Arquivo de etiquetas: ONU

Direitos humanos são importantes, mas interesses políticos são ainda mais

O Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas concluiu mais uma sessão regular. Com tantos atropelos aos direitos humanos no mundo, as votações das resoluções acabaram por refletir outros interesses. Quer esteja em causa a Ucrânia, a Eritreia ou situações de violência religiosa, os países posicionam-se em função de quem é visado e não propriamente da justeza do assunto

Os direitos humanos não colhem unanimidade entre os Estados, nem mesmo quando não são respeitados e se espera uma reação de condenação de quem os viola. Isso ficou patente na 53.ª sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas que terminou na sexta-feira. Várias resoluções aprovadas expõem diferentes mundividências ou simplesmente aproveitamentos políticos que transformam os direitos humanos em armas de arremesso entre os Estados.

Um exemplo ficou espelhado na votação da resolução “Combater o ódio religioso que constitui incitamento à discriminação, hostilidade ou violência”, que condena e rejeita “os recentes atos públicos e premeditados de profanação do Sagrado Alcorão e destaca a necessidade de responsabilizar os autores desses atos de ódio religioso, conforme as obrigações dos Estados decorrentes do direito internacional dos direitos humanos”.

O documento exorta ainda “os Estados a examinar as suas leis nacionais, políticas e quadros legislativos para identificarem lacunas que possam impedir a prevenção e repressão de atos” que constituam incitamento ao ódio religioso, discriminação, hostilidade e violência.

No momento da votação da resolução — que foi apresentada pelo Paquistão (em nome dos membros da Organização da Cooperação Islâmica) e pelo Estado não-membro Palestina —, outras razões, que não o combate à islamofobia, falaram mais alto: 28 países aprovaram o texto, mas 12 votaram contra e 7 abstiveram-se.

Os oito membros da União Europeia que atualmente integram o Conselho de Direitos Humanos rejeitaram a resolução, tal como o Reino Unido e os Estados Unidos. A favor, votaram maioritariamente países muçulmanos, africanos e latino-americanos.

15

de março é o Dia Internacional do Combate à Islamofobia, aprovado por unanimidade pela Assembleia Geral das Nações Unidas. A data foi celebrada pela primeira vez este ano.

O problema do ódio religioso ganhou recentemente mais premência após um refugiado iraquiano ter queimado um exemplar do Alcorão em frente à mesquita central de Estocolmo, na Suécia. O ato aconteceu a 28 de junho, quando, em todo o mundo, os muçulmanos celebravam a Festa do Sacrifício (Eid al-Adha), uma das principais no calendário islâmico.

O gesto originou protestos de rua em vários países visando, em especial, os edifícios das embaixadas da Suécia. O Papa Francisco condenou o ato, dizendo-se “irritado e enojado”, e a adesão da Suécia à NATO ficou por um fio, depois de o Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, ter acusado o país nórdico de ser complacente com manifestações anti-islâmicas.

Retaliação abortada junto à embaixada de Israel

Em retaliação, um homem de origem síria residente na Suécia obteve autorização das autoridades do país para queimar um exemplar da Torá e uma Bíblia em frente à embaixada de Israel em Estocolmo. Previsto para este fim de semana, o protesto não foi avante, com o seu autor a reclamar apenas atenção.

“Quero mostrar que temos que nos respeitar uns aos outros, vivemos na mesma sociedade. Se eu queimar a Torá, outro a Bíblia, outro o Alcorão, vai haver guerra aqui. O que eu quis mostrar é que não está certo para fazer isso”, disse o homem.

O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas é um órgão intergovernamental composto por 47 Estados-membros que se comprometem com a promoção e a proteção dos direitos humanos. Eleitos todos os anos pela Assembleia Geral para mandatos de três anos, são escolhidos segundo um critério geográfico:

  • 13 de África
  • 13 da região Ásia-Pacífico
  • 6 da Europa de Leste
  • 8 da América Latina e Caraíbas
  • 7 da Europa Ocidental e outros Estados

O Conselho reúne-se, em sessão ordinária, três vezes ao ano, em Genebra. Só os 47 membros têm direito a voto, mas qualquer membro da ONU tem direito à palavra. A sessão que se concluiu esta sexta-feira começou a 19 de junho. A 54.ª terá início a 11 de setembro próximo.

2

vezes Portugal integrou o Conselho dos Direitos Humanos: entre 1990 e 1993 e, mais recentemente, entre 2015 e 2017.

Situada no Corno de África, a Eritreia foi outro dossiê quente que dividiu águas. O país está sinalizado como território onde há detenções arbitrárias, desaparecimentos forçados, condições prisionais desumanas e abusos sexuais e de género generalizados.

Recentemente, a Eritreia envolveu-se diretamente no conflito que engoliu a vizinha Etiópia, com epicentro na região do Tigray e que terminou oficialmente a 2 de novembro de 2022, com a assinatura de um tratado de paz.

Atrocidades nos dois lados da guerra

Em março deste ano, o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, afirmou que quer as Forças Nacionais de Defesa Etíope, e os seus aliados, como o exército eritreu, quer as forças afetas à Frente de Libertação do Povo de Tigray cometeram crimes de guerra durante os dois anos que durou o conflito.

No Conselho de Direitos Humanos, a resolução aprovada sobre o assunto, proposta por um grupo de países, entre os quais Portugal, é um conjunto de apelos genéricos — por exemplo, ao Governo eritreu, para tomar medidas imediatas e concretas, e ao relator especial da ONU, para apresentar um relatório ao Conselho sobre o assunto —, mas nem assim colheu unanimidade.

A favor, votaram apenas 18 países, 7 votaram contra e houve 21 abstenções. Ao lado da Eritreia, rejeitaram a resolução China, Cuba, Índia, Paquistão, Somália e Sudão.

A subalternização da importância dos direitos humanos aos interesses políticos ficou patente em três outras situações.

  1. SÍRIA — Um total de 24 países aprovaram uma resolução que condena o facto de as mulheres e crianças sírias serem alvo de ataques direcionados e de haver “leis ou práticas discriminatórias com base no género por quaisquer partes do conflito, predominantemente o regime sírio”. Quatro membros saíram em defesa do regime de Bashar al-Assad: Bolívia, China, Cuba e Eritreia.
  2. BIELORRÚSSIA  Uma resolução manifestando “profunda preocupação com as contínuas violações sistemáticas dos direitos humanos e das liberdades fundamentais na Bielorrússia, em particular as restrições opressivas em curso aos direitos à liberdade de reunião, associação e expressão pacíficas, tanto online como offline” foi respaldada por 20 países, tendo uma maioria de 21 membros optado pela abstenção. Em defesa do regime de Alexander Lukashenko posicionaram-se Bolívia, China, Cuba, Eritreia, Cazaquistão e Vietname.
  3. ISRAEL  O Conselho adotou uma resolução solicitando “recursos financeiros, humanos e ao nível do conhecimento” para aplicar uma resolução histórica de 2016, que, pela primeira vez, considerou os colonatos israelitas em território palestiniano, incluindo em Jerusalém Oriental e nos Montes Golã, “ilegais e um obstáculo à paz e ao desenvolvimento económico e social”. Na votação, 31 países votaram a favor, 13 abstiveram-se e três ficaram ao lado de Israel: República Checa, Reino Unido e Estados Unidos.

atual composição do Conselho de Direitos Humanos conta com a presença da Ucrânia. A Federação Russa também foi eleita para este ciclo, mas a 7 de abril de 2022 renunciou ao cargo, na sequência de uma deliberação da Assembleia-Geral da ONU que suspendeu a Rússia do Conselho.

Com uma guerra em curso, a situação na Ucrânia foi também objeto de deliberação nesta sessão. Uma resolução relativa à “cooperação e assistência à Ucrânia no campo dos direitos humanos” foi rejeitada por China, Cuba e Eritreia, mas viabilizada por 28 votos favoráveis e 16 abstenções.

À mesa das discussões, o assunto tornou-se, ele próprio, uma guerra de argumentos. De um lado, acusações à Rússia de violação da Carta das Nações Unidas por uma agressão brutal, não provocada e injustificada que multiplica sofrimento na Ucrânia e consequências negativas em todo o mundo.

Do outro, países que atribuem as raízes da tragédia ucraniana às políticas dos Estados Unidos e à expansão para leste da Aliança Atlântica (NATO), à revelia das exigências de segurança de Moscovo. Para uns e outros, o Conselho de Direitos Humanos mais não é do que um campo de batalha.

(ILUSTRAÇÃO “Todo o ser humano tem direitos” FORBES INDIA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de julho de 2023. Pode ser consultado aqui

O veto não é democrático, mas sem ele os cinco grandes sairiam da ONU

A guerra na Ucrânia tornou a reforma do Conselho de Segurança praticamente impossível

Há 20 anos, o mundo estava tomado por uma guerra. Com o argumento de que havia que neutralizar as armas de destruição maciça do ditador Saddam Hussein, os Estados Unidos invadiram o Iraque, à frente de uma coligação de países, mas sem o respaldo de uma resolução da Organização das Nações Unidas (ONU). A maioria dos 15 membros do Conselho de Segurança (CS) — o órgão de decisão, por excelência, da organização — pedia tempo para que os inspetores encontrassem as armas. Mas o interesse dos Estados Unidos foi noutro sentido.

Na atualidade, o mundo contorce-se com outro conflito com impacto global — a invasão russa da Ucrânia, desencadeada com base numa narrativa propagandeada pelo Kremlin, segundo a qual russos e ucranianos são “uma nação”. Também aqui o agressor é um membro permanente do CS.

Conjunturas políticas como estas colocam as Nações Unidas sob fogo, incapazes de tomar decisões consentâneas com os valores que defendem, desde logo punindo um Estado-membro, por mais poderoso que seja, pela agressão a outro.

Três vetos a Portugal

Politicamente, esta organização intergovernamental assenta na Assembleia-Geral — onde todos os membros têm igual peso nas votações — e no Conselho de Segurança, o verdadeiro órgão decisor, com 15 membros, cinco dos quais permanentes (Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido e França) e com poder de bloqueio de decisões. Na década de 1940, por três vezes a União Soviética (precursora da Federação Russa) vetou a adesão de Portugal às Nações Unidas.

Este privilégio do veto é contestado há décadas, mas contextos como o atual — com a Rússia (que este mês preside ao CS) a vetar resoluções condenatórias da sua própria atuação na Ucrânia — tornam a reforma do órgão mais urgente. “O veto foi dado às potências vencedoras da II Guerra Mundial na esperança que fossem a garantia da paz internacional. Não são nem nunca foram. A questão do veto tem de ser ultrapassada”, afirma ao Expresso António Monteiro, embaixador de Portugal nas Nações Unidas entre 1997 e 2001.

Juiz em causa própria

Um senão: “Só quem pode reformar o CS é o próprio CS. E já percebemos que não há muito interesse nisso. Mais ainda na conjuntura atual, que se está a complicar e bastante. Estamos numa situação cada vez mais imprevisível”, diz ao Expresso Victor Ângelo, que foi secretário-geral adjunto de Kofi Annan (1997-2006) e de Ban Ki-moon (2007-16). “Neste momento, tendo em conta a grande divisão que existe no CS, em particular a oposição entre Estados Unidos e Rússia, entre Estados Unidos e China, a aliança entre Rússia e China e a ideia de que o mundo vai para uma situação de bipolaridade, a reforma do CS é praticamente impossível.”

“O veto foi dado às potências vencedoras da II Guerra Mundial na esperança que fossem a garantia da paz. Não são, nem nunca foram”, defende o ex-MNE António Monteiro

O funcionamento da ONU e a atribuição do veto a cinco países são regidos pela sua Carta fundadora, assinada a 26 de junho de 1945 em São Francisco. O documento não sustenta a possibilidade de um membro permanente ficar sem veto, mas prevê a suspensão da participação de outros membros na Assembleia-Geral.

“A guerra na Ucrânia veio mostrar a inadequação deste modelo, que vem do final da II Guerra Mundial, ao que é hoje o equilíbrio de poderes do mundo”, diz Monteiro, que foi ministro dos Negócios Estrangeiros (2004-05). Se, em 1945, a Carta foi assinada por 50 países, hoje a ONU tem 193 membros. “O modelo de CS não só não contribui para resolver os conflitos como pode até agravá-los ou dar azo a que se perpetuem.”

Longe vão os anos em que, terminada a Guerra Fria, parecia haver harmonia suficiente na comunidade internacional para se reformar a ONU. Para se perceber quão distantes estão esses tempos, recorde-se que, a 27 de maio de 1997, foi assinado o Ato Fundador sobre Relações Mútuas, Cooperação e Segurança, entre a Rússia e… a NATO. “Nos anos 90, tinha terminado a rivalidade com a União Soviética e acreditou-se que seria possível fazer a reforma do CS”, diz Victor Ângelo. “Já não correspondia ao mundo que existia, e hoje ainda menos.”

Da vontade de refazer o CS, com base sobretudo em critérios geográficos e económicos, começaram a brotar dificuldades. África queria representatividade, mas três candidatos acotovelavam-se: África do Sul, Nigéria e Egito. Na América Latina, o Brasil surgia como hipótese óbvia, mas tinha a concorrência da outra grande economia da região, o México, com influência sobre Washington.

Na Ásia, a Índia — hoje prestes a substituir a China como país mais populoso do mundo — era consensual, mas também seriam opções o Paquistão (potência nuclear), a Indonésia (poder islâmico) e o Japão (poder económico), este com garantida oposição da China. Mesmo entre os europeus, havia que partir pedra. A Alemanha, motor económico do continente, seria presença evidente num CS reformado. Mas em vez de alemães, franceses e britânicos individualmente, não deveria estar a União Europeia?

Um órgão antidemocrático

À parte o alargamento, Monteiro insiste que o foco deve ser colocado “no funcionamento do CS e, sobretudo, no poder de veto de cinco países, que transforma o CS num órgão antidemocrático. Basta um membro permanente estar em causa para não só vetar as decisões como usar a ameaça do veto como meio de pressão para que as negociações sigam em determinado sentido”.

Que caminho seguir, então? Conferir o veto a mais países ou acabar com ele? Victor Ângelo vaticina: “Um CS sem direito de veto significaria que os cinco países sairiam da ONU. O veto é fundamental para os manter dentro do sistema. Dá-lhes uma espécie de escudo protetor. Esses países têm grandes interesses geoestratégicos, o veto é maneira de terem um mínimo de garantias de que esses interesses serão defendidos. Sejamos realistas: têm esse direito e não vão abdicar dele.”

Tendo trabalhado 32 anos na ONU, considera que uma organização universalista não dispensa um órgão mais restrito. “Quando foi concebido, o CS tinha dois grandes objetivos: evitar novo conflito entre as grandes potências, por isso os cinco mais importantes ficaram com poder de veto; e funcionar como órgão de decisão que permitisse resolver os conflitos no resto do mundo.” A guerra na Ucrânia prova que estão por cumprir.

QUEM VETOU O QUÊ

URSS/RÚSSIA: 122 vetos É quem mais recorre ao veto. Desde 1946, já o fez 90 vezes enquanto União Soviética e 32 como Federação Russa (pós-1991). Nos últimos anos, os russos têm sido amigos dos regimes da Síria, Coreia do Norte, Venezuela e Mianmar. A União Soviética vetou em três ocasiões a adesão de Portugal: 1946, 1947 e 1949.

ESTADOS UNIDOS: 82 vetos Mais de um terço dos seus vetos foram relativos à “questão palestiniana” ou aos “territórios árabes ocupados”, sempre em defesa de Israel. Há ainda 12 relativos à “situação no Médio Oriente”. Foi na década de 80 que Washington mais vetou (42). Adiou a adesão à ONU do Vietname e de Angola.

REINO UNIDO: 29 vetos Só cinco vezes aplicou o veto individualmente: foi nos anos 60 e 70 e sempre por causa da Rodésia do Sul (colónia britânica, futuro Zimbabué). Em 13 vezes fê-lo em conjunto com Estados Unidos e França, nove só com os americanos e em duas ocasiões com os franceses.

CHINA: 17 vetos Vetou 14 resoluções com a Rússia. Bloqueou decisões a solo três vezes: sobre a Antiga República Jugoslava da Macedónia, a paz na América Central, e chumbou a adesão do Bangladesh.

FRANÇA: 16 vetos Vetou 13 vezes com Londres e Washington, duas só com os britânicos. Em 1976 bloqueou sozinha uma resolução relativa às ilhas Comores.

(IMAGEM Bandeira da Organização das Nações Unidas WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 21 de abril de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Um ‘navio-fantasma’ a cair aos bocados e em risco de explodir

A ONU corre contra o tempo para chegar a um navio de 47 anos, carregado de combustível e abandonado em zona de guerra. O “Safer” ameaça “uma catástrofe de proporções épicas”

Imagem de satélite do petroleiro “Safer” FOTO MAXAR TECHNOLOGIES

A cada minuto que passa, o mundo está mais próximo de um grande desastre. Ao largo do Iémen, no corredor do Mar Vermelho, um superpetroleiro carregado com mais de um milhão barris de crude está abandonado há sete anos e em acelerado processo de degradação.

“É provável que se afunde ou expluda a qualquer momento”, alertou recentemente David Gressly, o coordenador humanitário das Nações Unidas para o Iémen. “Ninguém quer que o Mar Vermelho se transforme num mar negro, mas é isso que vai acontecer”, acrescentou. “Não se trata de uma questão de ‘se’, é apenas uma questão de ‘quando’.”

Um superpetroleiro com mais de um milhão barris de crude está abandonado há sete anos e a degradar-se

No centro deste alarme está o “FSO Safer”, uma embarcação gigante com espaço suficiente para transportar três milhões de barris de crude. Está ancorado no mesmo local há 30 anos, sensivelmente a oito quilómetros da península iemenita de Ras’ Isa. Foi ali colocado para funcionar como terminal flutuante para armazenamento e descarga do crude explorado nos campos de Ma’rib (oeste) de onde o petróleo é transportado para o navio por um oleoduto de quase 450 quilómetros.

Consequência da guerra

Enquanto funcionou regularmente, a empresa proprietária do navio, a petrolífera estatal iemenita SEPOC, assegurou as manutenções necessárias. Os problemas começaram em 2015, quando o Iémen deu mais um mergulho no abismo. Os huthis — grupo político-religioso xiita zaidita apoiado pelo Irão — tomaram o poder pela força, levando as autoridades reconhecidas internacionalmente a refugiarem-se na cidade de Aden, no sueste do país.

O derramamento da carga originaria a quinta maior fuga de crude de um petroleiro da história

Percecionando a ofensiva huthi como avanço do arquirrival Irão na sua península, a Arábia Saudita mobilizou um conjunto de países da região e desencadeou uma operação militar no Iémen, apoiada em bombardeamentos aéreos, um bloqueio naval e incursões terrestres. Com o Iémen em guerra civil, o “Safer” ficou ao abandono e tornou-se uma bomba-relógio.

O volte-face dos huthis

As Nações Unidas estimam que em caso de derramamento da totalidade da carga a bordo, este navio seria o protagonista da quinta maior fuga de crude da História a partir de um petroleiro. O incidente mais grave ocorreu em 1979, ao largo da ilha caribenha de Tobago, na sequência da colisão entre o “Atlantic Empress” e o “Aegean Captain”, durante uma tempestade tropical. Foram despejados para o Mar das Caraíbas mais de 2,1 milhões de barris de petróleo.

Em caso de fuga, a ONU estima que sejam necessários €18 mil milhões para ações de limpeza

Para lá da corrosão do casco, da degradação dos equipamentos e de uma inundação na casa das máquinas detetada a 27 de maio de 2020 (e reparada pelos huthis, não se sabe com que eficiência), o “Safer” representa um perigo de explosão decorrente da possível ignição do gás acumulado nos tanques de armazenamento.

Desde há anos que as Nações Unidas olham para esta embarcação, construída em 1976, como putativa origem de “uma catástrofe de proporções épicas”. Em agosto de 2019, a partida de uma equipa de peritos para avaliar o estado do navio e proceder a reparações estava iminente quando, na véspera, foi cancelada pelas autoridades huthis.

Desta vez há garantias de uma efetiva colaboração por parte dos huthis, sobretudo após a assinatura de um Memorando de Entendimento, a 5 de março de 2022, entre “as Nações Unidas e as autoridades de Saná”, que reconheceu a existência de “amplos e múltiplos riscos”.

ONU comprou navio novo

Russell Geekie, assessor do coordenador humanitário da ONU para o Iémen, detalha ao Expresso os contornos da operação. “Há uma primeira fase, de emergência, em que uma equipa de salvamento tornará o ‘Safer’ seguro para a transferência do petróleo do navio degradado para um navio de substituição e preparará o ‘Safer’ para ser rebocado. A segunda fase compreende a instalação de uma boia de ancoragem em catenária à qual a embarcação de substituição será amarrada, e o reboque do ‘Safer’ para uma área verde, para reciclagem.”

Há um mês, o Programa da ONU para o Desenvolvimento comprou um navio para substituir o “Safer”

O navio de substituição foi comprado há cerca de um mês pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento à empresa belga Euronav, por 55 milhões de dólares (mais de €50 milhões). “É um petroleiro muito grande de duplo casco”, descreve o funcionário da ONU. “Deve navegar esta semana em direção ao Mar Vermelho, desde uma doca seca na China, onde foi feita a manutenção e modificações com vista à operação.”

Recurso a crowdfunding

Em caso de derrame, a ONU calcula que sejam necessários 20 mil milhões de dólares (€18 mil milhões) para custear as ações de limpeza. O dinheiro apareceria certamente com uma facilidade que não acontece agora, quando ainda se está em fase de prevenção da catástrofe. A ONU pede 129 milhões de dólares (€118 milhões) para a primeira fase da operação de resgate do “Safer”, mas as verbas entram a conta-gotas: ainda só estão assegurados 95 milhões de dólares (€87 milhões).

Um Memorando de Entendimento assinado há um ano garante a colaboração dos huthis na operação da ONU

“Além das contribuições de Estados-membros, a verba angariada inclui mais de 12 milhões de dólares (€11 milhões) provenientes do sector privado e 250 mil dólares (quase €230 mil) arrecadados num crowdfunding”, explica Geekie.

A campanha de crowdfunding, que apela à recolha de 500 mil dólares, é a forma que qualquer cidadão tem de dizer ‘presente’ e de se associar à resolução de um grave problema. “As contribuições variam entre $1 e $4000 de um indivíduo no Canadá”, diz o assessor. Entre os doadores estão também seis crianças de uma escola primária do estado norte-americano de Maryland.

Solução à vista

“Estamos mais perto do que nunca de evitar esta catástrofe, mas precisamos urgentemente de preencher a lacuna orçamental de 34 milhões de dólares (€31 milhões) para fazer face à primeira fase da operação”, apela Russell Geekie. “As Nações Unidas estão confiantes de que a transferência do crude pode ser completada em junho, desde que haja financiamento em breve.”

Paralelamente ao financiamento, há desenvolvimentos políticos recentes que podem levar o “Safer” a bom porto. O acordo de normalização da relação diplomática entre a Arábia Saudita e o Irão, anunciado a 10 de março, potencia condições para a resolução do problema. Os dois países querem fechar frentes de batalha entre ambos e a guerra no Iémen é a mais urgente.

RELACIONADO: Possíveis efeitos de um derrame no “Safer”

Artigo publicado no “Expresso”, a 6 de abril de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Possíveis efeitos de um derrame no “Safer”

Além do dano ambiental, a fuga de crude destruiria o sector da pesca no Iémen e bloquearia o comércio pelo Mar Vermelho

Imagem de satélite do petroleiro “Safer” FOTO MAXAR TECHNOLOGIES

HUMANITÁRIAS

GUERRA Antes de estalar a guerra civil, o Iémen já era um dos países mais pobres do mundo. Hoje, 90% dos mais de 30 milhões de habitantes sobrevivem graças à ajuda humanitária internacional. Um derrame da dimensão da carga do “Safer” obrigaria a encerrar o porto de Hudaydah, o segundo maior do país, importante porta de entrada de assistência humanitária e de tudo o que o Iémen importa. Estima-se também que mais de 8 mil poços fossem contaminados, tornando o acesso à água ainda mais difícil e potenciando surtos de doenças.

AMBIENTAIS

BIODIVERSIDADE A fuga de 156 mil toneladas de crude para o mar exporia milhões de pessoas, no Iémen e na vizinhança, a altos níveis de poluição. Provocaria também uma grande destruição de fauna e flora, numa área que é um verdadeiro santuário de biodiversidade. Segundo a organização ambiental iemenita Holm Akhdar (sonho verde, em árabe), haveria também impacto direto no ecossistema do Mar Vermelho, onde há 416 espécies de peixes, 485 de algas, 625 de moluscos, 53 de crustáceos e 16 tipos de tubarões. Seria também uma sentença de morte para as mais de 300 espécies de recifes de coral.

ECONÓMICAS

PESCA Com cerca de 2500 quilómetros de costa, 186 ilhas e abundantes recursos marinhos, a indústria da pesca é, naturalmente, um esteio da economia iemenita. Um derrame atingiria não só o Mar Vermelho como o Golfo de Aden, acabando com o ganha-pão de 126 mil pescadores, num país onde as ofertas de trabalho não abundam. Entre os outros países potencialmente mais afetados por um desastre em torno do “Safer”, o Jibuti tem sido das vozes mais ansiosas. Nos últimos anos, o “Safer” merece menção constante nos discursos dos governantes do Jibuti na Assembleia-Geral da ONU.

COMERCIAIS

ROTA Se não fosse suficientemente grave o amplo impacto de um incidente no “Safer” para o Iémen e países vizinhos, uma tal catástrofe teria inevitavelmente consequências na Europa, já que provocaria a disrupção do trânsito pelo Mar Vermelho. Estima-se que 10% do comércio global sejam transportados por essa rota, em todo o tipo de embarcações.

RELACIONADO: Um ‘navio-fantasma’ a cair aos bocados e em risco de explodir

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 6 de abril de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Nas Nações Unidas, 185 países votaram pelo fim do embargo a Cuba. Então porque não acaba?

O bloqueio económico imposto pelos Estados Unidos a Cuba dura há 12 presidentes. Republicanos ou democratas, de John F. Kennedy a Joe Biden, nenhum se atreveu a contrariar a sensibilidade dos cubanos exilados em Miami. “Democratas como Biden deviam ter visto há muito tempo que a Florida já não é um estado indeciso. Os democratas não têm hipótese de ganhar”, diz ao Expresso um estudioso norte-americano da América Latina. “É moralmente injustificável continuar a negar as necessidades básicas ao povo cubano, especialmente medicamentos e equipamentos médicos”

As garras do Tio Sam envolvem a ilha de Cuba CARLOS LATUFF / CANADIAN DIMENSION

Há 124 anos, por esta altura, Cuba saboreava os primeiros dias como país independente. A 10 de dezembro de 1898, terminara a terceira guerra contra o colonizador espanhol, em que os cubanos contaram com a preciosa ajuda de tropas norte-americanas.

Nas décadas seguintes, a ilha caribenha ficou na dependência económica dos Estados Unidos. Quando, a 1 de janeiro de 1959, a revolução socialista de Fidel Castro e Ernesto “Che” Guevara triunfou sobre a ditadura de Fulgencio Batista, para muitos cubanos isso significou a libertação de outro tipo de colonialismo.

A nacionalização de dezenas de empresas norte-americanas, decretada pelo novo regime, levou Washington a impor restrições comerciais à ilha. Numa primeira fase, ficaram de fora alimentos e medicamentos (Administração Eisenhower); posteriormente, um embargo afetou todo o comércio (Administração Kennedy).

Esse bloqueio económico dura até hoje. Desde 1992, por iniciativa de Cuba, a Assembleia-Geral das Nações Unidas vota, anualmente, a resolução “Necessidade de acabar com o embargo económico, comercial e financeiro imposto pelos Estados Unidos da América contra Cuba” — em 2020, devido à pandemia, a votação não se realizou.

Estados Unidos quase isolados

A resolução não é juridicamente vinculativa, mas permite tirar o pulso à opinião mundial sobre o assunto. Na primeira resolução, em 1992, apenas 59 países votaram a favor; hoje, há quase unanimidade contra o embargo. É isso que espelha a última votação, a 3 de novembro passado:

▪ 189 Estados-membros votaram;
▪ 185 votaram a favor do fim do embargo;
▪ 2 votaram contra: Estados Unidos e Israel;
▪ 2 abstiveram-se: Brasil e Ucrânia.

ISRAEL — “O voto de Israel não parece ser surpreendente. É um firme aliado dos Estados Unidos”, explica ao Expresso o politólogo argentino Ignacio Labaqui. Na Assembleia -Geral da ONU — onde os votos dos países têm todos o mesmo peso —, o Estado judeu tem sido o único a replicar cegamente a posição dos Estados Unidos.

BRASIL — “O Brasil de Jair Bolsonaro tem uma relação fria com o Governo de Joe Biden e mantém boas relações com a Rússia de Vladimir Putin. Provavelmente, se Lula da Silva já fosse Presidente teria votado contra o embargo”, acrescenta Labaqui. De 1992 a 2018, o Brasil votou sempre a favor do fim do embargo; em 2019 (o primeiro ano de Bolsonaro no Palácio do Planalto) votou contra e desde então tem-se abstido.

UCRÂNIA — Kiev tem optado pela abstenção desde 2019. No atual contexto de guerra, o voto ucraniano não será alheio à necessidade de ajuda militar e de mais sanções à Rússia. Até então, com uma única exceção em 1993 (em que se absteve), os ucranianos votaram sempre contra o embargo.

E Portugal?

Portugal tem votado pelo fim do embargo desde 1995, ano em que António Guterres se tornou primeiro-ministro. Entre 1992 e 1995, quando o Governo era chefiado por Aníbal Cavaco Silva, Portugal absteve-se na resolução apresentada por Cuba.

Da votação na ONU resulta um quase total isolamento dos Estados Unidos nesta questão. Ronn Pineo, historiador norte-americano e especialista na área da América Latina, recua aos primórdios da democracia norte-americana para explicar o porquê de sucessivos governos — ora republicanos ora democratas — insistirem no embargo.

“O sistema político dos Estados Unidos é altamente disfuncional. Aspetos importantes antiquados foram concebidos há muito tempo para proteger interesses económicos poderosos de épocas passadas. Este sistema foi elaborado por fazendeiros ricos e donos de escravos para frustrar qualquer possibilidade de uma verdadeira democracia. Este sistema perdura”, diz ao Expresso.

“É justo criticar o sistema político dos Estados Unidos como algo em funcionamento para assegurar a lei de uma minoria fechada. Os Estados Unidos não têm uma democracia funcional.”
Ronn Pineo

O peso eleitoral da Florida

“Uma característica deste sistema político injusto é a estranha alocação de poder político indevido a swing states, estados que ora podem cair para os democratas, ora para os republicanos, nas eleições presidenciais. A Florida é um desses estados.”

Na Florida vive a maior comunidade de cubano-americanos do país. Tem origem no êxodo de cubanos em fuga às lideranças dos irmãos Castro, que mandaram em Cuba durante quase seis décadas — Fidel entre 1959 e 2008, Raúl entre 2008 e 2018. “Ao criar raízes na Florida, estes cubano-americanos notabilizaram-se por uma característica constante no seu comportamento eleitoral: votam em função de um assunto único.”

“A única coisa com que os cubano-americanos se importavam era punir os Castro e usar todo o poder dos Estados Unidos contra a revolução cubana.”
Ronn Pineo

“Nos Estados Unidos, todos os candidatos presidenciais sentem que têm de ganhar na Florida se quiserem vencer no colégio eleitoral, e a única forma de vencer nesse estado é obter o voto fundamental dos cubano-americanos. Manter o bloqueio económico a Cuba foi essencial para conquistar esse voto. Para os candidatos presidenciais e para os presidentes não houve penalização política pela continuação do bloqueio. E não há nenhum grupo de eleitores americanos que considere o levantamento do bloqueio assim tão importante.”

Além da influência do lóbi cubano de Miami, Ignacio Labaqui identifica outra razão que dificulta o levantamento do embargo. “O embargo surgiu por um decreto presidencial da Administração Kennedy. Manter ou levantar o embargo era uma decisão presidencial. Isso mudou na década de 1990 com a lei Helms-Burton [de 1996], que, entre outras coisas, converteu o embargo numa decisão legislativa”, passando a reforçar o papel do Congresso nesta questão.

Guerra Fria acabou, embargo continuou

Originalmente, o embargo foi uma decisão vinculada à lógica da Guerra Fria. Hoje, isso faz pouco sentido. O embargo mostrou ser ineficaz para conseguir o objetivo que presidiu à sua criação: provocar a queda do castrismo através de sanções económicas”, acrescenta Labaqui.

“Desde a aplicação do embargo, passaram-se 61 anos e 12 presidentes norte-americanos, e a ditadura cubana ainda lá está.”
Ignacio Labaqui

“Por outro lado, a Guerra Fria acabou há mais de 30 anos, pelo que o argumento a favor do embargo de que Cuba é uma ameaça estratégica para a segurança dos Estados Unidos não é sustentável. O embargo continua porque é difícil conseguir maiorias legislativas [no Congresso] para o levantar e por causa da influência dos grupos mais anticastristas do exílio cubano.”

Na Assembleia-Geral da ONU, só em 2016 os Estados Unidos não votaram contra o fim do embargo, optando pela abstenção. Israel acompanhou na abstenção e 191 países votaram a favor do levantamento do bloqueio económico à ilha. O inquilino da Casa Branca era Barack Obama que, em março desse ano, fizera história ao tornar-se o primeiro Presidente norte-americano a visitar Cuba em 88 anos — a última viagem realizara-se em 1928, por Calvin Coolidge.

O degelo ensaiado por Obama na relação bilateral com Cuba não produziu raízes. No ano seguinte, os Estados Unidos recuperaram o tradicional “não” e, assim que Donald Trump se tornou Presidente, os cubanos de Miami voltaram a respirar de alívio.

“Democratas como o Presidente Joe Biden deviam ter visto há muito tempo que a Florida já não é um estado indeciso. Esse cálculo político está errado. Os democratas não têm hipótese de ganhar este estado”, diz Pineo. O atual chefe de Estado foi eleito sem precisar de vencer na Florida, aliás.

“Podem ignorar com segurança os cubano-americanos que insistem em prosseguir com o bloqueio económico e, em vez disso, podem considerar apenas fazer a coisa certa”, diz o perito. “É moralmente injustificável continuar a negar as necessidades básicas ao povo cubano, especialmente medicamentos e equipamentos médicos.”

Florida, um feudo republicano

A eleições para o Congresso (midterms) de novembro passado confirmaram o domínio generalizado e amplo dos republicanos na Florida:

Ron DeSantis obteve 59,4% dos votos, sendo reeleito governador — é apontado como o mais forte candidato a desafiar Trump nas primárias republicanas para as presidenciais de 2024.
Para o Senado, Marco Rubio, de ascendência cubana, foi reeleito com 57,7%.
E para a Câmara dos Representantes, os eleitores da Florida elegeram 20 republicanos e oito democratas.

Nas Nações Unidas, o número máximo de países que votaram simultaneamente “não” foi quatro — aconteceu cinco vezes. Além de Israel, votaram ao lado dos Estados Unidos, em diferentes anos, Roménia, Albânia, Paraguai, Usbequistão, Ilhas Marshall, Brasil e Palau.

Um aliado chamado Palau

Ronn Pineo particulariza o caso deste microestado no Oceano Pacífico, com cerca de 20 mil habitantes, para expor a fragilidade de alguns apoios recebidos por Washington. “O Palau procurou defender o seu voto como ato de profunda consciência, contra a tirania socialista, mas esse voto é visto como resultado direto da dependência total da pequena nação em relação à assistência económica americana para a sua própria sobrevivência.”

“As nações que votam com os Estados Unidos são países que dependem profundamente da ajuda militar norte-americana. Os republicanos no Congresso poderiam acabar com a assistência militar americana se esses países, sobretudo Israel e a Ucrânia, votassem a favor de suspender o bloqueio económico dos Estados Unidos a Cuba.”

“O embargo terminará quando houver mudanças políticas efetivas ou de regime político em Cuba ou quando uma nova geração de cubanos ou de cubano-americanos entenda que deve terminar.” Nancy Gomes, diretora do polo em Portugal da Fundação Universitária Ibero-Americana (FUNIBER)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de dezembro de 2022. Pode ser consultado aqui