povo. Estamos unidos e lutamos contra a ocupação israelita”, diz Hanania. “Na nossa universidade, três quartos dos estudantes são muçulmanos”, destaca Raheb. Já a relação com os judeus é inexistente. “Temos o muro e não podemos entrar em Israel sem autorização”, continua o reverendo. E “há 22 colonatos judeus em redor de Belém que ocupam 86% das nossas terras”. No de Gilo vivem 40 mil pessoas.

Os entraves à circulação e a expansão dos colonatos inviabilizam, cada vez mais, a contiguidade entre Belém e Jerusalém, que distam menos de 10 quilómetros. A dificuldade de acederem à cidade onde fica o Santo Sepulcro priva os cristãos de viverem na plenitude os principais pilares da sua fé: o nascimento e a ressurreição de Cristo.

Nascido em Belém, de onde só saiu para estudar na Alemanha, o pastor Raheb qualifica assim a tragédia de Gaza: “é o pior momento da nossa história e da minha vida. Vivemos um genocídio, a comunidade internacional apoia e muitas igrejas estão em silêncio”. “Alguns cristãos sionistas apoiam Israel porque querem ver chegar o fim dos tempos. Acham que antes de Jesus voltar, haverá uma grande guerra e querem apressar essa segunda vinda. As igrejas alemãs ficam caladas devido ao Holocausto.”

Informação deste texto foi incluída no artigo “De Gaza à Ucrânia, passando por Itália: presépios de todo o mundo desunidos em tempos de guerra”, de Tiago Soares, publicado no “Expresso Online”, a 24 de dezembro de 2023. Pode ser lido aqui

Artigo publicado no “Expresso”, a 22 de dezembro de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Diário da ocupação dez dias antes de Biden chegar

A primeira viagem do Presidente dos EUA ao Médio Oriente levou-o a Israel, onde falou do Irão. Hoje tem na agenda a Arábia Saudita. Palestinianos são o parente pobre

Quando Joe Biden entrou na Casa Branca, no início de 2021, a relação entre Estados Unidos e Arábia Saudita estava fragilizada pelo assassínio do jornalista Jamal Khashoggi, em 2018, no consulado saudita em Istambul. Para o 46º Presidente, o crime era tão hediondo que o reino não escapava ao rótulo de “pária”.

Biden prometeu “recalibrar” a relação e desprezou o todo-poderoso príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman (MbS), implicado pessoalmente no caso, privilegiando o contacto com o debilitado rei Salman. A confirmar o afastamento entre Washington e Riade, Biden retirou da lista de organizações terroristas os huthis (apoiados pelo Irão), que os sauditas combatem no Iémen.

A ano e meio de mandato, porém, o pragmatismo parece ter assaltado a política externa de Biden. O Presidente americano chega hoje à Arábia Saudita, pressionado pela urgência em convencer o maior exportador mundial de petróleo a abrir as torneiras para que os preços da energia desçam nos mercados internacionais. A visita inclui um encontro com MbS.

Biden chega à Arábia Saudita após dois dias em Israel. O voo direto entre Telavive e Jeddah indicia uma intenção: pressionar no sentido da normalização da relação diplomática, como já aconteceu, desde 2020, entre Israel e Emirados Árabes Unidos, Barém, Sudão e Marrocos.

Os Acordos de Abraão são uma autoestrada de aproximação do Estado judeu ao mundo árabe, em nome de um inimigo comum: o Irão. Na escala em Israel, Biden defendeu um novo acordo sobre o programa nuclear iraniano (a que Israel se opõe) e garantiu que a opção militar continua sobre a mesa, “como último recurso”, para impedir Teerão de aceder à bomba atómica.

A visita permitiu também um encontro entre dois dirigentes aflitos: o próprio Biden, que pode perder a maioria democrata no Congresso nas eleições de 8 de novembro, e o primeiro-ministro israelita Yair Lapid, que tem legislativas marcadas para 1 de outubro, as quintas em menos de quatro anos. Como nas anteriores, não se prevê que o conflito israelo-palestiniano mobilize o eleitorado.

Hoje, Biden estará umas horas no território palestiniano ocupado da Cisjordânia. Em Israel, prometeu enfatizar o apoio à solução de dois Estados, “mesmo que não seja [viável] no curto prazo”. Até lá, a ocupação israelita continuará a desbravar terreno, nas suas múltiplas expressões.

3 julho: Assédio judeu a Al-Aqsa

Pelo menos 114 colonos judeus extremistas irrompem pela Esplanada das Mesquitas, na cidade velha de Jerusalém, protegidos por polícias israelitas. De forma provocatória, passeiam-se junto à mesquita de Al-Aqsa, o terceiro lugar santo para os muçulmanos. Realizam também rituais talmúdicos e recebem explicações de rabinos sobre a importância do Monte do Templo, como os judeus chamam ao local. Os crentes muçulmanos são barrados por seguranças nos portões de acesso.

4 julho: É proibido construir

Seis famílias palestinianas de Khirbet Humsa al-Tahta, comunidade beduína do Vale do Jordão (a zona fértil da Cisjordânia), recebem ordens escritas das autoridades israelitas para pararem de construir em 30 estruturas. Este aglomerado está cercado por israelitas em três lados: o colonato de Hamra, um campo de treino militar e um checkpoint. Esta é uma prática com que Israel visa contribuir para expulsar os palestinianos de certas terras, para que as áreas ocupadas por judeus se expandam.

5 julho: Água não é para todos

Forças israelitas destroem condutas junto a uma nascente de água, que abastece a aldeia de Duma, no norte da Cisjordânia. É também demolido o muro de proteção e trabalhos de reabilitação recentes, feitos pelas autoridades da aldeia. Estas tentaram, em vão, que um tribunal israelita impedisse a destruição da infraestrutura. Na Cisjordânia, o acesso à água faz-se de forma discriminatória: é fácil para os colonos, difícil para os palestinianos, que têm de a comprar a Israel.

6 julho: Cerco aos pescadores

A marinha israelita abre fogo e dispara jatos de água na direção de pescadores da Faixa de Gaza, acusando-os de violação do limite de três milhas náuticas, que estão obrigados a respeitar. O incidente, de que não resultam mortos ou feridos, acontece ao largo das cidades de Jabalia e Beit Lahia, no norte do território. Israel já não tem tropas nem colonos na Faixa de Gaza (onde vivem dois milhões de pessoas), mas ocupa-a desde 2007 por “controlo remoto”, com um bloqueio por terra, ar e mar.

7 julho: Bulldozers ao ataque

Na aldeia de An-Nabi Samwil, em Jerusalém Oriental (a parte árabe da cidade anexada por Israel), bulldozers municipais arrasaram um terreno murado com árvores e um lava-jato, pertencentes a palestinianos, alegando não terem licença. Esta prática é muito usada para dificultar o quotidiano dos palestinianos e levá-los a abandonar terras. Os bulldozers tornaram-se arma da ocupação, ao ponto de empresas como Caterpillar, JCB, Volvo ou Hyundai serem alvo de campanhas de boicote por venderem equipamentos a Israel.

8 julho: Política para empatar

A cinco dias da chegada de Biden, o primeiro-ministro de Israel, Yair Lapid, telefona ao Presidente da Autoridade Palestiniana (AP), Mahmud Abbas para, segundo o diário israelita “Haaretz”, discutirem “a continuidade da sua cooperação e a necessidade de manter a calma e o sossego na região”. A ocupação israelita beneficia da divisão política palestiniana. Aos 87 anos, Abbas mantém-se, há 17, inamovível à frente da AP (que governa a Cisjordânia) e em Gaza manda o grupo islamita Hamas.

9 julho: Vidas sem valor

No checkpoint de Jalama, a leste de Belém, o cadáver de Faleh Mousa Jaradat é finalmente entregue à família. Este palestiniano de 39 anos fora alvejado, a 17 de janeiro, por soldados israelitas que o acusaram de tentar esfaquear um militar. Israel reteve o corpo como medida de punição. Neste mês de julho, já morreram quatro palestinianos às mãos de israelitas: três homens de 18, 20 e 32 anos (dois a tiro e um por agressões), na Cisjordânia, e uma mulher de 68 anos, numa prisão de Israel.

10 julho: Presos em protesto

Ra’ed Rayyan, de 27 anos, cumpre o 95º dia em greve de fome. Detido na Prisão Hospital de Ramleh, em Israel, este palestiniano de Jerusalém exige o fim da sua detenção administrativa, que dura há meses. Dos mais de 4600 palestinianos presos em Israel (entre os quais 30 mulheres e 180 menores), 640 estão nessa situação: detidos sem acusação ou julgamento. Em janeiro, mais de 450 iniciaram um protesto, que dura até hoje, e recusam-se a comparecer nas sessões, em tribunal militar.

11 julho: A lei dos colonos

Cerca de 450 árvores de fruto são arrancadas de terras árabes por colonos judeus, em Turmusaya e Mughayir (nordeste de Ramallah). Os colonos invadem-nas acompanhados por militares israelitas, cuja missão na Cisjordânia é só proteger os 500 mil judeus que ali vivem, entre três milhões de árabes. A violência dos colonos manifesta-se ainda no bloqueio de ruas, arremesso de pedras contra carros e casas, queima de oliveiras, vandalização de colheitas e agressões físicas.

12 julho: Detenções em massa

Nove palestinianos são presos durante incursões de forças israelitas em várias localidades da Cisjordânia e na área de Jerusalém. As detenções em massa são uma forma de intimidação das populações. No dia 6, foram detidos 42 palestinianos e dois dias antes 25. Em junho, as forças israelitas levaram 464 palestinianos, incluindo 70 crianças e 18 mulheres. Desde 1967, perto de um milhão de palestinianos terão passado pelas prisões israelitas. Algo que afeta quase todas as famílias.

(ILUSTRAÇÃO CARLOS LATUFF)

Artigo publicado no “Expresso”, a 15 de julho de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui

Intifada por Sheikh Jarrah. Uma luta contra a ocupação israelita e a negligência palestiniana

A violência regressou ao coração de Jerusalém. Desta vez, o rastilho foi o avanço da ocupação israelita sobre um bairro na parte árabe da cidade. A alimentar muita da revolta dos palestinianos está também um sentimento de abandono em relação à sua própria liderança. O recente adiamento das muito aguardadas eleições legislativas só veio acentuar essa frustração. “Nem Israel nem a Autoridade Palestiniana estão interessados que os palestinianos tenham eleições livres”, diz ao Expresso um ativista de Hebron. “Querem manter o status quo.

Mapa de Jerusalém, com a localização de Sheikh Jarrah THE NATIONAL

O recato a que os muçulmanos têm por hábito entregar-se durante o mês sagrado do Ramadão foi tomado, nos últimos dias, por uma “intifada” (revolta) palestiniana, na Cidade Velha de Jerusalém. As zonas em redor da Mesquita de Al-Aqsa estão transformadas em campos de batalha entre palestinianos e forças israelitas.

Segunda-feira, gás lacrimogéneo e granadas de choque disparados pela polícia israelita rebentaram dentro daquele que é o terceiro lugar mais sagrado do Islão. A segunda maior religião do mundo conta cerca de dois mil milhões de crentes.

Na origem da mais recente vaga de violência entre israelitas e palestinianos está a disputa por Sheikh Jarrah, bairro em Jerusalém Oriental que foi buscar o nome ao médico pessoal de Saladino, o curdo que liderou as tropas muçulmanas na conquista de Jerusalém aos cristãos, em 1187.

Por decisão da justiça israelita, há famílias árabes que ali vivem desde sempre e que estão na iminência de serem despejadas. Domingo passado, quando já havia confrontos nas ruas, foi adiada a audiência no tribunal que devia confirmar essa expulsão.

Segundo a organização israelita Peace Now, desde o início do ano, os tribunais israelitas já ordenaram o despejo de 22 famílias palestinianas em Sheikh Jarrah e Batan al-Hawa (outro bairro de Jerusalém Oriental), num total de 139 pessoas.

Sempre que são evacuadas, as casas não ficam ao abandono — colonos israelitas tomam conta delas, garantindo que o pedaço de terra onde se erguem passe a constar nos mapas como território judeu. Aos poucos, a presença árabe em Jerusalém é uma referência cada vez mais longínqua nos livros de história.

Os palestinianos de Jerusalém Oriental vivem num limbo. Não são cidadãos de Israel (como quase dois milhões de árabes que vivem em território israelita, com direito a passaporte e a voto), nem têm o seu estatuto de residência garantido.

Vivem numa das frentes mais tensas da ocupação israelita, sem certezas em relação à vida quotidiana e mergulhados num sentimento de abandono em relação à liderança palestiniana. Dela esperavam defesa e proteção contra o avanço do projeto de colonização israelita.

“Facada” veio de mão supostamente amiga

A última “facada” nessa esperança palestiniana foi desferida pelo próprio Presidente da Autoridade Nacional Palestiniana. No passado dia 29 de abril, Mahmud Abbas anunciou o adiamento das eleições legislativas previstas para 22 de maio.

“Essa decisão só veio aumentar a frustração entre os palestinianos que esperavam um recomeço, uma nova unidade nacional que contrariasse tanto a política de ocupação e de apartheid israelita como a divisão intrapalestiniana entre Hamas e Fatah”, diz ao Expresso Giulia Daniele, do Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa.

Abbas alegou que as autoridades de Israel não garantiam a realização do escrutínio em Jerusalém Oriental, a parte árabe da cidade santa ocupada na guerra de 1967. “Mal Israel concorde, teremos eleições no prazo de uma semana”, prometeu. Mas as suas palavras soaram a pretexto. “A Autoridade Palestiniana [AP] tem feito muito pouco pela defesa desta população”, diz ao Expresso Marta Silva, investigadora na área dos estudos da sociedade israelita.

“Por um lado, representantes da Fatah [partido de Abbas, que domina a AP] colocam a culpa em Israel por recusar a instalação de mesas eleitorais em Jerusalém Oriental. Nas eleições anteriores (em 1995, 2005 e 2006), Israel tinha permitido a instalação de mesas eleitorais em postos de correio.”

Por outro lado, os mesmos representantes “recusaram a possibilidade da colocação de mesas em consulados europeus e instalações das Nações Unidas em Jerusalém Oriental. Esta recusa, que justificaram dizendo que se trataria de um ‘escape’, e não uma ‘solução’, mostra que a Fatah não estava verdadeiramente interessada em garantir a participação eleitoral destes palestinianos, e que existe outra agenda política”.

Sem votar há quinze anos

Estas eleições legislativas seriam as primeiras desde 2006 — quando a vitória do Hamas não foi reconhecida (pela Fatah, por Israel e pela comunidade internacional), o que contribuiu para dividir a Palestina em dois, com o Hamas a tomar o poder à força na Faixa de Gaza e a Fatah a entrincheirar-se na Cisjordânia.

“O anúncio das eleições, a 15 de janeiro de 2021 [a cinco dias de Joe Biden tomar posse como Presidente dos Estados Unidos], causou uma imensa onda de expectativa e esperança junto dos palestinianos, visível no número de eleitores que se registaram, na multiplicação de listas eleitorais [36 aprovadas pela comissão eleitoral] e até no número crescente de mulheres nessas listas”, recorda Marta Silva.

“Quase um milhão de jovens palestinianos teria votado pela primeira vez”, acrescenta Giulia Daniele. “O adiamento das eleições — que mais parece um cancelamento, sem nova data marcada — poderá custar muito caro à causa palestiniana, criando uma desilusão generalizada numa geração que gostaria de ser mais ouvida e de tentar mudar o status quo em que se sente presa há longo tempo.”

Com estas legislativas, os palestinianos tencionavam por fim começar a ‘arrumar a casa’. O povo exigia-o desde que o mandato presidencial de Abbas expirou, a 15 de janeiro de… 2009. A 31 de julho próximo, tinham agendadas presidenciais e a 31 de agosto eleições para o Conselho Nacional Palestiniano, órgão da Organização de Libertação da Palestina (OLP), que é a instituição que, na ausência de um Estado independente, representa o povo palestiniano a nível internacional.

“Fiquei surpreendido por Abbas aceitar fazer eleições”, diz ao Expresso o ativista palestiniano Issa Amro, ícone da resistência pacífica e da desobediência civil na Cisjordânia. “Tinha a certeza que ele não iria aceitar eleições livres. É idoso, está debilitado e incapaz. Seguramente ia perder a presidência e a sua Fatah deixaria de ser o principal partido.”

Ocupação não tem oposição

Issa vive noutra frente da ocupação israelita: a cidade de Hebron, onde moram alguns dos colonos judeus mais radicais. A 13 de abril passado, foi absolvido por um tribunal palestiniano no âmbito de um processo interposto pela AP, que lidou mal com as acusações do ativista. “A liderança da AP é muito má, tornou-se subempreiteira da ocupação”, diz Issa, que acusa: “Nem Israel nem a AP estão interessados que os palestinianos tenham eleições livres. Querem manter o status quo.”

“A presença no poder da Fatah desde 1993 [Acordos de Oslo] tem servido também os interesses de Israel, uma vez que garante que não exista oposição capaz de resistir à ocupação”, explica Marta Silva. “O governo da Fatah é visto pelos palestinianos como profundamente corrupto, e a colaboração em termos de segurança com o Estado de Israel é conhecida, e explica a detenção de vários opositores políticos da Fatah.”

Entre as listas que se preparavam para ir a votos, uma em especial estava a colocar a Fatah em sentido: a “Liberdade” — em que Issa Amro ia votar —, fundada por Nasser Kidwa, sobrinho do malogrado líder histórico palestiniano Yasser Arafat, e por Marwan Barghouti, um líder das duas Intifadas, preso desde 2004, a cumprir várias sentenças de prisão perpétua numa prisão israelita. Barghouti, a quem chamam “Mandela palestiniano”, era apontado como alternativa mais forte a Abbas e potencial vencedor das presidenciais.

Paralelamente, não estava afastada a possibilidade de se repetir em 2021 o resultado de 2006. “O futuro da Palestina e os seus equilíbrios internos são os fatores determinantes do adiamento das eleições”, diz Giulia Daniele. “Existe medo real por parte da Fatah, e também de Israel e dos Estados Unidos, de um fortalecimento significativo — e uma muito provável nova vitória — do Hamas, não apenas na Faixa de Gaza mas também na Cisjordânia.”

Várias outras formações políticas têm na origem antigos dirigentes da Fatah, que interpretaram a desilusão e a desconfiança de grande parte dos palestinianos em relação à gestão governativa do partido e assumiram a dissidência em relação ao Presidente, que leva 16 anos no cargo.

Abbas é só uma parte do problema

“Abbas tem 85 anos e problemas de saúde graves. Debates sobre quem poderá suceder-lhe existem há anos. No entanto, o problema palestiniano não reside exclusivamente em Abbas. Ele é apenas a face mais visível de uma elite política que beneficia da ocupação”, diz Marta Silva.

“A AP é uma continuação da ocupação israelita por outros meios, uma forma de terciarização da ocupação: a AP e Abbas necessitam de Israel para manter o poder sobre esse território, e Israel necessita de manter a Fatah no poder, porque sabe que a eleição do Hamas, da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), ou da ‘Liberdade’ significaria o fim da cooperação para a ‘segurança’ entre os dois lados.”

A prazo, o adiamento das eleições palestinianas, sem perspetiva de serem realizadas tão cedo, terá, na perspetiva de Marta Silva, duas consequências importantes que podem voltar-se contra os palestinianos:

  1. Dispersão do eleitorado palestiniano. “Acredito que uma grande percentagem dos eleitores que iam votar na Fatah por ser um ‘mal já conhecido’ comece a ponderar votar noutras listas, nomeadamente no Hamas, também pela atitude do grupo em relação a Jerusalém Oriental: representantes do Hamas dizem, desde janeiro, que Abbas não tem de pedir autorização a Israel, país ocupante, para levar a cabo as eleições em Jerusalém.”
  2. Favorecimento do Hamas. “Este adiamento confirma em público a imagem de uma Fatah subjugada aos interesses de Israel. O que será erradamente analisado como processo de radicalização do eleitorado palestiniano esconde, na realidade, um problema de falta de alternativas políticas. Num momento em que listas democráticas — que reconhecem o direito de existência de Israel nos territórios pré-1967 e renunciaram há muito à luta armada — estão constantemente sob ataque por parte da Fatah e de Israel, o Hamas surge como uma das poucas alternativas políticas organizadas e com capacidade de resistência à ocupação. Trata-se de uma falta de visão política espantosa por parte de Israel e da comunidade internacional, mas a história da Palestina desde o início do século XX está repleta de exemplos como este.”

Tudo acontece num contexto de grande tensão em que as ruas de Jerusalém têm sido palco de manifestações de ódio e desprezo contra os palestinianos. Segunda-feira, saiu à rua a tradicional e provocatória marcha do Dia de Jerusalém, em que milhares de pessoas agitam a bandeira de Israel para celebrar a conquista da parte árabe da cidade, na guerra dos Seis Dias (1967). Para evitar um banho de sangue, a polícia alterou o curso do desfile, afastando-o da Porta de Damasco, principal entrada da Cidade Velha e centro dos confrontos dos últimos dias.

Há três semanas, tinham sido militantes de um grupo da extrema-direita nacionalista e supremacista israelita a realizar uma marcha em Jerusalém para “restaurar a dignidade judaica”. Entre os slogans que gritaram, ouviu-se muitos “Morte aos árabes”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de maio de 2021. Pode ser consultado aqui

10 armas ao serviço da ocupação israelita

Israel controla a Cisjordânia e a Faixa de Gaza desde a guerra de 1967

Erosão do território palestiniano em consequência da evolução da ocupação israelita PALESTINE PORTAL

Uma das decisões mais polémicas da Administração Trump foi o reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel e a transferência da embaixada de Telavive para a Cidade Santa. Com Joe Biden na Casa Branca, não há promessas de que a representação diplomática faça o caminho inverso. No entanto, a vice-presidente eleita, Kamala Harris, afirmou que os Estados Unidos irão reverter algumas medidas de Trump, nomeadamente a suspensão da assistência económica aos palestinianos.

A confirmar-se, Washington ficará aquém do ponto em que estava em relação à questão palestiniana quando surgiu Trump, ainda que no terreno a ocupação israelita se intensifique a cada dia que passa, indiferente mesmo à pandemia.

1. COLONATOS
Pelos Acordos de Oslo de 1993, os palestinianos aceitaram ficar com apenas 22% da Palestina histórica, mas hoje nem essa parcela controlam. Ilegais face ao direito internacional, os colonatos judaicos têm crescido de forma consistente, à custa do confisco de terras árabes. Há duas semanas, pela primeira vez em 15 anos, o Governo israelita autorizou a construção de 31 novas casas nos colonatos de Hebron, onde colonos e árabes vivem em regime de apartheid. Hoje, mais de 600 mil judeus vivem em pelo menos 250 colonatos (muitos deles ilegais) na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental. Esta semana, a ministra dos Transportes israelita, Miri Regev, desvendou um plano de expansão da rede de transportes públicos na Cisjordânia. Com conclusão prevista para 2045, é um indicador de como, para Israel, a ocupação é um projeto de longo prazo.

2. VIOLÊNCIA DOS COLONOS
Correspondem a 13% da população da Cisjordânia e vivem protegidos por militares israelitas, destacados com essa única missão. Esse privilégio contribui para um historial de agressividade dos colonos contra as populações árabes: invasão de propriedades, assédio e insultos, apedrejamento, vandalismo de zonas agrícolas, queima de árvores, roubo de safras. A 15 de outubro, a ONG israelita B’Tselem registou o testemunho de Khaled Masha’lah, de 69 anos, pai de seis, morador na região de Hebron, a quem os colonos cortaram 300 oliveiras. Segundo outra ONG israelita, Yesh Din, 91% das queixas contra colonos são arquivadas por “falta de provas” ou “agressor desconhecido”. Israel aplica aos colonos a lei civil e aos palestinianos a lei militar.

3. DEMOLIÇÕES
A 3 de novembro, estava o mundo sintonizado nas eleições americanas, 11 famílias beduínas que viviam da pastorícia viram bulldozers militares arrasarem as tendas onde dormiam e os abrigos dos animais, na comunidade de Khirbet Humsah, no vale do Jordão. Ficaram sem teto 74 pessoas, incluindo 41 crianças. A demolição de casas árabes por razões administrativas é prática frequente, sobretudo em Jerusalém Oriental, em nome da judaização da Cidade Santa. Em 2019 foram ali destruídas 169 habitações. No total dos territórios, no ano passado, foram arrasadas 623 casas, diz o Comité Israelita Contra as Demolições de Casas (ICAHD).

4. CHECKPOINTS
São a face diária da ocupação. Há postos de controlo permanentes, no interior da Cisjordânia e na fronteira com Israel, atravessados diariamente por milhares de trabalhadores palestinianos, às vezes compactados como gado. Outros são pontuais, colocados aleatoriamente nas estradas. Por vezes, à entrada de aldeias são erguidas barreiras físicas com blocos de cimento, barras de metal, montes de terra. Segundo a ONG de mulheres israelitas Machsom Watch, que vigia o tratamento dos soldados aos palestinianos nos checkpoints, os habitantes são obrigados a avançar as barreiras a pé (doentes e mulheres em trabalho de parto) para apanhar transporte do outro lado.

5. MURO
Ao não passar exatamente sobre a Linha Verde — a fronteira reconhecida internacionalmente —, o muro que separa Israel da Cisjordânia rouba muitas terras palestinianas. Segundo a ONU, 11 mil habitantes da Cisjordânia ficaram do lado israelita do muro e vivem em guetos. Ao longo dos cerca de 810 quilómetros da vedação, cerca de 70 “checkpoints agrícolas” permitem a passagem de agricultores palestinianos para… as suas próprias terras de cultivo.

6. IMPOSTOS
Por acordo com os palestinianos, é Israel quem cobra os impostos pagos nos territórios. Depois, o dinheiro é transferido em tranches para a Autoridade Palestiniana (AP, o governo interino instituído pelos Acordos de Oslo), mas nem sempre ao ritmo desejado pelos palestinianos. Em entrevista ao Expresso, em outubro, o embaixador palestiniano em Lisboa dizia que, nos últimos meses, a verba que recebia da AP só lhe permitia pagar metade das despesas de funcionamento da embaixada.

7. ÁGUA E LUZ
O contraste no acesso à água é especialmente visível na Cisjordânia. Colonatos com piscinas e relvados bem irrigados não distam longe de aldeias árabes, onde a água é bem medida para acudir às necessidades básicas. Já na Faixa de Gaza, não há dia sem umas horas às escuras. Segundo a B’Tselem, dos 600 megawatts necessários ao consumo diário chegam só 180 (120 fornecidos por Israel). Hoje, Gaza tem energia em ciclos de oito horas; no verão, chega a estar meio dia sem eletricidade.

8. DETENÇÕES
Kamal Abu Waar morreu esta semana de cancro na prisão israelita de Ramla. Tinha 46 anos e estava detido desde 2003. Era um dos 4500 palestinianos presos em Israel, 545 dos quais a cumprirem prisão perpétua, segundo a ONG palestiniana Addameer. Há 40 mulheres e 170 menores, alguns com 12 anos, levados de casa durante incursões militares noturnas. Cerca de 370 casos são detenções administrativas, sem acusação ou julgamento. Estima-se que 40% dos homens palestinianos já tenham sido detidos uma vez.

9. IMPUNIDADE
Dias após a morte de George Floyd, nos EUA, saiu às ruas da Palestina o movimento “Palestinian Lives Matter” para denunciar um caso de brutalidade policial. A 30 de maio, Iyad al-Hallaq, um palestiniano autista de 32 anos, foi morto a tiro pela polícia israelita, na Cidade Velha de Jerusalém, após não parar no checkpoint da Porta dos Leões. Este caso foi sujeito a investigação mas, segundo a ONG israelita Yesh Din, 80% das queixas relativas a suspeitas de ofensas contra palestinianos por parte de soldados são arquivadas.

10. DIVISÃO
Israel controla hoje os dois territórios palestinianos de forma diferente. A Cisjordânia com uma ocupação efetiva com colonos e militares. A Faixa de Gaza — um retângulo de 40 quilómetros por 6 a 12 de largura — através de um bloqueio por terra, mar e ar, desde 2007, imposto também pelo Egito. Disto decorre uma divisão política — a AP manda na Cisjordânia e o Hamas em Gaza — que só fragiliza os palestinianos.

Artigo publicado no “Expresso”, a 13 de novembro de 2020. Pode ser consultado aqui