O Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas concluiu mais uma sessão regular. Com tantos atropelos aos direitos humanos no mundo, as votações das resoluções acabaram por refletir outros interesses. Quer esteja em causa a Ucrânia, a Eritreia ou situações de violência religiosa, os países posicionam-se em função de quem é visado e não propriamente da justeza do assunto
Os direitos humanos não colhem unanimidade entre os Estados, nem mesmo quando não são respeitados e se espera uma reação de condenação de quem os viola. Isso ficou patente na 53.ª sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas que terminou na sexta-feira. Várias resoluções aprovadas expõem diferentes mundividências ou simplesmente aproveitamentos políticos que transformam os direitos humanos em armas de arremesso entre os Estados.
Um exemplo ficou espelhado na votação da resolução “Combater o ódio religioso que constitui incitamento à discriminação, hostilidade ou violência”, que condena e rejeita “os recentes atos públicos e premeditados de profanação do Sagrado Alcorão e destaca a necessidade de responsabilizar os autores desses atos de ódio religioso, conforme as obrigações dos Estados decorrentes do direito internacional dos direitos humanos”.
O documento exorta ainda “os Estados a examinar as suas leis nacionais, políticas e quadros legislativos para identificarem lacunas que possam impedir a prevenção e repressão de atos” que constituam incitamento ao ódio religioso, discriminação, hostilidade e violência.
No momento da votação da resolução — que foi apresentada pelo Paquistão (em nome dos membros da Organização da Cooperação Islâmica) e pelo Estado não-membro Palestina —, outras razões, que não o combate à islamofobia, falaram mais alto: 28 países aprovaram o texto, mas 12 votaram contra e 7 abstiveram-se.
Os oito membros da União Europeia que atualmente integram o Conselho de Direitos Humanos rejeitaram a resolução, tal como o Reino Unido e os Estados Unidos. A favor, votaram maioritariamente países muçulmanos, africanos e latino-americanos.
15
de março é o Dia Internacional do Combate à Islamofobia, aprovado por unanimidade pela Assembleia Geral das Nações Unidas. A data foi celebrada pela primeira vez este ano.
O problema do ódio religioso ganhou recentemente mais premência após um refugiado iraquiano ter queimado um exemplar do Alcorão em frente à mesquita central de Estocolmo, na Suécia. O ato aconteceu a 28 de junho, quando, em todo o mundo, os muçulmanos celebravam a Festa do Sacrifício (Eid al-Adha), uma das principais no calendário islâmico.
O gesto originou protestos de rua em vários países visando, em especial, os edifícios das embaixadas da Suécia. O Papa Francisco condenou o ato, dizendo-se “irritado e enojado”, e a adesão da Suécia à NATO ficou por um fio, depois de o Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, ter acusado o país nórdico de ser complacente com manifestações anti-islâmicas.
Retaliação abortada junto à embaixada de Israel
Em retaliação, um homem de origem síria residente na Suécia obteve autorização das autoridades do país para queimar um exemplar da Torá e uma Bíblia em frente à embaixada de Israel em Estocolmo. Previsto para este fim de semana, o protesto não foi avante, com o seu autor a reclamar apenas atenção.
“Quero mostrar que temos que nos respeitar uns aos outros, vivemos na mesma sociedade. Se eu queimar a Torá, outro a Bíblia, outro o Alcorão, vai haver guerra aqui. O que eu quis mostrar é que não está certo para fazer isso”, disse o homem.
O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas é um órgão intergovernamental composto por 47 Estados-membros que se comprometem com a promoção e a proteção dos direitos humanos. Eleitos todos os anos pela Assembleia Geral para mandatos de três anos, são escolhidos segundo um critério geográfico:
- 13 de África
- 13 da região Ásia-Pacífico
- 6 da Europa de Leste
- 8 da América Latina e Caraíbas
- 7 da Europa Ocidental e outros Estados
O Conselho reúne-se, em sessão ordinária, três vezes ao ano, em Genebra. Só os 47 membros têm direito a voto, mas qualquer membro da ONU tem direito à palavra. A sessão que se concluiu esta sexta-feira começou a 19 de junho. A 54.ª terá início a 11 de setembro próximo.
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vezes Portugal integrou o Conselho dos Direitos Humanos: entre 1990 e 1993 e, mais recentemente, entre 2015 e 2017.
Situada no Corno de África, a Eritreia foi outro dossiê quente que dividiu águas. O país está sinalizado como território onde há detenções arbitrárias, desaparecimentos forçados, condições prisionais desumanas e abusos sexuais e de género generalizados.
Recentemente, a Eritreia envolveu-se diretamente no conflito que engoliu a vizinha Etiópia, com epicentro na região do Tigray e que terminou oficialmente a 2 de novembro de 2022, com a assinatura de um tratado de paz.
Atrocidades nos dois lados da guerra
Em março deste ano, o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, afirmou que quer as Forças Nacionais de Defesa Etíope, e os seus aliados, como o exército eritreu, quer as forças afetas à Frente de Libertação do Povo de Tigray cometeram crimes de guerra durante os dois anos que durou o conflito.
No Conselho de Direitos Humanos, a resolução aprovada sobre o assunto, proposta por um grupo de países, entre os quais Portugal, é um conjunto de apelos genéricos — por exemplo, ao Governo eritreu, para tomar medidas imediatas e concretas, e ao relator especial da ONU, para apresentar um relatório ao Conselho sobre o assunto —, mas nem assim colheu unanimidade.
A favor, votaram apenas 18 países, 7 votaram contra e houve 21 abstenções. Ao lado da Eritreia, rejeitaram a resolução China, Cuba, Índia, Paquistão, Somália e Sudão.
A subalternização da importância dos direitos humanos aos interesses políticos ficou patente em três outras situações.
- SÍRIA — Um total de 24 países aprovaram uma resolução que condena o facto de as mulheres e crianças sírias serem alvo de ataques direcionados e de haver “leis ou práticas discriminatórias com base no género por quaisquer partes do conflito, predominantemente o regime sírio”. Quatro membros saíram em defesa do regime de Bashar al-Assad: Bolívia, China, Cuba e Eritreia.
- BIELORRÚSSIA — Uma resolução manifestando “profunda preocupação com as contínuas violações sistemáticas dos direitos humanos e das liberdades fundamentais na Bielorrússia, em particular as restrições opressivas em curso aos direitos à liberdade de reunião, associação e expressão pacíficas, tanto online como offline” foi respaldada por 20 países, tendo uma maioria de 21 membros optado pela abstenção. Em defesa do regime de Alexander Lukashenko posicionaram-se Bolívia, China, Cuba, Eritreia, Cazaquistão e Vietname.
- ISRAEL — O Conselho adotou uma resolução solicitando “recursos financeiros, humanos e ao nível do conhecimento” para aplicar uma resolução histórica de 2016, que, pela primeira vez, considerou os colonatos israelitas em território palestiniano, incluindo em Jerusalém Oriental e nos Montes Golã, “ilegais e um obstáculo à paz e ao desenvolvimento económico e social”. Na votação, 31 países votaram a favor, 13 abstiveram-se e três ficaram ao lado de Israel: República Checa, Reino Unido e Estados Unidos.
A atual composição do Conselho de Direitos Humanos conta com a presença da Ucrânia. A Federação Russa também foi eleita para este ciclo, mas a 7 de abril de 2022 renunciou ao cargo, na sequência de uma deliberação da Assembleia-Geral da ONU que suspendeu a Rússia do Conselho.
Com uma guerra em curso, a situação na Ucrânia foi também objeto de deliberação nesta sessão. Uma resolução relativa à “cooperação e assistência à Ucrânia no campo dos direitos humanos” foi rejeitada por China, Cuba e Eritreia, mas viabilizada por 28 votos favoráveis e 16 abstenções.
À mesa das discussões, o assunto tornou-se, ele próprio, uma guerra de argumentos. De um lado, acusações à Rússia de violação da Carta das Nações Unidas por uma agressão brutal, não provocada e injustificada que multiplica sofrimento na Ucrânia e consequências negativas em todo o mundo.
Do outro, países que atribuem as raízes da tragédia ucraniana às políticas dos Estados Unidos e à expansão para leste da Aliança Atlântica (NATO), à revelia das exigências de segurança de Moscovo. Para uns e outros, o Conselho de Direitos Humanos mais não é do que um campo de batalha.
(ILUSTRAÇÃO “Todo o ser humano tem direitos” FORBES INDIA)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de julho de 2023. Pode ser consultado aqui




